1990

Poeira das barricadas: notas sobre a comunidade anárquica

por Francisco Foot

Resumo

Os anarquistas foram os pioneiros em associar revolução e festa. Bakunin descreveu o ambiente proporcionado pelas revoluções de 1848 na Europa: “Era uma festa sem princípio nem fim […] Parecia que o universo inteiro estava invertido: o incrível havia se convertido em habitual, o impossível em possível, e o possível e o habitual em insensato!

Os revolucionários do século XIX utilizavam metáforas vulcânicas para exprimir a ideia das transformações históricas. Como exemplo, há o caso do revolucionário Auguste Blanqui. Em 1872, doente, viúvo e preso, após ter lutado e perdido nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de Paris de 1871, Blanqui escreveu um ensaio intitulado: A eternidade pelos Astros. Nesse texto, recuperado mais de sessenta anos depois por Water Benjamin, Blanqui dá espaço ao passageiro extravagante do universo.

No livro Da revolução, Hannah Arendt trata da experiência de perda inscrita nos processos revolucionários mais significativos da modernidade. Porém, existe um dilema interno ao movimento da revolução. Mesmo com o desejo de mudança radical, existe a vontade de que as conquistas reais sejam, de algum modo, preservadas. Esse tem sido o ponto mais vulnerável das revoluções.

A experiência radical da auto-representação e do autogoverno, em momentos raros como a Comuna de Paris e a Revolução de 1905, parece dissipar-se nas fases imediatamente pós-revoluções. Nos rituais da acomodação termidoriana — napoleônica ou stalinista —, esvai-se, não sem violência, o tumulto alegre daqueles dias singulares.

Na Espanha dos anos 30 do século XX, durante os choques entre os campos da revolução e da contra-revolução, o mundo contemporâneo conheceu o lirismo e a tragédia dos impasses históricos anarquistas, em sua modalidade mais moderna, o movimento anarco-sindical.

No livro, O curto verão da anarquia, do início dos anos 1970, Hans Magnus Enzensberger faz uma narrativa em torno da vida, luta e morte do personagem Buenaventura Durruti, líder operário anarquista da revolução espanhola. Enzensberger ressalta o papel do narrador coletivo como via única de acesso ao mundo perdido de Durruti e seus camaradas. Contra a memória do poder, resta sempre o poder redentor da memória.

Nas figuras libertárias do anticapitalismo, a trama temporal marcada pelo confronto entre narrativa e dispersão pode também ser traduzida em trama espacial. Na cidade, essa topografia muito especial encontraria endereços precários de antigas associações e jornais, clubes de cultura operária, quase todos em pontos obscuros e mutáveis. No campo, traçaria a rota esquecida das comunidades de desterrados, seja por auto-organização, seja pelas políticas sistemáticas de deportação que Estados, como o brasileiro na Primeira República, patrocinaram ativamente.

A ex-operária costureira ítalo-paulista Elvira Boni, militante anarquista do início do século, deu um depoimento, nos anos 1980, falando sobre os “sonhos proletários” e restaurando, em parte, experiências fundamentais. Jaime Cuberos e outros companheiros reconstroem o Centro de Cultura Social, no Brás, mantendo, na tradição dos debates e da memória do teatro operário anarquista, os sinais de outro tempo, de outro espaço.

Michel Foucault, em 1973, numa série de artigos de intervenção e combate nas páginas do Libération, lançava o projeto: “por uma crônica da memória operária”’ — em que afirmava o extremo valor político e filosófico de “reagrupar todas essas lembranças, para narrá-las e sobretudo para poder se servir delas e definir, a partir daí, instrumentos de lutas possíveis”. Edgard Leuenroth, Astrogildo Pereira e outros militantes do movimento operário no Brasil também construíram arquivos muito importantes. Todos esses resíduos históricos, essas “poeiras das barricadas” são preciosos, pois são eles que contarão e escreverão a história da comunidade anárquica.

 

 

 


Um incêndio, quando é justo, quando é bom, provoca o espasmo de excelsos prazeres, de emoções sublimes. Tem alguma coisa de maravilhosamente trágico, que nos faz entrever o modo como ruirá o velho mundo de mentiras e tartufismos convencionais.

