2017

Por um saber sem fronteiras

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

A figura do sábio, detentor de um conhecimento universal, era factível até certo momento da Era Moderna no Ocidente, “mas já no século XVIII o desenvolvimento da ciência tinha alcançado tal grau de complexidade e diversificação que nenhum pensador isolado podia ter a pretensão de dominar a totalidade do saber.” Se houve uma tendência de contínua especialização e independência das ciências – consolidadas enquanto disciplinas no sentido moderno no século XIX –, forças contrárias queriam manter certa coesão e ligação entre elas a fim de evitar excessiva segmentação e ultraespecialização do conhecimento, ameaças à própria vida interior do homem. Foi o que tentaram os enciclopedistas, liderados por Diderot e d’Alembert, cujas obras aspiravam “um sobrevôo generalista” em diversas áreas do conhecimento. Não poderia ter sido diferente diante da aposta que o Iluminismo fez no homem e nos valores civilizatórios. Já no século XX, foi empreendida a redação da Encyclopedia of Unified Science, tendo à frente Neurath e Carnap e o Círculo de Viena. O pano de fundo dessa vez era o ideário positivista e o objetivo, utópico, era de que “a linguagem das ciências poderia ser ‘traduzida’ para uma linguagem comum a todas”. Em resposta ao positivismo que queria subjugar os métodos das ciências do homem (ou “do espírito”) às da natureza, insurge-se primeiro Dilthey, que demarcou uma fronteira fundamental: para as ciências humanas, valiam os mecanismos de “compreensão” e não os de “explicação”, estes próprios das ciências naturais. Mais tarde, representantes em peso da escola de Frankfurt também reagiram à onda positivista, assumindo o “julgamento de valor” na “tensão do presente” dos estudos filosóficos e suas teorias críticas. Paralelamente, combinações de teorias (que hoje talvez chamássemos de estratégias transdisciplinares) estão presentes, por exemplo, nas obras de Darwin, Marx e Levy-Strauss. Apesar do fenômeno global, são postos ainda obstáculos a uma real e sistemática transdisciplinaridade em meios acadêmicos. A ciência a certa altura seguiu um caminho autônomo em relação à religião, à moral e à política (“desencantamento”, segundo Weber), mas hoje precisa recuperar mediações que se perderam no processo de secularização, é o que pensa Habermas. Já a presença da ética e da política voltam a ser requisitadas urgentemente diante dos avanços da biotecnologia, de ameaças ecológicas e do desenvolvimento de tecnologias de uso militar.


I

Nosso ciclo de palestras parte do pressuposto de que estamos vivendo uma época de mutação. Mas mutação é passagem de um a outro estado de coisas, e toda a questão se resume em saber se nosso presente é fruto de uma mutação já consumada, ou se é transição para uma mutação ainda por vir.

No primeiro caso, o conceito de mutação está associado a uma visão pessimista da história. Para ela, somos vítimas de mutação ocorrida com o advento da modernidade, cataclismo histórico que destruiu valores e referências fixas, e nos expôs à anomia, à desorientação existencial, à incapacidade de pensar o homem e seu futuro. Ficamos entregues a uma tecnociência cega, que se desprendeu do humanismo da Renascença e do Iluminismo, e nos deixou órfãos de sentido, num mundo privado de certezas. Para essa concepção, somos todos mutantes, frutos lamentáveis de uma corrupção que já aconteceu, tristes descendentes de uma humanidade perdida para sempre.

No segundo caso, a mutação ainda não se deu, o que justifica certo otimismo. Mesmo que nosso presente seja tão assustador quanto o descrevem os partidários da versão pessimista, ele nos oferece os instrumentos para preparar uma verdadeira mutação, em que o homem recupere a capacidade de pensar o ser e programar seu destino, em vez de ser arrastado por uma tecnociência que lhe tira a visão do todo e o arrasta, como um turbilhão, em direção a um futuro não desejado.

Num caso, a mutação é fato, realidade já dada, ou Fado, decreto do destino, de cuja redação o homem não participou; no outro caso, é utopia, algo a ser construído pelo homem, no bojo de uma teologia da história que não perdeu inteiramente o contato com a ideia messiânica.

Gostaria de explorar a segunda concepção, mostrando que grande parte de nossa sensação de impotência diante do desdobramento aparentemente incontrolável da técnica vem do fato de que a extrema fragmentação do saber nos impede de aceder a uma visão clara do processo de conhecimento como um todo. O progresso da ciência só se tornou possível graças à divisão intelectual do trabalho, mas essa mesma divisão bloqueou a possibilidade de qualquer sobrevoo generalista, sem o qual não temos como dar sentido e direção ao desenvolvimento científico-tecnológico. Mas a perda de sentido gerada pelo desaparecimento da visão de conjunto não foi o efeito de uma mutação trágica, mas de uma consequência natural da extrema complexidade e diversificação alcançadas pela ciência ao menos desde Galileu. Os resultados podem ser terríveis, mas não foram gerados por nenhuma grande mutação. A mutação está à nossa frente. É agora que ela se impõe. É preciso que haja uma inflexão, a passagem para uma etapa em que o homem volte a ser sujeito do processo de geração e aplicação do conhecimento. A mutação que pretendemos deverá devolver ao homem a capacidade de ter uma visão de conjunto das atividades técnico-científicas, sem o que a democracia seria substituída pela logocracia.

