2015

Urbanidade, fonte de violência?

por Pascal Dibie

Resumo

Os modelos de civilidade vincularam-se historicamente à urbanização. Os mais antigos espaços que, na história do Ocidente, serviram de modelo para o exercício dos direitos e deveres do homem livre foram a polis grega e a urbs romana. O conceito romano de civitas adentra, mais uma vez e em toda a sua potência, o imaginário do homem europeu no século XVI, mas não sem antes insinuar-se na língua francesa ainda durante a Idade Média (a palavra civil é documentada desde 1290). A civilidade é signo de educação e também de distinção social, tanto que, para os antigos romanos, ela se identificava com uma “urbanidade que trabalhava o corpo, os gestos, a voz, a pronúncia, o vocabulário”. Ela era, portanto, socialmente construída, ensinada, de onde o enorme sucesso no século XVI, em várias capitais da Europa, do manual de Erasmo de Rotterdam, A civilidade pueril. As grandes cidades eram os espaços mais propícios para o desenvolvimento de um ethos universal de costumes refinados quando não, maneiristas. Madame de Lafayette considera que “as maneiras da França agradam todas as nações”. Mas a polidez francesa, com seu gracejo elegante, seria rejeitada pelo espírito revolucionário. Os sans-culottes recomendavam “nunca gracejar e evitar a ironia ou os ditos espirituosos”. Queriam abolir tudo o que lembrasse os valores da aristocracia: o luxo é crime, inclusive no vestir-se. A partir de então, todos deveriam ser simplesmente cidadãos ou cidadãs, abolindo-se o qualificativo monsieur e madame. Théroigne de Méricourt clama pela igualdade entre homens e mulheres e pelo fim da sedução/proteção masculina; preconiza ainda que depois dos cinco anos que as crianças não deveriam mais pertencer aos pais, mas à Revolução. Já Madame de Staël concebe o ideal de um meio-termo entre a polidez monárquica e a vulgaridade revolucionária. Mas o novo código de costumes que a Revolução tentou implantar teria fôlego curto. No século XIX, ele seria substituído pelo ideal burguês, hegemônico. Essa foi “a época de ouro dos manuais de polidez, maneira de repetir e de afirmar que o mundo burguês não é um mundo sem educação.” Mas não seria mais possível retornar à polidez do Antigo Regime. Por mais que a burguesia quisesse imolá-la; a ruptura fora irreversível.


[1]

Os movimentos do homem vão por explosão, sempre mais além das causas exteriores.

Alain

A história da urbanidade, que com a urbanização a todo custo passou a ser uma história de civilidade, portanto, de incivilidade, atravessa a história dos homens. Sabemos que se trata de uma história puramente humana de entendimento e desentendimento, mas com frequência ignoramos as violências que isso engendrou a cada mudança de época. A urbanitas qualificava as qualidades humanas adquiridas em sociedade e descrevia tanto o saber viver junto quanto uma elegância de vocabulário ligado especificamente à cidade. Gostaria, para começar, de voltar à etimologia dos conceitos de civilidade e de urbanidade para estabelecer o cenário, pois se trata de uma história para a qual a humanidade não cessou de mudar os cenários de seu vasto teatro. Com esses dois termos, civilidade e urbanidade, estamos de fato em relação com a vida civil e a cidade. Civilis designou primeiro tudo que concerne ao civis, o membro livre de uma civitas, a fim de exprimir tudo que é relativo à sua existência cívica, a saber, seus direitos, seus deveres e sua dignidade. Foi Cícero que empregou civilis para traduzir o grego politikos no sentido de sociável ou de socializado, isto é, um membro da cidade capaz de viver em comum. Há nessa palavra algo de suave, de afável, como escreveu Alain Montandon[2], um sentido moral e psicológico que se impõe na época imperial e que é geralmente equiparado a humanus. Ovídio falará de civiliter no sentido de moderação, de brandura, ideia e orientações que reencontraremos mais tarde. Por enquanto, o latim designa por civilitas o conjunto dos cidadãos da cidade. Desde os gregos a cidade representa o espaço propriamente humano frente ao mundo selvagem que lhe é exterior, bem como ao mundo divino que lhe é superior e inacessível. Um mito conta que, se os homens possuíam todos os recursos necessários à vida com a habilidade técnica obtida de maneira desonesta por Prometeu, faltava-lhes, porém, a arte política que Zeus conservou ciosamente; assim, não havia cidades, e os homens não sabiam viver juntos. Inquieto com o devir de nossa espécie, ameaçada de desaparecer em curto prazo nessas más condições, Zeus mandou Hermes levar aos homens o pudor e a justiça para reparti-los entre todos, “a fim de que houvesse nas cidades”, diz Platão, “uma ordem estabelecida e os laços criadores de amizade”[3]. E Platão acrescentará: “As cidades não poderiam subsistir se apenas alguns estivessem dotados deles”, e “todo homem incapaz de participar do pudor e da justiça deve ser morto, por representar uma doença para a cidade”. Eis aí, para começar, como a violência institucional conseguiu barrar a violência selvagem, ou seja, como se começou a lutar contra a infração e o ultraje, e como a força em ação, vis em latim – vigor, potência, extrema energia física, a violência, enfim –, foi exercida como recurso necessário à sobrevivência da cidade. Não pode haver cidade sem aidôs, palavra grega que designa o pudor em todas as suas formas: sentimento de honra, vergonha, temor, respeito e consideração pelos outros, modéstia no olhar, na atitude, isto é, sem que cada cidadão leve em conta o que os outros pensam dele e seja movido pelo diké, sentimento de justiça que consiste em respeitar a regra, a lei, a norma pública de conduta. Aidôs e diké são assim os sentimentos políticos por excelência, já que tornam possível a existência da cidade. E Montandon prossegue: “Eles são as formas da brandura, excluem a violência e a grosseria, tornam os gregos superiores aos bárbaros e os atenienses superiores aos outros gregos (aos espartanos, em particular, que possuem leis, mas não conhecem a brandura)”[4]. Assim, os atenienses se manifestam cotidianamente entre si pela benevolência, pela polidez, pela filantropia. Os atenienses têm a graça, charis, e a persuasão, peithô, cujo principal veículo é a palavra falada: para viver juntos os cidadãos se falam e é a palavra falada que constitui a civilidade. A cidade, o sentimento de estar na cidade, não é somente casas e edifícios concentrados; é também e sobretudo um modo de vida. Pertencer à Ática, ser de Atenas, é um estilo, que se manifesta em todos os domínios por suas características de fineza, de elegância, de agrado, por seu vocabulário, seu espírito vivo, mordaz, e principalmente por sua oposição ao que é exterior a Atenas, em particular o que é rural, grosseiro, rústico, agroikos. Mais ainda, é a asteia que faz dignos do espírito de cidade as palavras inesperadas, os gracejos finos, a capacidade de gracejar com espírito e bom gosto e de fazer rir com uma distinção completamente urbana.

