Os olhos do poder
por Katia Muricy
Resumo
A cultura francesa tem um fascínio pela visualidade, tanto que inventou o termo voyeur. Isso vem da utopia das Luzes, do Iluminismo que repele as trevas e exige a transparência do social para o cidadão comum. Descartes já havia mostrado que a luz é o princípio da geometria dos corpos e que a vista é “o mais nobre e universal” dos sentidos. A luz é como o espírito que faz reconhecer, num pedaço de cera, suas transformações. A percepção depende do entendimento. No século XVIII, a ênfase passa da luz para o olhar. Cabe ao sujeito arrancar as coisas de sua opacidade. Se ele se descobre finito, limitado, como mostrou Kant, cada frustração deve renovar sua vontade de verdade. E isso será fundamental para as transformações institucionais. O olhar médico, por exemplo, fará do hospital um espaço de cura (não mais de simples abrigo, como antes) e de produção de saber, a grande questão sendo garantir uma visibilidade total. É também a ideia do Panoptikon de Bentham, projeto arquitetônico destinado às penitenciárias com o objetivo de facilitar a inspeção, abolir o arbitrário, controlar a massa de indivíduos. E o mais importante, segundo Foucault: não importa tanto vigiar, mas fazer que os vigiados se acreditem vigiados e assim se tornem agentes do poder. Como resistir a essa sujeição? No conto “O alienista” de Machado de Assis, o dr. Bacamarte descobre que todo mundo é monomaníaco e deve ser internado em seu hospício, até que a população se revolta e tenta destruir aquela Bastilha do despotismo científico.
Já foi observado que o privilégio da experiência visual faz parte da tradição cultural francesa.[1] De Descartes às digressões de Roland Barthes e Gilles Deleuze sobre a fotografia e o cinema, passando pela clássica análise de Sartre sobre o olhar, os franceses parecem ter dado forma especulativa àquele fascínio escópico que outro francês, Jacques Lacan, soube tão bem revelar na teoria psicanalítica. E é certamente significativo ter sido cunhado em francês o termo para designar uma modulação mais intensa da experiência de fascínio comum a todos os homens: voyeur, voyeurismo.
Foram também, sem dúvida, os filósofos das Lumières — as luzes que, passados dois séculos, ainda brilham no horizonte de nossa cultura — que levaram mais longe as possibilidades significativas do discurso visual. A sociedade justa, livre, igualitária e fraterna é, para as Luzes, aquela que não opõe obstáculos ao olhar do cidadão comum. É a que, ao contrário, proporciona uma visibilidade plena dos mecanismos de seu funcionamento. O sonho de Rousseau, a utopia de que tantos revolucionários participam, é o de uma sociedade transparente, sem as zonas obscuras onde o arbítrio escapasse ao olhar do cidadão, olhar límpido que flagraria qualquer vestígio dos antigos privilégios da aristocracia.[2] Nesta sociedade perpassada por olhares, os corações se comunicariam, a opinião de cada cidadão, livremente circulando, reinaria sobre todos. O reino da opinião dos filósofos das Luzes é uma organização do poder sob a visibilidade coletiva e anônima. A esta exigência de transparência do social corresponde, no século XVIII, uma repulsa à escuridão, ao que escapa ou resiste ao olhar iluminista. A edificação de uma nova ordem moral e política dependia de que a luz da razão e da justiça, encarnada no olhar do cidadão, iluminasse as regiões sombrias onde se abrigam a ignorância, a superstição religiosa, a mentira dos tiranos. Nesse sentido, são muito sugestivas as considerações de Michel Foucault sobre a desconfiança e o medo que os homens do século das Luzes passaram a ter pelos lugares inacessíveis ao seu olhar: castelos, fortalezas, conventos, e também sobre como, no imaginário dos romances de terror contemporâneos à Revolução, .uma paisagem fantástica feita de masmorras, cemitérios e castelos passa a abrigar o horror.[3]
Este olhar que ilumina, que conhece e liberta é quase tão novo quanto a Revolução. Na valorização da experiência visual no pensamento clássico francês estava, no entanto, ausente o olhar.[4] Esta aula — seguimos as conhecidas análises de Foucault — quer mostrar, por um lado, 1) que se já existe o privilégio da experiência visual em uma certa tradição filosófica, a temática específica do olhar de um sujeito empírico (por exemplo, o cidadão) aparece no século XVIII; por outro lado, 2) que a utopia libertária desse olhar, expressa no Iluminismo, teve uma espécie de subproduto necessário que esclarece a sua origem e os seus limites, e nos permite pensar criticamente valores que, em última análise, são os de nossa modernidade.
