2017

A utopia do pensamento

por Pedro Duarte

Resumo

Utopia, ou um não-lugar é um neologismo e título da famosa obra de Thomas Morus. Mas, enquanto ideia, as utopias precederam em muito o autor inglês renascentista. Não necessariamente sem razão, visões conservadoras tenderão a argumentar que utopias são irrealizáveis, mas é preciso ir além do determinismo, da teleologia. A utopia tem um valor intrínseco constantemente esquecido: embora aponte para o futuro, ela representa uma leitura crítica do presente. Essa querela já aparece no famoso diálogo A República de Platão. Nessa obra, enquanto Sócrates descreve com riqueza de detalhe o Estado ideal, ele é contestado por Glauco que diz que tal coisa existiria “só no pensamento”. Como se a existência virtual ou “no pensamento” fosse pouca coisa (ao contrário, conhecemos bem a força de uma ideia). Por não ter lugar, como a utopia, o pensamento é livre como o vento para se propagar, observa Hannah Arendt. Os pensadores iluministas no século XVIII e filósofos e teóricos do socialismo do XIX deram um novo cariz à utopia: ela viria acompanhada pela crença num destino derradeiro e necessário da história. No final do século, Kant, por exemplo, trataria de uma interdependência das nações. O filósofo imaginou uma “sociedade final” regida por um “Estado universal cosmopolita”. Olhando para o mundo de hoje com seus problemas ambientais globais, a dependência mútua dos países em termos de recursos, as organizações supranacionais, e abstraindo o caráter teleológico da “visão” de Kant, não se pode deixar de considerar o caráter premonitório do diagnóstico do pensador. No século XX as utopias cunhadas por filósofos e cientistas políticos dariam lugar às distopias, principalmente aquelas imaginadas por escritores de ficção. É ainda na primeira metade do século XX que a confiança no progresso, crença tipicamente positivista, sofreria um grande abalo, dando lugar ao oposto: à desilusão e à desconfiança da relação do homem com a natureza e com o seu semelhante, ameaçados justamente pelo progresso tecnológico. Assim, substitui-se a utopia, o não-lugar, geralmente associado a uma sociedade ideal ou próxima do ideal, pelos lugares de sofrimento das distopias (o prefixo grego dis significa perturbação, dificuldade). Assim, Huxley, Orwell e Bradbury desenhariam, cada qual à sua maneira, futuros sombrios para a humanidade: o indivíduo tenderia à apatia, à domesticação por via da vigilância e do controle do Estado que dominaria também os meios de comunicação e a vida privada. A limitação intencional do vocabulário linguístico seria outra estratégia de controle. Essas visões conferem perfeito sentido à frase lapidar de Paul Valéry: “o futuro não é mais o que era”. Inquirido sobre a morte das utopias, Octavio Paz responderia que não, elas não morreram, morrera um aspecto que costumava vir agregado a elas. Para o escritor trata-se do “fim da ideia de história como um fenômeno cujo desenlace se conhece de antemão”. Deleuze confirma aquilo que pensamos, o que realmente importa não é se as utopias vingarão, mas o impacto e a crítica que elas fazem do tempo presente. Daí a necessidade de sempre precisarmos delas.


[1]

Não foi preciso aguardar a época moderna para que conhecêssemos um espírito utópico. Mesmo antes que Thomas More cunhasse o termo utopia na obra que o leva no próprio título, em 1516, ou que autores socialistas do século XIX a defendessem como uma ideia de futuro, já tínhamos entrado em contato com o espírito desse tipo de pensamento na cultura ocidental. Se empregarmos a palavra no sentido corrente, utopia quer dizer uma sociedade perfeita, mas inexistente no passado, inviável no presente e impossível no futuro. Portanto, uma sociedade irreal. Este seria o caso já da cidade descrita por Platão em seu famoso diálogo A República. O filósofo fez Sócrates, o seu protagonista, explicar pormenorizadamente a organização de um Estado idealmente justo. Contudo, ao fim, fez também o seu interlocutor – Glauco – comentar: “referes-te à cidade que acabamos de fundar e que só existe em pensamento, pois não creio que se possa encontrar sobre a terra nenhuma desse jeito”[2]. Era formulada já aí a nota restritiva (até hoje repetida) diante da tentativa de se imaginar uma estrutura social radicalmente melhor do que a existente: ela não tem lugar na Terra, não tem topos real. Em suma, a utopia é tão antiga quanto as reservas feitas a ela. O século IV a.C., ao que parece, já tinha sido apresentado a ambas.

Todo e qualquer veto ao espírito utópico, portanto, pouco tem de novo. É próprio das utopias provocarem essa tensão com o meio no qual são criadas. Nesse sentido, se a origem das utopias é simultânea à origem da nossa própria tradição ocidental, na filosofia de Platão, é porque a razão grega não suportava acolher uma realidade já em desacordo com os seus conceitos. Historicamente, Platão foi um crítico severo da pólis ateniense em que viveu, capaz de condenar à morte o mais sábio de todos os homens: o seu mestre Sócrates, pouco depois transformado em personagem de seus diálogos. Não é uma coincidência que, diante dessa realidade, ele tenha formulado uma pólis utópica. Pois o que está em jogo, aí, é o desacordo entre o estado de coisas dado e a ideia pensada. Platão estava consciente da existência desse desacordo. No diálogo A República, por isso, fez questão não somente de enunciar a utopia de um Estado perfeito, mas também de denunciar sua desqualificação imediata: enquanto a primeira coisa é feita por Sócrates, a segunda é feita por Glauco. Um representa a atitude do filósofo audaciosamente pensante, já o outro representa a opinião do senso comum conservadoramente realista.

