2017

A amizade

por Francis Wolff

Resumo

A amizade é a mais robusta das relações humanas porque, como veremos, ela não carrega a instabilidade da paixão ou do desejo, elementos presentes no amor. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, afirma que não é possível ser feliz sem que se busque a justiça e a amizade. Entre os antigos gregos, para que a amizade seja autêntica, ela não se prende a qualquer laço de utilidade ou de necessidade, caso contrário, trai-se a própria relação. A amizade é também forçosamente recíproca, pois ninguém pode se dizer amigo de outro que não o considere como tal. Já o amor, pode ser solitário quando se ama sem que se seja correspondido, condição comum e dolorosa. Não se escolhe a quem amar, ao contrário da amizade, que é uma relação singular e eletiva. Ela diferencia-se de certas relações sociais, como caridade cristã (amor ao próximo), que busca a universalização. A justiça, por sua vez, não conhece a amizade porque ela precisa ser imparcial, sendo também movida por proporção e mérito, de onde não se pode exercer perfeita justiça para com um amigo sem traí-lo, e vice-versa. Há algo de insondável na amizade porque não escolhemos nossos amigos necessariamente por suas virtudes, o que justifica a síntese de Montaigne ao definir sua relação com La Boétie: “Porque era ele, porque era eu”. Amigos são como espelhos um para o outro, já considerava Aristóteles. Estão muito além da cortesia do trato social. Mais do que admitir, espera-se dessa relação uma franqueza que vem da intimidade em meio a semelhanças e dessemelhanças de duas pessoas; “os amigos gostam de falar juntos de tudo e de nada.” Diante dessa entrega, cometer uma falta com um amigo está entre as traições do pior tipo. A metáfora do espelho é útil mais uma vez: um amigo é capaz de mostrar ao outro aquilo que ele, sozinho, não conseguiria enxergar acerca de si. O amor para adquirir status de relação necessita da amizade, além do desejo e da paixão, mas seria absurdo definir a amizade como um amor incompleto. “Em realidade, o que explica a estabilidade da amizade em oposição à precariedade do amor é outro traço – uma característica ontológica. A amizade é uma relação; a paixão é um estado; o desejo é uma disposição.”


[1]

Gostaria de abrir esta conferência, e este ciclo, com uma declaração pessoal. Vim pela primeira vez ao Brasil em outubro de 1980, para trabalhar. Jovem professor francês, orgulhava-me de ter sido recrutado para ensinar no prestigioso departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Vivi em São Paulo mais de quatro anos: conheci o fim da ditadura militar, as grandes manifestações das Diretas Já! e a volta à democracia. Mas o trabalho durou pouco e retornei à França no final de 1984. Eu havia me tornado fã deste país. Sua lembrança me perseguia. Assim, durante longos anos, voltei com frequência ao Brasil. Eu viera por necessidade, retornava por amor: a força viril dos seus ritmos, a sensualidade feminina de suas melodias, o formidável desenvolvimento de sua democracia, seus progressos contra as desigualdades sociais, o calor de seus habitantes e, principalmente, seu jeito tão particular de resolver os problemas mais espinhosos da maneira mais astuciosa e inesperada – por tudo isso me apaixonei. Mas vocês sabem como é o amor! Todo amor comporta tempestades: entre amantes há sempre altos e baixos. Às vezes me entusiasmava pelo progresso rápido da democracia ou da sociedade, mas ele era seguido de uma regressão tão brusca que me desanimava. Em alguns momentos meu zelo amoroso crescia a ponto de fazer-me um prosélito, enaltecendo com alarde este maravilhoso país; em outros momentos, me enfurecia em voz baixa contra suas traições de amante. Entre mim e o Brasil era uma verdadeira história de amor, cheia de reviravoltas, entrecortada de impulsos excessivos e despeitos profundos. Eu viera pelo trabalho, retornava por amor, mas a todo instante havia o risco da ruptura amorosa. O que faz que eu volte, desde então, todo ano com constância? Não é nem a necessidade, que desapareceu; nem a paixão, muito incerta; mas algo mais agradável que a primeira e mais estável que a segunda: a amizade. Amizade por este país, do qual me sinto agora cúmplice, que me comove como um irmão e que eu olho com indulgência. Amizade por todos aqueles que conheci e que passaram pelo filtro de 36 anos. Amizade, sobretudo, por Adauto Novaes, pela generosidade de sua pessoa e a constância do seu trabalho. Por isso, quando mais uma vez ele me convidou para abrir seu novo ciclo Mutações, que comemora trinta anos de suas séries de conferências, trinta anos de experiências do pensamento, aceitei com presteza a honra que me fazia. Mas quando, além disso, ele me propôs falar sobre a amizade, fiquei realmente comovido. Sim, a amizade é o que me liga a este país, para além de todas as necessidades e todas as paixões. Sim, a amizade é o que nos reúne fielmente, Adauto e eu, para além de todas as admirações recíprocas e todos os engajamentos no trabalho comum.