Sem dúvida, a obsessão com o todo não deve levar o homem a subestimar o conhecimento do particular. Segundo Adorno, totalidade e totalitarismo são termos correlatos. O desejo de vislumbrar o conjunto não deve ser confundido com a aspiração de aceder ao saber soberano, cujo verdadeiro nome é poder. Ele exprime, simplesmente, a vontade de não se resignar à impotência, de não abdicar diante de um processo que se passa à nossa revelia, de não aceitar passivamente um sacrificium intellectus que nenhuma divindade impôs, de não aceitar a interdição imposta à razão humana de compreender o movimento do todo.

A mutação que está à nossa frente é portanto a de um saber que recusa as fronteiras que inibem o conhecimento do real. Entre essas fronteiras estão (1) as fronteiras internas dentro do campo da ciência, (2) as fronteiras da ciência com a religião, a moral ou a política e (3) as fronteiras nacionais.

II

A questão das fronteiras intracientíficas remete ao problema da hiperespecialização dentro do campo da ciência. Um Aristóteles podia abranger a totalidade do saber de sua época, e na Renascença não eram raros espíritos universais como Leonardo da Vinci, artista supremo e cientista genial, ou Leon Battista Alberti, que compôs églogas em latim, era físico e matemático e inventou a câmara escura. Um século mais tarde um Leibniz ainda podia pensar num “mathesis universalis”, abrangendo todas as ciências formais, e mesmo num “Atlas universalis”, cujo plano incluía, além das disciplinas propriamente científicas, a gramática, a geopolítica e a teologia natural. Mas já no século XVIII o desenvolvimento da ciência tinha alcançado tal grau de complexidade e diversificação que nenhum pensador isolado podia ter a pretensão de dominar a totalidade do saber. Ao mesmo tempo, havia uma aguda consciência de que todo conhecimento meramente parcial daria uma visão mutilada da realidade. A compartimentalização das ciências tinha sido responsável por um enorme progresso nas diferentes disciplinas, mas também por uma sensação de desalento diante da impossibilidade de uma visão de conjunto. Sem fronteiras não teria havido progresso, mas essas mesmas fronteiras bloqueavam a percepção do todo.

Duas estratégias foram postas em prática para lidar com essa compartimentalização. Uma delas respeitava as fronteiras, mas pretendia facilitar a comunicação entre as disciplinas que elas demarcavam. A outra, partindo do princípio da unidade ontológica do real, aspirava a uma ciência igualmente unitária, além das fronteiras disciplinares. As duas estratégias se encarnaram, respectivamente, em duas enciclopédias: a Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert, e a International Encyclopedia of Unified Science, concebida pelos positivistas lógicos do chamado Círculo de Viena.

Segundo o Prospecto de 1750, que anunciava a obra, a Encyclopédie se destinava a indicar “as ligações, remotas ou próximas, dos seres que compõem a natureza e que preocuparam o homem; mostrar pelo entrelaçamento das raízes e dos ramos a impossibilidade de bem conhecer algumas partes desse todo sem remontar ou descer a muitas outras”. Mas esse empreendimento gigantesco não seria obra de um homem isolado, mas de uma “société de gens de lettres”, como dizia o “Discours préliminaire”,

redigido por d’Alembert. A concepção enciclopédica francesa aspirava assim a um sobrevoo generalista que permitisse relativizar a rigidez das fronteiras, reconhecendo ao mesmo tempo que nenhum homem, por mais culto que fosse, podia de fato dizer-se detentor desse saber, o que significava que a manutenção de fronteiras, mesmo porosas, era necessária na etapa atual do desenvolvimento da ciência.

O fantasma da Enciclopédia continuou assombrando o século XIX. A obra capital de Hegel se intitula, justamente, A Enciclopédia. Mas ela não tinha como objetivo lidar com o problema da fragmentação do saber, mas sintetizar o sistema especulativo do próprio Hegel, dividido numa Lógica, em que o Espírito aparece como essência abstrata, numa Filosofia da Natureza, em que o espírito surge na forma da exterioridade, e numa Filosofia do Espírito, em que o Espírito é estudado enquanto tal.

É no século XX que a problemática enfrentada pela Encyclopédie vai reaparecer. Mas, menos tímida que sua precursora francesa, que se limitava a mostrar “l’ordre et l’enchaînement des sciences”, sem nenhuma preocupação de unificar as diferentes disciplinas, a International Encyclopedia of Unified Science tinha essa preocupação expressa, como indica o título. Composto por filósofos como Otto Neurath e Rudolf Carnap, o grupo se propunha “integrar, unificar e compatibilizar de tal maneira as disciplinas científicas que os progressos numa delas acarretassem progressos nas demais”. Em princípio, o grupo buscava a unidade da linguagem científica, não necessariamente a unidade das leis. A ideia é que a linguagem das ciências poderia ser “traduzida” para uma linguagem comum a todas, baseada em predicados observáveis: “predicados de coisas”, como “quente” e “frio” e “predicados disposicionais”, como “elástico”, “solúvel”, “flexível” etc. Carnap reconhecia relutantemente que o fato de o vocabulário da biologia ser traduzível para o vocabulário da física não provava que as leis biológicas pudessem ser derivadas das leis físicas, mas deixou claro que a ambição última do grupo era a “construção de um sistema homogêneo de leis para a ciência como um todo”.

