Trinta anos de experiências do pensamento
por Adauto Novaes
Resumo
Mais do que celebrar os 30 anos da Artepensamento ou os 800 ensaios publicados em livros que ela coordenou, seja no silêncio dos anos 1960 e 70 no Brasil ou no crepúsculo dos anos 80 no mundo, este livro é uma oportunidade para recobrar temas filosóficos importantes, vistos por uma nova perspectiva.
Se, no início dos anos 2000, ainda havia resquícios de um pensamento clássico que se perguntava sobre o homem no contexto técnico, a série de mudanças que se passou a seguir, radical e perturbadora, era como uma foto que não tinha sido mergulhada no devido reagente. Ela resistia a se revelar – até que se começou a trabalhar com o conceito de mutação.
De que se trata?
Vive-se entre dois mundos. Um que não acabou inteiramente, outro que não começou inteiramente. Para dar conta dele, era preciso – descobria-se – não só superar o humanismo como seu fim, assim como diagnosticado por Michel Foucault. Mais do que reabilitar o velho mundo ou apenas repensá-lo, assumir o novo, sem, claro, dar as costas para o prodigioso legado deixado por pensadores que se dedicaram a ele, suas origens.
Quando se pensa em algo que desapareceu, supõe-se que suas ruínas ainda existem. Mas como conceber um mundo em decadência ao mesmo tempo em que se tenta conceber o que surge, com todos os seus potentes esforços?
Havia ainda uma tarefa a cumprir. Superar a tendência dos intelectuais a se dedicarem ao “diálogo mudo do pensamento com o próprio pensamento”, sua recusa a ver o mundo tal e qual. Certo que, com isso, formam-se bons intérpretes da filosofia passada. Acontece que é preciso ir às coisas para delas extrair novos pensamentos ou, como ensina o filósofo Alain, para evitar incorrer na tagarelice pura e simples – “da mesma maneira que uma experiência sem julgamento jamais pode tocar as coisas”.
Na investigação desse novo mundo, restaria enfim saber se, como previsto por Paul Valéry, o espírito estaria se tornando supérfluo. Isto é: se a tecnociência teria espiritualizado de vez a matéria, mecanizado de vez o espírito?
Hegel, por exemplo, ensina que é o espírito que salva o homem do naufrágio pessoal e coletivo. É através das artes, da religião e da filosofia que ele se distingue da barbárie. E da massa do mundo técnico ou da história natural da atualidade?
Essa é uma questão fundamental a este livro.
Eu disse um dia e talvez com razão: da antiga cultura restará apenas um monte de escombros, um monte de cinzas, mas haverá espíritos que flutuarão sobre essas cinzas.
LUDWIG WITTGENSTEIN
A RETOMADA
O décimo volume da série Mutações é, ao mesmo tempo, uma retomada e um desvio das ideias anteriores. Ao propormos a volta aos temas discutidos ao longo de trinta anos de ciclos, queremos dar um sentido preciso à ideia de retomada. Ou seja, o trabalho do pensamento é muito mais que uma resposta aos fatos. Ele é uma construção permanente e delicada. Nietzsche nos mostra, no ensaio “Verdade e mentira no sentido extramo- ral”, que o homem constrói um domo conceitual infinitamente compli- cado sobre fundações moventes “semelhantes a uma teia de aranha tão fina que pode seguir a corrente do fluxo que a leva, mas tão resistente que não pode ser dispersada pelo vento”. Os ensaístas deste livro foram, pois, convidados a voltar às “fundações moventes”, remando muitas vezes em sentido contrário ao fluxo das correntes. A proposta de Entre dois mundos consiste em ir ao impensado através dos vestígios de coisas pensadas ao longo desses trinta anos. Ou, como nos relembra Maurice Merleau-Ponty, pensar o novo é partir em busca do que se esconde entre o significado e a significação explícita. Ao longo desta trajetória, percorremos vários temas importantes: Os sentidos da paixão, O olhar, O desejo, O esquecimento da política, Ética, Tempo e história, Poetas que pensaram o mundo, Civilização e barbárie, entre outros. Mas, como alerta ainda Merleau-Ponty:
Nada, nenhum lado da coisa se mostra a não ser escondendo ativa- mente os outros […]. O invisível é o relevo e a profundidade do visível. […] Não é, pois, o irrefletido que contesta a reflexão, é a reflexão que se contesta a si mesma, porque seu esforço de retomada, de posse, de interiorização ou imanência só tem por definição sentido em relação a um termo já dado…
Ou seja, pensar é criar movimentos do espírito sobre si mesmo, o que leva a revelar “segredos” a partir da própria negação. Isso não quer dizer que as ideias trazidas pelas conferências dos ciclos anteriores estão superadas pelos novos acontecimentos: elas apenas se tornam frágeis se permanecerem presas a si mesmas; ganham mais certeza, mais potência de transformação, se sempre se apresentarem como passagem. Eis a incansável “luta das ideias contra os signos e dos signos contra as ideias”, como escreveu Paul Valéry.
