2017

Por uma utopia não utópica?

por David Lapoujade

Resumo

Vivemos num mundo que não acredita ou alimenta mais as utopias? O neoliberalismo prevalente e triunfante, o controle dos indivíduos (o que é mais do que vigilância), a velocidade de exposição a imagens e a interação cotidiana com as novas mídias nos aprisionam num presente que tende à repetição contínua. Esses são alguns aspectos do mundo pós-moderno que nos impelem a esquecer do passado e a não projetar o futuro, não obstante a necessidade da presença de ambas as dimensões temporais para que o presente faça sentido. Mas como encontrar lugar para ações que desafiem o sistema diante do fenômeno do englobamento (termo usado Deleuze)? Como fazer frente à notória e infame guerra de informação que ignora e ultrapassa fronteiras culturais e territoriais? Nessa guerra, lembra-nos ainda Deleuze, somos rebaixados à condição de “bancos de dados”. Esses estados não são causas exclusivas para o desaparecimento das utopias, mas os massacres que promovem certamente não deixam espaço para que elas se desenvolvam. Classicamente, utopia é um não lugar, ideal, tanto que falamos em socialismo utópico, mas lembremos de que Marx e Engels já criticaram o utopismo e, para fazer frente a ele, baseavam-se “numa análise ‘científica’ das relações de forças econômicas reais observáveis”; ainda assim o teóricos assumiam um fim derradeiro das sociedades culminando no socialismo; assumiam uma teleologia. Como vimos, em nossos tempos, predições do tipo teleológicas e utópicas foram desacreditadas na presença ostensiva de um sistema mundial dominante. Prevalece a ideia de que não há nada a se fazer, que os sonhos transformação radical morreram. Mas as partes desse sistema são tão interdependentes e globais que sua grandeza é também sua fragilidade, de onde a necessidade de controle constante para que o sistema se mantenha coeso (controle dos indivíduos, dos mercados, dos conflitos internacionais etc.). Como dissemos, nesse englobamento estamos presos no presente repetitivo, de tal modo que o “pessimista a priori” dirá que é “tarde demais” para mudar e o “otimista a priori” sempre irá projetar as mudanças no futuro, dizendo “ainda não”. Já que as utopias clássicas não são mais plausíveis, os caminhos de transformação não passam mais por predições idealistas e teleológicas. E se os desejos de transformação não podem ser mais chamados de utopia, que venham a ser formas de transformação do presente. No cenário atual, a resposta não está mais no futuro distante, mas na transformação do presente repetitivo num presente transformador. Para citar o filósofo e psicólogo norte americano William James, precisamos alimentar uma disposição do agir no presente para dar lugar ao que ele denominou possibilidade viva, não ficando aprisionados em possibilidades mortas.


[1]

Sabemos todos que a etimologia da noção de utopia remete antes de tudo ao espaço. Um mundo utópico é um mundo sem lugar. Ou melhor: um mundo fora de lugar sem ser pura ficção romanesca. É um mundo possível à espera de um lugar concreto. Mas na época em que Thomas Morus criou o termo podia-se ainda supor que pudesse existir um lugar onde implantar esse fora de lugar, pois estávamos na época dos novos mundos. É o que se vê nas tentativas de implantar comunidades utópicas nos Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX, comunidades religiosas, fourieristas, transcendentalistas etc.[2]. É evidente que os grandes espaços americanos foram um campo de experimentação para todas essas utopias filosóficas, socialistas ou religiosas.

Mas a utopia não é apenas questão de espaço; ela se tornou, progressiva e correlativamente, questão de tempo: ucronia do mesmo modo que utopia, desta vez segundo um termo inventado pelo filósofo Renouvier, mas cujo sentido deve aqui ser mudado (não uma história alternativa – o que poderia ter acontecido se… –, mas uma história no futuro). A utopia não se faz apenas num novo espaço, ela se faz num tempo novo. A utopia conjuga-se no futuro, é um sonho no futuro, pura escatologia ou futurologia enquanto abertura de possíveis. Muitas dessas utopias do século XIX sonhavam transformar as relações sociais em função de uma nova fraternidade, o grande tema esquecido da trindade da Revolução Francesa[3]. Elas se dedicavam a pontos precisos e concretos: renovação das relações entre homens e mulheres, das relações familiares, dos contratos matrimoniais, da educação das crianças, do espaço público através da construção de moradias etc. As transformações deviam ser antes sociais do que políticas e econômicas.