Tomo o primeiro aspecto. Sabe-se que para Descartes (1596-1650) ver era perceber. Mas essa percepção, certamente possuindo seu corpo sensível, só é vista, isto é, só se torna transparente para o espírito, pela luz, anterior a qualquer olhar. A luz é o elemento de idealidade no qual as coisas estão adequadas a sua essência e à forma pela qual juntam-se a essa essência na geometria dos corpos. O primeiro discurso da Dióptrica é, não poderia deixar de ser, sobre a luz.[5] Descartes, para explicar o que é a luz e qual sua importância para a vista, o sentido que considera “o mais universal e o mais nobre” entre todos, faz uma comparação. A luz é um movimento, uma ação forte que age sobre os nossos olhos assim como, por exemplo, o bastão que nos ajuda a caminhar em uma noite escura, num terreno difícil. Se não levarmos uma tocha neste passeio, o bastão nos ajudará, ainda que imprecisamente, a distinguir os objetos que encontrarmos. Por sua ação saberemos se pisamos na água, na areia ou na lama; se esbarramos em pedras ou em arbustos. Os cegos de nascença, supõe Descartes, farão do bastão uma espécie de sexto sentido e até poderíamos dizer que eles vêem pelas mãos, isto é, pela ação do bastão sobre elas. A luz é para os nossos olhos o que o bastão é para o cego. É por ela que podemos distinguir as cores dos corpos: todos sabem que para serem vistos os objetos devem ser luminosos ou iluminados. Eles, e não os nossos olhos. E se os gatos podem ver no escuro é porque têm a luz nos seus olhos. Mais adiante, no quarto discurso, Descartes relembra ao leitor que é a alma que realmente vê, sente. E comprova a sua afirmação expondo certas circunstâncias em que a alma está distraída ou muito concentrada e o corpo fica com suas sensações enfraquecidas ou, até, desprovido delas.
Se examinarmos agora a segunda das Meditações, aquela famosa análise do pedaço de cera, esclareceremos esta última afirmação da Dióptrica. No momento em que esta análise é introduzida, Descartes acaba de estabelecer, pelo estratagema da dúvida, a certeza da existência do sujeito das representações, primeira das verdades na ordem das razões. A esta verdade inaugural do cogito devem se seguir outras, com as quais construirá a possibilidade do conhecimento, a legitimidade da ciência.
Vamos ler o texto:
Tomemos [diz Descartes] este pedaço’ de cera que acaba de ser tirado da colméia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som […]. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se evanesce, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele se torna líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá.[6]
Neste momento Descartes pergunta se após todas essas transformações ainda podemos dizer que estamos diante da mesma cera inicial. Certamente que sim, mas, então, a cera não era aquilo que os meus sentidos haviam me informado dela: nem a doçura do mel, nem o agradável odor das flores, nem à brancura, nem a sua figura ou o seu som. Tampouco sei da cera pelas infinitas formas que o seu corpo poderia tomar, uma vez que a minha imaginação nunca conseguiria percorrer toda essa infinidade. Se não são os sentidos e tampouco a imaginação, o que me faz reconhecer a mesma cera na diversidade de suas transformações é o meu espírito. Ora, o interessante é que para Descartes não se trata aqui da cera em geral mas, justamente, deste pedaço de cera: a sua percepção depende do entendimento. Assim (continuo lendo Descartes), “[…] a percepção [do pedaço de cera] não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação e jamais o foi […] mas somente uma inspeção do espírito que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente.”[7]
Ora, Descartes não quer dizer que não exista um conhecimento comum, o conhecimento sensível. Mas que a percepção está subordinada ao conceito: só posso percebera cera porque na diversidade sensível reconheço sua identidade. Este tipo de conhecimento pertence à razão, ao domínio da ciência e não ao da vida.[8] É aí que encontramos a visão clara e distinta das coisas, assim como é na luz e não em nosso olhar que, como ensina a Dióptrica, vemos os corpos.