OS DESVIOS
A era dos fatos técnicos, porém, nos convida a pensar os desvios que nos levam muito além do movimento permanente das ideias: a era das transformações rápidas cria certa instabilidade e fraqueza do trabalho do espírito, o que leva boa parte dos pensadores a reconhecer que as mutações tecnocientíficas conduzem a um tipo de barbárie de nova espécie que pode ser definida como a era do vazio do pensamento. Cego e impotente, armado apenas de velhos conceitos, só resta ao espírito – entendido como inteligência e potência de transformação – ir às coisas para desvendar o novo mundo e tentar desfazer a desordem infligida ao próprio espírito. Eis um movimento que nos dá a pensar: se, como diz Alain, “pensar é certamente retirar-se do mundo e, em certo sentido, recusar o mundo”, de imediato ele insiste em afirmar que fora dos objetos do mundo nada pensamos. Com essa aparente contradição, Alain quer apenas evidenciar que não se pode fixar o movimento do pensamento nem perceber ingenuamente as coisas. O movimento do pensamento se dá nesta conjugação: entrar no mundo mas duvidar das coisas do mundo tais como elas se apresentam. O trabalho do espírito é isto: associar e dissociar toda a ordem de fenômenos, julgar e, principalmente, fugir do hábito e da repetição. Ora, a ciência e a técnica impõem hoje a repetição como estilo de vida. Basta prestarmos um pouco de atenção ao nosso cotidiano: racionalista, frio, repetitivo, metódico e pouquíssimo espaço dedicado ao imaginário. Contra o automatismo de todo gênero, é preciso recorrer às hipóteses teóricas e ao uso do possível. Como escreve Valéry, não podemos nos representar “o que existe, tal como existe, sem misturar ao real um conjunto de noções, apreensões, repugnâncias, associações”. Uma sociedade que abole o pensamento – as coisas vagas, como escreveu o poeta – não teria como resistir à desordem e ao caos que se manifestam na instabilidade essencial na política, na sensibilidade ética, nas mentalidades, nos costumes, nos valores, na maneira de viver, na condição de existência, enfim, em todas as áreas da atividade humana. Seríamos pouca coisa sem a ajuda do pensamento e “nossos espíritos, desocupados”, escreve Paul Valéry, “feneceriam se as abstrações e as hipóteses e pretensos problemas metafísicos não povoassem de seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais”. O que nos cerca hoje não está distante das “trevas naturais”.
Os ensaios de Entre dois mundos trabalham nos dois sentidos: retomada e desvio do pensamento.
MUTAÇÕES SILENCIOSAS
Ao longo de trinta anos foram publicados mais de oitocentos ensaios, muitos deles gestados na sombra e no silêncio impostos no Brasil quando, em meio à incerteza, surgiam os primeiros sinais de uma transformação também silenciosa: a década de 1980 viu o fim de uma era. Os sinais do mundo da tecnociência já eram latentes, mas não tocavam nossos sentidos e nossa consciência da maneira explícita como acontece hoje. Eram apenas esboços imperceptíveis e quase invisíveis para nós. O filósofo francês Henri Bergson usa uma imagem que podemos adaptar à nossa pouca visão do que acontecia na época: a de uma fotografia que não foi ainda mergulhada no banho no qual ela se revelará. Era preciso criar esse revelador.
Lemos no prefácio da Fenomenologia do espírito de Hegel o que é, para nós, a passagem entre dois mundos:
Da mesma maneira que, na criança, após longa nutrição silenciosa, o primeiro sopro da respiração rompe – por meio de um salto qualitati- vo – o caráter de um progresso que não era senão acréscimo, e assim a criança nasce, assim o espírito que se forma, por uma lenta e silenciosa maturação, acede à sua nova figura, desagrega sucessivamente as par- celas do edifício que constituía seu antigo mundo. Apenas sintomas isolados indicam que o antigo mundo está sendo abalado; a frivolidade, o tédio que se instalam em tudo o que existe, o vago pressentimento de algo desconhecido, enquanto sinais precursores indicam que uma nova realidade começa a se instaurar. Este esfacelamento progressivo, que não altera a fisionomia global, é interrompido por um aparecimento que, como um raio, instala de um só golpe a figura do mundo novo.
O que nos resta é tentar responder ao enigma: o que é aniquilado e o que é conservado na mutação. Somos herdeiros de que história?