Para voltar à civilidade, a definição que por muito tempo lhe será dada, além de denotar o caráter do bom cidadão, é a “arte de fazer aqueles com quem vivemos contentes consigo e conosco”[5], definição bastante urbanocentrada, não é mesmo? Em todo caso, somos remetidos a Roma e à urbis, que fazia o cidadão intocável no exterior pelo simples fato de pertencer a ela. Em Roma “a urbanidade não é senão uma civilidade elegante”, diz Latena, e para os antigos romanos “é a polidez que permite o funcionamento do mundo”. A palavra civilis vai se referir “ao que é relativo ao cidadão, a seus direitos, à sua existência”, e o termo civicus, cívico, que se especializou no direito opondo-se a criminalis, bem como a militaris e a hostis, estrangeiro, inimigo, originou civil em francês (1290), incivil (1382) no sentido de violento, brutal, e, mais tarde, em 1568, civilisé, civilizado, no sentido de tornar civil, ser mais apto à vida civil, antes de adquirir o valor moderno de civilização que agitou o pensamento antropológico do século XVIII.

Assim, estamos em Roma, mãe do direito, onde ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não prescreve e onde a justiça pública substitui a arbitrariedade. Do mesmo modo que há um direito de todos sobre a conduta de cada um, todo mundo pode dirigir-se a todo mundo e julgar todo mundo[6]. Isso não impedia a ocorrência de alguns episódios de justiça popular e de espetáculos de rua nos quais a violência se fazia presente. Na verdade, o temor da opinião pública desempenhava um grande papel na vida dos romanos, da qual o público considerava-se o juiz legítimo. Cita-se como exemplo a história de um credor que, para obter um reembolso que tardava, utilizou um meio muito romano para forçar seu devedor: surpreendeu-o fora de casa e fez-lhe um convicium, convício, acompanhado de sarcasmos e de uma canção zombeteira em que o refrão reclamava a dívida não paga. Mas estamos em Roma e os juristas exigiam duas coisas no momento dessa vindita: não desnudar completamente o devedor e não usar palavras obscenas na canção, a fim de respeitar a coletividade que a testemunhava[7]! Às vezes havia tumultos: o recalcitrante era pego e atado a um carro fúnebre, simulando-se um cortejo do falso morto, que era acompanhado de choros e risadas, antes de deixá-lo fugir[8]. Acrescentemos que, em termos de violência verdadeira e mais urbana, havia em Roma o direito de bater na mulher, sobretudo na própria mulher, e essa violência natural só será posta em causa muito tardiamente – e olhe lá! Voltaremos a falar disso. Diz-se que os romanos não tinham a orgulhosa elegância helênica que fundava a vida pública e as atitudes privadas em maneiras igualmente corteses, o que não impedia que a urbanidade fosse um dever de savoir-vivre e que um homem educado não devesse jamais abandonar uma simplicidade familiar, que é o tom do orgulho cívico próprio de um homem livre[9]. Entre os romanos, o ridículo estará sempre associado ao rusticus, ao iletrado, àquele que não conhece as letras do savoir-vivre, embora o procedimento cômico fizesse parte de uma estética urbana e de um ethos ligado a uma postura retórica. A evolução dos termos urbanus e urbanitas põe em evidência as relações de alteridade e de identidade[10]. Havia de fato uma atitude romana, uma urbanidade que trabalhava o corpo, os gestos, a voz, a pronúncia, o vo-cabulário e que devia ser vista como o fundamento mesmo de um grupo humano antes de tudo ligado a uma cidade. A urbanitas correspondia à síntese da arte retórica que permitia justamente identificar e reconhecer sem hesitação os que faziam parte desse grupo. Cícero fala mesmo de um odor urbanitatis, essa impressão geral criada pela urbanidade romana engenhosa, civilizada, que se distingue da periferia onde reina a incultura e a vulgaridade, e, nesse odor, o humor e o gracejo são a via por excelência do refinamento urbano – gracejo que nunca deve ultrapassar os limites e que mais tarde será traduzido por elegans, que não significa outra coisa senão: que sabe escolher, que tem bom gosto, um estilo, certo jeito de falar. O urbanus homo é bem nascido,

abundante em palavras e em respostas bem ditas [escreve Quintiliano] e que em todas as circunstâncias saberá falar de uma maneira que suscite o riso e seja oportuna […]. O bom-tom supõe que não haja nada que destoe, nada de camponês (agreste) nem de insípido, nada de estranho nem no pensamento nem nas palavras, nem na voz nem no gesto[11].

A urbanitas, portanto, é uma questão de bom-tom em que nada destoa, e o locutor tem a pesada tarefa de ao mesmo tempo se dissolver no anonimato do pertencimento a um grupo e de se destacar pela sutileza de suas palavras[12]. Ser um verdadeiro romano é manifestar seu fascínio pelo belo espírito, ou seja, desenvolver uma prática semiótica de alteridade na qual o outro é uma variável ajustada em função dos limites do estabelecimento humano; o espaço fechado, no qual a urbis e seu poemorium favorecem a discriminação em relação ao outro e à cidade, é por essência uma violência à terra, separa-se dela.

Quanto à questão da civilidade na Idade Média, gostaria de sublinhar que a vida era um pouco confusa e mesmo tão dura ou violenta que foi preciso, para temperar um pouco a incivilidade jamais punida dos homens, inventar o amor cortês, conforme relatei sobre o silêncio obrigatório das mulheres[13]. É preciso em todo caso lembrar que por muito tempo o Oci-dente cristão confinou as mulheres atrás da porta para respeitar a regra de que uma mulher digna desse nome não podia, na cidade, viver no exterior. Tratava-se, antes de mais nada, de impedir o feminino de interferir nos assuntos públicos dos homens; era principalmente uma forma de preservar a pureza da pólis. Uma mulher que andasse pelas ruas punha em risco não apenas ela mesma, mas o resto da cidade, visto que o espaço político devia ser preservado da mácula potencial que toda mulher portava em seu corpo físico fora da vida privada, pois havia sempre o perigo de o contágio feminino poluir a cidade[14].