Para o século XVIII, no seu final, a questão da visibilidade articula-se de forma muito diferente: agora, não é mais a luz que ilumina as coisas, mas o olhar. Não será mais a luz que revelará à razão, no espetáculo cambiante do mundo, a ordem serena da matemática. Ver será agora arrancar as coisas de sua opacidade sensível pela ação de uni olhar que ilumina a sua verdade e as eleva à condição de objetos para o seu conhecimento. O discurso racional passa a se constituir não mais sobre a geometria da luz, mas sobre os objetos.[9] Acontece que, ao querer ver claro no processo de representação, o sujeito desse olhar põe a si próprio como objeto e descobre-se ao mesmo tempo finito e autônomo.[10] Seu olhar pode se dirigir para a infinitude — a tarefa de objetivação é ilimitada —, mas descobre aí sua limitação. Este é o princípio que permite a Kant construir a sua teoria transcendental do conhecimento: os limites de uma faculdade de conhecer finita transformam-se em condições transcendentais de um conhecimento em progressão infinita. A cada frustração que irrompe neste percurso de objetivação renasce uma vontade de verdade, nesta vontade de verdade a razão moderna se determina.[11] A filosofia das Luzes é a sua exemplar manifestação.
Na segunda metade do século XVIII o olhar que não cessa de objetivar, de construir uma ordem que não é mais a das razões, mas a das coisas, irá penetrar em espaços inesperados.[12] Este olhar é fundamental para a compreensão do grande movimento de transformações institucionais do século. Objetivante e examinador, ele é o olhar do sujeito racional, que irá decompor analiticamente o espaço das instituições — escolas, asilos, hospitais, prisões — e transformar os outros sujeitos em objetos para a sua observação.
Um exemplo do olhar racionalizante é aquele analisado nos trabalhos de Michel Foucault, o olhar médico que lançará sua luz sobre os sombrios lugares da morte: os hospitais.[13] Vejamos, mais detidamente, a análise de Foucault. Os hospitais eram, até o final do século XVIII, lugares de exclusão onde se aglomeravam doentes mas igualmente loucos, indigentes, devassos, prostitutas. Eram lugares de morte, não medicalizados, mantidos pelas ordens religiosas e pela caridade pública no cumprimento do dever cristão de dar uma boa morte aos indivíduos, isto é, de assisti-los material e espiritualmente nessa passagem.
Ora, a partir de 1775, o governo da Inglaterra e o governo francês enviam representantes em viagem de observação pelos hospitais europeus.[14] Estes senhores — chamavam-se Howard e Terron — olham tudo e com olhos muito especiais. Seus relatórios trazem informações minuciosas sobre o espaço hospitalar: a proporção entre o número de doentes e o número de leitos, a extensão e a altura das salas, a cubagem de ar disponível para cada doente, as taxas de mortalidade e de cura. O olhar analítico penetra nos menores detalhes, de importância insuspeitada para os olhos do leigo, como o percurso das roupas sujas no interior do hospital até a lavanderia. E associa estas observações à inteligibilidade das patologias. É um olhar que transforma aquela coisa o hospital-lugar-de-morte — naquele objeto — o hospital como espaço de cura e de produção de conhecimento. Nos projetos de reforma dos hospitais ou de outras instituições, a grande questão será sempre a de garantir uma visibilidade total de seu espaço, e também dos corpos e das coisas, para o percurso do olhar analítico e centralizado em uma ciência. O olhar médico, por exemplo, esquadrinha o espaço hospitalar a partir da teoria sobre a importância da circulação do ar para a saúde e nela legitima o controle global e individualizante que exercerá sobre os homens.
Nesta política sistemática e racional dos espaços, observa Foucault, o sonho libertário do Iluminismo fica comprometido: a visibilidade pode ser uma armadilha totalitária.