É certo que vivemos entre dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro que não começou inteiramente. Nessa ambivalência, antes éramos adeptos do pensamento humanista, mesmo que Michel Foucault já falasse do fim do humanismo. Não imaginávamos o surgimento do que se convencionou chamar de pós-humano. Para nós, o homem ainda era o sujeito da história. Não ouvíamos com atenção o que o filósofo Günther Anders dizia sobre a obsolescência do homem. Mas suas hipóteses iam muito além: a técnica tornou-se o sujeito da história, “o que é confirmado de maneira espantosa pelo fato de o ser e o não ser da humanidade depender, a partir de agora, do desenvolvimento da técnica e de sua aplicação”. Não pensávamos em reabilitar o velho mundo, apenas repensá-lo, sem negar o legado prodigioso de Mallarmé, Freud, Schöenberg, Musil, Berg- son, Marx, Einstein (e a relatividade restrita), Valéry, Proust, Wittgenstein, Sartre, Foucault… Quando nos lembramos de uma coisa que desapareceu, pensamos que vestígios dela ainda podem sobreviver. Mas, como escreve Hermann Lotze, citado por Walter Benjamin nas Passagens, é certo que a história, no seu conjunto, “produz menos uma impressão perfeitamente edificante e mais uma impressão essencialmente melancólica”. Lotze vai além no enigma daquilo que já pedia para ser pensado: “O progresso da ciência não é, imediatamente […] um progresso da humanidade; ele o seria se a acumulação de conhecimentos verdadeiros tivesse uma participação dos homens e uma visão clara de suas grandes linhas”. Mas como pensar em um mundo que sobrevivia entre o cortejo de coisas em decadência e os potentes esforços de outro mundo que queria nascer? Na década de 1980, nosso problema era que, sem abrir mão das mais brilhantes contribuições do pensamento antigo, do Renascimento e dos ideais iluministas, tendíamos a recorrer, na fraqueza evidente em que vivíamos, a certa visão de humanismo, na crença, não propriamente de poder curar a decadência, como escreveu Robert Musil, mas de contorná-la. Nem mesmo levávamos em conta as duas propostas descritas pelo filósofo Badiou no livro Le siècle:
O século foi pensado simultaneamente como fim, esgotamento, de- cadência e como começo absoluto. Parte do problema do século é a conjunção dessas duas convicções. Digamos de outra maneira: o sé- culo se concebeu a si mesmo como niilismo, mas igualmente como afirmação dionisíaca. Dependendo do momento, parece agir sob duas máximas: uma (hoje, por exemplo) é de renúncia, resignação, mal me- nor, moderação, fim da humanidade como espiritualidade, crítica das “grandes narrativas”. A outra, que domina o “pequeno século”, entre 1917 e os anos 1980, retoma de Nietzsche a vontade de “dividir em duas a história do mundo”; propõe um começo radical e a formação de uma humanidade reconciliada.
O humanismo pedia assim para ser repensado. O anti-humanismo radical também, como veremos mais adiante.
Havia outro problema que, de certa maneira, ainda persiste: era preciso criticar uma tendência dos intelectuais que se dedicavam ao “diálogo mudo do pensamento com o próprio pensamento”, porque aí encontra- mos pouca coisa; agindo assim, eles se recusavam a ver o mundo tal e qual. É certo que existem, entre eles, bons intérpretes da filosofia passada. Acontece que é preciso também ir às coisas para extrair delas novos pensamentos. Por fim, como nos ensina Alain, um pensamento sem objeto é um “pensamento sem regras, tagarelice apenas, da mesma maneira que uma experiência sem julgamento jamais pode tocar as coisas”.
Outro problema a discutir: não mais preservamos a consciência das operações do espírito. Estaria o espírito se tornando coisa supérflua, como propõe Valéry? Chegamos, enfim, ao prometido artifício diabólico (domínio da tecnociência) que, no lugar de espiritualizar a matéria, mecaniza o espírito? Questão difícil de ser abordada se sabemos que a tradição (Hegel) nos ensina que o espírito sempre se salvou do naufrágio através da história, das artes, da religião e da filosofia. Talvez tal seja o caso hoje: o espírito se salva da massa do mundo técnico, da história natural dos nossos dias. Através das obras de arte e de pensamento, o espírito se faz ver. Mais ainda: como enfrentar o abandono de uma das grandes conquistas da civilização moderna que foi a convivência – nem sempre pacífica, é verdade – da multiplicidade de doutrinas e ideais? Como síntese, Valéry nota que antes “ninguém poderia ignorar, em meio a altas temperaturas intelectuais, que havia sempre mais de uma resposta para qualquer questão especulativa”, e até isso se perdeu. Reina hoje o elogio do pen- samento único.