Mas há um terceiro conceito implicado na noção de utopia, além dos de espaço e de tempo: é o de crença. A utopia é inseparável de uma espera, de uma esperança, até mesmo de uma tentativa de experimentação efetiva, de lutas reais para fazê-la advir. Seria preciso definir a crença à maneira de William James, não como uma simples convicção, mas como uma disposição a agir. Crer num projeto utópico não é apenas julgar que ele é realizável ou esperar que o seja; é estar disposto a agir em conformidade com esse projeto, como os migrantes que embarcaram para os Estados Unidos com a firme convicção de poder cumprir seu sonho social.

Uma das características dessas utopias é que elas constituem espaços-tempos imaginários, independentes de sua realização histórica, sempre imperfeita. Ora, qual é a característica da imaginação nesse caso preciso? É pensar um mundo sem obstáculo. A utopia é um mundo que quer se livrar de todos os obstáculos do mundo real. Imaginem, diz o utopista, imaginem um mundo sem dinheiro, sem egoísmo, sem propriedade, sem capitalismo, sem esses obstáculos. Nesse sentido, a utopia não é apenas a descrição de outro mundo; nela se pode reconhecer pelo avesso um diagnóstico do mundo presente, pois ela nomeia por via indireta todos os obstáculos que obstruem nosso mundo, que o bloqueiam, que limitam suas possibilidades de libertação. A utopia não é o que se separa do mundo presente; ao contrário, é uma alternativa dele (imaginária ou revolucionária): o que seria este mundo se… Assim, a utopia é um lado avesso ideal, idealizado, do mundo presente, como se bastasse suprimir um ou vários obstáculos para transformar pacificamente o mundo.

Esse é justamente um dos traços do pensamento utópico socialista que Marx e Engels denunciam. Antes mesmo de criticar o caráter quimérico dessas utopias sociais, o que eles denunciam é sua idealização do mundo presente[4]. Embora reconheçam nelas uma força crítica, Marx e Engels as reprovam por permanecer no domínio do imaginário, demasiado pacífico aos olhos deles. Não basta eliminar os obstáculos num mundo imaginário como por encantamento; é preciso suprimi-los efetivamente no mundo real ao preço de uma luta revolucionária que nada tem de pacífico.

Mas que o marxismo tenha criticado o socialismo utópico não significa que ele renunciou, por seu lado, a toda ambição utópica, pelo contrário. Aqui cabe retomar a bela fórmula de Adorno que é citada por Miguel Abensour[5]: Marx e Engels “eram inimigos da utopia no interesse mesmo de sua realização”[6]. O projeto marxista é profundamente utópico, mas não se baseia mais numa crença imaginária infundada, livre de todo obstáculo. Baseia-se, ao contrário, numa análise “científica” das relações de forças econômicas reais observáveis. Ou seja: trata-se de opor um tipo de utopia a outro. O marxismo não é apenas uma nova filosofia, é uma nova concepção da utopia. São como duas versões da utopia: uma separada do mundo real que ela se propõe transformar, a outra ancorada numa análise do mundo real que ela se propõe derrubar. Eis aí uma primeira descrição da utopia clássica e moderna. Por que dizê-la clássica e moderna?

É que estaríamos no pós-moderno. Ora, o que significa pós-moderno? Significa justamente o fim dos grandes relatos utópicos. Com a queda do muro de Berlim nos anunciaram o fim das utopias. Tal seria a nossa pós-modernidade. Não apenas se proclamou o fim do marxismo, mas também o fim das utopias. Todos conhecem essa litania. Fim das utopias, fim da história. Estranho esse desejo de querer acabar com alguma coisa, de querer anunciar o fim de alguma coisa. É como o título de um texto de Beckett, For to End Yet Again [Para acabar mais uma vez], que mostra justamente que o fim não termina de acabar e que não se poderia acabar com nada; a moral dos livros de Beckett, aliás, é que o fim é que acaba conosco. Seria o caso de perguntar que estranho prazer sentem certos intelectuais em anunciar solenemente o fim de alguma coisa? O fim de alguma coisa não é, antes, o índice de uma mutação em curso, de uma profunda transformação? Acreditar acabar com a utopia ou acabar com a história é jogar com as palavras ou ser incapaz de mostrar como a utopia, a história ou qualquer outra noção se transformam.