E o que iremos ver na sua análise de um sistema ótico, muito singular e bastante sinistro: o panoptikon, o projeto arquitetônico de Jeremy Bentham. Bentham é uma figura exemplar da nova época, um autêntico precursor dos tempos modernos. Nasceu em Londres, em 1748; viveu o período da revolução industrial e da economia política de John Kay e Adam Smith.[15] As suas teorias fazem parte da vertente utilitarista do pensamento político inglês: Bentham pretendeu ser “o Newton de um mundo moral” centrado no interesse. Convencido que a repulsa à dor e a busca do prazer constituem os dois princípios que governam a conduta dos indivíduos e das sociedades, Bentham preocupava-se em captar todas as pulsões humanas para transformá-las em força produtiva. Ele chegou a elaborar uma escala numérica das sensações a serviço da produção. Este instrumento de cálculo seria imprescindível para um governo racional; Bentham engenheiro/ político define o utilitarismo: “Eis a técnica da barragem e da canalização aplicada à psicologia humana: o utilitarismo é uma hidráulica dos prazeres”.[16] Sua preocupação é a de realizar uma economia política das penas e dos prazeres, isto é, a distribuição racional do medo e do sofrimento que não aniquile o corpo útil para a produção. O seu campo de experimentação será, naturalmente, o sistema penitenciário. Sem invocar qualquer humanismo, Bentham é contra a pena de morte, imenso desperdício de força produtiva, e contra as torturas que causem mutilações irreversíveis, duplo prejuízo, do corpo útil e de dinheiro: afinal, será o Estado que arcará com o sustento dos corpos incapacitados para trabalho. Mas é a favor de uma máquina precisa de tortura, livre da imprecisão dispendiosa do carrasco; e propõe a construção de uma máquina cilíndrica de material elástico, espécie de pau-de-arara industrializado. O cálculo de Bentham é capaz de tirar proveito de todas as circunstâncias; sua proposta ressalva que, no caso em que houvesse muitos delinquentes a punir, a operação simultânea de muitas dessas máquinas “aumentaria o terror à cena sem nada acrescentar à perda real”.[17]
Isto é, majora-se o efeito da tortura gratuitamente, sem nenhuma despesa extra.
Bentham endereça o seu projeto à Assembléia Nacional Francesa. Está certo que a utilidade deste projeto será bem acolhida pela assembléia e que a França não recuará diante da novidade que ele apresenta, já que é da França que todos esperam inovações no campo da administração. O país da Revolução aparece como o lugar natural para a. implantação de idéias tão revolucionárias. Na carta ao deputado J. Garran, em novembro de 1791, Bentham escreve:
Entre todos os países, a França é aquele onde mais facilmente se perdoará uma ideia nova desde que ela seja útil; a França, para quem todos os olhares se dirigem e de quem se esperam modelos para todos os setores da administração, é o país que parece poder proporcionar, ao projeto que vos envio, a melhor oportunidade.[18]
O projeto pretendia ser um instrumento inigualável de poder para os governos, permitindo o controle de uma massa de homens de maneira que suas ações, suas relações, qualquer circunstância de suas vidas, mesmo as impressões que o meio lhes determina pudessem ser previstas em todos os seus efeitos. Este instrumento de controle poderia ser usado com diversos objetivos pelos governos. Mais ainda do que isto, o projeto de Bentham prometia que o uso desse instrumento de poder formidável seria feito com grande economia, sem o dispêndio das custosas vigilâncias feitas por um grande número de guardas. À eficácia da forma de controle sugerida somava-se o seu baixo custo: apenas um homem bastaria para acioná-lo.
A prisão será o lugar de teste da eficácia do projeto. No entanto, qualquer estabelecimento, com pequenas modificações, poderia provar da sua utilidade.
Ao permitir um controle total de baixo custo sobre os indivíduos, esse instrumento assegurava também outros benefícios para a administração: permitia, pela sua racionali-dade, um melhoramento das condições de saúde, de limpeza, de ordem, de produção nos diversos locais em que fosse aplicado. E tudo isto “por uma simples idéia de arquitetura”.
Esta ideia arquitetônica constituía o princípio de inspeção em novas bases. Sua novidade atingia “mais a imaginação do que os sentidos” e punha a inspeção na dependência de apenas um homem, “espécie de presença universal […] em seu domínio”.
Recordemos a figura arquitetônica desse instrumento: na periferia um edifício em forma de anel; no centro, uma torre. A torre dispõe de janelas largas que se abrem para o interior do anel. Estas janelas são protegidas por persianas. O edifício circular é dividido em células e cada uma dessas ocupa toda a espessura do edifício. Cada uma das células dispõe de duas janelas: uma aberta para o exterior e outra para o interior, face às janelas da torre. Com esta disposição das janelas, garante-se uma plena visibilidade da célula. Na torre central põe-se um vigilante; nas células, os indivíduos que se deseja vigiar.
“O inspetor invisível reina como um espírito; mas este espírito, se necessário, pode imediatamente dar prova de sua presença real.” Bentham batiza o seu projeto com o nome revelador, exato: “Este caso de penitência será chamado de panoptikon para exprimir com apenas uma palavra sua vantagem essencial, a faculdade de ver com uma olhadela tudo o que se passa”.[19]
Enumeremos as principais vantagens do panoptikon, segundo Bentham; uma vantagem evidente: “Estar incessantemente sob os olhos de um inspetor acarreta a perda da possibilidade de fazer o mal e até mesmo de pretender fazê-lo”.