AMIZADE E ÉTICA

A amizade, portanto. Antes de tentar defini-la, gostaria de começar por uma questão que parecerá muito afastada. O que define para nós, na época moderna, o problema moral? São questões como: de que maneira devemos tratar outrem? Quais são nossos deveres para com os outros seres humanos, nossos semelhantes, nossos próximos, o próximo em geral? A esse tipo de questão pode-se responder com virtudes como a beneficência, a indulgência, a generosidade, a bondade etc. Em suma, o altruísmo. Ao contrário, as ações, os pensamentos e as condutas centrados em nós mesmos, os comportamentos egoístas, não podem ser morais. Eles procedem de uma atitude que pode ser necessária e mesmo salutar para nossa preservação ou nosso bem-estar, mas não são considerados morais. Para nós, modernos, a moral começa quando agimos pensando nos outros, não em nós mesmos.

Nesse tipo de problemática moral, há um grande problema subjacente – e é o que se vê na mais importante obra moral da época moderna, a de Kant. É a questão da felicidade. Agir bem é bom, mas não gera um bem. Se o homem moral deve primeiro pensar nos outros antes de pensar em si mesmo, ele deve deixar a busca de seu próprio bem em segundo plano, deve sacrificar sua própria felicidade.

Ora, há (ou melhor, havia, na filosofia antiga) uma maneira absolutamente oposta de colocar o problema moral. Era justamente por meio de questões do tipo: como ser feliz? Qual conduta é a mais propícia ao nosso florescimento? Como nos realizarmos da melhor maneira? Como fazer para nos tornarmos seres humanos acabados? Nossas virtudes, nessa problemática, chamam-se coragem, resolução, temperança, domínio de si, magnanimidade etc. Elas são centradas em nós mesmos, são autocentradas.

É essa problemática que encontramos na maior obra moral da Antiguidade, a Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Toda a investigação de Aristóteles está focalizada nesta questão: como atingir o maior bem propriamente humano? Como tornar-se plena e soberanamente um homem? A resposta de Aristóteles é complexa. Para simplificar, pode-se dizer que, para Aristóteles, o florescimento de si consiste em realizar a tarefa mais própria do homem. Qual é essa tarefa? Não pode ser o simples fato de viver, que é comum a todos os viventes. Deve ser o fato de viver em conformidade com a faculdade humana mais elevada, a razão, e segundo a virtude racional mais elevada: prudência ou sabedoria[2].

Nessa ética antiga, o que vem a ser a moral no sentido em que entendemos hoje a relação com os outros? Ela se acha concentrada em duas virtudes particulares essenciais às quais Aristóteles reserva suas explanações mais longas e elaboradas: a justiça e a amizade.

Eis o que é curioso. Na justiça não se busca seu próprio bem, mas o bem de todos. Se, numa partilha, eu buscasse apenas o meu bem, tomaria tudo para mim, não buscaria a partilha mais equitativa de todas. Mas, para Aristóteles, não se pode ser feliz sem ser equitativo, portanto, sem buscar fazer ações justas.