Então, o que significa essa suposta morte das utopias simbolizada pela queda do muro de Berlim e a derrocada do regime soviético? Não seria outra forma de utopia, sob sua forma mais desencantada? Evidentemente, ela é inseparável do avanço e do triunfo do neoliberalismo como única ordem possível a partir de agora. É o famoso Tina, acrônimo da célebre frase de Margaret Thatcher: There is no Alternative [Não há alternativa]. Um profundo fatalismo: não há mais possível, há só o real, o real do neoliberalismo – único legítimo. Eis de onde vem, talvez, o estranho prazer: o prazer de anunciar um triunfo, uma vitória. Estamos desembaraçados, enfim, do que contestava nossa legitimidade. Pelo menos, é o que se deveria acreditar. Tal é a nova crença. Inútil lutar, não há mais possíveis alternativas, as utopias estão mortas. Não se trata de uma constatação, mas da proclamação de uma vitória que se gostaria fosse total e definitiva. A própria ideia de uma luta contestatária é pueril, idealista, primeiramente na cabeça dos que mais a desejam. E há vitória mais retumbante do que essa resignação do desejo, quando todos acabam por se convencer de que a luta é vã?

Fim das utopias? Que seja. Mas será tão simples assim? Cabe aqui introduzir uma belíssima distinção feita por Marx entre dois sentidos da palavra utopia. Marx distingue, na verdade, dois tipos de utopia. De um lado, a utopia como expressão imaginativa de um mundo novo que remete às formas de utopia que descrevemos há pouco. Elas se propõem abertamente transformar o mundo ou derrubar a ordem existente. Mas há uma segunda forma de utopia, bem mais sorrateira, menos visível, que Marx define como a sombra do mundo presente. O que é essa sombra que acompanha e cinge o mundo presente? Não devemos primeiro descrever o mundo presente para tentar perceber essa sombra? Tal seria a tarefa daqui por diante: tentar descrever, mesmo sumariamente, mesmo de maneira muito aproximada, este mundo no qual vivemos, para tentar entrever a sombra de uma utopia. De que novo espaço-tempo o mundo presente se acha permanentemente cingido? Qual é essa utopia que o acompanha permanentemente? Eis o que me proponho abordar agora.

De que se compõe o nosso presente? Como descrever o espaço-tempo que o caracteriza? Claro que não posso responder a tal pergunta, senão apenas dar indicações muito gerais. Mas essas indicações terão todas por objetivo fazer adivinhar essa sombra. Consideremos primeiro o espaço. Em quais espaços vivemos hoje? De maneira geral, o que se observa é que vivemos num espaço controlado em todas as partes. É o que diferencia nossa época da anterior. Se antes o espaço era vigiado, em particular as fronteiras e os espaços públicos (principalmente os espaços urbanos e as instituições), doravante criam-se espaços submetidos, não a uma vigilância, mas a um controle generalizado: controle humano, visual, televisual, audiovisual, por satélites, por computadores, por telefones. A diferença entre a vigilância e o controle é que, no primeiro caso, se trata de observar para disciplinar (ou fazer respeitar a disciplina, como o mostrou Foucault[7]), enquanto no segundo caso se trata de obter informações para controlar.

Esses espaços informativos se tornaram tais que se pode localizar qualquer indivíduo no planeta, a qualquer momento, como se a Terra inteira fosse equipada de captores ou detectores de movimentos. Mas não são só os movimentos que se detectam; são os enunciados, as condutas, as emoções, todas as informações emitidas pelos indivíduos. Em outras palavras, as populações que ocupam esses espaços (e não apenas as populações humanas, mas vegetais, animais, minerais, energéticas, biológicas) se tornaram pacotes de informações e nada mais. Como disse Deleuze, não lidamos mais com indivíduos, mas com bancos de dados. E aqui não se trata só do espaço físico, mas de todo tipo de espaço: mental, ciberespaço, que se conjugam entre si. Todos os espaços estão saturados de informações. Certamente, zonas imensas escapam a esse controle, ao mesmo tempo em que, apesar da pretensão de transparência, se formam imensas zonas de segredo: acordos comerciais, bancários, de modos de vigilância e da extensão dos modos de segurança, quanto ao tratamento dos dados que produzimos etc. Ou seja, esse espaço informativo não é de maneira alguma transparente, ainda que esteja saturado de informações.