Isso tudo parece bastante claro, mas repare-se ainda um outro aspecto – tão ou até mesmo mais relevante. É que a desqualificação feita por Glauco da imaginação utópica de Sócrates insinua, sem que percebamos, mais outra desqualificação, que incide sobre a própria atividade do pensamento. Quando Glauco pontua que a cidade descrita por Sócrates “só existe em pensamento”, o sentido deste é eminentemente restritivo: não existe na realidade. Porém, essa restrição indica também uma carência, como se o fosse meramente. É como se aquilo que é pensado tivesse seu valor diminuído por não ter sido real no passado, por não ser real no presente, por não poder vir a ser real no futuro. O teste, a prova do pensamento seria a sua capacidade de encontrar um lugar para o que foi pensado, um topos específico no mundo. Na falta desse topos, de um lugar, o que é pensado existiria – ou seja, meramente – no pensamento. No caso, a cidade de que fala Sócrates tem uma realidade apenas nas palavras da discussão travada no diálogo, posto que não pode ser reproduzida em lugar algum[3]. Isso soa pouco para Glauco, como para a maior parte de nós ainda hoje. Exigimos, em geral, que o que é pensado tenha um lugar real.

Mas talvez exijamos assim apenas porque nos escapa a natureza utópica intrínseca ao próprio pensamento, que quando de fato pensa nos tira do lugar, desaloja-nos de onde estamos. O pensamento produz utopias, mas é ele mesmo também utópico, sem um lugar definido para si. Como o vento, o pensamento é invisível, não tem um lugar determinado, movimenta-se sem ser visto. Como o vento, contudo, o pensamento pode tirar tudo do lugar. Não seria precisamente isso o que faz também o espírito utópico? Sócrates, diante daquele comentário de Glauco, por isso mesmo, ainda diria que “é indiferente sabermos se já existe algures uma cidade assim, ou se ainda está por concretizar-se”, concluindo que o importante é que aquele que se deixou tocar pela ideia de tal cidade, mesmo que ela exista no céu e não na terra, poderá se comportar de acordo com ela[4]. O sentido da utopia, sugeria Sócrates, não é o de um plano pragmático realizável em algum lugar, mas sua capacidade de tirar os homens do lugar em que estão. Essa é a utopia do pensamento, seja qual for a época, ou o lugar, em que surge. Quando o pensamento cria utopias, portanto, ele não está somente apontando para algo fora de si. Ele está, ao mesmo tempo, expondo a si mesmo, apontando o que ele mesmo é, ou seja, apontando o que significa pensar.

Pensar significa perder-se do lugar. Quando estamos pensando e alguma pessoa nos chama para um afazer qualquer de que nem tínhamos nos dado conta, respondemos: “eu estava perdido em pensamentos”. É ótima a expressão: pensar é se perder – e não só circunstancial, mas essencialmente. Quando nos perdemos, por exemplo, andando por uma cidade desconhecida, essa situação é só circunstancial, pois as coordenadas espaciais permanecem nos orientando. Precisamos apenas nos localizar. Já quando pensamos, desaparece a referência estável do espaço. Não sei onde estou, esqueço-me da rede em que me deitara e dos livros ao lado. Saio do lugar em que estou, mas não vou a nenhum outro. O pensamento é sem lugar – é utópico. “Talvez a pergunta ‘onde estamos quando pensamos?’ estivesse errada porque, ao perguntar pelo topos dessa atividade, nós estivéssemos orientados exclusivamente pelo sentido espacial”[5], escreveu a filósofa Hannah Arendt, ao examinar a vida do espírito.

Disso, podemos tirar uma conclusão e uma hipótese. Conclusão: não faz sentido reprovar uma ideia por ser utópica, já que toda ideia verdadeiramente pensante é utópica, não tem topos. Hipótese: a utopia talvez exija falar mais em tempo do que em espaço, em quando do que em onde; e isso justificaria que o espírito utópico encontre o seu auge só na época moderna, com a descoberta da autoconsciência histórica e a emergência de um sentido forte de futuro.

Thomas More foi quem forjou a palavra utopia, um neologismo no qual juntou o prefixo de privação grego ou ao substantivo topos, que quer dizer lugar. Sendo assim, utopia diz, literalmente, não lugar. Curiosamente, porém, na obra original de More a palavra foi usada para designar um lugar, uma ilha socialmente perfeita, quase como se o prefixo ou fosse, na verdade, eu, que significa feliz. O personagem Rafael Hitlodeu – um navegador português cujo nome etimologicamente remete a quem conta disparates e lorotas – narra sua viagem a tal ilha, em um registro textual entre a ficção e a teoria política[6]. Se na república utópica de Platão a crítica à antiga sociedade ateniense era um pano de fundo histórico, com a ilha utópica imaginada por More o ataque à moderna sociedade inglesa entra no palco, ou seja, nas páginas da própria obra. Injusta, desigual e violenta, a pólis na qual vive More é descrita e acha um contraponto na ilha visitada por Hitlodeu: justa, igualitária, pacífica. Permanecemos, porém, numa definição espacial da utopia, registrada no deslocamento da viagem.