Uma vantagem colateral: os subalternos na função de vigiar, os guardas de uma prisão, por exemplo, estarão também sob a mesma vigilância dos prisioneiros, ou dos vigiados em geral. Com isso a “tirania subalterna”, os “vexames secretos” isto é, o arbitrário, pode ser abolido.
Outra vantagem colateral: a disposição arquitetônica permite que a visita dos magistrados possa ser feita subitamente e com a rapidez de um único olhar sobre o todo. Com isso, desaparece o arbítrio também na inspeção. Mais do que isto, os cidadãos em geral, o público, poderão ter acesso ao estabelecimento: “Haverá, por outro lado, os curiosos, os viajantes, os amigos e parentes dos prisioneiros, os conhecidos do inspetor e dos outros oficiais da prisão que, animados por motivos diferentes, virão somar-se à força do princípio salutar da inspeção e vigiarão os chefes como os chefes vigiam todos os seus subalternos”.[20] Assim, o público terá o controle final sobre tais estabelecimentos.
No mecanismo deste instrumento, a inspeção será invisível. O olhar da torre nunca será visto pelos vigiados, mas pressuposto. Bentham abre uma exceção para a invisibilidade do olhar-vigia: a torre do inspetor poderá, no domingo, transformar-se em uma capela, acolhendo fiéis do exterior. Neste dia, as persianas poderão se abrir e os prisioneiros verão e ouvirão o padre que oficia. Desta vez, o olho de Deus ocupará a torre. Será também a única vez que os prisioneiros verão os olhos que os olham, evitando, nesta economia, uma banalização da dissimetria que acarretaria a diminuição do constrangimento causado ao faltoso que é olhado.
Vejamos agora as características do panoptikon. Foucault nos faz entender como Bentham não projeta somente uma sociedade utópica, descreve-nos também uma sociedade existente, isto é, no sonho de um sistema ótico de controle total, ele descreve mecanismos específicos de controle realmente existentes nas sociedades modernas. Do panoptikon passamos para o panotismo.[21]
O panoptikon é a plena exposição à luz. Em relação a esta visibilidade as sombras do calabouço eram protetoras pois permitiam que alguma coisa fosse subtraída ao controle, que alguma comunicação entre os indivíduos vigiados pudesse se dar sem o conhecimento dos vigias. A sua visibilidade plena isola; ela introduz uma dissimetria de olhares: na construção periférica se é totalmente visto, e nunca se vê; na torre central vê-se tudo, sem jamais ser visto. A invisibilidade em relação aos outros indivíduos que ocupam as células iluminadas garante a ordem: nenhuma possibilidade de comunicação. O indivíduo na máquina pan-ótica é sempre “objeto de uma informação”, mas jamais “sujeito de uma comunicação”.[22]
Este poder pan-ótico automatizado O panoptikon como distribuição espacial de olhares permite neutralizar o perigo da multidão. O grande crescimento demográfico do final do século XVIII e a industrialização determinam o aparecimento das grandes massas urbanas, realidade que constitui a preocupação maior de Bentham e de seus contemporâneos. O panoptikon permite a transformação da massa, lugar de trocas múltiplas e ameaçadoras, em uma multiplicidade enumerável, controlável de indivíduos: uma coleção de individualidades solitárias e vigiadas pelo olhar.
O panoptikon é uma máquina de funcionamento automático. Seu efeito mais importante é o de induzir no indivíduo um estado consciente e permanente de visibilidade que assegure o funcionamento automático do poder. Não importa, portanto, que o vigia esteja na torre, interessa é que os vigiados se acreditem vigiados. O poder é visível — a torre está sempre lá -, mas sua ação é inverificável — estarei sendo olhado neste momento? Esta característica fundamental permite que o poder da torre torne desnecessário o seu exercício; permite também que a relação de poder exista independentemente do sujeito que o exerce (qualquer um pode ocupar o posto na torre); e mais, que os vigiados, ao interiorizarem o olhar da torre, se tornem agentes de seu poder: “Aquele que está sujeito a um campo de visibilidade, e que sabe que está, toma a seu encargo os constrangimentos do poder, ele os aciona espontaneamente sobre si próprio […} e se torna princípio de sua própria sujeição”.[23]
Esse poder pan-ótico automatizado e desindividualizado que funciona pela distribuição racional dos corpos, das superfícies, da iluminação e dos olhares será característico das sociedades modernas do século XIX: o pan-otismo é o princípio geral de uma nova “anatomia política” cujo objeto e fim não são a relação de soberania, mas a de disciplina. Poder invisível diverso daquele do soberano que se fazia luminosamente visível nas vestes reais, nas cerimônias e nos rituais. Mas poder invisível que se exerce na visibilidade enganosa de sua razão.