O século XVI veio corrigir um pouco essas condutas misóginas ou, pelo menos, atenuá-las. Em 1530, Erasmo publicou na Basileia, na Suíça, A civilidade pueril. Nesse curto tratado didático em latim, ele reformulava a noção de civilidade e plantava para os três séculos seguintes a pedagogia das boas maneiras. Certamente foi o momento de uma mudança social e cultural, no seio de um mundo mais complexo no qual as relações entre os grupos eram mais diversificadas. O começo da idade moderna constitui, segundo Norbert Elias, um momento de labilidade e de incerteza: a unidade católica é rompida, as rígidas hierarquias da Idade Média são abaladas (questionadas pela sociedade cortesã e cavalheiresca) e as relações entre os grupos diversos passam a ser mais complexas. Há novos desafios sociais e culturais. “A civilidade foi, como a de Erasmo, uma obra coletiva que respondia a uma necessidade cuja importância ela mesma apontou”, observa Elias[15]. Na Basileia, assim como em Paris, Antuérpia, Frankfurt, Leipzig, Cracóvia e Grã-Bretanha, A civilidade pueril é um absoluto best-seller no século XVI. Faltavam uma linguagem comum e novas referências, e eis que o tratado de Erasmo responde a essa expectativa e lhe dá uma forma. Trata-se de um projeto humanista, um novo modelo de civilidade que vem na corrente das reformas protestantes, luteranas e calvinistas, cujos efeitos se farão sentir até meados do século XIX. Erasmo está convencido de que é pela imitação e pelo talento sociável próprio às crianças que os bons costumes se aprendem verdadeiramente[16]. Jean-Baptiste de La Salle (que fundou os Irmãos das Escolas Cristãs, em 1679) recupera o modelo erasmiano voltando-se para as crianças pobres das cidades. Faz disso um instrumento de controle sistemático e autoritário: o treinamento do corpo é acompanhado daí em diante por uma vigilância policial do tempo e do espaço infantis. Isso terá uma evolução carregada de consequências na aprendizagem dos comportamentos. O livro de Erasmo, que devia ser aprendido de cor e recitado como um catecismo, não cessará de se difundir nos séculos XVII e XVIII. A um homem que faltasse aos deveres mais elementares, dizia-se, proverbialmente, que ele não havia lido A civilidade pueril.

A transformação dos comportamentos atingirá plenamente seus efeitos quando cada um, esforçando-se por ser seu próprio mestre, passou a considerar a norma como uma segunda natureza e, mais: como a verdadeira natureza enfim redescoberta! Uma nova sociabilidade se instalou, cada vez mais insinuante e imperativa, situando todo ato individual sob o olhar de todos. Quanto aos espaços onde se cumpre o rito social, eles podem ser modestos e triviais, como a sala de aula, os jogos, a igreja, ou bem mais prestigiosos, como a corte, cujo modelo vai se impor. Da civilidade que era pueril se passa, de maneira mais geral, à civilidade cristã. Sobretudo, a elite mundana parte à conquista de si mesma. Com o tempo, o modelo do cortesão se opõe à civilidade erasmiana e a seu sonho de transparência social.

Sabemos que a sensibilidade de uma época é tecida pelo mundo que a cerca, e a cidade, o modelo urbano, a urbanitas, está de volta. Ao mesmo tempo a cidade se transforma: abandono das muralhas, portanto, dos meios de defesa e de ataque; os lugares adquirem múltiplas funções: bastiões convertidos numa espécie de esplanada útil tanto para a artilharia quanto para servir de passeio aos parisienses[17]. A urbanidade parisiense faz coincidirem a calçada, a regularidade das fachadas e a arte de passear; ela inventa um novo espaço: a época clássica, o espaço funcionando como uma ferramenta, um esquema que ajuda os sujeitos a fabricar o mundo e a nele intervir cientificamente mais do que moralmente, a ponto de instrumentalizá-lo[18]. Esse discurso vai gerar no final do século XVII uma reação: a contraurbanidade que aparece sobretudo na filosofia de Rousseau, embora ele a visse como algo impensável… Enquanto isso, a violência está em toda parte nesse século XVII, em todos os estratos da sociedade. As cortesãs também vão buscar seu prazer no bordel[19]; são qualificadas, elas e seus acompanhantes, de galantes honestos que se fazem servir. Espaço idealmente modelado desde o reinado de Henrique ii sobre a civilidade italiana de Castiglione[20], a corte torna-se o lugar do aparecer e do domínio dos corpos e das paixões[21]. Nos antípodas da galanteria e da magnificência pintadas por Madame de Lafayette, o Louvre, isto é, Paris, cumula todas as violências possíveis. Diferentemente de Versalhes, a urbanidade do Louvre, no sentido de modelo civilizado, nunca será legitimada[22]. As modificações das práticas culturais, o advento de uma nova visão do mundo, a renovação dos dogmas plurisseculares vão deslocar a relação com a linguagem, o mundo e o espaço[23].

Na verdade, é a cidade mesma que se configura de outro modo, os lugares de circulação são desobstruídos, os espaços utilitários se impõem, “o alinhamento dos fluxos”, observa Daniel Vaillancourt em seu notável Livre du trottoir (Livro do passeio de rua), “desloca a coerção cívica”. Uma dobra utilitária, um novo tipo de racionalidade protestante, se aplica às coisas e aos signos e permite a ascensão da ideologia burguesa, que vem repensar a pompa no mundo. A urbanidade em Guez de Balzac (em suas Œuvres diverses de 1644) supõe um movimento que diminua as fricções e os atritos, como uma conversa fluida e tranquila que otimize o agradável.

O espírito burguês se separa do estilo mundano e desenvolve uma estética da mediocridade. Constata-se já uma urbanização da mediocridade, um estado intermediário, um lugar neutro sem sobredeterminação que possa corresponder à postura de um sujeito qualquer na aglomeração urbana. O que importa é o prescritivo: trata-se de não cometer algo inverossímil, de não misturar as ordens, de não confundir os lugares e os níveis, para não tornar saliente um personagem ou uma réplica. Busca-se “o gênero medíocre”, escreve Guez de Balzac, “que em algumas ocasiões é o gênero perfeito […]. A eloquência não deve destacar-se e convém refrear a força da ação”[24]. Uma nova arte de falar está surgindo na logística do fato urbano. Ao mesmo tempo, a lama de Paris é retirada, os depósitos de lixo são cobertos. “O revestimento”, observa Vaillancourt, “é uma maneira de vestir o solo, de fazer calar sua nudez, de livrar os habitantes de sua gangue”[25]. Busca-se afastar os lugares de podridão, de corrupção, lugares malsãos e desordenados como o Pátio dos Milagres, que agridem pelo simples fato de existirem. Fala-se muito nessa época dos estorvos de Paris, que representam o sintoma de uma urbanidade pouco urbanizada, mal ordenada. Paris é feita para os ricos, para os que podem circular tranquilamente, isto é, os que fazem circular o dinheiro ou o capital simbólico. La Bruyère se refere ao fenômeno do riso como fundamento da urbanitas: isso corresponde para ele a um limiar, a uma fronteira; aquele que por definição deveria se achar em terra conhecida conhece, com o riso, a afronta da rejeição por uma pessoa ridícula. La Bruyère lembra que a cidade permanece essencialmente burguesa ainda que o pessoal urbano da rua não se reduza à burguesia. O povo, ou melhor, a populaça instalada em pleno centro da cidade, atua nas margens e começa a depender de uma higiene social que a burguesia controla ou tenta controlar. É preciso fazer do pobre o lugar de investimento e de controle. O motivo da canalha ou do selvagem está sempre presente, deixando emergir o traço de uma natureza violenta que não poderia ser domesticada. Aliás, considera-se que a ausência de civilização, de polícia, condena esse povo à impiedade, à sensualidade, à libertinagem, contagiosa e mortalmente perigosa[26].