Tanto Platão como More dão detalhes, pitorescos e interessantes, sobre o modo de vida nas sociedades utópicas que imaginam. Descrevem a educação dos homens, a escolha da profissão de cada cidadão, as classes que não teriam o direito de habitar a cidade, a melhor forma de governo, a organização de bens e riquezas, entre outros aspectos. E, apesar disso tudo, os nomes de Platão e de More não são provavelmente os que mais atrelamos à utopia. O primeiro criou o espírito e o segundo criou a palavra, mas utópicos mesmo, para nós, são, por exemplo, os socialistas já do século XIX, muitos anos depois. E por quê? Parece que, filosoficamente, o espírito utópico ganhou sua autêntica forma quando foi, para empregar a terminologia de Reinhart Koselleck, temporalizado[7], quando a sociedade formulada conceitualmente deixou de ser localizada no mundo das ideias, como era em Platão, ou em uma ilha imaginada, como era em More. Nem outro mundo superior nem outro território distante, mas outro tempo futuro – eis quando, segundo os filósofos modernos, nós encontraríamos a utopia. Eles não se perguntam onde estaria a utopia, e sim quando ela viria, mesmo porque ela seria universal, abarcando toda a humanidade. No instante em que a utopia, fazendo jus a sua origem etimológica, deixa de se situar no espaço e passa para o tempo, ela chega ao auge do seu espírito. Foi o momento em que, encerrado o Renascimento, a utopia ingressou nas filosofias da história do Iluminismo.

Pioneira sob esse aspecto foi a breve porém decisiva consideração feita por Immanuel Kant num texto intitulado Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, em 1784. Ele contrapunha, ali, os antagonismos do presente a sua solução no futuro. Toda busca de projeção, ânsia de dominação, cobiça, intratabilidade, vaidade e inveja competitiva constituiriam um egoísmo típico da insociabilidade do homem. Dessas tensões naturais entre indivíduos é que nasceriam os males das guerras e da violência. Essa situação histórica do presente é, porém, contrastada com “um futuro grande corpo político, do qual o passado não deu nenhum exemplo”[8]. Com o passar do tempo, a devastação, a miséria e os transtornos ensinariam aos homens, na própria experiência, o que poderiam ter aprendido pela razão, a saber, que mais vale limitar sua liberdade individual do que viver nessa constante oposição que tira a segurança de todos. O grande corpo político futuro, contudo, é utópico, uma vez que não existe nenhum exemplo de algo como ele tendo lugar na realidade até aqui.

O futuro imaginado por Kant é utópico ainda em mais outro sentido. Trata-se de uma sociedade civil capaz de administrar universalmente o direito, ou seja, não apenas nacionalmente. Há uma exigência na utopia de Kant de que os lugares particulares subordinem-se a um lugar geral, sem competição, pois a era moderna fez da guerra uma empresa delicada e sofisticada, com desenlace incerto para suas partes, resultado da “influência tão notável que os abalos de um Estado produzem em todos os outros Estados na nossa parte do mundo tão ligada pela indústria”[9]. Kant, no século XVIII, falava da mutação da globalização tecnológica que se alastrou no século XXI e cujo efeito é a interdependência dos Estados, o que levaria a uma exigência de paz, já que o conflito entre uns afeta todos os outros fortemente. Nada que acontece em um lugar deixa de impactar outro. Se a migração é, contemporaneamente, problema crucial para o mundo, é porque testemunha – dramaticamente, como nos naufrágios de africanos que tentam chegar à Europa – a fragilidade de soluções nacionais, pontuais, tópicas em uma sociedade globalizada. Por isso, somente o direito internacional, para Kant, podia sustentar a constituição do contrato social de uma república moral. Esse ideal enraíza-se no Iluminismo, mas é responsável, para dar um exemplo, ainda pelo espírito de criação da Organização das Nações Unidas, a onu. Para Kant, os males surgidos da insociabilidade humana forçariam a espécie a achar certa lei de equilíbrio “e um poder unificador que dê peso a esta lei, de modo a introduzir um Estado cosmopolita de segurança pública entre os Estados”[10]. Os cidadãos seriam cidadãos do mundo, em uma federação universal pacífica.

Embora Kant não forneça detalhes concretos de como seria a vida nessa federação, ela tem duas características utópicas tradicionais e duas modernas. Como na antiga filosofia de Platão, a república concebida por Kant pretende ser “perfeitamente justa”[11] e tem assumida a sua aparente impossibilidade de vir a se tornar real; é uma ideia “fantástica”[12] que provoca riso. Mas, além disso, essa república, para ser perfeita, não pode ser só uma entre outras; ela deve incluir a humanidade inteira, englobar o todo, é um “Estado universal cosmopolita”[13], não apenas uma ilha; e, sobretudo, é pensada em uma perspectiva histórica de futuro, uma vez que o seu “problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana”[14]. É o final de um processo no tempo, o resultado teleológico do progresso.

O objetivo das utopias – reconhecidas por esse nome ou não; em Kant ou já no século XIX, com Hegel e Marx – era a emancipação dos homens. Em Hegel, utopia é um Estado de liberdade. Em Marx, é o comunismo, uma sociedade sem diferença de classes. Em ambos, o futuro atrai, como um ímã, toda a história para sua própria superação progressiva. Projeta-se além do passado e do presente, dialeticamente, uma realização da humanidade, através da razão e do trabalho. Embora o significante utopia esteja atrelado a Thomas More e aos socialistas, como Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier, o significado utopia atinge filósofos que, às vezes, nem mesmo gostariam de ser vistos como utópicos. Por exemplo: Marx, cuja ideia de socialismo, como argumentou Engels, é científica, e não utópica[15]. Os dois acham que “utopias contêm elementos críticos, atacam os fundamentos da sociedade atual”[16], conforme lemos no Manifesto comunista, e por isso servem para esclarecer os trabalhadores; mas elas não explicam, em termos dialéticos, a necessidade histórica de superação do capitalismo. Mesmo assim, Marx – como Kant e Hegel antes – projetou no futuro a reconciliação das contradições do passado e do presente, superando as dilacerações espirituais e as lutas materiais. Impossível agora, mas viável no futuro graças ao progresso – assim a era moderna costumou sustentar as suas utopias.