De uma crônica anônima na imprensa operária anarquista. Rio de Janeiro, 1916

Num belo panfleto publicado em 1907, A revolução, o anarquista alemão Gustav Landauer perguntava, de modo simples e direto: “Que significariam para nós as ideias, se tivéssemos a vida?”. Radical com seus princípios, Landauer morreria assassinado, em 1919, nas fileiras da efêmera República dos Conselhos Operários da Baviera. Vários decênios depois, o filósofo e militante libertário Michel Foucault, num depoimento dado em 1979, nos EUA, também questionava: “O que me espanta é que, na nossa sociedade, a arte não tenha mais relações com os indivíduos ou com a vida, mas apenas com os objetos […]. A vida de todo indivíduo não poderia ser, ela própria, uma obra de arte?”.

Desejos anárquicos assim expostos retomam tradições arraigadas nos movimentos revolucionários desde, pelo menos, 1789 e, também, na figuração de certa “estética anarquista” voltada para o reencontro de uma “arte em situação” inscrita na experiência coletiva (Proudhon), ou, em outras palavras, uma “arte social” organicamente constituída no corpo da “cidade una”, identidade comunal cujo espírito se perdeu no mundo moderno (Kropotkin). A revolução, nessas visões, seria o gesto capaz de redimir esse comunitarismo solidário e quase “natural” de uma sociedade sem classes e autogovernada. O incêndio é um espetáculo cuja beleza se faz na esperança de que sejam descobertos, dos escombros, os fios da serena e imaginada Acracia.

Sem dúvida, os anarquistas foram dos primeiros a captar os vínculos indeléveis entre revolução e festa, percebendo na suspensão do tempo dominante e na carnavalização do cotidiano — durante os raros clarões de efetivas rupturas com a ordem estatal e capitalista —, a emergência de indícios de um novo mundo, quando o futuro ainda utópico se deixa entrever, ao menos como clima, nos estilhaços de um presente revirado, num instante sublime em que o prazer do caos convive intimamente com o desejo de construção, instante fugaz, premido entre as passagens do poético e do político, instante louco e lúcido, vivendo com igual intensidade a iminência de sua sagração ou de seu desaparecimento. Bakunin, por exemplo, assim se reportava ao espetáculo do desconhecido propiciado pelas revoluções de 1848 na Europa:

Era uma festa sem princípio nem fim […] via todo mundo e não via ninguém, pois cada indivíduo perdia-se na própria multidão inumerável e errante; falava com todo mundo sem recordar nem minhas palavras, nem as dos outros, pois a atenção era absorvida a cada passo por acontecimentos e objetos novos, por notícias inesperadas. […] Parecia que o universo inteiro estava invertido: o incrível havia se convertido em habitual, o impossível em possível, e o possível e o habitual em insensato!

As metáforas vulcânicas estão entre as prediletas dos revolucionários do século XIX para exprimir a ideia de um rumo inexorável para as transformações históricas. Tributária, a um só tempo, das estéticas romântica e naturalista, a imagem do vulcão é figura familiar na retórica literária, jornalística e política. Essa leitura geológica da metamorfose social vem de longe e, no final do século XIX, foi registrada de modo sintomático num opúsculo de muito sucesso, escrito pelo importante geógrafo anarquista francês Elisée Reclus: Evolução e revolução. Ora, contraditoriamente, a naturalização do processo revolucionário parece congelar o que de mais precioso emergia da ação anárquica: a descontinuidade abrupta, imprevisível dos instantes e cenários que libertam o passado aprisionado e tornam cabível, no presente, a fruição do futuro.

Em outra trajetória extremamente singular de apropriação dos signos de movimentos naturais para leituras do enigma humano e social, há o caso do revolucionário Auguste Blanqui, entre os mais populares e combativos do Oitocentos, também conhecido como “O Encarcerado”, por ter passado a maior parte de sua vida adulta atrás das grades de diferentes regimes políticos franceses (cerca de quarenta anos). Em 1872, doente, viúvo e preso, após ter lutado e perdido nas revoluções de 1830, 1848 e na Comuna de Paris de 1871, Blanqui escreveu um ensaio curiosíssimo, que em tudo fugia de seus panfletos anteriores, intitulado: A eternidade pelos astros. Ali, desenhava-se menos a fé revolucionária e mais o olhar melancólico ante a vida evanescente e as estruturas sólidas da permanência. Essa cosmovisão reconhecia movimento na lógica dos astros, mas não o da diferença e sim o do eterno retorno das cadeias noturnas de paisagens silentes e mortas, abismos netunianos de agonia e opacidade.