Entre tantas questões, outra já se anunciava nessa mutação silenciosa: novos conhecimentos trazidos pela ciência e pela técnica fechavam o caminho da busca individual e da percepção. Um exemplo simples, quase ingênuo, mas que pode ser expandido para outras áreas: não é mais necessário olhar para o céu e as nuvens porque a resposta – vai chover, vai fazer sol – está dada no celular. Não é mais necessário buscar os sinais no céu! Quando a previsão falha, não é mais a nossa impotência diante da natureza que é posta em questão e sim a máquina. A linguagem ordi- nária dos sentidos dá lugar à linguagem da máquina. Ou, como observa Valéry, essa relação com a máquina é um “pacto comparável a terríveis engajamentos que liga o sistema nervoso aos demônios sutis da classe dos tóxicos. E quanto mais a máquina nos parece útil, mais ela se torna; quanto mais ela se torna útil, mais nos tornamos incompletos, incapazes de nos privar dela”.
É certo que isso dispensa o espírito da tarefa difícil de prever e libera a percepção de buscar as causas. Agir assim não é sem consequências: eis os indícios da nova religião fatalista, que domina hoje quase todas as nos- sas ações e elimina a espera, a fantasia, a surpresa. E que principalmente tende a abolir o enigma das nossas primeiras verdades, cujas significações concretas nos escapam, e dos nossos primeiros e humanos erros, nossas experiências errantes, cálculos que nos levam a tentar pensar, pois é assim que se pensa, “lançando pontes sobre abismos”, como ensina Alain. Nada mais nos espanta, nem conseguimos ser mais ou menos que nós mesmos.
Esse era o cenário que se desenhava trinta anos atrás.
OS SENTIDOS E O ESQUECIMENTO DA POLÍTICA
Sabemos que as paixões não cessam de dar objetos aos nossos pensamentos, e assim surgiu o primeiro ciclo: Os sentidos da paixão. Era a primeira crítica ao dogmatismo que define as paixões apenas como coisas ilusórias e irracionais. Isso cria falsa independência dos diversos movimentos do espírito, de modo a negligenciar um dos aspectos mais caros ao tema, que é, nas palavras de Alain, “a relação da imaginação com os estados e movimentos do corpo”, bem como a relação conflituosa das paixões e da imaginação com o pensamento. Aqui vale lembrar de um dos aforismos de Robert Musil: “A mais radical psicologia dos afetos é também a mais livremente inventiva”. Ele conclui de maneira provocativa: “A vida é regrada sobre afetos e não sobre ideias! Conforme a aparição das ideias em forma de afetos”. A experiência, a observação e o julgamento rigoroso nos livram dos erros da imaginação uma vez que a percepção só se distingue da imaginação através dos laços de todas as nossas experiências pensadas. Mas é um jogo sem fim:
Na percepção mais rigorosa, a imaginação circula sempre; a cada mo- mento, ela se mostra e é eliminada através de uma busca realizada, ou mesmo de uma pequena mudança do observador e, enfim, por um julgamento firme. O valor deste julgamento firme aparece principal- mente no jogo das paixões: por exemplo, à noite, quando o medo nos espreita. Mesmo, durante o dia, quando os deuses correm de árvore em árvore. Podemos até entender isso: somos tão ágeis para julgar, partimos de indícios tão frágeis, que nossa percepção verdadeira trans- forma-se em luta contínua contra erros de acrobacia. Vê-se que não é preciso ir longe em busca da fonte de nossos devaneios (Alain, em Les passions et la sagesse).
Sabemos que o homem é inteiramente paixão. Recorremos, na época, ao que diz Descartes no seu tratado sobre o tema: “As paixões estão na alma ainda que elas sejam do corpo”. Tomemos como exemplo a paixão do medo, um dos temas abordados no ciclo Os sentidos da paixão. Como nos diz ainda Alain, jamais olhamos com atenção “esta emoção, que é o estado nascente de qualquer emoção […] não existe coragem sem medo, nem amor sem medo, enfim, nem sublime sem medo”. O que provoca medo no medo é o que ele anuncia. O trabalho do pensamento consiste, pois, em regrar os desejos, as ambições, os temores; é preciso conhecer as paixões e suas causas para criar a arte de dominá-las. Buscar o controle das falsas percepções e ao mesmo tempo interrogar os hábitos, as injunções políticas, a ordem moral que nos levam a erros de interpretação da realidade e de nós mesmos. Começar assim a série de conferências consistia em ir à origem pensada das paixões que nos dominam. Nota-se, como observa Alain, que a filosofia é estritamente uma ética, e, por isso mesmo, uma espécie de conhecimento universal que, por seus objetivos, “diferencia-se, por seus fins, dos conhecimentos que têm como objeto satisfazer nossas paixões”.