Nesse aspecto, as filosofias da história modernas descendem da teologia cristã da história. Embora secularizada, a sucessão do tempo ainda é universal e final para os modernos, ou seja, abarca toda a humanidade e tem um objetivo futuro, que se assemelha por vezes à salvação religiosa, conforme apontou Karl Löwith em O sentido da história[17]. Para os cristãos, diferentemente dos gregos, o tempo é linear, e não circular, permitindo que a história se destine ao futuro como a realização suprema de si mesma. Impera uma teleologia; a história tem um telos, uma finalidade, que é o que a salva e lhe dá sentido. Na era moderna, essa teleologia é progressiva, o homem melhora no tempo, e o futuro, se não é um juízo final, tornou-se utopia. Ressalte-se, porém, uma diferença que separa a modernidade da escatologia cristã. Toda utopia seria construída pelo próprio homem. Ela não cai do céu. Não é dádiva. É uma conquista. Não à toa, a palavra surgiu no seio do Renascimento humanista, com Thomas More. O centro de seu espírito é o homem. Kant falava, no Iluminismo, de autoestima da razão, pois o homem, se chegasse ao futuro utópico, só teria a agradecer ao seu intelecto.

Foi assim que as utopias passaram a ser associadas aos sonhos, como se nelas a imaginação fosse livre para criar mundos perfeitos a serem construídos pelo próprio homem, mas impossíveis na realidade ou, ao menos, no presente. Quem defende as utopias é visto como um sonhador ou um romântico, seja isso expresso elogiosa, pejorativa ou, o que é mais comum, condescendentemente. De todo jeito, reconhece-se em geral nos ideais utópicos algo positivo. Contudo, as utopias nem sempre o são. Norbert Elias observa que “numa utopia também podem confluir simultaneamente desejos e pesadelos”[18]. Nem necessitamos ir longe para saber disso. Na república utópica de Platão, artistas não têm direito de cidadania. Na ilha utópica de Thomas More, o príncipe poderia ser vitalício. O sonho de perfeição de uns, às vezes, é o pesadelo de outros. No texto de Kant, a união civil universal dos homens é comparada ao fenômeno natural pelo qual árvores próximas, disputando a luz do sol e forçando umas às outras a buscá-la acima de si, têm um “crescimento belo e aprumado”, em contraste com árvores isoladas que lançam seus galhos ao bel-prazer, em liberdade, sendo “mutiladas, sinuosas e encurvadas”[19]. Ora, a imagem da floresta resultante daí é de árvores retas e uniformes, um conjunto homogêneo que, saindo da metáfora, lembra o Estado totalitário mais do que uma sociedade livre.

Na verdade, como as utopias são sempre coletivas, quer dizer, destinam-se a pensar a organização de toda a pólis, dos muitos, elas carregam o perigo de esmagarem, nesse afã de unidade, a pluralidade dos indivíduos. Risco grande e que selou o destino de parte das experiências revolucionárias do século XX. No entanto, foi por estar consciente desse perigo que Marx, já no século XIX, fazia questão de sublinhar que, para a realização futura do comunismo, não bastaria a coletividade abstrata sob o nome de sociedade, incapaz de dar a indivíduos a liberdade de explorarem seus talentos e suas potencialidades próprios. Para Marx, isso daria continuidade à interdição da individualização que caracteriza o sistema capitalista, no qual os homens se tornam os subprodutos genéricos da classe a que pertencem ou das profissões que exercem. Como explicou Herbert Marcuse, “a forma existente da sociedade só realiza uma ordem universal pela negação do indivíduo”[20]. O futuro imaginado por Marx, uma vez que se opõe a esse presente, deve realizar a ordem universal sem negar o indivíduo, ou seja, abrindo espaço para as suas diferenças independentemente de classes.

Sempre que uma utopia – diferentemente do que ocorre por exemplo na teoria de Marx – descuida das diferenças entre os indivíduos, para afirmar sua unidade totalizante, arrisca achar o avesso de suas pretensões. O sonho de paz perpétua se transforma no pesadelo da apatia, a esperança de ordem se torna o terror de um totalitarismo, a procura de um futuro sem contradições vira uma solução final, a busca de abolição das fronteiras se expressa no imperialismo, a universalização da razão encarna-se no colonialismo. São todas mudanças que explicitam um germe de perversão no significado original da utopia, cujo mote fixa-se no seu anseio de perfeição. Pois também o nazismo procurou, no século XX, a perfeição do gênero humano, com uma forma de governo racionalmente organizada e tecnologicamente desenvolvida. Essa perfeição era a raça ariana, a ser produzida pela história e pela ciência. Dificilmente, porém, algum de nós fica à vontade para denominar o movimento alemão capitaneado por Hitler de utopia. E isso testemunha a favor da força emancipatória da utopia. Em casos assim, parece antes que estamos em frente a distopias.

Os belos sonhos de emancipação do homem podem ser corrompidos em tenebrosos pesadelos para a sua domesticação. Quando isso ocorre, saímos do âmbito das utopias e entramos no âmbito das distopias. O prefixo deixa de ser o ou, que significa nenhum, e passa a ser o dis, que significa dor, sofrimento. Não se trata de um lugar nenhum, trata-se de um lugar ruim. Os exemplos mais conhecidos de distopia não foram dados pela imaginação de filósofos, e sim de ficcionistas, o que atesta, mais uma vez, o lugar entre literatura e teoria política que esse tipo de fantasia ocupa. Também não vieram do século XIX, mas sim do século XX, o que indica uma mutação histórica no espírito do homem moderno, que passou a temer mais do que ansiar o porvir do tempo. O futuro não é mais realização e justiça, liberdade e igualdade. Pensem em Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, de 1932; ou no 1984, de George Orwell, de 1949; ou ainda no Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, de 1953. Nenhum desses livros – adaptados depois todos para o cinema, uma forma de arte que parece mesmo unicamente vocacionada para a representação de distopias – apostou na construção futura de um mundo coletivo melhor através da inteligência e da ação humana. Razão e ciência tornam-se, para eles, formas de maximizar o controle sobre pessoas, tornadas homogêneas. O progresso é terrível. O futuro não tem graça.