Chegamos à amizade. Nova surpresa. É curioso que ela seja uma virtude. Mas, para Aristóteles, é uma virtude no sentido de que não se poderia ser um homem acabado sem amigos. “Sem amigos”, ele escreve, “nenhum homem escolheria viver, ainda que tivesse todos os bens do mundo[3].” Imagine-se sozinho, abandonado, deixado a si mesmo, sem ninguém a quem falar ou a quem se confiar, sem ninguém a querer bem, sem ninguém que o compreenda… Você poderia ser feliz? A resposta é evidente: não. Sem amigos, um homem seria o mais infeliz dos homens. Portanto, o homem feliz tem amigos e, se possível, numerosos e fiéis.

No entanto, essa ideia contraria a representação que os gregos faziam da felicidade mais elevada. É onde encontramos um paradoxo, ou melhor, uma série de contradições engendradas pelas relações estranhas da amizade e da felicidade.

AMIZADE E FELICIDADE

Ser perfeitamente feliz, para os antigos e particularmente para Aristóteles, é ser acabado, autossuficiente. É ser como um sábio que não tem necessidade de nada. Ou melhor: é ser como um deus que não precisa de ninguém. É ter atingido um estado de satisfação completa de todos os desejos (ser sem desejo); é ser totalmente autônomo (ser sem falta); é mesmo ser perfeitamente independente (ser como um deus vivo). Logo, se um homem fosse realmente feliz, ele não teria necessidade de nada nem de ninguém, portanto, não teria amigos, bastar-se-ia a si mesmo. Qual é essa falta, nele, que o lança em direção a outro? Que insatisfação o impede de se sentir bem quando sozinho, de se contentar em ser ele mesmo, de não estar apenas em relação consigo? Que secreto aguilhão o impede de ser feliz? Como dizia Pascal: “Toda a infelicidade dos homens vem de uma única coisa, que é não saber ficar em repouso num quarto[4]”. Se um homem fosse feliz, perfeitamente feliz, ele seria autárcico, autossuficiente, completo com aquilo que ele é ou possui, sem depender dos outros, daquilo que eles são ou possuem. Essa é a definição necessária do homem feliz. Eis, portanto, o paradoxo: por um lado, não se pode ser feliz sem amigos; por outro, um homem perfeitamente feliz não precisa de amigos. Tal é o problema que Aristóteles enfrenta no capítulo 9 do livro IX de sua Ética a Nicômaco.

Há um meio evidente de sair da dificuldade. Dir-se-ia, por exemplo: o homem feliz tem amigos e é precisamente por isso que ele é feliz; o homem não pode ser feliz sem amigos, como tampouco poderia sê-lo se fosse doente ou miserável. Isso prova que a amizade é um componente da felicidade, nem mais nem menos que a saúde ou a riqueza. O homem feliz se sente bem, vive na abastança e tem muitos amigos: são os chamados bens exteriores indispensáveis à felicidade. O homem feliz é completo, justamente graças a seus amigos.

Assim a contradição se resolveria: o homem feliz tem amigos; mas não é porque é feliz que tem amigos, e sim porque tem amigos que é feliz. Acontece que a primeira contradição engendra outra. Se o amigo é, como a riqueza ou a saúde, um dos bens exteriores necessários ao homem feliz, não serão nossos amigos apenas seres que nos são úteis? Se temos necessidade de amigos, em que são eles amigos?