Depois das paixões veio o ciclo O olhar – cuja proposta é simples: ver é mais do que o que se vê. Era, por exemplo, preciso ver as grandes transformações que aconteciam. O problema é que muitas vezes somos capazes de ver a mudança, mas incapazes de perceber o que acontece.
O terceiro ciclo desse começo foi O desejo. E então as incertezas do momento nos levaram a outras reflexões: Ética, Tempo e história, Libertinos libertários, A crise da razão, O avesso da liberdade, O homem-máquina, A crise do Estado-nação, Civilização e barbárie, Muito além do espetáculo, Poetas que pensaram o mundo, O silêncio dos intelectuais, Ensaios sobre o medo, O esque- cimento da política etc.
Assim nasceram os ciclos de conferências que reuniram centenas de pensadores de diversas concepções e tendências, uma verdadeira comunidade de amigos. A amizade foi nosso princípio. Seguimos o conselho de Bergson:
Um pensador antigo disse que, em uma república na qual todos os cida- dãos fossem amigos da ciência e da especulação filosófica, todos seriam amigos uns dos outros. Ele não queria dizer com isso que a ciência põe fim às discussões e às lutas, mas sim que a discussão perde a acidez e a luta sua violência quando elas se dão entre ideias puras. Porque a ideia, no fundo, é amiga da ideia, mesmo da ideia contrária […]
DA CRISE À MUTAÇÃO
A passagem para o segundo momento se deu naturalmente, ao percebermos a expressão clara de uma mutação antes silenciosa na sua manifestação. Passamos então a observar com mais evidência que, a partir dos anos 1980, não mais existia área da atividade humana – política, costumes, mentalidades, artes, ética etc. – que não estivesse sujeita a uma grande mutação produzida pela tecnociência, pela biotecnologia e pelo universo digital. Antes, podíamos recorrer ao termo crise para designar o que pedia transformação. As crises – pôr em crítica – são constituídas de múltiplas concepções que se rivalizam e que dão valor dialógico às sociedades. Por isso, elas apontavam mudanças ocultas no interior de um mesmo processo. Já as mutações são passagens de um estado das coisas a outro. As transformações são contínuas nas coisas e em nós mesmos. Mas só percebemos as mutações se produzimos, através da percepção e do pensamento, um encontro entre as transformações das coisas com as transformações de nós mesmos. Interpreto de maneira livre – certamente muito diferente do sentido que lhe pretendia conferir Bergson – a imagem de dois trens correndo lado a lado na mesma velocidade e na mesma direção, o que daria a impressão de imobilidade que permitiria a dois passageiros, cada um em um trem, darem-se as mãos. Acontece que as transformações das coisas e da consciência se dão em tempos muito diferentes. As coisas técnicas andam hoje em velocidade incontrolável, e nossa percepção, a política e a interpretação da história ocorrem lentamente. Enquanto o material da vida passa por profundas e imediatas transformações, as convenções fundamentais da sociedade,
[…] os costumes, as leis civis, o direito público, as noções, as entidades, os mitos essenciais que compreendemos sob os termos de Moral, de Política e de História permanecem quase intactos em aparência. Eles são mais ou menos depreciados aos olhos da inteligência, que arruína sua substância metafísica, mas preserva sua potência prática e mesmo afetiva. Pode-se dizer que eles perdem seu sentido e guardam sua força (Paul Valéry).
ENTRE A ORDEM E A DESORDEM
A crise do espírito, ensaio de autoria de Valéry, resume bem nossa perplexidade. Ele trata da morte da civilização e de um Hamlet intelectual que, sucumbido ao peso das descobertas, sente o tédio de retomar o passado e a loucura de querer renovar sempre. “Ele vacila entre dois abismos, porque dois perigos não cessam de ameaçar o mundo: a ordem e a desordem.” Hamlet toma um crânio ilustre:
Este foi Lionardo. Ele inventou o homem voador, mas este homem voa- dor não serviu precisamente às intenções do inventor: sabemos que o homem voador, montado no seu grande cisne (“il grande uccello sopra del dosso del suo magnio cecero”) tem em nossos dias outras funções que não a de colher a neve no cimo das montanhas para jogá-la, nos dias de calor, nas calçadas das cidades […] E este outro crânio é o de Leibniz, que sonhou com a paz universal. E este foi Kant, Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit… Hamlet não sabe o que fazer com todos esses crânios.