Ora, o que se observa é que o espaço está submetido a um englobamento relativo que permite não só quadriculá-lo ou “estriá-lo”, segundo um termo de Deleuze e Guattari, mas sobrevoá-lo. O que se deve entender aqui por sobrevoo? É o fato de ser copresente a todos os pontos do espaço simultaneamente, como se as distâncias imanentes ao espaço estivessem abolidas. O espaço se torna um espaço sem distância, já que se está presente simultaneamente em todos os seus pontos. Trata-se de um espaço não dimensional. É como se cada localidade do mundo pudesse ser ligada a qualquer outra, considerando relações entre os diversos sistemas de informações e independentemente das distâncias reais. Isso permite saber o que dizemos, o que fazemos, o que vemos e onde estamos, em que redes profissionais, políticas ou de amigos circulamos. Uma das características aparentes desse espaço é que não há mais nada fora dele, já que nele tudo é percebido, visível e audível de ponta a ponta.

Dá para ver o que se cria em relação aos espaços anteriores. Antes o espaço era quadriculado, submetido a operações de medição, de delimitação. A instituição desses limites deu origem a inúmeras lutas e guerras. Os espaços eram polarizados por seus limites e suas fronteiras naturais, artificiais, políticas, jurídicas. Mas tudo se passa agora como se o espaço não tivesse mais necessidade desses limites nas novas configurações que ele construiu. Ele se torna ilimitado, aberto em suas extremidades, e “engloba” todo o espaço da Terra. Não é mais governado pelos imperativos e os limites da propriedade. O importante não é mais possuir um espaço, mas ter seu controle, saber como nele se comportam as populações (daí hoje a guerra da informação, tida como o bem mais precioso).

Se tivéssemos de resumir numa palavra essa configuração, caberia invocar o ciberespaço. De fato, o que é o ciberespaço? Num sentido, ele apenas se acrescenta a todos os espaços e a todos os meios existentes; é um novo meio, junto com a terra, o mar, o ar ou o espaço natural. Mas, em realidade, a novidade é que todos esses espaços coexistem, se sobrepõem e se comunicam no ciberespaço, que os redistribui a partir de suas inúmeras conexões em todas as direções. É ele que sobrevoa todos os outros espaços e os controla. O ciberespaço não é uma abstração, é uma comunicação transversal (no sentido de que atravessa todos os meios) de todos os espaços. Ele dobra todos os espaços e os faz se comunicar entre si por sobrevoo.

Não seria essa uma primeira aproximação da sombra de que fala Marx? Um novo espaço que controla todos os outros espaços? Seja, mas de que utopia ele é portador? De que ele é o sonho (ou o pesadelo)? Ele não é a utopia de um mundo de comunicação horizontal comunitária não hierárquica (do tipo “Internautas de todos os países, comuniquem-se”); trata-se antes de livrar-se de todos os obstáculos do espaço mesmo, a começar pelas distâncias como dimensões do espaço físico. As sociedades de informação que começamos a descobrir não trazem em suas entranhas uma espécie de ideal? Não apenas a transparência, mas um sonho de onipotência (a posse total de todas as informações que circulam através do mundo e que o constituem agora como mundo). Pensemos no que visam os dirigentes do Google, do Facebook ou de outros grandes bancos de dados. Eis aí uma utopia na qual querem nos fazer acreditar pelos efeitos reais a que somos submetidos diariamente, a de que resulta um espaço no qual tudo está sob controle: nossos movimentos, nossas reações, nossas emoções, nossas condutas, nossas doenças e até mesmo nosso futuro. Eis aí a sombra que paira sobre todos os nossos atos, hoje.