Hoje em dia, o problema da hiperespecialização é visto de um ângulo diferente dos adotados pelos enciclopedistas e pelos partidários da ciência unificada. Essa terceira estratégia é mais ambiciosa que a escolhida por Diderot e d’Alembert, porque não se contenta com a acumulação pura e simples de verbetes abrangendo todas as áreas do saber. E é menos radical que a adotada por Neurath e Carnap, porque não está preocupada em chegar a um saber universal que abranja todos os demais, mas em facilitar a hibridação das disciplinas, sua fertilização recíproca. As disciplinas são preservadas, mas têm que sair de si mesmas, visando amalgamar-se com outras disciplinas. Podemos chamar essa estratégia de inter ou transdisciplinar, como quiserem. Sei que muitos distinguem entre esses dois termos, mas, para meus fins, não há inconveniente em tratá-los como sinônimos. O importante é que as ciências tenham uma abertura extradisciplinar.

Essa abertura é ainda rara. Alega-se, entre outras coisas, que ela redunda na intromissão de amadores. Mas o amadorismo pode produzir resultados surpreendentemente fecundos. Foi o caso de Schliemann, comerciante autodidata sem nenhuma formação em história, filologia ou arqueologia, que desafiou os profissionais nas respectivas áreas e que, guiado apenas por sua fé na veracidade do relato homérico, redescobriu Micenas e Troia. Ou o caso de Michael Ventris, amador genial (era formado em arquitetura) que decifrou o linear b, escrita encontrada em tabletes em Creta e no Peloponeso, com base na hipótese, que todos os especialistas consideraram delirante, de que a língua usada pelos escribas era uma forma arcaica de grego. Um dos primeiros trabalhos conjuntos que realizei com Barbara Freitag foi uma análise de A montanha mágica, de Thomas Mann. A única parte original do ensaio foi devida a Barbara, que nada tinha de amadora, mas, que por não ter lido Georg Lukács, defendeu a tese heterodoxa de que Naphta, longe de ser um fascista avant la lettre, como sustentava o crítico marxista, era um representante perfeitamente credenciado da dialética negativa, de Adorno.

Mais frequentemente, a abertura extradisciplinar assume a forma da “importação” de conceitos de outras disciplinas. Mas essas migrações interdisciplinares nem sempre são apreciadas pelos profissionais das disciplinas dentro dos quais aqueles conceitos emergiram. E, no entanto, essa circulação foi responsável por verdadeiras mutações teóricas, criando novos continentes científicos. Assim, Darwin (aliás outro exemplo de gênio sem nenhuma titulação acadêmica) revolucionou a ciência do seu tempo combinando o conceito de evolução, já existente na biologia (Lamarck) e na filosofia (Diderot), com o de seleção natural, proveniente da teoria demográfica de Malthus. Marx criou o materialismo histórico assimilando noções pertencentes ao repertório da filosofia (idealismo alemão), da ciência política (socialismo utópico) e da economia política (Adam Smith e Ricardo). A antropologia estrutural, de Lévi-Strauss, surgiu graças à utilização da linguística de Saussure e Jakobsen na interpretação de temas tradicionais da etnologia, como as relações de parentesco e os mitos. A ideia de informação, engendrada na prática social, contribuiu para a criação da cibernética, depois migrou para a biologia para se inscrever no gene, e se associou à linguagem jurídica para constituir a noção de código genético. A importância dessas migrações justifica a tese provocativa de que, quando não se encontra solução para um problema dentro de uma disciplina, é porque a solução está em outra disciplina. Adaptando a frase famosa de Von Clausewitz, seria o caso de dizer que a sociedade e a saúde são demasiadamente sérias para serem deixadas aos sociólogos e aos médicos.

Para os que, como eu, vêm da área das ciências humanas, a questão de maior interesse não é a das fronteiras intracientíficas em geral, mas a das fronteiras entre as ciências sociais e as naturais.

Na tradição vitalista europeia, inspirada em Dilthey, existe uma diferença de princípio entre as ciências naturais, voltadas para a explicação empírica, para o Erklären, e as ciências histórico-hermenêuticas, as ciências do Espírito, as Geisteswissenchaften, voltadas para a interpretação, o Verstehen, não para a explicação causal. É um procedimento em que o investigador, em vez de excluir sua subjetividade, mergulha no objeto estudado, fundindo-se com ele através da empatia, Einfühlung.

Na tradição positivista, pelo contrário, não há diferença de natureza entre ambas: se quiserem ser verdadeiramente científicas, as ciências sociais devem adotar procedimentos que não diferem substancialmente dos adotados pelas ciências naturais, ou seja, seus enunciados devem descrever regularidades causais, permitir previsões e ser validáveis empiricamente pela observação e pela experiência, em contextos que permitam a repetição e o controle por parte de outros investigadores. Para os positivistas, a fronteira real é entre os enunciados descritivos das ciências naturais e das ciências sociais empíricas, depuradas de todo julgamento de valor, e os enunciados supostamente científicos de disciplinas sociais que se permitem formular julgamentos de valor. É uma fronteira intransponível, porque é a fronteira entre a ciência e a pseudociência, entre a ciência e a ideologia.