Esse é nosso cenário, que nos remete a outro problema: antes, as mutações eram precedidas de grandes ideais políticos e artísticos, que davam sentido a criações de obras de arte e obras de pensamento – eram mutações pensadas que legaram às gerações posteriores novos ideais humanistas. Pensemos, por exemplo, na passagem do Renascimento ou do Iluminismo; mas as mutações que vivemos hoje são passagens sem pensamento que nos deixam à deriva, caminhos pouco visíveis, abertos não propriamente pelo pensamento mas pelo pragmatismo da técnica. Nesse cenário, as ideias tornam-se impotentes, e a difusão dessa crença é, como nos alerta Musil, um dos sintomas do declínio do ideal da razão, desfigurada também pelo liberalismo político. Assim, não sabemos dizer onde estamos nem para onde vamos. Entramos de costas em um novo e estranho mundo, inteiramente outro, que tende a apagar os vestígios do passado e que não nos dá muita certeza do futuro. Herdamos, antes, enigmas. Em 1987, o poeta Yves Bonnefoy descreve assim o fim de uma era no poema Ce qui fut sans lumière:
E já que ao cair da noite a ave de Minerva alça o seu voo, é o momento de falar de vós, caminhos que vos apagais desta terra vítima.
Fostes a evidência, agora não sois mais do que o enigma. Inscrevíeis o tempo na eternidade, sois só passado agora, ali, onde a terra finda,
diante de nós, como a borda abrupta de uma falésia[1].
O desafio de pensar essas transformações é imenso e pede conhecimento de todas as ordens. Mais: é enorme a dificuldade de perceber o que acontece em seu estado bruto e inaugural porque ainda estamos muito próximos dos acontecimentos. Outra imagem de Paul Valéry é perfeita para expressar a dificuldade que enfrentamos desde os primeiros ciclos sobre as mutações: “Os físicos nos ensinam que, em um forno incandescente, se nossos olhos pudessem subsistir, eles veriam – nada”.
Mesmo assim, entramos na aventura do ver.
MUTAÇÕES, ANO 10
Até agora foram dez ciclos sobre as mutações: Novas configurações do mundo; Vida vício virtude; A condição humana; A experiência do pensamento; A invenção das crenças; Elogio à preguiça; O futuro não é mais o que era; O silêncio e a prosa do mundo; Fontes passionais da violência e O novo espírito utópico.
Muitas foram as hipóteses que serviram de ponto de partida para o trabalho de pensamento sobre as mutações, das quais uma se destaca: é como se a vontade de poder tomasse um rumo diferente. O que Nietzsche define como vontade de poder e encarna, de início, no criador – o poeta, o pensador – toma outro rumo no próprio Nietzsche, o que nos leva a pensar de maneira pouco convencional hoje: o sujeito da história não seria mais o homem, e sim a técnica. O livre espírito seria uma figura de transição. O homem das Luzes, que antes andava com prudência, na realidade, segundo comentário de Eugen Fink,
lança-se além de toda realidade fixa, sem fronteiras, cuja desconfiança e frieza significam apenas o Não que abre caminho a um Sim que virá. As Luzes de Nietzsche exercem-se também contra elas mesmas, não acreditam ingenuamente na razão, no progresso, na ciência. A ciência é para elas apenas um meio para pôr em questão a religião e a metafísica, a arte e a moral.
Uma citação de um dos aforismos publicado sob o título Vontade de poder não deixa dúvidas:
Você sabe o que é o mundo para mim? É preciso que o mostre em meu espelho? Este mundo: uma massa enorme de força, sem começo nem fim… eterna criação de si, eterna destruição de si, “além do bem e do mal”, sem finalidade… Você quer um nome para esse mundo, uma so- lução para todo o seu enigma? […] Esse mundo é a vontade de potência – e nada mais. E você é essa vontade de potência – e nada mais.
Por fim, outro fragmento que nos esclarece e que lemos como uma previsão do que acontece: “O que é grande no homem é que ele é uma ponte, não um fim; o que nele é amado é que ele é uma passagem e um declínio” (Zaratustra). Seria uma referência à possibilidade suprema do homem de lançar a ponte do humano ao pós-humano? Vivemos uma contradição entre a ciência-saber e a ciência-poder. É inegável o domínio da ciência-poder.
Günther Anders, filósofo alemão que foi o mais implacável crítico da civilização técnica americana e escreveu dois livros sobre a obsolescência do homem, vai além ao afirmar o que os pós-humanos tomam hoje como verdade: a ciência como vontade de poder. Chega mesmo a anunciar que:
Enquanto a guerra nuclear significa o aniquilamento dos seres vivos, entre eles o homem, a “clonagem” significa o aniquilamento da espécie humana para a produção de novos tipos humanos. A questão que põe a antropologia filosófica, a da “essência do homem” […] mesmo se fosse para rejeitá-la radicalmente respondendo que “a essência do homem consiste em não ter essência”, essa questão poderia perder todo o sen- tido se o homem fosse utilizado ad libitum como matéria-prima.