Há outra classe que comecei a evocar mais acima e que vive também

na cidade: a nobreza. Nobreza que não se exibe na rua e habita ilhotas de segurança, círculos eruditos e salões mundanos, quando não está na corte de Versalhes. Se a urbanidade burguesa é feita de passantes, do que passa, de marchas e contramarchas, do que se empreende e do que se apreende, a nobreza se preocupa apenas com seu ser e seu aparecer[27]. No entanto, as couraças desaparecem e, nesse final do século XVII, não se brilha mais apenas pelos ouropéis das armaduras, mas pela qualidade das réplicas. Para sobreviver à situação nova exposta anteriormente, o nobre deve se civilizar, familiarizar-se com os movimentos novos e principalmente favorecer as atividades de sublimação, substituindo sua espada de ponta acerada pela retórica e o espírito necessários às conversas de salão[28]. Mas a polidez, sinal de uma distinção superior na França, começará no século XVIII a ser o objeto de uma crítica moral e política. Ela é acusada de ser hipócrita, porque impede a sinceridade e é o instrumento de dominação de uma elite restrita que sublima seus privilégios pelo culto das belas maneiras. Uma reflexão sobre o valor moral das maneiras e sobre seu papel político se desenvolve. O prestígio da civilidade francesa, que por muito tempo fez dizer que “as maneiras da França agradam todas as nações” (Madame de Lafayette), desvaloriza-se frente à aspiração geral das grandes nações europeias à civilidade e à civilização. Isso significa que se começa a questionar a preeminência francesa. Pergunta-se mesmo se a polidez francesa não é a face brilhante de uma sociedade essencialmente corrupta. Quanto à civilidade, que não é a moralidade, ela diz respeito apenas às relações exteriores entre os homens. Para os filósofos das Luzes, ela tem por efeito limitar os efeitos do egoísmo e ampliar a sociabilidade humana, mas eles duvidam das formas de expressão mais sutis e mais refinadas, a chamada polidez, e perguntam se ela, ao ajudar os mais fortes a reforçar sua dominação, ao mesmo tempo em que fingem suavizá-la, e ao favorecer por toda parte a hipocrisia sob as aparências da beneficência, não pode tornar-se perigosa para a moralidade pública[29].

Sob a influência de Hume, aparece uma nova questão[30]. Para ele, o traço principal que distingue a sociedade francesa, tanto das repúblicas quanto dos regimes despóticos, reside no lugar das mulheres. É para elas que se transforma a polidez em galanteria, que se favorece a conversação e “se faz da badinage [o gracejo elegante] o caráter geral das nações”. Fazer as mulheres aparecerem, depois de tanto tempo afastadas, é primeiro reconhecer o caráter misto da boa sociedade, mas também significa que “não se veem os homens tais como eles são, mas tais como são obrigados a ser”. A badinage, espécie de desvirilização, teria se tornado assim uma norma imposta às profissões, às situações e às instituições mais sérias, mas que, tendo na base um erotismo que é o contrário ao do serralho, não é natural[31]. E Montesquieu insistirá, em suas Cartas persas: “Para agradar as mulheres é preciso certo talento diferente daquele que lhes agrada ainda mais; ele consiste numa espécie de elegância do espírito que as diverte, parecendo prometer-lhes a cada instante o que só se pode cumprir a intervalos muitos longos”[32]. Hume reconhece uma simpatia entre a França e a Grã-Bretanha, o que o leva a ver no comércio e na polidez duas formas concorrentes do que em breve será chamado de civilização. E ele reconhece na monarquia absoluta francesa, que considera uma monarquia civilizada, méritos não inferiores aos do regime quase republicano da Inglaterra. Para os filósofos das Luzes, a civilidade é vista como a atualização de uma disposição natural: pela prática das conveniências, o homem sociável conforma-se ao mesmo tempo aos outros e a si mesmo. Rousseau vai contestar essa ideia de civilidade e mostrar, no Discurso sobre as ciências e as artes, que o refinamento dos costumes é inseparável do declínio da virtude. Ele nega a sociabilidade natural e imputa o mal às instituições. Sabe-se que a questão da civilidade foi uma das grandes querelas com seus contemporâneos. Rousseau reivindica sua própria rusticidade, que é contra as “maneiras francesas, contra o conjunto das teorias da sociabilidade natural”[33].

Para compreender o que acontece na Europa a partir de 1789, é preciso também lembrar a maneira como a Revolução Francesa foi recebida e criticada na Inglaterra e na América, o que veremos mais adiante[34]. Por ora, eis que a polidez é posta em questão ou em julgamento pelos revolucionários, para quem “a polidez não é mais que um meio, criminoso e dissimulado, de se distinguir e de se colocar acima dos outros, e assim de humilhá-los e de rebaixá-los”[35]. A ofensiva revolucionária desenvolveu uma violência extrema contra as conveniências, e a revolução no dia a dia é vista como “a derrota das pessoas convenientes”[36]. Ao regime desnaturado da ociosidade cortesã e da polidez, o verdadeiro republicano vai opor aquele, mais austero, da lei e dos costumes, confiando que através da lei poderão ser impostos os princípios revolucionários. A polidez é vista como contrária à igualdade, à fraternidade e à virtude, que a revolução quer tornar os fundamentos do novo regime e da humanidade regenerada. Saint-Just irá mais longe ao declarar que “a grosseria é uma espécie de resistência à opressão […]. Lá onde se censuram as pessoas ridículas, há corrupção; lá onde se censuram os vícios, há virtude. O primeiro caso é o da Monarquia, o segundo é o da República”[37]. Um primeiro ataque contra a polidez é lançado em 14 de dezembro de 1790, quando se diz ser absurdo e ridículo o costume de chamar o superior de vous [vós, o senhor], em vez de toi [tu, você], como se fosse a coisa mais humilhante do mundo ser chamado assim. Eis aí, em todo caso, uma marca do caráter não igualitário das relações sociais na língua francesa e, em linguagem revolucionária, “uma das principais causas de nosso embrutecimento e de nossa subserviência”. Portanto, é preciso sacrificar “prontamente um costume prejudicial aos princípios eternos da verdade […] [restabelecendo] a língua pura e simples da natureza”[38]. Surge uma nova urbanidade: daí em diante, é por cidadão e cidadã, e chamando cada um por seu sobrenome, que a igualdade é restabelecida. Chega-se mesmo, no auge da ofensiva revolucionária contra a polidez do Antigo Regime, a proibir o tratamento por vous e o qualificativo de monsieur ou madame. Na assembleia geral dos sans-culottes, em 4 de dezembro de 1792, declara-se “tu como a verdadeira palavra digna dos homens livres”. Do mesmo modo, a Sociedade Popular das Chancelas vota a seguinte moção numa assembleia geral: “Daqui por diante seus membros se tratarão de irmãos, se chamarão por tu e por cidadão, abjurando solenemente a palavra Monsieur [Senhor]”. Os refratários são declarados suspeitos, prestando-se por esse meio “à arrogância que serve de pretexto à desigualdade”. Em 22 de dezembro de 1792, logo após a abolição da monarquia, o cidadão Charlier proclama na conveção: “Quando a revolução tiver se completado nas coisas, ela deverá se completar também nas palavras. O título de cidadão deve ser o único a constar em todos os atos emanados por vocês. A palavra monsieur ou sieur, derivada de Monsenhor, não deve mais ser uma qualificação usada”. Enfim, o todo-poderoso Comitê de Salvação Pública adotará oficiosamente, sem que isso nunca se torne uma lei, o costume de tratar todos por tu. O decreto de 8 de novembro de 1793 tende a impor o tratamento generalizado por tu a todos os cidadãos, decreto abolido em junho de 1795[39]. O debate já vinha se radicalizando desde agosto de 1792: tendo a revolução por objetivo assegurar a derrota das pessoas que são convenientes e não como deveriam ser, os elementos mais radicais não cessarão de pôr abaixo os costumes e as regras do Antigo Regime. Durante o terror, eliminam-se os girondinos, demasiadamente polidos de certa maneira. Ora, polir é civilizar os indivíduos, suas maneiras, sua linguagem, como observou Jean Starobinski[40]. O governo se declara a favor da grosseria e da trivialidade, dizendo que já há bastante gente elegante, gente de fachada, gente conveniente. Pierre-Sylvain Maréchal, que sempre tomou o partido do povo, emitiu esse julgamento a propósito das terríveis jornadas de setembro de 1792, dando uma ideia do que foi o espírito revolucionário e de como é difícil invocar um civismo, mesmo popular:

O povo que, como Deus, vê tudo, está presente em toda parte, e sem a permissão dele nada acontece neste mundo. Foi ao tomar conhecimento dessa conspiração infernal [a conspiração das prisões] que ele tomou o partido extremo, mas o mais conveniente, de prevenir os horrores que lhe preparavam e de mostrar-se sem misericórdia com os que não estavam a favor dele… O instinto certo do povo desconcertará todas essas medidas[41].

De fato, como observa Albert Mathiez em sua história da Revolução Francesa, “o Terror não tinha mais vergonha de si mesmo, tornava-se um regime”[42]. A propósito dos massacres de 2 e 3 de setembro, Maréchal afirma que o povo exercia muito logicamente suas virtudes e suas vinganças, e ele prossegue a descrição atroz que nos dá uma ideia do que foi essa violência revolucionária inteiramente urbana:

Durante um dia inteiro, de domingo a segunda-feira, houve condenações à morte e as sentenças eram executadas na hora […]. O povo é humano, mas não conhece fraqueza. Em toda parte onde fareja o crime, lança-se em cima sem consideração de idade, sexo ou condição do culpado […]. Juízes! Todo o sangue derramado de 2 a 3 de setembro deve recair sobre vós. Foi vossa lentidão criminosa que levou o povo aos extremos. O povo impaciente tomou de vossas mãos a espada da justiça por muito tempo ociosa e cumpriu vossos deveres[43].

Ele lamenta, porém, que não se tenha respeitado suficientemente os mortos:

Era fácil envolver com panos as carroças de cadáveres e poupar esse espetáculo aos cidadãos durante o longo trajeto que foi preciso percorrer para transportá-los a descoberto até o cemitério de Clamart […]. É assim que o povo de Paris limpa as prisões e outros lugares de reunião de malfeitores e de padres […]. É assim que o povo-Hércules limpa as estrebarias de Áugias[44].

Ainda a propósito da violência intrínseca e inevitável do povo, reiteremos estas palavras que o representante do povo Collot d’Herbois escreveu em pleno Terror:

As execuções mesmas não produzem todo o efeito que se deveria esperar. O cerco prolongado e os perigos diários que cada um enfrenta inspiraram uma espécie de indiferença pela vida, se não um completo desprezo pela morte. Ontem, ao voltar de uma execução, um espectador dizia: não é bastante duro. Que farei eu para ser guilhotinado? Insultar os representantes?[45]

Collot d’Herbois, que era homem de teatro, tirou disso a conclusão inversa, diz Mathiez: devia haver um reforço à guilhotina. Daí por diante, para provar seu fervor revolucionário e obter seu título de civismo, basta o insulto! Quem fala como um aristocrata aperta o nó da gravata fatal, a guilhotina. Vê-se mesmo surgir uma comédia do cidadão Dorvigny, representada em 23 de setembro de 1793, sob o nome de La Parfaite egalité, ou les Tu et Toi (A perfeita igualdade, ou os Tu e Ti). O movimento enfim se esvaziará com o refluxo do partido dos sans-culottes, a queda dos hebertistas e a eliminação da extrema esquerda pelo Comitê de Salvação Pública no final de março de 1794.

Se a violência está em tu e em ti, ela também continua presente em relação às mulheres e seu lugar na sociedade. Como entrevimos mais acima, a questão da mulher permanece suspensa há muito tempo. Às vésperas da revolução, por exemplo, circulam em Paris publicações como o “Almanaque das mulheres honestas”, texto semipornográfico escrito por Pierre-Sylvain Maréchal, no qual cada mulher da corte tinha seu dia, seu gênero e seu emblema sexuado[46]. Mas mulheres como Olympe de Gouges e Théroigne de Méricourt elevam a voz e reclamam pela palavra e a ação uma estrita igualdade dos sexos cidadãos. Théroigne de Méricourt, nascida em Marcourt, perto de Liège, em 1762, e cujo nome verdadeiro é Anne Josephe Terwagne, fundou em 1790 o Clube dos Amigos da Lei, em que as mulheres, como os homens, têm direito de voto. Ela julga que, se não há mais diferença nem hierarquia, a nova mulher não aceita mais a relação clássica com o homem de sedução/proteção que o século XVIII levou ao paroxismo. Ela propõe uma mudança completa dos códigos em vigor. Desenvolve um discurso utópico e violento, semelhante ao dos revolucionários mais radicais, como a ideia, por exemplo, de que o filho pertence à República, e não mais aos pais, a partir dos 5 anos de idade ou mesmo desde o nascimento. “A pátria se apodera do indivíduo que nasce para só abandoná-lo em sua morte.” Contra a autoridade paterna, o amor fraterno substituirá a relação filial. Um decreto da Comuna vai declarar que “não é mais permitido a professores, nem a pais e mães, aplicar corretivos corporais a seus filhos, o que faz com que os filhos se tornem muito maus”[47]. Do mesmo modo, deve-se substituir a hierarquia pela igualdade e, para prová-la, declara-se que “é insultar os amigos agradecê-los por alguma coisa”, assim como “o supérfluo do vestuário” é um roubo ao Estado e o luxo é um crime contra a sociedade. Pode-se também citar a aventura da Conjuração dos Iguais, de 1796, que terminará com a decapitação de seu autor, Graco Babeuf, em maio de 1797[48]. A austeridade republicana se traduz pela exigência de discrição e seriedade, que se opõe ao excesso de urbanidade do espírito de gracejo, próprio igualmente do Antigo Regime. Aliás, entre os bons costumes a ensinar aos jovens republicanos, desconfia-se da urbanitas e recomenda-se nunca gracejar e evitar a ironia ou os ditos espirituosos: “Falar com modéstia, eis o que convém ao homem digno da liberdade”. O pudor, que corresponde, como vimos, a uma lei intangível da cidade, está de volta.