Mas, ao invocar o futuro, passamos para a outra vertente: esse novo espaço (utopia) é inseparável de um novo tipo de temporalidade (ucronia). Não vivemos apenas num novo tipo de espaço, mas em novos tipos de temporalidades. Também aqui as indicações só podem ser sumárias. É cada vez mais evidente que não lidamos mais com a mesma forma de temporalidade que no passado, quando o tempo era vivido como uma continuidade indivisa. Tudo se passa como se vivêssemos agora num sempiterno presente sobrecarregado de informações que transformam esse presente num imperativo permanente, a todo instante reiterado. Bergson dá uma bela definição do presente. Ele o define antes de tudo como uma questão endereçada à nossa atividade motora. O presente é como uma questão que se repete sem parar: agora, o que fazer? O homem de ação é o que vive numa espécie de presente eterno, numa espécie de esquecimento permanente, submetido à mesma questão. Esse é o modelo hoje: o homem solicitado, saturado de informações, que deve escolher entre opções múltiplas, dividir-se dentro dele mesmo para cumprir suas tarefas. É fácil ver como essa exigência se reforça a toda hora com os novos imperativos do mundo do trabalho. Segue-se que não há mais outra dimensão do tempo senão a do presente, um presente permanente. Em outras palavras, lidamos cada vez mais com um tempo unidimensional (no sentido de que passado e futuro não são mais dimensões distintas do presente, são apenas extensões dele). Presente extensivo desdobrado em dois, em três, no interior de um tempo unidimensional. Assim como o espaço tende a perder suas dimensões, o tempo perde as suas.

É verdade que o tempo se abre em múltiplas direções (extensividade do presente), de acordo com uma espantosa simultaneidade, mas há unidimensionalidade no sentido de que um acontecimento só dura o tempo de ser substituído por outro, substituído por sua vez pelo seguinte. Toda continuidade temporal é como que destruída. Não há mais passado, a não ser reativado por ocasião de um acontecimento presente; não há mais futuro, a não ser como um horizonte sempre remodelado pelos imperativos do presente, sempre decidido por ele. Passado e futuro são totalmente avassalados pela onipotência do presente. Disso resulta um tempo sem duração, um tempo que não dura mais, não se acumula mais nele mesmo para nos enriquecer, mas que se limita a passar, a fugir numa espécie de esquecimento perpétuo. Um dos sinais dessa nova temporalização se verifica na perda de memória, ou melhor, no abandono da memória de conteúdo. Sabemos que não precisamos mais guardar os conteúdos na memória, que os bancos de dados constituem uma memória gigantesca que progressivamente suplanta a nossa. Mas, da mesma maneira, somos paradoxalmente despojados do esquecimento (e do direito ao esquecimento), submetidos a uma temporalidade de informação ubíqua que nos domina.

Também aqui essa nova temporalização tende a uma espécie de utopia. Em que sentido? No sentido de que o futuro pode ser submetido a predições cada vez mais exatas. Os grandes dados acumulados numa escala vertiginosa (big data) permitem prever as condutas, os focos de epidemias, as zonas de conflito, os comportamentos de risco. A utopia é tornar-se senhor do futuro, graças a aparelhos de predição cada vez mais precisos que permitam prever todos os tipos de comportamentos, tanto afetivos quanto biológicos, políticos, comerciais, médicos (para nos oferecer o presente que esperamos). Ou seja, é exercer sobre o tempo o mesmo controle que sobre o espaço, ter acesso à transparência de um tempo não dimensional que seja da mesma natureza que aquela sonhada para o espaço.

Discernimos um pouco melhor, talvez, em que consiste a tal sombra do mundo presente. As utopias tradicionais se caracterizam por se abrir a um mundo possível. Sua modalidade essencial é o possível. Por contraste, em que consiste essa nova forma de utopia? O que a distingue da forma clássica e ao mesmo tempo permite descrever a natureza dessa sombra? O modo da utopia pós-moderna (se mantivermos esse termo, utilizado aqui por comodidade) não é o possível, é o virtual. Virtual não se refere aqui ao que tradicionalmente se chama de mundos virtuais da simulação, mas à constituição dos novos espaços-tempos não dimensionais que acabamos brevemente de descrever e que controlam nossos espaços-tempos individuais e coletivos.

Não sentimos cada um de nós, individualmente, como que uma sombra de nós mesmos nos acompanhar em toda parte? Quaisquer que sejam os espaços-tempos que atravessemos, somos como que duplicados por um avatar digital composto por todos os traços deixados em cada uma das operações que praticamos: compra, venda, discussão, redes de amigos, centro de interesses, gostos, viagens etc. Avatar digital que é, não um duplo, mas um sujeito virtual, atualizável a qualquer momento, que pertence ao espaço virtual utópico no qual ele se torna previsível e localizável como qualquer produto, onde quer que esteja. Em ambos os casos, o dos indivíduos ou o dos produtos industriais, virtual não remete ao mundo da simulação, mas a novas potencialidades de um espaço informativo que favorecem a utopia contemporânea de um englobamento do espaço terrestre.