A Escola de Frankfurt rejeita essa formulação, ao comparar a teoria tradicional com a teoria crítica. Para Horkheimer, a teoria social crítica não somente não perde sua cientificidade quando toma partido pela transformação de uma realidade desumana, como só nesse momento se torna verdadeiramente científica. Mas isso pressupõe justamente a operação mais abominada pelos positivistas, a introdução explícita dos julgamentos de valor. Essa introdução só poderia justificar-se com a extinção do grande abismo entre fatos e normas, entre o Sein e o Sollen, o que significaria o fim do grande interdito positivista que condena as proposições normativas e axiológicas à esfera do incognoscível e do não científico. Os “frankfurtianos” teriam que demonstrar que essas proposições podem ser tão validáveis quanto as proposições descritivas das ciências naturais.

Foi o papel da teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, que mostrou que as duas classes de proposições são validáveis em contextos argumentativos semelhantes: os discursos. O objetivo dos discursos é validar ou refutar proposições em torno de fatos que se apresentam como verdadeiros (discurso teórico) e em torno de normas que se apresentam como justas (discurso prático). Mas, se é assim, fecha-se o fosso entre o Sein e o Sollen, e consequentemente entre uma ciência descritiva (ciência natural, legitimável em discursos teóricos) e uma ciência baseada em valores (sociologia não positivista, legitimável em discursos práticos). Mas não estaria Habermas, com isso, confirmando a tese positivista de que não há fronteiras de natureza entre as ciências sociais e as naturais? Não, porque a tese da inexistência de fronteiras significa, para os positivistas, que as ciências sociais podem ser reduzidas às ciências da natureza, enquanto a mesma tese significa apenas, para Habermas, que o processo de validação das proposições se dá em instâncias discursivas semelhantes, sem que em nenhum momento a esfera do Sollen perca sua autonomia com relação à esfera do Sein.

Creio que hoje em dia a discussão mais interessante, nesse tema, não se situa mais no terreno dos princípios, e sim no terreno mais pragmático das trocas entre os dois grupos de ciências, qualquer que seja o respectivo estatuto epistemológico. Já vimos alguns exemplos de trocas intracientíficas em geral. Vejamos outros exemplos, aplicáveis especificamente ao intercâmbio entre as ciências humanas e as da natureza. O evolucionismo de Darwin influenciou profundamente a sociologia de Spencer, do mes-mo modo que a sociologia funcionalista de Talcott Parsons deve muito a uma teoria do equilíbrio sistêmico que vem diretamente da biologia. A teoria piagetiana da ontogênese da inteligência humana se baseia em grande parte nos conceitos biológicos de assimilação e acomodação que Jean Piaget desenvolveu quando pesquisava moluscos no lago de Neuchatel. Ao mesmo tempo, nota-se hoje um movimento inverso: a introdução nas ciências naturais de modelos vindos das ciências humanas. Por exemplo, a onda de relativismo que atravessa hoje as ciências da natureza, segundo o qual a teoria de Copérnico não difere do geocentrismo de Ptolomeu por ser mais verdadeira, mas por situar-se em outro “paradigma” (Kühn), parece-se nos mínimos detalhes com uma das correntes mais influentes no campo das ciências humanas, o historismo, para o qual o que é considerado verdadeiro varia de cultura para cultura e de período para período.

A dissolução das fronteiras entre as ciências humanas e as da natureza não seria uma bênção incondicional. Ela poderia redundar na subordinação das primeiras às segundas, mas esse risco seria contrabalançado pelos benefícios de uma circulação mais ampla de modelos e noções entre os dois grupos de disciplinas. De qualquer modo, estamos longe ainda desse estado de coisas. Para o bem ou para o mal, os respectivos departamentos acadêmicos se encarregam de manter a autonomia dos dois campos disciplinares.

Essa conclusão pode ser generalizada para a questão das fronteiras intradisciplinares em geral. Os diferentes esforços de interdisciplinaridade são ainda insuficientes e esporádicos. As universidades e os pesquisadores têm interesses criados na manutenção dos respectivos nichos institucionais. Uma verdadeira mutação implica algo mais que isso: uma revolução de Copérnico, para a qual a interdisciplinaridade não seja um método entre outros, mas a própria forma normal de funcionamento da ciência.

III

Vejamos agora as fronteiras sociais – as que se situam entre a ciência e outras esferas da sociedade, como a religião, a moral e a política. Sabemos que a característica central da modernidade, para Max Weber, foi a autonomia da ciência com relação à religião – o processo de “desencantamento”, ou Entzauberung – e a esferas sociais como a moral e a política. Do ponto de vista do cientista, a autonomia significava liberdade completa de pesquisa, que deveria ter como único horizonte a busca desinteressada da verdade, quaisquer que fossem suas consequências.

A lógica da autonomia foi de uma extraordinária fertilidade. Graças a ela, a ciência se emancipou das restrições impostas pela Igreja, pela moral tradicional e pela política totalitária. Imagine-se o que teria acontecido se essas restrições não tivessem sido removidas. As restrições religiosas talvez estivessem até hoje proibindo a doutrina heliocêntrica ou o evolucionismo de Darwin, como ocorre entre os fundamentalistas americanos e agora brasileiros, que contestam a doutrina da seleção natural em nome do criacionismo bíblico ou da teoria do “desígnio inteligente”. A moralização da ciência teria impedido as pesquisas que resultaram na descoberta da pílula anticoncepcional. A politização da ciência já levou a aberrações como o darwinismo social, que serviu para justificar o racismo e o imperialismo; a psicologia ariana, com a qual a Alemanha nazista quis deslocar a psicanálise, definida como psicologia judaica; e a biologia “proletária”, de Lysenko, uma das criações mais dementes do totalitarismo stalinista.