Nesse texto, o incansável combatente da causa operária cede passo ao passageiro extravagante do universo. Se há estrelas decifráveis, elas o são num caminho diverso da luz. A poeira das barricadas blanquistas revela-se, pois, nesse derradeiro e decisivo panfleto, recuperado mais de sessenta anos depois por Walter Benjamin, como poeira cósmica, índice da vastidão infinita e da fugacidade dos sonhos de libertação humana. A comunidade anárquica está, assim, condenada ao desterro no “tempo homogêneo e vazio” do capitalismo, longa duração desesperante e análoga à mecânica dos astros; tempo também do Estado-máquina, avesso à inteligência criadora, que permanece paralisada em corredores labirínticos e processos intermináveis de degradação do sentido. A dura experiência do confinamento, em Blanqui, parece induzir a essa cosmogonia da solitude. Com ela, igualmente, o velho agitador sugere os difíceis meandros da revolução libertária, acúmulo de variados reveses em que o tesouro maior da ação instantânea e solidária já se perdeu.

É dessa experiência de perda inscrita nos processos revolucionários mais significativos da modernidade que trata a pensadora Hannah Arendt no livro Da revolução. Examinando a história da independência americana, em 1776, a Revolução Francesa, de 1789, as primeiras revoluções europeias que viram surgir o proletariado como força social (1848 e Comuna de Paris) e, finalmente, os grandes levantes operário-camponeses na Rússia, em 1905 e 1917, que marcaram definitivamente a fisionomia do século XX, verifica-se a presença de duas ordens de obstáculos. De uma parte, a reação feroz da máquina estatal e de seus antigos donos, dispostos a fazer valer o monopólio do uso da violência até as raias da pura barbárie convertida em razão total e verdade absoluta. Pequim, em 1989, forneceu o exemplo mais recente dessa lógica infernal do aniquilamento própria do Estado moderno, a leste ou a oeste de Berlim. Em face do desejo libertário radical, materializado corporalmente nos corações e mentes desse imenso ator coletivo que ocupava a praça da Paz Celestial, desenrolando o lado mais inquietante e vivo do projeto da modernidade, multidões assumindo seu próprio destino como centro da cena e do drama, a máquina do Estado-partido respondeu com sua voz mais verdadeira: a dos tanques e metralhadoras. O que torna o desfecho ainda mais trágico é que tal voz mata em nome de palavras como Marx e Revolução, massacra reproduzindo cartilhas, Deus da História e da órbita pretensamente eterna de suas engrenagens, que pode cobrar até o único projétil de cada extermínio. O antagonismo nesse caso é total, porque os assassinos de Pequim reivindicam, também, que sua matança seja creditada ao progresso coletivo e ao moderno socialismo científico.

De outra parte, existe um dilema propriamente interno ao movimento da revolução. Acompanhando o desejo de mudança radical, no clarão repentino das barricadas, nasce uma nova vontade, desde sempre alojada na perspectiva anárquica, que é a de que as conquistas reais — aquelas que reuniram efetivamente
veredas esquecidas da vida — sejam, de algum modo, preservadas. Esse tem sido o ponto mais vulnerável das revoluções. Como normatizar esse fluxo multifacetado, criativo e pulsante de invenções? Como estabilizar as vozes do desejo? Como legalizar a desordem sem aboli-la no que possua de mais revolucionário?

A experiência radical da auto-representação e do auto-governo, em momentos raros como a Comuna de Paris e a Revolução de 1905 (berço dos sovietes autênticos e preciosos como invento democrático, nada a ver com sua cristalização posterior nos anais da burocracia), parece dissipar-se nas fases imediatamente pós-revoluções. Nos rituais da acomodação termidoriana — napoleônica ou stalinista —, esvai-se, não sem violência, o tumulto alegre daqueles dias singulares que experimentaram, no chão memorável das cidades, a passagem simultânea e vertiginosa de tantos séculos. As palavras desencarnam-se do mundo. Serão necessárias novas noites brancas, em que o tempo, suspenso, destampe vozes e gestos dos bueiros da história. Mas o encanto já foi quebrado. Sob as asas da anarquia, fica no ar a pergunta: como consagrar, para além do mito e da poesia, aquele claro e único instante?