Eu gostaria de concluir a exposição dessas análises de Foucault lembrando a resposta dada por ele, em uma entrevista, sobre as formas de resistência a esse olhar de que tratamos aqui. Foucault fala das revoltas contra o olhar e enumera alguns exemplos, como o da recusa dos trabalhadores em morar nas primeiras cidades proletárias. Aparentemente esta recusa não parecia nada racional, mas nela se revelava a compreensão crítica desses trabalhadores da racionalidade que as organizava. Outro exemplo mostra como a planificação de setores mecanizados nas fábricas, nos moldes do panoptikon, teve sucesso quando a mão-de-obra era feminina ou infantil (as mulheres e as crianças eram mais disciplinadas, mais obedientes), e sempre encontrou resistência entre os trabalhadores viris.
E para terminar gostaria de chamar a atenção de vocês para um exemplo brasileiro de resistência ao olhar dessa racionalidade instrumental. Entre nós, principalmente na segunda metade do século XIX, instaura-se também essa preocupação com a visibilidade, com a organização racional dos espaços e das instituições sociais. A criação dos hospícios medicalizados é um exemplo. A polêmica entre os médicos e filantropos no que se refere à administração do Hospício Pedro II testemunha o nosso exemplo. Mas vamos à resistência: Machado de Assis tem um conto, “O Alienista”, que vocês certamente conhecem. O Dr. Bacamarte, o alienista, lança sobre a vila um olhar esquadrinhador, olhar de cientista que pretende discernir as diversas encarnações da loucura entre os indivíduos aparentemente normais. Vocês sabem onde isso vai dar: Bacamarte irá descobrir em cada vizinho, em cada amigo, na própria mulher, um delirante, um monomaníaco. E vai internando todos em seu hospício. Até que a população se revolta e tenta destruir aquela Bastilha do despotismo científico. A aproximação com os revolucionários franceses não é, certamente, fortuita.
Em “O alienista”, Machado faz a sua crítica humorada às pretensões totalitárias da razão burguesa e situa muito bem as peculiaridades do projeto modernizador aqui entre nós, no Rio de Janeiro oitocentista.
[1] Cf. Martin Jay, “In the Empire of the Gaze: Foucault and the degeneration of vision in the XXth”, in Foucault a Critical Reader, David Hoy (org.).
[2] Cf. Jean Starobinski,Jean-Jacques Rousseau. La Transparence et l’obstacle, Paris, Gallimard, 1971.
[3] Cf. Michel Foucault, “L’oeil du pouvoir”, entrevista in Le panoptique, de Jeremy Bentham, Paris, Pierre Belfond, 1977.
[4] Cf. Michel Foucault, Naissance de la clinique, Paris, Presses Universitaires de France, 1972.
[5] René Descartes, Dioptrique, Paris, Garnier-Flammarion, 1966.
[6] René Descartes, Méditations, Oeuvres et lettres, Pléiade, Paris, Gallimard, 1953. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr. em Obras escollhidas, São Paulo, Gamier, 1973.
[7] Idem, ibidem.
[8] Cf. Martial Guéroult, Descartes selon l’ordre des raisons, Aubier, Paris, Ed. Montaigne, 1968.
[9] Cf. Michel Foucault, Naissance de la clinique, op. cit.
[10] Cf. Michel Foucault, Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.
[11] Cf. Jürgen Habermas, Les sciences humaines démasquées par la Critique de la Raison: Foucault, in Le Débat, n° 41, set.-nov. 1986.
[12] Cf. Michel Foucault, Naissance de la clinique, op. cit.
[13] Idem, ibidem.
[14] Michel Foucault, “L’oeil du pouvoir”, op. cit.
[15] Cf. Michelle Perrot, “L’inspecteur Bentham”, posfácio in Le panoptique, de Jeremy Bentham, Paris, Pierre Belfond, 1977.
[16] Jeremy Bentham, Le panoptique, Paris, Pierre Belfond, 1977.
[17] Idem, ibidem.
[18] Idem, ibidem.
[19] Idem, ibidem.
[20] Idem, ibidem.
[21] Cf. Michel Foucault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.