Note-se, entretanto, que o futuro da distopia é baseado em valores que, segundo uma abstração formal, poderiam ser considerados utópicos. Todas as sociedades aventadas pela ficção de Huxley, Orwell e Bradbury fundam-se na harmonia e na organização. Em certos casos, porém, só com drogas artificiais é que as mantêm, tornando os indivíduos dóceis a regras que garantem a paz da sociedade. Em Huxley, o nome do medicamento é “soma”. O avanço tecnológico deixa de ser apenas benefício para a vida humana e passa a substituir o que há de natural nesta vida. O “admirável mundo novo” não tem geração de filhos por casais, e sim de bebês por incubadoras. Ele é dividido em diferentes castas, cuja manutenção garante a ordem geral[21]. Em Orwell, tal corrupção do sentido que teria uma ordem política atinge o ápice, não apenas porque, em sua distopia, o governo é de um partido único, mas porque, como reza o slogan desse partido, “guerra é paz”. O controle dos meios de comunicação de massa é decisivo aqui, pois permite a manipulação da população. Devemos ao romance 1984 o termo Big Brother[22], um regime totalitário que, através de televisores bidirecionais, permitia ao Estado vigiar o cidadão (e que, em uma peripécia inacreditável da indústria cultural, tornou-se contemporaneamente o nome de um jogo no qual pessoas se deixam vigiar 24 horas por dia pela televisão, com uma diferença: é que agora essas pessoas se dispõem voluntariamente a isso, sem um poder que as obrigue – a realidade às vezes supera nossas piores fantasias).

Chama a atenção que, em várias distopias, a linguagem seja um foco de ataque. Em 1984, a “novilíngua” caracteriza-se por ter o vocabulário diminuído a cada ano – ao contrário das outras línguas – e por contar apenas com palavras curtas, pronunciadas rapidamente sem eco no espírito dos homens. Orwell só escreve o que o Terceiro Reich alemão, anos antes, já sabia: linguagem é pensamento e criação, portanto, um controle totalitário deveria empobrecê-la e torná-la mero instrumento pragmático. Sendo assim, a palavra livre, por exemplo, só existiria na “novilíngua” no sentido de algum desimpedimento concreto, como na frase “o cachorro está livre de pulgas”. Ser política ou intelectualmente livre se tornaria expressão sem significado. Reduzindo a variedade da linguagem, o pensamento encolhe junto. Nessa distopia, a meta do Big Brother é moldar o pensamento de sua sociedade, mas também e sobretudo impedir o surgimento de qualquer outro pensamento diferente.

Não surpreende, portanto, que Ray Bradbury, em Fahrenheit 451, tenha colocado o banimento dos livros como princípio fundamental da distopia. Tais objetos são criminalizados, por assim dizer, e ninguém os pode ter ou ler. Num lance genial, o escritor então designou uma nova função para bombeiros nessa distopia: ao invés de apagar o fogo, eles o ateiam em todo e qualquer livro que encontrem[23]. O número 451 marca a temperatura na qual o papel pega fogo na escala de Fahrenheit. Daí o título da obra, adaptada no cinema por François Truffaut (a cena final do filme traz uma pequena e bela esperança: foragidos que se dedicariam a memorizar o que vinha escrito nos objetos proibidos, para que suas histórias pudessem ser preservadas sem o suporte material). De todo jeito, o que chama a atenção é a necessidade que toda distopia tem de impedir o nascimento de qualquer utopia. Para tanto, precisa deteriorar a linguagem e os livros, pois eles são os mananciais da imaginação utópica. Um lugar ruim o é inclusive porque não permite que se imagine nenhum outro.

O terrível, quando lemos essas ficções de distopias, é perceber que entre suas características há várias que reconhecemos na nossa própria realidade. O século XX viu livros serem queimados em grandes fogueiras no país de Goethe, de Beethoven, de Kant. O nazismo alemão, além disso, serviu-se da ciência para fazer uma discriminação étnica entre os homens: arianos de um lado e judeus do outro. Mais que isso: promoveu um holocausto desses últimos, em nome de um ideal de pureza e perfeição. De resto, como o “admirável mundo novo”, nós, modernos, parecemos tomados “por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada”, para usar as palavras de Hannah Arendt, que desejamos trocar “por algo produzido por nós mesmos”[24]. Empregamos a tecnologia, cada vez mais, para substituir o que nos foi dado gratuitamente pela vida por coisas que nós mesmos fabricamos. Esse processo, que um dia alimentou esperanças em relação ao futuro do homem, é hoje visto com desconfiança, ou até pavor. O mundo industrial do Ocidente chegou a representar uma força destrutiva para o planeta Terra comparável às forças naturais, no que cientistas chamaram de antropoceno. Se as utopias de filósofos do século XIX cederam seu palco para as distopias de ficcionistas do século XX, nossa sensibilidade no século XXI está mais próxima destes. Olhamos para o futuro ressabiados, cabreiros, em alguns casos desesperados. Poucos parecem querer que ele chegue logo.