Mas tudo indica que o princípio da autonomia total já está atingindo seus limites. Está chegando o momento de repensar a relação da ciência com a religião, a moral e a política.

IV

Enfim, vêm as fronteiras geográficas. O período áureo dos estados nacionais, no século XIX, coincidiu com um desenvolvimento sem precedentes da ciência e da técnica. Hoje o nacionalismo transformou-se em grave obstáculo à circulação mundial das informações de caráter científico. Há uma consciência crescente de que a ciência é um empreendimento que interessa à humanidade como um todo, e de que todos os povos devem beneficiar-se do desenvolvimento científico-tecnológico. Mas o progresso em direção à universalidade ainda é modesto. Felizmente já superamos no Brasil o historismo ingênuo dos anos 1950, que levou uma instituição como o Iseb, tão importante sob certos aspectos, a propor “reduções sociológicas” destinadas a proteger nosso pensamento social de teorias estrangeiras consideradas inaplicáveis ao Brasil. Mas, de outro ponto de vista, as fronteiras nacionais ainda são excessivamente resistentes. Em grande parte, os scholars americanos ignoram o trabalho e até a existência dos seus confrades europeus e latino-americanos, e vice-versa. A filosofia e as ciências humanas continuam repartidas em dois “continentes” teóricos, o anglo-saxônico e o europeu. No primeiro, predominam a filosofia analítica e suas herdeiras; no segundo, os professores continuam se movendo entre duas “linhagens”, a que se origina em Kant e vai até Habermas, e a que se origina em Nietzsche e, passando por Heidegger, vai até Levinas. Derrida é muito popular nos Estados Unidos, mas não é debatido nos departamentos de filosofia das universidades, mas nos departamentos de literatura, que se dedicam conscienciosamente às mais variadas “desconstruções”, muito apreciadas pelos praticantes dos cultural studies. Frequento há anos simpósios internacionais patrocinados pela Unesco e por várias universidades, e sempre me surpreendo com o fato de que em geral os participantes anglófonos, ilustres professores de universidades americanas, inglesas e australianas, jamais ouviram falar de intelectuais franceses que são verdadeiros gurus para os intelectuais latino-americanos. Os participantes franceses conhecem melhor os autores americanos, mas em geral o desconhecimento é recíproco. É uma deformação propriamente escandalosa, e constitui um das fronteiras mais inaceitáveis que paralisam a geração e a circulação do conhecimento no mundo de hoje.

Em suma, é hoje arquievidente que as fronteiras rígidas são indesejáveis. A rigidez das fronteiras intracientíficas transformou o saber num arquipélago de particularismos autárquicos, impedindo a percepção do conjunto. A rigidez das fronteiras entre a ciência e seu entorno impediu a comunicação da ciência com a religião, a moral e a política, levando a uma ciência autossuficiente, isolada em seu universo microscópico, impermeável ao restante do mundo humano. E a rigidez das fronteiras nacionais produziu uma espécie de nacionalismo epistemológico, que como todos os nacionalismos poderia desembocar na guerra, uma guerra de verdades regionais, cujo desfecho seria uma Hiroxima científica.

A mutação que desejamos é a de um conhecimento baseado na relativização dessas três fronteiras.

V

Gostaria de ilustrar a relativização da primeira fronteira – a intradisciplinar – com dois textos, uma cena do Fausto, de Goethe, e um conto dos irmãos Grimm, A senhora Holle.

No início do Fausto, o célebre necromante é mostrado em seu gabinete de estudo, num monólogo em que se reconhece tão ignorante como antes, depois de ter dedicado toda a sua vida à ciência:

Estudei profundamente, com o máximo de zelo, ai de mim! a filosofia, a jurisprudência e a medicina e também, infelizmente, a teologia, e agora, pobre tolo, sei tão pouco como sabia no início. Chamam-me mestre, e até doutor, e durante dez anos levei meus discípulos pelo nariz, para cima, para baixo, a torto e a direito, para perceber, no fim, que nada podemos saber! […] É verdade que sou mais sábio que todos os idiotas, doutores, mestres, escritores e padres, que não sou atormentado por nenhum escrúpulo e nenhuma dúvida, que não temo nem o diabo nem o inferno. Em compensação, falta-me toda alegria. Não tenho a ilusão de conhecer verdadeiramente seja o que for, nem de poder ensinar alguma coisa, nem de melhorar ou converter os homens. Não tenho, tampouco, nem bens nem dinheiro, nem honrarias nem prazeres mundanos. Nem um cão tem uma vida tão mísera quanto a minha! Por isso, consagrei-me à magia, na esperança de que a força e a voz dos espíritos me revelassem inúmeros segredos, de que eu não precisasse mais, com o suor do meu rosto, dizer aquilo que ignoro, de que eu pudesse penetrar a essência mais íntima do universo, de que eu pudesse contemplar todas as energias e sementes da natureza, em vez de revolver meras palavras!

Vê-se por esse monólogo que, ao contrário da interpretação tradicional, Fausto não vendeu sua alma apenas para obter em troca juventude, amor e riqueza, mas sobretudo para chegar ao conhecimento da natureza em sua essência mais íntima, ou, na versão alemã quase intraduzível, daquilo que “mantém junto” o mundo em seu âmago, “was die Welt im Innersten zusammenhält”. Esse conhecimento não podia ser obtido pelos saberes parciais, incompletos, que no fundo se reduziam a simples palavras, oferecidos pelas disciplinas que constituíam o trivium ou o quadrivium da universidade medieval, ou aqueles mencionados por Fausto: a filosofia, a jurisprudência, a medicina e a teologia. Daí a necessidade de outro olhar, um olhar que Fausto chama de mágico, mas que em meu racionalismo empedernido prefiro chamar simplesmente de totalizante.