Se o amigo é aquele do qual se tem necessidade, então ele nos é simplesmente útil, um simples meio de que nos servimos – e não mais um ser a amar por ele mesmo. Que resta do amigo, se não é por ele mesmo que o amamos, mas apenas por sua utilidade? Temos necessidade dos outros, do encanador para consertar um vazamento, do padeiro para fazer o pão, dos vizinhos para pequenos serviços cotidianos; a necessidade que se tem deles não impede as boas relações sociais, nem mesmo a cortesia: “Até logo, e mais uma vez obrigado!”. Mas o amigo é algo mais. Nada se espera dele e, sobretudo, nenhum “favor em troca”. O amigo dos dias felizes é justamente aquele que se ama porque, diferentemente dos outros, nenhum laço de utilidade ou de necessidade nos prende a ele. Essa é mesmo a única autêntica e pura definição do amigo, do amigo puro e autêntico. “Estamos presos na roda”, como diria Montaigne. O homem comple-to não tem necessidade de amigos e se basta a si mesmo, mas só pode ser completo pela amizade que o liga a outros. O amigo verdadeiro é aquele que nos é indispensável, mas só pode ser amigo com a condição de não ser necessário. A primeira contradição não se resolve senão nos lançando na segunda que, por sua vez, nos remete de volta à primeira etc.

O que significam para a amizade e para a felicidade essas contradições? O que elas implicam para a definição do ser humano?

Para tentar responder a tais perguntas, convém definir precisamente a amizade.

 

O QUE É A AMIZADE?

Ela é, evidentemente, uma relação com outrem. Mas não uma relação qualquer.

Trata-se de uma relação eletiva: com tal pessoa porque é a pessoa que ela é. A amizade é uma relação singular com o amigo enquanto este amigo, esta pessoa em particular, ela e não outra. Meu amigo não é qualquer um para mim, e eu não sou qualquer um para ele. Como disse Montaigne, a propósito de sua amizade com La Boétie: “De resto, o que chamamos ordinariamente de amigos e de amizades não são senão convivências e familiaridades atadas por alguma ocasião ou comodidade, por meio da qual nossas almas se entretêm. […] [Mas] se me pressionarem a dizer por que eu o amava, sinto que isso só se pode exprimir respondendo: ‘Porque era ele, porque era eu’[5]”.

Por que Adauto é meu amigo? Por que sou amigo dele? Porque ele é Adauto e porque eu sou Francis.

Mas não basta dizer que o amigo é uma relação singular e única entre dois indivíduos únicos e singulares. É preciso também dizer que essa relação deve ser escolhida por um e pelo outro. A vida social nos obriga a ter constantemente relações ocasionais com muitas pessoas que não escolhemos: a vizinha suada no ônibus, o vizinho que berra no estádio, o vendedor de pipocas tagarela na rua. Para garantir a paz social, convém que essas relações não sejam ruins: é tudo o que pedimos a elas. Há casos também em que somos forçados a ter relações regulares com as mesmas pessoas, que tampouco escolhemos: o colega de classe, o colega de trabalho, o vizinho do mesmo andar etc. A fim de garantir a serenidade da coletividade, da empresa ou da vizinhança, convém que essas relações sejam boas: “Bom dia, como vai? Posso ajudá-lo?”. Tanto num caso como no outro, todas essas pessoas nos são impostas pelo acaso, e, portanto, não há razão nenhuma para que sejamos amigos – mesmo que isso seja sempre possível. É desejável ter boas relações com os vizinhos ou os colegas, mas só excepcionalmente temos com eles relações amicais.

A amizade, portanto, é uma relação singular escolhida. Ela se distingue, como acabamos de ver, das relações singulares não escolhidas.

Mas se distingue também das relações universais nas quais não se deve escolher. Tomemos, por exemplo, o que na religião cristã se chama de caridade (isto é, o amor ao próximo) ou ágape. É o que os filósofos antigos chamavam de “simpatia universal”, ou o que um kantiano chamaria de “sentimento pela humanidade”. Pois bem, a caridade nos prescreve tratar todas as pessoas do mesmo modo, com o mesmo amor, sem distinção: todo humano deve ser para qualquer outro um próximo, e um próximo igual a qualquer outro. Ou seja, a caridade não é amical porque ela se dirige a todos os homens, considerados como semelhantes. Digamos de maneira inversa: a amizade não é caritativa porque reserva um tratamento de favor aos que ela liga.