Se tal impasse não é exclusivo do anarquismo, tendo sido também compartilhado por diversos outros movimentos socialistas, populares e revolucionários, digamos que, entre as correntes ácratas, ele foi vivido de forma mais agônica, em função dos próprios limites extremos postos pela negatividade radical das concepções libertárias. Na Espanha dos anos 30 do século XX, durante os choques entre os campos da revolução e da contra-revolução, o mundo contemporâneo conheceu o lirismo e a tragédia dos impasses históricos anarquistas, em sua modalidade mais moderna, o movimento anarco-sindical. Num lindo livro, O curto verão da anarquia, aparecido originalmente no início dos anos 1970, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger faz, a partir da montagem livre de fragmentos historiográficos, uma narrativa, a que dá o subtítulo de “romance”, em torno da vida, luta e morte do personagem mitológico Buenaventura Durruti, principal líder operário anarquista da revolução espanhola.

Questionando os critérios positivistas de verdade da história oficial, Enzensberger ressalta o papel do narrador coletivo como via única de acesso ao mundo perdido de Durruti e seus camaradas. Contra a memória do poder, resta sempre o poder redentor da memória. Cruzam-se os impasses narrativo e histórico. A busca da temporalidade soterrada do anarquismo significa, também, a procura de focos luminosos e vozes verossimilhantes capazes de narrar experiências dignas de serem narradas. Talvez, no contexto da comunidade anárquica assim imaginada, seja interessante refletir sobre os sentidos da frase lapidar de Reclus, que Edgard Leuenroth, em 1963, escolheu para epígrafe de sua antologia de textos libertários: “O dragão que está à entrada do palácio anárquico nada tem de terrível: é uma palavra apenas!”. Não é, na verdade, tão “apenas” assim… Justamente por crer no caráter não-arbitrário da linguagem, no poder transformador da palavra, no encantamento quase natural dos signos libertários, Reclus pôde conferir ao termo anarquia a força vulcânica, incandescente e mágica de um magma do novo mundo. Atravessar seu sentido seria o abre-te-sésamo de uma experiência cultural rica e desterrada, à espera de seu narrador-historiógrafo. Como se, afinal, desse percurso arriscadíssimo, pudessem figurar-se utopias sob a forma de razões libertas e espíritos lúcidos, atentos a novas possibilidades dialógicas entre as palavras e as coisas.

As raízes românticas desse messianismo profano são inegáveis. Kropotkin, por exemplo, retrocede às comunas medievais para desenhar sua “cidade una”. Landauer, num aparente anacronismo, tratando do tema da revolução no começo do século XX (e, sobretudo, fazendo a revolução), busca fontes de um comunitarismo anárquico exatamente no cristianismo primitivo e popular da alta Idade Média, mesma inspiração, aliás, do anarquismo de Tolstoi. Na construção dessas utopias, o passado arcaico, pré-moderno, pode ressurgir, num átimo, estilhaçando as continuidades lineares da temporalidade mecânica. Na cosmovisão de Blanqui, por outro lado, no texto acima referido, parece esboçar-se uma alegoria sideral da história humana como sucessão de ruínas, diante da eterna duração do universo. Ora, é perfeitamente cabível supor que diferentes camadas de tensões se estabeleçam, no ideário e ação anarquistas, entre o progresso iluminista e o messianismo romântico, entre o otimismo evolucionista e a melancolia de um quase permanente exílio em relação à história triunfante. Essas polaridades, aqui, não se resolvem mediante quaisquer “afinidades eletivas”, como sugere o sociólogo da cultura Michael Lowy, em outro contexto, ao estudar as aproximações do Romantismo alemão (inclusive sua vertente anárquica) com o messianismo judeu. O determinismo mecânico e positivista produziu cisões irreconciliáveis, é bom lembrar, não só nas concepções anarquistas, mas também na tradição socialista herdeira de Marx e Engels.