Ocorre a mesma coisa do ponto de vista da temporalidade, que substitui o futuro por um fluxo de presente permanente animado pela utopia realista de um tempo por vir que se pode predizer totalmente, como se paralelamente ao englobamento do espaço houvesse um englobamento do tempo. O tempo virtual é o tempo da predição – esboço, esquema, modelização, programação, linhas traçadas a partir da acumulação gigantesca dos dados recolhidos num presente saturado de informações. Eis aí a natureza da sombra cujos efeitos já se fazem sentir em nossas vidas. É o que se percebe vagamente quando se tenta desfazer uma engrenagem na qual estamos presos. Como disse Grégoire Chamayou, os centros de poder e de decisão não são mais distantes, mas inapreensíveis, fugazes. Lidamos apenas com sistemas de programação inelutáveis nos quais todas as opções possíveis preexistem, de tal modo que se torna impossível pôr em questão as arborescências que distribuem essas escolhas. É como a nova lei deste mundo: quanto mais o mundo virtual se estende, mais o mundo dos possíveis se retrai. Uma das formulações possíveis dessa utopia (que obedece a uma lógica empresarial) é: risco zero. Há inclusive tratados entre multinacionais e Estados segundo os quais, se houver uma mudança de regime político que ponha em causa, por exemplo, um regime fiscal, a empresa tem o direito de processar o Estado em função dos riscos de competitividade que ela corre. Agora empresas processam Estados por essas razões.

O grande erro, em toda essa descrição, seria acreditar que a utopia que tenta englobar o mundo num espaço-tempo virtual que o controla é uma profecia já realizada e que já é tarde demais para agir ou propor uma alternativa. Estaríamos diante do irreversível. Eis aí uma utopia destinada a desencorajar qualquer outra utopia. O que nos resta se todo o espaço está sob controle? O que nos resta se o futuro já está programado, se os riscos já são antecipados e conjurados? O problema hoje não é apenas qual é a alternativa possível, mas se existe uma alternativa. Colocar a questão dessa forma já é admitir a vitória desse ideal “pesadelesco”, reconhecer sua inelutabilidade (como a utopia do progresso inelutável no final do século XIX: havia tantos sinais irrecusáveis). É uma forma de pessimismo a priori.

De onde vem tal pessimismo? Ele vem da forma global e inapreensível desse controle. Estamos englobados. Como lutar sozinho ou mesmo coletivamente contra tal globalidade, contra um império tão vasto? Como não ser pessimista a priori? A única alternativa não é opor-lhe outro Todo, um Todo sem os obstáculos que fazem dele um pesadelo? Como não ver simetricamente no utopismo um otimismo a priori?

O problema não é ser otimista ou pessimista, é sê-lo a priori. Isto é, supor que estamos perdidos ou salvos, não importa o que façamos. O futuro está salvo ou perdido de antemão. É o sentido mesmo dos que dizem: para que lutar contra o sistema? Inútil lutar, todo combate está perdido de antemão, é tarde demais. Eles não compreendem que são justamente pensamentos dessa natureza que asseguram a vitória do sistema. Que maior vitória pode haver do que uma vitória a priori, quando o adversário está convencido da derrota antes mesmo de combater? Tal seria a nova crença para a qual nos conduz essa utopia.

Mas não é certo que a crença contrária seja mais invejável. Se o pessimista a priori não cessa de repetir que é tarde demais, o que diz o utopista otimista? Ele diz que o tempo ainda não chegou, que ainda é muito cedo. Ele conta com ou espera um mundo melhor. Um lamenta o passado no qual ainda era possível lutar (antes que fosse tarde demais), o outro espera um futuro no qual será possível enfim lutar (mas ainda é cedo demais). Tudo parece opor as figuras do pessimista e do otimista, tão opostas como a resignação e a esperança. No entanto, como não ver que eles se juntam secretamente, a ponto de serem como a frente e o verso de uma mesma moeda? Qual é o traço comum que os une, mais profundo que sua diferença de superfície? É que ambos são despojados do presente. O pessimista não pode viver no presente porque, de qualquer maneira, é tarde demais, tarde demais a priori. Ele pode apenas lamentar um mundo que se foi, vencido pelas novas forças do presente em ação.