Outro exemplo: a justiça nos prescreve tratar todos os outros, não de maneira igual com o mesmo amor, mas à proporção do que eles são ou do que fazem. De fato, a justiça consiste sempre em aplicar uma fórmula do gênero: “A cada um segundo seu x”, x sendo variável conforme as situações. É um princípio de proporcionalidade. Assim, é justo tratar melhor aquele que o merece, e pior aquele que se conduz mal – punindo-o, por exemplo. É justo que seja mais bem pago, ou mais bem recompensado, aquele que trabalha mais ou que trabalha melhor. É justo que, no exame, tenha uma nota melhor o estudante que fez um dever melhor. Ou seja, a justiça não conhece a amizade: seria injusto o professor dar uma nota melhor ao estudante do qual é amigo; seria injusto o juiz não punir o culpado porque é seu amigo. A justiça exige a estrita imparcialidade. A justiça não deve ser amical.

A amizade não obedece a nenhuma regra universal, como a caridade, que nos prescreve tratar todos os homens de maneira igual; ou como a justiça, que nos prescreve tratá-los proporcionalmente a seus méritos e de maneira imparcial – a justiça é cega, dizem, e é assim que é representada: uma balança na mão e uma venda nos olhos. Mas a amizade não nos prescreve absolutamente nada: ela não é um dever. Acaso eu deveria ser amigo, por pura caridade ou por justiça, desse indivíduo que me é indiferente? Seria absurdo. A amizade não é nem caritativa nem justa. Ela é mesmo injusta. Pois tudo opõe a amizade e a justiça. Tratar alguém como amigo é ser injusto em relação aos outros – é favoritismo; inversamente, tratar o amigo como um sujeito qualquer é trair sua amizade. Daí tantos conflitos de deveres: devo ao amigo porque é ele, ou devo a todos igualmente? Por um lado, se não trato o amigo como amigo, ele que me pediu um pequeno serviço, uma ajuda, um “jeitinho” para ele ou para seu filho, me arrisco a ser acusado de deslealdade: “Faça isso por mim, por favor, como amigo!” (“Ô Antonico, vou lhe pedir um favor,/ Que só depende da sua boa vontade./ É necessária uma viração pro Nestor,/ Que está vivendo em grande dificuldade”). Mas, por outro lado, há casos em que, se presto esse serviço, me arrisco a ser acusado de parcialidade e, portanto, de injustiça – pensemos em todas as circunstâncias sociais, profissionais, políticas; pensemos no professor, no juiz, no árbitro, no empregador, no ministro que devem (ou melhor, que deveriam), para permanecer justos, em conformidade com sua função, não levar em conta de modo nenhum suas amizades.

O amigo, portanto, não é nem o vizinho (com quem ser cortês), nem o concidadão (com quem ser justo), nem o próximo (com quem ser caridoso). O amigo não é qualquer um, eu o escolhi, nós nos escolhemos. É a outra metade, segundo uma bela fórmula que remonta a Aristóteles, infelizmente transformada em clichê. Isso não significa em absoluto alguém que se assemelha a mim, como se acredita com frequência. O amigo é antes aquele que me ajuda a mostrar-me como sou. Confiando-me a ele, compreendo a mim mesmo. Sem amigo a quem contar o que sinto, eu não poderia perceber claramente o que se passa comigo, uma vez que, para ele e por ele, consigo formular o que sinto a mim mesmo. Sem amigo eu não poderia saber lucidamente o que penso, não poderia distanciar-me do que faço nem compreender plenamente o que vivo. O amigo me permite não ficar imediatamente “colado” em meus atos, mas tomar consciência de por que ajo, ao tentar explicar-lhe. Vivo uma segunda vez os melhores momentos de minha vida contando-os a ele, desembaraço-me dos maus pensamentos ou de minhas piores lembranças confiando-os a ele. A palavra ao amigo e a palavra do amigo são as mediações reflexivas entre mim e mim mesmo. Em A grande moral, Aristóteles escreve: “Assim como, quando queremos ver nosso rosto, vemo-lo ao olhar um espelho, assim também, quando queremos conhecer a nós mesmos, conhecemo-nos ao olhar um amigo[6]”. O amigo é, pois, um espelho pelo qual compreendo o que sou ao me ver sob seu olhar.