Nas figuras libertárias do anticapitalismo, a trama temporal marcada pelo confronto entre narrativa e dispersão pode também ser traduzida em trama espacial, quando a geografia, hoje ciência um tanto fora de moda, entendida nos sentidos utópicos fundantes da Idade Moderna — enquanto invenção cartográfica e descobrimento de paisagens e humanidades ocultas, conforme sublinha de modo apaixonante o filósofo frankfurtiano Ernst Bloch —, deve auxiliar no mapeamento dos lugares invisíveis e perdidos das batalhas anárquicas. Na cidade, essa topografia muito especial encontraria endereços precários de antigas associações e jornais, clubes de cultura operária, quase todos em pontos obscuros e mutáveis. No campo, traçaria a rota esquecida das comunidades de desterrados, seja por auto-organização, seja pelas políticas sistemáticas de deportação que Estados, como o brasileiro na Primeira República, patrocinaram ativamente.

A memória dos amigos de Durruti, exilados pelo franquismo na França, quando das entrevistas colhidas por Enzensberger, no começo dos anos 1970, refazem, com a voz do narrador coletivo, essa épica dos derrotados. Em outro exemplo comovente, a ex-operária costureira ítalo-paulista Elvira Boni, militante anarquista do início do século, que aparecia em todo seu esplendor numa foto da mesa diretora dos trabalhos do 39º Congresso Operário Brasileiro, em 1920, ressurge com dignidade e vigor num depoimento a pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, nos anos 1980, reabrindo esse arquivo fabuloso dos “sonhos proletários”, restaurando, em parte, experiências fundamentais e de outro modo inacessíveis. Já no Brás decadente, em São Paulo, Jaime Cuberos e outros companheiros reconstroem das cinzas o Centro de Cultura Social, mantendo, na tradição dos debates e da memória do teatro operário anarquista, os sinais de outro tempo, de outro espaço. Impressiona, antes de tudo, que associações desse tipo consigam ainda sobreviver no cenário da grande metrópole devoradora.

Michel Foucault, em 1973, numa série de artigos de intervenção e combate nas páginas do Libération, lançava o projeto: “por uma crônica da memória operária”’ — em que afirmava o extremo valor político e filosófico de “reagrupar todas essas lembranças, para narrá-las e sobretudo para poder se servir delas e definir, a partir daí, instrumentos de lutas possíveis”. Contra o esquecimento orquestrado pela história oficial, pelo Estado e pelos próprios aparelhos tradicionais da classe operária (partidos, sindicatos, jornais), ele se propunha simplesmente como cronista de recordações espúrias e narrador de pequenos fracassos.

Edgard Leuenroth, Astrogildo Pereira e outros militantes do movimento operário no Brasil também construíram arquivos preciosíssimos dessa poeira dispersa das barricadas. Materiais deletérios para a razão dominante, esses homens e mulheres convertem-se em trapeiros da História. Difícil, mesmo, é avaliar a intensidade dos desejos envolvidos nessas tramas. Uma coisa, entretanto, parece bem certa. Se alguma narrativa que valha a pena puder agora nascer, ela deverá necessariamente ser formatada nas coleções que restarem desses antigos catadores de papel. Juntando restos de restos, mesma lógica da criança reunindo e misturando brinquedos esquisitos, em depósitos crescentes de inutilidades, essa atividade algo compulsiva pode oferecer, por raríssimo instante, um resíduo quase imperceptível, luz trêmula de verdade, asa de anjo quebrada, iluminando o passado fodido, as máscaras rotas, e ajudando-nos, por um momento, a reviver passagens da comunidade anárquica, a escrever sua história. E, mais do que tudo, ajudando a contá-la.

(*) O título deste texto é uma homenagem à memória do tipógrafo, jornalista e militante libertário Edgard Leuenroth (Moji-Mirim, 1881—São Paulo, 1968), que imaginou, no fim da vida, um livro autobiográfico por ele intitulado Poeira de barricada: episódios da atividade de um militante anarquista. A obra não se completou, mas à sua obsessão arquivística devemos, hoje, boa parte da reconstrução histórica do passado operário e anarquista no Brasil.

 

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