Goethe não se limita a apontar a utopia do saber integrado, mas mostra o caminho para alcançá-lo. Não é num gabinete de alquimista, cheio de retortas e pentagramas, que essa integração poderá ser conquistada, mas no mundo da vida, onde o amor está à espera do Fausto rejuvenescido, e no mundo do trabalho, onde Fausto e Mefistófeles se colocarão a serviço do processo de modernização, aterrando largas extensões do litoral e colonizando os territórios conquistados ao mar.

Isso mostra a superficialidade das leituras irracionalistas de uma das mais célebres frases de Goethe: “Cinzenta, meu amigo, é toda teoria, e verde apenas é a árvore dourada da vida”. Há duzentos anos que as correntes contrailuministas da Alemanha e de outros países citam esses versos, buscando a chancela de Goethe para uma contraposição banal entre a vida e a razão. O que se esquece de dizer é que a frase não exprime o pensamento de Goethe, e sim o de Mefistófeles, assumindo o papel de Fausto, num diálogo irônico com um estudante, que fica deliciado com o conselho implícito na citação: em vez de estudar, ele deveria dedicar-se ao far niente. Mas, mesmo que a frase correspondesse à opinião de Goethe, a invocação da vida não significa a negação da ciência, mas o apelo a outro registro, o registro da vida e da ação, que não configura o outro da ciência, mas uma ciência outra, que por emergir de um real múltiplo não aceita a compartimentalização disciplinar do saber.

Passo, agora, ao conto dos irmãos Grimm, A senhora Holle. É a história de uma viúva com duas filhas, uma bonita e trabalhadeira e outra feia e preguiçosa. A viúva gostava mais desta última, que era sua filha de verdade. Por isso, a viúva obrigava a enteada a fazer todas as tarefas da casa. Uma vez a menina trabalhadeira perdeu num poço seu carretel. Para tentar recuperá-lo, mergulhou na água, afundou, perdeu os sentidos e quando acordou estava num belíssimo prado, ensolarado e florido. Ela caminhou e chegou a um forno, cheio de pães. Os pães gritaram para a menina: tire-nos daqui, senão vamos queimar, pois já estamos assados. A menina tirou os pães. Mais adiante ela encontrou uma árvore cheia de maçãs. A árvore gritou para a menina: sacuda-me, porque todas as minhas maçãs já estão maduras. Ela sacudiu a árvore, todas as maçãs caíram, e a menina as arrumou numa pilha. Finalmente, ela chegou numa casinha, onde morava uma velha, a senhora Holle, que a convidou a trabalhar para ela durante algum tempo. A menina a princípio se assustou com a velha, que tinha dentes muito grandes, mas acabou aceitando, porque ela lhe prometeu uma recompensa. A menina fez todo o trabalho da casa durante algum tempo, prestando atenção especial à tarefa de sacudir as penas do cobertor, para que elas voassem como flocos de neve, sem o que não nevaria na terra. Mas depois teve saudades de casa e pediu para voltar. A senhora Holle concordou, levou-a até a porta que conduzia à superfície e, quando a porta se abriu, caiu uma chuva de ouro que aderiu à roupa da menina, como recompensa pelo seu esforço. A viúva devolveu-lhe então o carretel, e a porta se fechou de novo. Voltando para casa, a viúva quis que a outra menina, a preguiçosa, tivesse a mesma boa fortuna da irmã. Ela jogou no poço o carretel, despertou no prado, mas rejeitou tanto o pedido dos pães como o das maçãs. Aceitou o convite da senhora Holle, mas desde o segundo dia recusou-se a fazer as tarefas caseiras e a sacudir as penas do cobertor. Em consequência, foi despedida, e quando passou pela porta, em lugar da chuva de ouro, recebeu como castigo uma chuva de piche (note-se que em alemão Pech, piche, também quer dizer “azar”), que ficou preso a seu corpo durante toda a vida.