Somos semelhantes a Deus, conclui Anders, mas, na realidade, no sentido negativo, pois não se trata de creatio ex nihilo, mas antes passamos a ser “capazes de uma total reductio ad nihil, uma vez que, como destruidores, tornamo-nos verdadeiramente onipotentes […]. Podemos fazer desaparecer o conjunto da humanidade e do mundo humano”. Eis um argumento forte da vontade de poder ligada à ciência e à biotecnologia. O que é, enfim, este homem que, além das transformações biológicas, procura abolir o espírito ou, na melhor das hipóteses, transformá-lo em coisa supérflua, como advertiu o poeta Valéry?
O QUE FAZER TRINTA ANOS DEPOIS?
Passados trinta anos, voltemos, pois, o olhar para nossa trajetória inicial, seguindo o preceito primordial do pensamento: a retomada daquilo que já foi pensado. O pensado guarda sempre um tesouro latente de sombras e lacunas. Ainda mais quando o pensamento é cercado de tantas mutações, muitas delas à revelia do próprio pensamento porque produzidas pela tecnociência. Assim, entendemos Alain ao nos dizer que pensar é dizer não. Isso porque o filósofo trabalha com coisas incertas, que vêm à expressão em meio a tantas outras expressões silenciadas. Às vezes temos a sensação de que os conceitos estão defasados. É certo que o pensamento acumulado guarda consistência. Mas, sem renegar as preciosas contribuições dos pensadores que participaram dos ciclos, voltemos a pensar de outra maneira os temas inicialmente propostos, de Os sentidos da paixão (1986) a O novo espírito utópico (2016). É este o tema do ciclo Mutações – Entre dois mundos: 30 anos de experiência do pensamento. As mutações nos pedem para repensar os próprios conceitos. Os antigos já não dão mais conta de explicar a nova realidade.
Eis algumas questões discutidas nos ciclos de conferências e retrabalhadas pelas Mutações:
Os sentidos da paixão. Tomemos, como exemplo, a questão posta por Günther Anders no ensaio O ódio, na era do irrefreável desenvolvimento técnico. Os militares que lançaram bombas em Hiroshima ou os que hoje manipulam os drones “se atribuem mesmo uma atitude virtuosa, talvez cristã, ao realizar suas ‘missões’ sem ódio […]. Quanto mais distante está o inimigo, mais difícil e mais improvável se torna ‘natural’ o nascimento do ódio”. Seriam ações desapaixonadas? Eis uma questão que pede resposta. O olhar. É certo que somos dominados por imagens na televisão, nas ruas, principalmente no celular e nos computadores (4 bilhões de vídeos são acessados por dia em todo o mundo), mas elas são vistas na velocidade de um foguete. É um olhar sem vontade de ver e sem desejo de pensar diante do desaparecimento da ideia de duração. Ora, como já foi dito, ver é mais do que o que se vê. Wittgenstein indica outro problema bem mais comum: a contradição entre a compreensão do objeto e o que os homens querem ver. Daí o problema: “O que está mais próximo pode justamente tornar-se o que existe de mais difícil de compreender. Não é uma dificuldade do entendimento, mas uma dificuldade que diz respeito
à vontade, que é preciso superar”.
O desejo. Somos uma sociedade que tende a abolir os desejos (os afetos, a amizade, a liberdade ou mesmo a sexualidade em seu sentido mais amplo e não apenas natural)? O ser, como consciência de si, pressupõe o desejo, como nos lembra Kojève. Contra o simples conhecimento que mantém o homem em uma quietude passiva, diz ele, “o Desejo o torna inquieto e o leva à ação […]. Para que haja consciência de si, é preciso pois que o Desejo recaia sobre um objeto não natural, sobre algo que supere a realidade dada. Ora, a única coisa que supera este real dado é o próprio Desejo”. Assim, o Desejo é diferente da coisa desejada. Assim é o desejo de liberdade, que é muito mais do que a liberdade como coisa conquistada.
Libertinos libertários. O etnólogo Pascal Dibie fala da nova realidade nos domínios da sexualidade. Estaríamos entrando em nova fase libertina ou simplesmente na abolição da sedução e do desejo? Desejar é saber o que se deseja, a menos que se queira permanecer nas trevas naturais. Lemos em Hegel que “a liberdade pede que o sujeito consciente de si não deixe subsistir sua naturalidade”. Ou, como escreve Alain, “o ser que não tem consciência não tem desejo porque ele não é dividido”.