Eis por que o amigo é um outro eu-mesmo. Sem esse outro, eu seria eu, mas não completamente eu-mesmo. O amigo é como eu, embora sendo totalmente outro. Se não fosse totalmente outro, ele me seria indiferente. Se fosse apenas como eu, não me permitiria distanciar-me de mim. Por um lado, absolutizo a diferença do amigo comigo mesmo. Ao pensar no amigo, em Adauto, por exemplo, digo-me: “Ele é diferente de mim, por isso quero seu conselho, seu julgamento, ou apenas seu ouvido atento ou seu espírito benevolente”. Mas, por outro lado, ao pensar no amigo, em Adauto, por exemplo, projeto-me nele para abolir toda diferença. Digo-me: “Ele é como eu, ele me compreende, sou como ele, eu o compreendo”. O amigo é ao mesmo tempo totalmente outro e perfeitamente o mesmo.

Tal é, portanto, o traço essencial da amizade: é uma relação única e escolhida com um outro eu-mesmo. As outras características da amizade se deduzem dessa.

O amigo sente alegria na companhia do amigo, tal é o segundo traço. Os amigos gostam de falar juntos de tudo e de nada. Compartilham impressões fugazes ou convicções profundas; vivem juntos momentos de exaltação ou de dúvida; trocam suas pequenas felicidades ou suas grandes infelicidades. Como se oferecessem presentes, fazem confidências sobre si mesmos ou sobre os outros. Por exemplo, falam em voz baixa no meio dos outros para se isolar deles.

A amizade, enfim (terceiro traço), é um motivo de ação: o amigo se preocupa com o amigo. E preocupa-se por amizade, isto é, por ele, o amigo, e não por interesse por si mesmo. O amigo procura fazer o bem ao amigo, ajudá-lo, socorrê-lo, assisti-lo, consolá-lo. Mas o amigo não se contenta em querer bem ao amigo. Procura agir em favor do bem, não do seu, mas do dele. A amizade se prova e se comprova em atos.

Assim definimos a amizade: relação eletiva com um outro si-mesmo, cuja companhia nos alegra e a quem nos comprazemos de fazer o bem.

Mas não são esses também os traços do amor?

De fato, distinguimos a amizade das relações sociais necessárias (o vizinho ou o colega) e das relações humanas universais (a caridade e a justiça). Resta-nos distingui-la do amor.

AMIZADE E AMOR

À primeira vista, pode-se dizer que o amor se distingue da amizade por um traço essencial: o desejo. O amor seria uma espécie de amizade desejante ou de desejo amical.

Com efeito, parece que se encontram no amor os três traços constitutivos da amizade. O amor é também uma relação eletiva com o amado – porque é ele ou porque é ela. O ser amado não é qualquer ser. O amante quer compartilhar com o amado pequenos nadas ou grandes confidências. Busca sua presença. Procura fazer-lhe o bem.

No entanto, todos sabem que o enamorado difere do amigo num ponto essencial: o desejo – físico, carnal, sexual.

O enamorado deseja tocar o amado, beijar seu rosto ou suas mãos, estreitá-lo nos braços, envolvê-lo, acariciá-lo e, afinal, “fazer amor” com ele – como diz essa feliz expressão. O sentimento amoroso tende necessariamente a se realizar num ato, o ato de amor, justamente. Não há amor sem Eros. Uma amizade sem desejo nada tem de amor, é uma amizade. Mas o mesmo se dá no sentido inverso. Um desejo sem amizade é um desejo, nada mais: não é amor. Pois é possível desejar intensamente um desconhecido ou uma pessoa que se detesta ou despreza. Há chamados para o sexo que podem ser agradáveis, mas que ninguém chamaria de amor.