Para piorar, embora não tenha sido por designação de qualquer Estado, nossa linguagem experimenta atualmente dificuldades que não deixam de ter paralelos com aquelas imaginadas nas distopias. “O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”[25], escreveu Paul Valéry no começo do século XX. Não temos como desmenti-lo. O século XXI é ainda mais intolerante com o dito “papo cabeça”, ou com a “palavra difícil”. Nenhuma complexidade é bem-vinda, como se fosse sempre somente pretexto para se descomprometer diretamente com uma posição mais claramente definida. Os simplismos e os binarismos de nossas análises políticas recentes são consequências disso. Falta pensamento, falta linguagem. O ensaísta George Steiner diagnostica um “repúdio à palavra” entre nós, que ficaria historicamente claro pela redução de uso que fazemos do vocabulário que temos, ainda que este possa crescer[26]. Embora o inglês de hoje tenha mais de 600 mil palavras, enquanto na época elisabetana tinha 150 mil, Shakespeare usou um vocabulário mais extenso que qualquer autor posterior a ele. Por vezes, parece que, assim como produzimos nosso próprio Big Brother real, também estamos criando uma “novilíngua”. Tudo tem que ser abreviado. E assim o 2015 real, às vezes, até lembra o 1984 ficcional.

Isso tudo parece ter enterrado o espírito utópico para nós. O futuro não é mais o que era[27], como consta na observação de Paul Valéry que já deu título a um ciclo de conferências organizado por Adauto Novaes. Poderíamos dizer: o futuro era utopia e virou distopia. Ontem queríamos acelerar sua chegada, hoje queremos adiá-la. Mutação contemporânea: de herói, o progresso passou agora a vilão. Por um lado, o progresso é desenvolvimentismo econômico predatório, que passa por cima de quem quer que o atrapalhe: índio, pobre, homem, bicho. Nada resiste à sanha tecnológica industrial que só conhece a matéria e ignora o espírito. Karl Marx apontou, no século XIX, que o capitalismo é muito dinâmico no desenvolvimento de novos meios de produção, mas não tem o mesmo ritmo na distribuição do que é produzido. Partindo dessas coordenadas no século XX, Walter Benjamin afirmou que o progresso é como uma tempestade que impele de costas, sem que se possa vê-lo, para o futuro. No caminho, em vez de termos uma cadeia de acontecimentos, o que fica é “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa sobre nossos pés”[28]. Judeu no início do século XX, Benjamin conhecia o poder destrutivo do progresso.

Eis por que Susan Buck-Morss, em seu estudo sobre utopia e catástrofe, tomou emprestada de Benjamin a expressão mundo sonhado para descrever a modernidade que, em constante mudança, abriu portas para a esperança em um futuro melhor, mas na prática também permitia o contrário. Os mitos pré-modernos reforçavam a tradição justificando seus constrangimentos sociais; já os mundos sonhados (política, cultural e economicamente) expressam o desejo utópico por arranjos sociais que transcendem formas existentes. Só que esses mundos sonhados tornam-se perigosos, avisa Buck-Morss, quando sua energia é usada por estruturas de poder e mobilizada por instrumentos de força que os voltam “contra as próprias massas que eles supostamente beneficiariam”[29].

Por outro lado ainda, a vilania do progresso estaria no determinismo do futuro guardado na história. Seu sentido teleológico teria tirado a surpresa do porvir e sido, nos termos do poeta mexicano Octavio Paz, uma “colonização do futuro”[30]. Nesses casos, as filosofias modernas teriam traído suas utopias. Pois colonização é uma categoria espacial. O Brasil foi colonizado por Portugal: era questão de território. Colonizar o futuro espacializa o tempo e dá lugar ao que se define por não ter lugar, topos. Colonizar é ainda, em geral, um processo de transformação do outro no mesmo, da diferença na identidade. Colonizadores, historicamente, tendem a aniquilar o outro que encontram: via morte concreta, que não deixa indivíduos diferentes existirem, ou via aculturação, que só deixa indivíduos diferentes existirem, caso abandonem sua diferença. Basta lembrar o que houve e há com índios no Brasil. Seguindo a analogia, colonizar o futuro extermina a diferença do amanhã, que vira uma finalidade antecipada hoje.

Em casos assim, as filosofias modernas da história, ao contrário do que parece, não tiraram as utopias do espaço para o tempo, pois o futuro é pensado por elas como um lugar – que apenas não chegou ainda. Ironia teórica: a utopia passou do lugar ao tempo, mas como o tempo foi concebido espacialmente, ela voltou a ser um lugar, traindo sua etimologia, que é ser lugar nenhum. Parecia que a descoberta iluminista da história – ausente no Renascimento – colocara a utopia no tempo. Só que a utopia precisou, para usar uma expressão corrente, ter lugar na história, pois a história foi metaforicamente entendida como uma flecha ou uma espiral, quer dizer, a exemplo do espaço. O futuro, em flagrante contradição, seria a realização tópica da utopia – no fim da história.

Quando as utopias são submetidas a esse raciocínio histórico teleológico predominante nos séculos XVIII e XIX, elas parecem “a parte menos feliz do seu legado; contudo, não podemos desdenhá-las nem condená-las; se por um lado muitos horrores foram cometidos em seu nome, por outro lhe devemos quase todas as ações e os sonhos generosos da Idade Moderna”, alertou Octavio Paz, concluindo aí que “a utopia é a outra cara da crítica e só uma idade crítica pode ser inventora de utopias: o buraco deixado pelas demolições do espírito crítico é sempre ocupado pelas construções utópicas”[31]. Embora as utopias modernas definam-se pela projeção do futuro, elas se fundam é na crítica do seu presente. Nesse sentido, uma época sem utopias ameaça abandonar a crítica.