Embora isso não esteja na versão original dos Grimm, as crianças alemãs conhecem as duas irmãs pelo nome de Goldmarie e Pechmarie, Maria do Ouro e Maria do Piche. A diferença entre as duas é óbvia. Maria do Piche vê o mundo como uma coleção de objetos, e Maria do Ouro, como uma coleção de tarefas. A visão de Maria do Piche é passiva, contemplativa. Seu correlato é um mundo concebido como realitas pelos antigos. A visão de Maria do Ouro é ativa. Seu correlato é um mundo concebido como Wirklichkeit, palavra alemã cuja raiz é wirken, agir, produzir efeitos, trabalhar, ser eficaz. Uma conhece o mundo como algo a ser visto, outra, como algo a ser transformado. O sujeito da realitas – Maria do Piche – não se deixa afetar pelo objeto. O sujeito da Wirklichkeit – Maria do Ouro – é convocado pelo objeto para agir sobre ele. Os pães e as maçãs estendem seus braços para que Maria do Ouro os salve da combustão e da putrefação, interpelam-na, pedem que ela intervenha, que faça o gesto que vai redimi-los. A senhora Holle é a natureza que depende do trabalho da moça para sobreviver, do mesmo modo que a Terra depende desse trabalho para que os ritmos do clima não se alterem, para que a neve não deixe de suspender seus cristais brancos nos galhos das árvores. O mundo visto por Maria do Piche é um conjunto de objetos isolados, porque lhes falta o fio unificador, que só pode ser dado pela categoria do trabalho. Para ela, nada há em comum entre as flores, o forno, a macieira e a casa. Para Maria do Ouro, ao contrário, tudo isso tem um denominador comum, porque todos foram produzidos pelo trabalho humano, e estão a exigir um trabalho adicional. Quando esses objetos interpelam Maria do Ouro, eles não querem ser conhecidos e transformados apenas enquanto mônadas, mas enquanto partes de uma multiplicidade orgânica, que guardam entre si um vínculo de complementaridade. Os dois olhares geram duas atitudes mentais distintas. Se um dia Maria do Piche quiser estabelecer com seu mundo uma relação cognitiva, seguirá inevitavelmente o modelo da epistemologia empirista, baseada em meticulosa divisão intelectual do trabalho. Cada região do real será objeto de uma disciplina própria, autárquica, seja científica, como a botânica, seja tecnológica, como a arte de construir casas ou de fabricar pão. Maria do Ouro, ao contrário, está sendo interpelada pelo real enquanto unidade do diverso, em seus múltiplos aspectos, e, mesmo que cada um desses aspectos tiver que ser pesquisado por uma disciplina específica, o conhecimento do real como um todo só poderá ser alcançado se essas disciplinas interagirem e dialogarem. Maria do Piche se move num mundo disciplinar, porque se faz surda à natureza multidimensional do mundo; sensível à variedade de vozes que emanam do real, a visada cognitiva de Maria do Ouro é espontaneamente transdisciplinar.

Comparemos as duas experiências, a de Fausto e a de Maria do Ouro. Mergulhando no mundo da vida, que inclui o amor (para Platão, Eros não é inimigo do conhecimento, mas seu impulsionador) e também o trabalho e a ação, Fausto não está dando as costas à razão, mas abandonando um modelo de conhecimento parcelar, fragmentário, e portanto incapaz de dar acesso à realidade integral. Mas esse mergulho no mundo da vida é ainda uma decisão subjetiva de Fausto, e não uma demanda do próprio objeto. No caso de Maria do Ouro, a interdisciplinaridade é um apelo que emana da própria realidade, que, sendo múltipla, exige um saber que lhe seja homogêneo. É o real que pede socorro a Maria do Ouro, implorando que ela o resgate, pelo trabalho, em sua natureza plural.

A relativização da segunda fronteira – aquela que separa a ciência da religião, da moral e da política – é necessária para garantir a porosidade da ciência a seu entorno normativo. Quanto à religião, muitos pensadores insuspeitos, como Habermas, pensam que é preciso reconstruir pontes, recuperar mediações que se perderam com o processo de secularização. Certos conteúdos da tradição religiosa remetem a uma antiga sabedoria, uma fronesis prudencial, distinta da episteme científica, e que completam a ciência, sem deformá-la. Alega-se, por exemplo, que não podemos entender o Holocausto sem utilizar termos religiosos como o mal, o remorso e a expiação. No que diz respeito à moralidade, não podemos enfrentar os desafios propostos pela atual engenharia genética sem recorrermos a categorias éticas. O desenvolvimento atual da bioética confirma essa tese. Quanto à política, enfim, a própria sobrevivência da democracia depende da capacidade dos cidadãos de reassumir algum controle sobre os rumos da ciência, pois de outro modo haveria o risco de que uma ciência cada vez mais esotérica e menos inteligível para o homem comum, cada vez mais comprometida com o complexo industrial-militar, cada vez menos sensível aos riscos ecológicos que pesam sobre o planeta, usurpasse o poder decisório que numa sociedade democrática só pode ser exercido pelo povo soberano.

A relativização da terceira fronteira – a fronteira política que separa os diferentes estados nacionais – é essencial para a mutação com que sonhamos. Ela exige absolutamente a remoção das barreiras que impedem a difusão e livre circulação de ideias e conhecimentos científicos e tecnológicos através do mundo, o que requer, entre outras coisas, uma reformulação do sistema internacional de propriedade intelectual.

VI

Mas a mutação do saber não pressupõe apenas uma mudança de orientação dentro da comunidade científica. Não basta que os próprios cientistas adquiram a capacidade de transcender seus respectivos casulos disciplinares. A mutação pressupõe também que a sociedade como um todo tenha algum tipo de acesso, mesmo aproximativo, ao saber interdisciplinar que está sendo gerado.

O primeiro pressuposto é um imperativo de cientificidade, pelo menos com relação a certos objetos, que somente são acessíveis ao olhar interdisciplinar. Quem segue um caminho unidisciplinar para estudar esses objetos não está escolhendo um método entre outros possíveis – simplesmente não está fazendo ciência.

Sugiro chamar esses objetos de “transliminares”, porque são aqueles que têm a propriedade de cruzar nossas três fronteiras.