Mas, apesar dessas recomendações revolucionárias, a violência dos gestos e a indecência ainda chocam (as mulheres) nas reuniões de homens… Théroigne de Méricourt pagará por criticá-los: depois de ser açoitada em público pelos adeptos da Montanha, que a acusavam de moderação, mergulhará na loucura e morrerá em Paris em 1817, no Hospital de la Salpétrière, onde estava internada.

Olympe de Gouges, feminista que conhece hoje seu momento de glória – o novo prédio que abriga as ciências sociais na Universidade Paris-Diderot traz seu nome –, proclama em sua “Declaração dos Direitos da Mulher”, publicada em 1791, que “a mulher é livre e permanece igual ao homem em direitos”, acrescentando com razão que, “se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, deve ter igualmente o de subir à tribuna”. Na prática e talvez sob o efeito feminista no plano matrimonial, a lei de 20 de setembro de 1792 introduziu o divórcio por consentimento mútuo. Olympe de Gouges, que ficara também revoltada com as jornadas de outubro de 1792, chamou Marat de aborto da humanidade e responsabilizou Robespierre pelo Terror. Foi detida em 20 de julho de 1793, julgada pelo tribunal revolucionário e guilhotinada em 3 de novembro daquele ano.

Outra mulher que levou a sério o racionalismo revolucionário e o defendeu à sua maneira foi Madame de Staël. Seguindo a crítica de Burke, um filósofo inglês que via na Revolução Francesa o fruto de uma interpretação funesta das Luzes que arruinaria a sociedade, era preciso mostrar que a revolução não engendrara necessariamente a violência e o terror[49]. Madame de Staël vai repensar o problema da civilidade num contexto novo; chegará mesmo a identificar, no momento 1789, o instante privilegiado em que o espírito das Luzes se juntou ao espírito da conversação, antes de sucumbir na vulgaridade e na violência[50]. Para a sociedade parisiense, de fato, o acontecimento 1789 é o momento improvável em que o espírito de conversação separou-se de sua estreita base aristocrática para se colocar a serviço da liberdade política. Madame de Staël pensa que o poder das mulheres sobre a opinião favorece a liberdade, que a ausência da dominação brutal dos homens sobre o outro sexo é um dos traços que distingue uma monarquia, mesmo absoluta, de um regime despótico no qual a dominação não tem contrapeso. Passado o Terror, Madame de Staël considera-se uma filha da revolução e deseja a consolidação de um regime republicano ou pelo menos liberal, mas quer afastar todo risco de recair no Terror, ao mesmo tempo em que denuncia o perigo de uma confiança sem limites na glória militar. Em seu primeiro texto escrito em 1798 (que só será publicado em 1900), Des circonstances actuelles qui peuvent terminer la Révolution (Das circunstâncias atuais que podem acabar com a revolução), ela explica que o Terror se traduziu pelo triunfo de uma linguagem “cheia de expressões grosseiras ou ferozes”, que tem por efeito tirar do homem “toda a sua dignidade, seu respeito pelos outros e por si mesmo, e que não pode ser combatida sem um mínimo de bom gosto; o ódio ao mau gosto de modo nenhum é uma opinião frívola”. Em suma, ela busca, como muitos outros, um meio-termo entre a polidez monárquica e a vulgaridade revolucionária e parece-lhe que se deve chegar à invenção de uma polidez revolucionária. Essa polidez diferencia-se das formas de galanteria do século de Luís XIV, para se aproximar da civilidade na qual “a polidez é a justa medida das relações dos homens entre si”[51]. Ela deseja uma nova urbanidade dos costumes e, à sua maneira, também milita em favor do lugar das mulheres, “das mulheres de talento”, esclarece, “as que escrevem”, sabendo que “nas monarquias elas têm a temer o ridículo e nas repúblicas, o ódio”[52].

Com o século XIX chega o momento de uma redefinição geral da problemática civilidade/civilização, provocada pela ruptura revolucionária na França e, de maneira mais geral, pelo advento da democracia na América, bem conhecida na França graças aos testemunhos de emigrados como Talleyrand e Chateaubriand. Talleyrand, herdeiro cético e um tanto corrupto das Luzes, vê nos Estados Unidos da América “uma república mundana, que resolveu o problema religioso graças às suas múltiplas seitas, mas que por outro lado é terrivelmente aborrecida por causa de suas maneiras rústicas e virtuosas que são o contrário exato da polidez francesa”[53]. Chateaubriand vê igualmente na América uma nova república virtuosa, mas também “o país onde o selvagem encarna uma forma de nobreza primitiva”[54]. Mais interessante para nós é o julgamento do americano Franklin, que mostra um olhar muito benevolente em relação à França, mas considera que os franceses têm um real problema cívico. Ele se apoia na lenda da moral sexual francesa que faz com que as paixões mais fúteis prevaleçam sobre o interesse público e que, ao arruinar a virtude das mulheres, impede duradouramente na França a formação de um espírito republicano: “Sob o pretexto de espírito e de galanteria, as mulheres francesas têm um comportamento que confina com a indecência e, sob o pretexto de deixá-las brilhar nos salões, os homens se debilitam e elas próprias se tornam incapazes de serem mães virtuosas”[55]. Essa crítica é retomada por outro americano, John Adams, para quem “as maneiras das mulheres, que estão na moda e têm uma reputação na França, são tais que jamais poderão sustentar um governo republicano nem mesmo se conciliar com ele. Devemos ter muito cuidado para não importá-las para a América”[56]. Tanto em Adams como em Franklin, a questão das maneiras francesas, portanto, é uma questão política americana que, para além do julgamento moral feito sobre os franceses, diz respeito em primeiro lugar ao tipo de formação desejável para as elites. A América e a França propõem claramente dois modelos de civilização política[57].