Nosso desafio contemporâneo, portanto, talvez seja reabilitar o espírito utópico, tão desacreditado hoje por sua suposta ingenuidade, sem enquadrá-lo em um esquema histórico teleológico, como fez a era moderna. Octavio Paz, em seu discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel, perguntou se viveríamos um fim das utopias contemporaneamente. Respondeu, porém, que seria só o “fim da ideia de história como um fenômeno cujo desenlace se conhece de antemão”[32]. Não precisamos, enfim, de utopias como formas de colonização do futuro, e sim como formas críticas que resistem à colonização do próprio presente. Mas será que as utopias podem ser isso? Pois, teoricamente, o destino das utopias esteve atrelado ao progresso futurista das filosofias modernas da história.

Isso está correto. Nós, entretanto, talvez nos contentemos rapidamente demais com afirmações corretas. Martin Heidegger dizia que “o simplesmente correto ainda não é o verdadeiro”[33]. Está correto afirmar que a utopia moderna privilegiou a dimensão temporal do futuro. No entanto, sua verdade talvez seja o próprio presente. Platão elaborou sua república como modelo ideal diante da pólis ateniense. Thomas More inventou a ilha utópica por contraste à Inglaterra do século XVI. Kant pensara na federação cosmopolita diante da divisão bélica da era moderna. Hegel determinou o Estado da liberdade após testemunhar a Revolução Francesa. Fourier propôs falanges em oposição a valores burgueses. Marx concebeu o comunismo sem classes a partir da exploração capitalista dos trabalhadores pelos donos dos meios de produção. Nenhuma utopia futura foi imaginada sem que sua verdade fosse a atenção crítica ao presente.

Por conseguinte, “é a utopia que faz a junção da filosofia com sua época, Capitalismo europeu, mas já também cidade grega”, conforme observara Gilles Deleuze, “é sempre com a utopia que a filosofia se torna política, e leva ao mais alto ponto a crítica da sua época”[34]. Para ele, a utopia é um movimento infinito de desterritorialização, entendendo-se aí o seu valor pela recusa do topos fixo e estável de um território. Sua conexão é com as forças abafadas do meio no qual surge. Embora admita a existência de utopias autoritárias, como Norbert Elias também apontara os pesadelos utópicos, Deleuze sublinha o que ele chama de utopias libertárias, de caráter imanente, e não transcendente. Isso significa que as utopias libertárias, literalmente, liberam o presente, ao invés de prenderem o futuro, sendo secundário julgar se elas se realizam ou não. O ser se abre.

Nesse sentido, é correto dizer que as promessas utópicas modernas não foram cumpridas, mas isso talvez esconda a verdade de seu significado para o presente. Nas ficções de Huxley, Orwell e Bradbury, aprendemos que o aspecto essencial de toda distopia é descartar toda utopia. O lugar ruim impede que se pense outro lugar que não existe ou que parece não poder existir. E “a própria forma da utopia”, afirma Fredric Jameson, “é uma meditação sobre a diferença radical”[35]. O silêncio atual diante das utopias não é, então, um amadurecimento realista após o otimismo infantil. É a perturbadora interdição da imaginação de mundos nos quais a vida seria diferente do que é. Uma época ruim não o é por ser incapaz de realizar utopias, mas por ser incapaz de ouvi-las e criá-las.

Diante disso, gostaria de sugerir que o julgamento sobre as utopias deve ser feito não pela viabilidade empírica e pelo cumprimento de suas promessas, o que nos levaria a descartá-las, mas por sua capacidade de pensar e imaginar. Ninguém pode garantir que uma utopia vá se realizar, e nisso o ataque a várias filosofias da história teleológicas tem razão. Só que ninguém, tampouco, pode garantir que uma utopia não vá se realizar. O motivo é o mesmo: não há como saber o que será antes que seja. Logo, ninguém pode afirmar que alguma coisa futura é impossível. O homem foi à Lua. Os Estados Unidos têm um presidente negro. Beethoven compôs sua Nona sinfonia. Tudo isso parecia impossível algum dia. Como afirmou Nelson Mandela, “sempre parece impossível até que alguém faça”. Desacreditando a utopia porque ela é impossível, limitamos a existência ao possível, como se ele fosse facilmente determinável. O ser se fecha

Julgamos as utopias impossíveis porque não encontramos nada paralelo a elas no passado conhecido. Só que, de outro lado, o passado tem sido pródigo em demonstrar quantas coisas que julgávamos impossíveis depois se tornaram possíveis. O homem precisa, para entender o espírito utópico, olhar o passado através desse ponto de vista monumental. “Ele deduz daí que a grandeza, que já existiu, foi, em todo caso, possível uma vez e, por isto mesmo, com certeza, será algum dia possível novamente”, conforme escreveu um ousadíssimo Friedrich Nietzsche já mais para o fim do século XIX; “ele segue, com mais coragem, o seu caminho, pois agora suprimiu-se do seu horizonte a dúvida que o acometia em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo o impossível”[36]. Para saber que o futuro é a abertura possível do presente ao impossível, basta olhar o passado. Ele foi constituído de tantos e tantos impossíveis.

Longe de justificar, assim, a utopia porque ela é possível no futuro, o que importa é que ela exige do presente defrontar-se com o que parece impossível. O conhecido presente é tocado pelo estranho futuro no desconhecido tempo do agora. Nas palavras de Marcia Sá Cavalcante Schuback, “a luz da utopia é a luz da falta salutar, da finitude que define o vivo como uma abertura infinitiva”[37]. O sentido da utopia é abrir o presente para a história. Nesse sentido, quanto mais impossível parece uma utopia, melhor utopia ela é. Porque mais estranha, mais desconhecida. Não sabemos o que o futuro será, mas tampouco o que não será. Ele não tem um lugar. Pensá-lo utopicamente é ser-lhe fiel.