Entre os objetos transliminares está a Terra. Não precisamos aderir à chamada ecologia profunda nem ao culto pagão de Gaia para sabermos que a compreensão desse objeto exige a flexibilização das três fronteiras que examinamos antes. É preciso flexibilizar a primeira fronteira, de caráter intracientífico, porque o estudo da Terra exige a interação de inúmeras disciplinas, como a geografia, a geologia, a meteorologia, a zoologia, a botânica, a economia, a política. É preciso flexibilizar, também, a segunda fronteira, porque todas essas disciplinas precisam interagir com seu entorno religioso, moral e político, do qual recebem insumos e demandas, e que elas por sua vez influenciam. E é preciso flexibilizar a terceira fronteira, de caráter geográfico, porque o entendimento e a salvação da Terra constituem um empreendimento transnacional e transcultural, de interesse decisivo para a humanidade inteira.

Há vários outros objetos transliminares, como o homem, cuja inteligibilidade plena exige a convergência das ciências humanas, da biologia, da psicanálise; cujo futuro depende da interação com seu entorno social e ético (em áreas como a clonagem e a biologia molecular); e cuja sobrevivência depende de uma comunidade internacional capaz de assegurar a difusão de um saber planetário. É o caso também de temas como a globalização, a paz, o desenvolvimento, a religião e a democracia, todos eles objetos transliminares que, como os outros, exigem a confluência de várias disciplinas, a interação com o meio social e a instauração de um contexto internacional favorável à pesquisa e à ação.

Em todos esses exemplos, a flexibilização das fronteiras é uma exigência da própria realidade – o mundo da vida, para a qual se volta o velho Fausto, o mundo do trabalho, que suplica a intervenção de Maria do Ouro para que ela o transforme e conheça –, não a imposição voluntarista de um determinado método, exprimindo as preferências subjetivas do pesquisador.

O segundo pressuposto tem caráter político. É a essência da mutação que estamos reivindicando: devolver aos cidadãos a capacidade de compreender e influenciar o movimento infinitamente complexo da gestação e difusão social do saber.

Tecnologicamente, a humanidade tem melhores condições para chegar a essa compreensão que em qualquer outro momento da história. Nem Aristóteles nem Leonardo da Vinci tinham à sua disposição o Google, instrumento que agrega o saber universal e permite não somente estocar todos os dados possíveis como estabelecer entre eles todas as relações e relações de relações. Os gregos antigos diriam que, como repertório de dados, o Google é uma Biblioteca de Alexandria com capacidade ilimitada de estocagem; como fonte de todas as relações imagináveis, tem atributos que o assemelham à inteligência divina.

Mas, do ponto de vista social, não tenho receitas para implantar o reino da interdisciplinaridade. O humanista Wilhelm von Humboldt o situou na universidade, que para ele se baseava na comunidade multidisciplinar dos docentes, dos estudantes e dos pesquisadores. A universidade seria o espaço ideal em que os professores de grego conviveriam com os químicos, em que os estudantes de direito confraternizariam com os estudantes de teologia, e em que os biólogos assistiriam a experiências de física. A realidade, é claro, é bem diferente. A universidade é um espaço em que convivem vaidades autossuficientes e em que os vários departamentos se entrincheiram em seus respectivos feudos acadêmicos, exatamente como na época em que Kant redigiu O conflito das faculdades, para descrever uma situação em que mesmo falando do mesmo objeto – Deus – a faculdade de teologia e a de filosofia partiam de pontos de vista inconciliáveis, incapazes de levar a qualquer consenso. Nada nos impede de sonhar com uma universidade em que os departamentos não se engalfinhem para disputar verbas oficiais e em que os professores de diferentes áreas conversem uns com os outros sobre assuntos que não sejam greves ou cargos administrativos. O tempo virá, talvez, em que os núcleos interdisciplinares existentes em algumas universidades produzam mais que um somatório de monólogos.

Mas, enquanto isso não ocorre, a melhor esperança de despertar uma consciência multidisciplinar é começar na escola. Num mundo ideal, as turmas seriam compostas de meninos e meninas de diferentes etnias, nacionalidades, religiões e classes sociais. Os alunos aprenderiam várias línguas. Conheceriam a literatura e a música de outros países. Adquiririam, assim, uma sensibilidade intercultural e um saber humanístico, sem os quais não há como desprovincianizar o espírito, tornando-o apto a pensar em termos generalistas. Além disso, as atividades de pesquisa solicitadas dos alunos deveriam se orientar pelo critério multidisciplinar, levando-os a mobilizar várias matérias lecionadas em sala de aula, não apenas uma. Não quero dizer que com isso estaríamos formando futuros gênios enciclopédicos, mas pelo menos não estaríamos produzindo idiotas, no sentido etimológico: pessoas ilhadas em seu microuniverso particular.

A teoria da complexidade, de Edgar Morin, pode encaminhar-nos para uma conclusão. Ao contrário do paradigma cartesiano, baseado na simplificação e na parcelização, o paradigma da complexidade não separa o sujeito do objeto, o objeto do seu contexto, o todo das partes, as partes do todo, as partes entre si, a razão da emoção, a ciência da ética, o indivíduo da sociedade, a sociedade do indivíduo, os grupos e sociedades particulares da humanidade como um todo. O paradigma da complexidade pode ser o fio condutor para pensarmos a mutação que está à nossa frente. Esse paradigma tem um precursor ilustre: Blaise Pascal, ele próprio pensador sem fronteiras, inventor, matemático, filósofo e teólogo. “Todas as coisas sendo causadas e causantes”, escreveu Pascal, “e todas elas se comunicando por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diversas, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, ou conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.”

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