Voltando à França, o século XIX foi a época de ouro dos manuais de polidez, maneira de repetir e de afirmar que o mundo burguês não é um mundo sem educação. Após a devastação revolucionária, adquirir boas maneiras não é mais algo evidente; alguma coisa foi rompida que nada mais vai reparar, como a unidade do regime político e as maneiras que ele havia gerado. Constata-se, nessa França republicana, que finalmente as melhores maneiras são as do inimigo, esse Antigo Regime que a revolução pôs abaixo. A questão é saber, então, se o orgulho republicano deve se acomodar a um fato humilhante, se é possível ser muito polido e um honesto republicano[58]. O culto burguês, culto do homem cultivado, do homem normal e adulto frente ao outro, como observa Jean Starobinski, todo esse culto revela uma vertigem diante da abertura de uma sociedade indefinida[59]. “Começa-se a perceber que, num momento posterior, a civilização poderá se tornar um substituto laicizado da religião, uma parúsia da razão”[60]. Starobinski acrescenta que “o tratamento aplicado à substância das coisas e dos indivíduos não é isento, ele próprio, de certa violência”[61]. No fundo, o que vai surgir são as classes; os princípios e os pertencimentos de classe são os muros de resguardo para atingir esse alto grau de civilização que a burguesia representa. É a civilidade que nos faz civilizados, é o civilizado que é ou pode se tornar burguês, constata Béatrix Le Vita em sua abordagem etnográfica da cultura burguesa; a burguesia age na moita e faz malabarismos com seus parentes históricos[62].

A crise de descivilização que nos acompanha já há um bom tempo vai além da atitude cool, da qual proponho uma definição inspirada no trabalho de Claude Habib:

Cool é aquele que, numa tonalidade inapreensível entre ironia e atonia, buscando fazer os outros aderirem à sua desenvoltura, manifesta conivências sem agressividade e rejeita curvar-se a regras, infringindo as leis que lhe parecem absurdas, e que apresenta aos outros um eu negligente que evita ferir alguém[63].

Hoje, o que está trivial, mas profundamente em jogo, é sobretudo a violência anômica de indivíduos mal socializados. Há como que uma regressão da capacidade dos indivíduos de interiorizar suas emoções, de dominar suas expressões corporais, de controlar suas pulsões. Mais do que a civilidade, o que deve ser levado em conta, parece, não é tanto as inúmeras incivilidades cotidianas; e sim os incivilizados que nos agridem abertamente, a ponto de eles próprios lançarem na mídia sua violência, sua incivilidade manifesta ou mesmo sua barbárie assumida: linchamentos, sadismo, assassinatos filmados ou mostrados ao vivo na internet. Esses incivilizados, em nossas sociedades majoritariamente urbanas, são ao mesmo tempo carrascos de outrem e vítimas de sua própria incapacidade de se exprimir de maneira civil e, por essa razão, são dificilmente compreensíveis. Nathalie Heinrich vê inclusive quase uma postura estética, pelo menos um estilo de incivilidade nesses atos de violência que fragilizam a fronteira entre o lícito e o ilícito; atos que gostariam de se impor como uma legitimação do ilegítimo[64]. A novidade é que esse incivilismo não se revela como expressão de uma geração (os jovens), de uma categoria (os desfavorecidos), de uma topografia (as periferias) e está igualmente correlacionado à imigração. A incivilidade receberá sua definição apropriada nos anos 1990: “Um conjunto de delitos sociais extraordinariamente variados que não ferem fisicamente as pessoas, mas destroem as regras elementares da vida social que permitem a confiança”[65]. Entenda-se: a incivilidade é uma expressão, individual ou de pequenos grupos, que, mais do que uma impolidez reivindicada, participa da desestabilização das crenças cívicas. São atos violentos visíveis e geralmente significativos, como queimar brinquedotecas, creches e bibliotecas, cujo duplo símbolo, cultural e estatal, é legível por todos e prejudicial a todos[66]. Ou seja, a incivilidade cria a angústia e aumenta o sentimento de insegurança local. De fato, a impossibilidade de edificar hoje uma civilidade nova se deve com certeza a condições de mudança permanente, havendo, nos países onde existem direitos humanos, a necessidade de uma reforma constante das leis e dos costumes. No momento atual, é o estilo de transgressão que é o fator de unificação[67]. E digo que o estilo prevalece sobre o fundo quando a transmissão se torna impossível. Ora, como ensinar um estilo de transgressão comedida quando os ultrajes são quase uma regra de conduta? A fim de reforçar meu pessimismo quanto ao desaparecimento próximo de toda civilidade cidadã, na fragmentação atual e acelerada do vínculo social, gostaria de colocar a questão da individualização crescente, em que cada um se torna seu próprio mestre e só precisa prestar contas a si mesmo. David Le Breton, em seu livro recente, constata que “a velocidade, a fluidez dos acontecimentos, a precariedade do emprego, as mudanças múltiplas impedem a criação de relações privilegiadas e isolam o indivíduo […]. O indivíduo hipermoderno é desengajado. Ele tem necessidade dos outros, mas também do distanciamento deles”[68]. “Hoje é a disjunção que prevalece, cada um tentando fazer valer sua particularidade.”[69] As tecnologias eletrônicas extinguiram a rua, o cidadão dá lugar ao indivíduo e o indivíduo contemporâneo está antes conectado do que ligado, preferindo os contatos superficiais nos quais se entra ou sai à vontade, chegando às vezes a operar seu próprio apagamento, num estado de ausência de si que David Le Breton chama de brancura[70].

Para concluir, relaciono essas indagações à atualidade, para não falar do “agora da violência”. Vejo-me confrontado às preocupações fundamentais de meus contemporâneos, à questão de nossa sobrevivência numa convivência cada vez menos localizável em nossas megalópoles ensandecidas. A revista Le Nouvel Observateur, em publicação de 14 de julho de 2014 anunciou “O triunfo dos mal-educados”, ou seja, o artigo também se interrogava sobre o fim da civilidade no sentido em que eu a defini. O filósofo Jean-Luc Nancy, em Identidade, faz uma constatação que eu gostaria de reproduzir aqui:

Sem trabalho, sem lugar nem condições de vida a não ser os subprodutos da urbanização sem urbanidade, sem outra formação a não ser por remendos de modelos caducos, é impossível considerar um horizonte de identidade, mesmo quando não se deseja outra coisa. É natural então que as pessoas se fechem em pequenas identidades, superidentificadas por sua separação, endurecidas, exasperadas. […] Uma identidade nacional é posta em perigo por outras identidades, provocando uma desidentificação geral do que chamamos de “civilizações”[71].