O desejo, como tudo no mundo hoje, teria se transformado em coisa mecânica que recai apenas sobre um objeto natural, como se tende a pensar? Ou será que, desde que a sociedade de consumo se instalou profundamente, o sexo, como a Coca-Cola e as férias, tornou-se produto a consumir apenas pelo prazer do consumo? Seria o coito “o último lugar de natureza pura (bruta) em um mundo artificializado e urbanizado”, segundo um psicanalista? Um pouco talvez entre os mais velhos, mas parece que o sexo, sua prática, para os jovens, entrou no âmbito da comunicação da globosfera, alternando entre virtual e realização. Então, a presença, nossa presença, torna-se secundária a tudo o que fazemos. É isso aí: basta uma rápida pesquisa no smartphone, no Tinder, no Adolf, no OKCupid, no Happn ou no IceBreaker, alguns aplicativos que funcionam por geolocalização, para ver quais homens, quais mulheres estão à disposição com o mesmo desejo de realização imediata… Encontro para uma bebida em um lugar público, vai-se à casa de um ou a um motel, uma hora de diversão sem troca de telefone, apenas uma trepada. Um fast sex… Na França, em 2015, 38% dos usuários de sites para encontros desse tipo admitiram buscar aventuras sem dia seguinte. Não é preciso se tocar para gozar. (Dados extraídos da revista Le nouvel observateur.)
O esquecimento da política. É certo que um dos pressupostos fundamentais da mutação política está no papel atribuído à tecnociência. Sobre o assunto, uma das conclusões a que chega o filósofo alemão Martin Heidegger, sujeita a muitas e contraditórias interpretações pela sua radicalidade, dá a pensar: “É para mim uma questão decisiva hoje: como um sistema político – e qual – pode, de maneira geral, ser coordenado na era da técnica. Não sei responder a esta questão. Não estou convencido de que seja a democracia”. A ciência e a técnica produziram, na política e no pensamento, aquilo que os teóricos definem como o mundo da especialização. As sínteses teóricas permitiram, durante séculos, grandes realizações, mas hoje, com a crise dos ideais políticos, restam apenas as desvantagens de uma democracia dos fatos. A definição é de Robert Musil:
A política, tal como a entendemos em nossos dias, é o contrário absolu- to do idealismo, quase sua perversão; ao levar em consideração apenas os fatos, “o homem que especula por baixo sobre seu semelhante e que se intitula político realista só tem por reais as baixezas humanas, única coisa que considera confiável; ele não trabalha com a persuasão, apenas com a força e a dissimulação.
Outro filósofo, nosso contemporâneo, e participante de todos os ciclos sobre as mutações, vai além na observação: para Jean-Pierre Dupuy, é presunção fatal acreditar que a técnica, que tomou o lugar do sagrado, do teatro e da democracia, poderá desempenhar o mesmo papel que eles desempenhavam na época em que a capacidade de agir dizia respeito apenas às relações humanas.
Francis Wolff dá sua interpretação: os utópicos de ontem foram substituídos pelos especialistas de hoje. Não disputamos mais os fins políticos, afirma Wolff, discutimos, sim, os meios e os fins técnicos.
O domínio da técnica sobre a política leva à perda dos fundamentos políticos, isto é, daquilo que a filosofia política criou e recriou ao longo da história como resposta às interrogações levantadas pelo advento da sociedade, ou melhor, a ideia e a prática que definem a sociedade como origem da lei e dos direitos. Era o momento em que a práxis tinha uma relação estreita com os princípios teóricos, muitas vezes para negá-los. Hoje, vivemos aquilo que já se definiu como o princípio do sem princípio. Mais: sendo apenas partes da vida social, a economia, a privatização da vida pública, a religião, o moralismo e a eficiência técnica procuram ocupar o lugar da política de maneira totalizante. É a escandalosa e inconsequente busca da hegemonia de uma dessas variantes sobre a política. Essa tendência dominante hoje abole muitos princípios políticos. Como observa o filósofo Newton Bignotto, retomando Hannah Arendt, parecemos condenados a oscilar entre democracias apáticas, comandadas exclusivamente pelas forças de mercado, e regimes autoritários. Enfim, como fica a prática da representação política quando sabemos que os partidos e os sindicatos perdem força diante das novas formas de comunicação e (des)organização através dos meios eletrônicos?
Essas são apenas algumas questões, tratadas em livros anteriores, que mostram que o novo mundo exige novos pensamentos.
Por fim, última observação: dedicamos este livro aos mais de trezentos conferencistas que participaram dessa trajetória. Por razões que não exigem explicação, decidimos começar com um ensaio sobre a amizade.
- Puisque c’est à la tombée de la nuit que prend son vol/ l’oiseau de Minerve, c’est le moment de parler de vous,/ chemins qui vous effacez de cette terre victime./ Vous avez été l’évidence, vous n’êtes plus que/ l’énigme. Vous inscriviez le temps dans l’éternité, vous/ n’êtes que du passé maintenant, par où la terre finit, lá,/ devant nous, comme un bord abrupt de falaise. ↑