Mas é o otimista muito diferente do pessimista? Também ele não vive no presente, pois sua vida não é mais que espera. Não vive no presente, mas no futuro. A nota do tempo que ressoa nele é mais tarde. Ele é tão incapaz de agir quanto o pessimista. Pois o momento ainda não chegou: “em breve, sim, vocês verão, mas ainda não é o momento”. O otimista se reserva (se mantém em reserva) para o futuro, para o dia em que… Ele conta com ou espera um mundo melhor. Um lamenta o passado, o outro espera indefinidamente o futuro, mas ambos estão separados do presente, do aqui e agora que, no entanto, eles ocupam. A forma a priori do otimismo e do pessimismo é uma maneira de despojar-se do presente e de todo poder de ação.

Despojados do presente, eles não sabem como agir. Não creem mais ou ainda não creem o bastante no presente para agir. Ora, que maior vitória pode haver do que despojar os indivíduos de seu poder de agir? Essa capacidade de ação é ao mesmo tempo tudo que temos e aquilo do qual somos constantemente despojados, ora por nossos sonhos otimistas, ora por nossos pesadelos pessimistas. É verdade que ocupamos o presente (ou o presente nos ocupa), mas não o possuímos mais, ele não nos pertence mais.

É como uma crise da ação. Não conseguimos mais agir, seja porque não acreditamos mais, seja porque não acreditamos o bastante. Dos três termos que invocávamos no início – espaço, tempo e crença –, é certamente a crença o mais importante. Pois a crise da ação é primeiramente uma crise da crença. Não conseguimos mais acreditar nas utopias, não porque é o fim das utopias (versão pessimista) nem porque o tempo ainda não chegou (versão otimista). Talvez porque o papel da utopia não é mais apropriar-se do futuro, mas primeiro reapropriar-se do presente.

Esse é o problema da escatologia próprio a toda utopia, tão logo ela rompe a continuidade com o presente vivo. Ela se torna um possível separado do presente, testemunhando que não cremos nele o bastante. Não é mais uma possibilidade viva. William James distinguia entre as possibilidades mortas e as vivas. É uma possibilidade morta alguém nos propor partir amanhã para o Alasca para uma missão geológica (embora ela seja intensamente viva para outro), pois não nos leva a agir; não há nenhuma continuidade entre ela e nosso poder de ação. Ao contrário, é uma possibilidade viva tudo que nos incita a agir, que nos impele a agir.

Parece que uma das razões de ser deste ciclo de conferências consiste precisamente em recarregar com possibilidades vivas um novo espírito utópico, segundo a expressão tão evocadora de Adauto Novaes. Essa simples formulação chama a lutar contra todo pessimismo a priori, mas também contra todo otimismo a priori. Trata-se de voltar a dar sentido a uma nova possibilização ou utopização do presente mesmo. É a tarefa mais urgente e a mais difícil. Que novos possíveis injetar no real que permitam transformá-lo, aqui e agora (e não ontem ou amanhã)? Precisamos de possíveis que nos façam agir. Dirão que não é mais utopia. Mas é simplesmente que a noção de utopia muda de sentido. Ela deixa de ser um projeto global ou total, mas continua sendo acreditar em algo que ainda não existe e que só existirá se agirmos aqui e agora, individual ou coletivamente.

Não se trata mais de ser pessimista ou otimista. Como fazer, se não devemos ser nem um nem outro? Cabe aqui uma noção que o próprio William James toma emprestada de um certo George Eliot: o melhorismo. O que é o melhorismo? Ele nos livra de toda concepção global a priori. O mundo não está perdido nem salvo de antemão, em virtude de um destino fatal ou providencial. Se fosse assim, não poderíamos mais acreditar nas ações individuais ou coletivas, já que estaríamos todos submetidos a uma ordem superior, fatal ou providencial, presos num todo que nos ultrapassa.