Notas

  1. A tradução do presente texto, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves.
  2. Alain Montandon (org.), Hermès sans fil (Hermes sem fio), Paris: Payot, 1995.
  3. Platão, “Protágoras”, apud Alain Montandon, op. cit., p. 94.
  4. Alain Montandon, op. cit., p. 95.
  5. Grand Larousse du xixe siècle.
  6. Georges Duby e Phillippe Ariès, Histoire de la vie privée: De l’Empire romain à l’an mil , t. I, Paris: Seuil, 1985, p. 164. Edição brasileira: História da vida privada: do Império Romano ao ano mil, vol. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  7. Ibidem, p. 167.
  8. Ibidem, p. 268.
  9. Ibidem, p. 179.
  10. Daniel Vaillancourt, Les urbanités parisiennes au xviie siècle: Le livre du trottoir (As urbanidades parisienses do século XVII: o livro do passeio de rua), Paris: Hermann, 2013, p. 114.
  11. Quintiliano, “A instituição oratória”, apud Daniel Vaillancourt, op. cit., p. 116.
  12. Daniel Vaillancourt, op. cit., p. 117.
  13. Pascal Dibie, “O silêncio dos amantes e, mais particularmente, das mulheres”, em: Adauto Novaes (org.), Mutações: o silêncio e a prosa do mundo, São Paulo: Edições Sesc, 2014, pp. 351-82.
  14. Pascal Dibie, Ethnologie de la porte: Des passages et des seuils (Etnologia da porta: passagens e umbrais), Paris: Métailié, 2012.
  15. Norbert Elias, La Civilisation des moeurs, Paris: Calmann-Lévy, 1973.
  16. Jacques Revel, “Les usages de la civilité” (Os usos da civilidade), em: Georges Duby e Phillippe Ariès, Histoire de la vie privée: De la Renaissance aux Lumières, t. iii, Paris: Seuil, 1986, p. 174. Edição brasileira: História da vida privada: da Renascença ao século das Luzes, vol. 3, São Paulo: Companhia da Letras, 1991.
  17. O autor faz aqui um trocadilho, acrescentando, entre parênteses, au bord d’elles (na borda ou à margem delas). [n.t.]
  18. Baldassare Castiglione (1478-1529), autor do famoso Il libro del cortegiano. [n.t.]
  19. O autor faz aqui um trocadilho, acrescentando, entre parênteses, au bord d’elles (na borda ou à margem delas). [n.t.]
  20. Baldassare Castiglione (1478-1529), autor do famoso Il libro del cortegiano. [n.t.]
  21. Daniel Vaillancourt, op. cit., p. 40.
  22. Ibidem, p. 57.
  23. Ibidem, p. 96.
  24. Ibidem, p. 96.
  25. Ibidem, p. 120.
  26. Ibidem, p. 203.
  27. Ibidem, p. 184.
  28. Ibidem, p. 211.
  29. Philippe Raynaud, La Politesse des Lumières: Les lois, les mœurs, les manières (A polidez das Luzes: as leis, os costumes, as maneiras), Paris: Gallimard, 2013.
  30. Hume, no Tratado de 1711, reconhece já a necessidade, para o filósofo cético, de mergulhar de novo na

    common life para atenuar as consequências práticas de sua filosofia.

  31. Philippe Raynaud, op. cit., p. 66.
  32. Montesquieu, Lettres persanes (1721), Paris: Gallimard, 1999. Edição brasileira: Cartas persas, São Paulo: Escala, 2006.
  33. Apud Philippe Raynaud, op. cit., p. 123.
  34. Ibidem, p. 219.
  35. Frédéric Rouvillois, Histoire de la politesse de 1789 à nos jours (História da polidez de 1789 a nossos dias), Paris: Flammarion, 2008, p. 30.
  36. Ibidem, p. 27.
  37. Saint-Just, Fragments sur les institutions républicaines (Fragmentos sobre as instituições republicanas), Paris: uge, 1963, p. 144.
  38. Apud Frédéric Rouvillois, op. cit., p. 34.
  39. Ph. d’Iribarne, “Société de rang, société d’égaux” (Sociedade de classe, sociedade de iguais), em: Philippe Raynaud e Claude Habib (org.), Malaise dans la civilité? (Mal-estar na civilidade?), Paris: Perrin, 2012, p. 51.
  40. Jean Starobinski, Le Remède dans le mal: Critique et légitimation de l’artifice à l’âge des Lumières (O remédio para o mal: crítica e legitimação do artifício na era das Luzes), Paris: Gallimard, 1989, p. 29.
  41. Pascal Dibie, “Le peuple fait le espectacle. Le théâtre révolutionnaire de Pierre Sylvain Maréchal”, Le peuple existe-t-il?, Auxerre: Éditions Sciences Humaines, 2012.
  42. Albert Mathiez, La Révolution française (A Revolução Francesa), Paris: Denoel, 1985, 3 vols.
  43. Ibidem.
  44. Ibidem.
  45. Ibidem.
  46. Ibidem.
  47. Frédéric Rouvillois, op. cit., p. 43.
  48. Pascal Dibie, op. cit., 2012.
  49. Frédéric Rouvillois, op. cit., 2008, p. 213.
  50. Germaine de Staël, Des circonstances actuelles qui peuvent terminer la Révolution, Paris: Champion, 2009.
  51. Ibidem.
  52. Ibidem.
  53. Cf. Philippe Raynaud, op. cit., p. 219.
  54. Ibidem.
  55. Ibidem, p. 221.
  56. John Adams, apud Frédéric Raynaud, op. cit.
  57. Ibidem, p. 222.
  58. Philippe Raynaud e Claude Habib (org.), op. cit., p. 8.
  59. Jean Starobinski, op. cit., p. 45.
  60. Ibidem, p. 14.
  61. Ibidem, p. 27.
  62. Béatrix Le Vita, Ni Vue, Ni Connue: Approche ethnographique de la culture bourgeoise (Nem vista nem conhecida: aproximação etnográfica da cultura burguesa), Paris: msh, 1988.
  63. Claude Habib, “Sur le cool” (Sobre o cool), em: Philippe Raynaud e Claude Habib, op. cit., pp. 73-95.
  64. Nathalie Heinrich, “Incivilité du regard ou éthique de la transparence?” (Incivilidade do olhar ou ética da transparência?), em: Philippe Raynaud e Claude Habib, op. cit., pp. 27-49.
  65. Sébastien J. Roché, Incivilité et insecurité (Incivilidade e insegurança), Paris: Seuil, 1996.
  66. Denis Merklen, Pourquoi on brûle les bibliothèques (Por que se queimam as bibliotecas), Paris: La Découverte, 2014.
  67. Claude Habib, op. cit., p. 81.
  68. David Le Breton, Disparaître de soi: Une tentation contemporaine (A ausência de si: uma tentação contemporânea), Paris: Métailié, 2015.
  69. Marcel Gauchet, “L’Enfant du désir” (A criança do desejo), Le Débat, 2004, n. 132, p. 106.
  70. David Le Breton, op. cit.
  71. Jean-Luc Nancy, Identité, Paris: Galilée, 2010.

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