O futuro possível é só presente adiado, que ainda não veio. É planejado, calculado, previsto. Não é imaginado. O impossível, sim: que é surpreendente, novo, inédito. Nesse sentido, só o impossível realmente acontece, uma vez que, como asseverou o filósofo Jacques Derrida, “nada pode programar que alguma coisa aconteça, pois aquilo que está no programa não acontece, anula-se na sua previsibilidade, não tem força de evento”[38]. Nos versos do poeta carioca Chacal, “só o impossível acontece, o possível apenas se repete”[39]. O espírito utópico é o espírito refratário à repetição mecânica do hoje no amanhã. O espírito utópico é aquele que diz, junto a Guimarães Rosa, “aquilo que não havia, acontecia”[40] – frase que aparece em um conto cujo título é a mais perfeita tradução da palavra utopia, do que não tem um lugar: “A terceira margem do rio”.

Concluindo, parece-me que a utopia deve deixar de ser o fim necessário de um sistema histórico teleológico. Mas só isso. Precisamos de utopias ainda, e talvez sempre. Para que algo aconteça. Podemos então afirmar que “a beleza do nome encontrado por Thomas Morus para a sua ilha da felicidade faz com que se datem os anseios utópicos do aparecimento do seu livro, no século XVI”[41], com o que seguimos a intuição do escritor Oswald de Andrade: “O fenômeno, porém, sempre existiu desde que uma sociedade se sentiu mal no seu molde enrijecido e sonhou outra conformação ideológica para a sua existência”[42]. Para todos os que se sentem mal com o molde enrijecido atual, a utopia é o sonho impossível da terceira margem, sem lugar na realidade. Não há problema. Os dias mudam após o sonho noturno não porque nos dispomos a fazer da vida algo idêntico a ele, e sim porque ele nos faz despertar já diferentes para esta vida.

Notas

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são do autor. [n.e.]
  2. Platão, A República, Belém: Edufpa, 2000, p. 431 (592b).
  3. Luisa Severo Buarque de Holanda, “Mimesis e utopia na República de Platão”, Kleos: Revista de Filosofia Antiga, n. 16/17, 2012/2013. Disponível em: <http://www.pragma.ifcs.ufrj.br/kleos/K16/K16-Luisa Holanda.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2016.
  4. Platão, op. cit.
  5. Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de Janeiro: Relume Dumará/UFRJ, 1992, p. 152.
  6. Thomas More, Utopia, São Paulo: Martins Fontes, 1993.
  7. Reinhart Koselleck, “Die Verzeitlichung der Utopie”, em: Wilhelm Vosskamp (org.), Utopieforschung,v. 1, Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 1985, pp. 1-14.
  8. Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 19.
  9. Ibidem.
  10. Ibidem, pp. 15-6.
  11. Ibidem, p. 10.
  12. Ibidem, p. 13.
  13. Ibidem, p. 19.
  14. Ibidem, p. 11.
  15. Friedrich Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. Disponível em: <https://www. marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/>. Acesso em: 17 fev. 2016.
  16. Karl Marx; Friedrich Engels, O manifesto comunista, Rio de Janeiro/São Paulo: Contraponto/FundaçãoPerseu Abramo, 1998, p. 38.
  17. Karl Löwith, O sentido da história, Lisboa: Piaget, 1990, p. 15.
  18. Norbert Elias, “¿Cómo pueden las utopías científicas y literarias influir en el futuro?”, em: Vera Weiler (org.), Figuraciones en proceso, Santafé de Bogotá: Fundación Social, 1998, p. 17.
  19. Immanuel Kant, op. cit., p. 11.
  20. Herbert Marcuse, Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social, São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 250.
  21. Aldous Huxley, Admirável mundo novo, São Paulo: Globo, 2014.
  22. George Orwell, 1984, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  23. Ray Bradbury, Fahrenheit 451, São Paulo: Globo, 2012.
  24. Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 10.
  25. Paul Valéry, apud Walter Benjamin, “O narrador”, em: Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 206.
  26. George Steiner, “O repúdio à palavra”, em: Linguagem e silêncio, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 43-4.
  27. Adauto Novaes (org.), O futuro não é mais o que era, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2013.
  28. Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, op. cit., p. 226.
  29. Susan Buck-Morss, Dreamworld and Catastrophe: The Passing of Mass Utopia in East and West, Massachusetts: MIT, 2000, p. xi.
  30. Octavio Paz, Os filhos do barro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 191.
  31. Octavio Paz, A outra voz, São Paulo: Siciliano, 1993, p. 35.
  32. Idem, La quête du présent, Paris: Gallimard, 1991, p. 59.
  33. Martin Heidegger, Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2001, p. 13.
  34. Gilles Deleuze, O que é a filosofia?, São Paulo: Editora 34, 1992, p. 130.
  35. Fredric Jameson, Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions, New York: Verso, 2005, p. xii.
  36. Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 20.
  37. Marcia Sá Cavalcante Schuback, Olho a olho: ensaios de longe, Rio de Janeiro: 7Letras/Biblioteca Nacional, 2011, p. 90.
  38. Geoffrey Bennington; Jacques Derrida, Jacques Derrida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 24.
  39. Chacal, É proibido pisar na grama, Belo Horizonte: Leve um Livro, 2014, p. 6.
  40. Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, em: Ficção completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409.
  41. Oswald de Andrade, “A marcha das utopias”, em: A utopia antropofágica, São Paulo: Globo, 1995, p. 205.
  42. Ibidem.

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