E é exatamente isso que quer nos fazer acreditar a globalização: estamos presos num todo que nos ultrapassa, fora do alcance de toda ação. Mas o melhorismo não pensa mais em termos globais; ele se recusa a pensar em termos de totalidades. No entanto, há partes do mundo, há existências que podem se tornar melhores, mais ricas, com a condição de agirmos. O mundo não está feito, está por fazer, e seu “destino” depende da parte ativa que nele tomamos, das ações que empreendemos em relação a outros indivíduos, aqui e agora. O melhorismo é a concepção de uma utopia como experimentação efetiva e local. Não a concepção do mundo melhor, mas o melhoramento deste mundo, aqui e agora.

Se objetarem que as redes econômicas, políticas e de segurança são demasiado densas hoje para permitir a essas crenças agirem efetivamente no campo social, é por não perceberem que essa densidade e a interdependência dos elementos que a compõem revelam também uma enorme fragilidade. É exatamente dessa fragilidade que estão conscientes os que não cessam de reforçar os meios de controle de que falávamos há pouco. Se há uma tendência ao ideal do risco zero, é porque os acidentes têm repercussões às vezes muito vastas e incalculáveis (ver, por exemplo, a crise dos subprimes, em 2007). É justamente o que faz a força das ações locais, aqui e agora.

Para concluir, gostaria de dar um exemplo concreto: a ação recente nascida nos campi das universidades americanas que, umas após as outras, forçam seus presidentes a romper todo vínculo de investimento comercial com empresas que exploram as energias fósseis (e o movimento se propaga a outros continentes e dependerá da crença dos indivíduos e dos coletivos que experimentarem essas lutas). O modelo se inspira na luta contra o Apartheid, quando os estudantes forçaram as universidades a cortar investimentos de mais de 3 bilhões de dólares de holdings na África do Sul. Lembremos que, por ocasião de sua primeira visita aos Estados Unidos, Nelson Mandela não foi inicialmente à Casa Branca, mas à universidade californiana de onde tudo havia partido. A interdependência é tal que cada um dispõe de meios de pressão para agir. Sempre é possível inserir-se em outras ações, prolongá-las, ampliá-las, desviá-las. A primeira condição, diria William James, é acreditar. A crença, na medida em que dispõe a agir, é o primeiro motor da utopia. É nesse sentido que se trata sempre de utopia, tanto mais quanto querem nos privar das razões de acreditar nessas transformações possíveis. Mas não basta acreditar em certos possíveis, é preciso também que essa crença nos leve a ações reais. A segunda condição é que as razões de crer não sejam vastas utopias globais separadas do mundo real presente. Pois estas nos incitam a esperar em vez de agir aqui e agora. Precisamos conceber possíveis à medida de nossas forças, de nossa capacidade de agir, conceber utopias locais, por assim dizer, em continuidade com nossa experiência passada e as reservas de energia que ela nos permitiu acumular. Portanto, não o sonho global de outro mundo, mas possibilidades locais talhadas para este mundo. Ou seja: a utopia não tem outra escolha senão o aqui e o agora. Ela deve ser uma espécie de antiutopia.

Notas

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Pode-se consultar a esse respeito o belo livro de Daniel Vitaglione, L’Amérique des utopies (Paris: Éditions Encres, 1996), que reconstitui a história impressionante dessas criações, mais ou menos felizes, de comunidades utópicas.
  3. Ver Marcel David, Le Printemps de la fraternité, Paris: Aubier, 1992.
  4. “Na mesma medida em que a luta de classes se desenvolve e toma forma, essa maneira de elevar-se acima dela pela imaginação, de combatê-la em imaginação perde todo valor prático, toda justificação teórica.” Cf. Karl Marx; Friedrich Engels. Manifeste du parti communiste, Paris: Éditions Sociales, p. 153. Ed. bras.: Manifesto do Partido Comunista, Sueli Tomazini Cassal (trad.), Porto Alegre: L&PM, 2001.
  5. Miguel Abensour, “Marx: quelle critique de l’utopie?”, Lignes, Paris: Hazan, 1992, n. 17, p. 44.
  6. Cf. Theodor W. Adorno, Dialectique négative, Paris: Payot, p. 252. Ed. bras.: Dialética negativa, Marco Antonio Casanova (trad.), Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
  7. Cf. Michel Foucault, Vigiar e punir, Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

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  • possibilidade morta
  • possibilidade viva
  • presente
  • Renouvier.
  • repetição
  • socialismo científico
  • socialismo utópico
  • ucronia
  • utopia
  • vigilância
  • william james