Em realidade, o desejo é ambíguo. Se é acompanhado de uma dimensão amical, o desejo é a mais bela das coisas; mas, sem essa dimensão, pode às vezes se tornar a pior coisa do mundo. De fato, há estupros que são uma manifestação indiscutível, embora criminosa, do desejo sexual, especialmente masculino, mas que são a negação mesma do amor. O amor tem, portanto, uma dimensão amical e uma dimensão desejante, mas nem a amizade nem o desejo são o amor.

Essa análise, porém, é insuficiente. Falta um terceiro componente essencial do amor, ausente da amizade: além do desejo, existe a paixão.

Definimos a paixão como um estado afetivo intenso focalizado numa coisa (o dinheiro, os carros, a música), numa atividade (o jogo, a paquera, o futebol) ou numa pessoa – no caso se trata de uma pessoa –, que se apodera do espírito de um sujeito a despeito de sua vontade e de sua razão. “Ele está gamado”, dizem – a expressão é familiar mas apropriada. Tal é a vertente negativa da paixão: ela aliena o espírito. Mas possui tam-

bém uma vertente positiva: a paixão não é apenas alienante; ela reforça a potência vital, colore todo estado de alma e realça toda emoção. Ela orienta os pensamentos e determina os atos mais extravagantes, assim como os mais exaltantes. Faz a pessoa lúcida, extralúcida e, ao mesmo tempo, completamente cega. A paixão se mede no espaço e no tempo, inclusive em quilômetros por hora. Quantos quilômetros posso percorrer em uma hora para reencontrar o objeto de minha paixão? Quantas horas por dia seu pensamento me ocupa? Por quanto tempo posso esperar uma resposta a uma carta ou ao WhatsApp? O domínio do outro se mede ora por sua presença, ora por sua ausência. A paixão – isso é bem conhecido

– invade, rói, devora suas vítimas alegres. Pois se o amigo é outro eu-mesmo, a paixão é o contrário: é eu enquanto outro. Como disse Alain, “a paixão é eu; e é mais forte do que eu[7]”. Quando alguém se reconhece nela, não reconhece mais a si mesmo.

Mas assim como o desejo é ambíguo se privado de amizade, o mesmo se dá com a paixão. Pois a paixão por uma pessoa não é por si só amor; pode-se odiar apaixonadamente alguém até a obsessão: pensemos nas grandes figuras do ódio, como Medeia, que, por ódio obsessivo a seu marido Jasão, chega a matar os próprios filhos; pensemos nos invejosos apaixonados e obcecados, como a prima Bette de Balzac, doentiamente ciumenta e rancorosa, que se obstina em fazer a infelicidade dos outros. Eis aí uma paixão por outrem em estado puro. E eis o que pode ser uma paixão quando nela não entra nenhum componente amical. É preciso, pois, que a paixão tenha uma cor de amizade ou de desejo para que se fale de amor. Há o passional no amor, mas a paixão não é amor.

Assim, o amor se distingue da amizade porque tem uma dimensão desejante e passional. Para que haja amor, é preciso que os três componentes, amizade, desejo, paixão, se misturem e se fundam em maior ou menor grau, pois nenhum deles tomado à parte é amor.

Mas com isso, ao mesmo tempo, aprendemos um pouco mais sobre a amizade. A amizade não tem nem dimensão desejante nem dimensão passional. Ela traz a alegria em presença do amigo, ela causa nostalgia ou saudade em sua ausência, mas, ao contrário do amor passional, não se acompanha de obsessão devoradora. O amigo busca fazer o bem ao amigo, mas a amizade é desinteressada, ao contrário do desejo, que, necessariamente, quer se satisfazer pela posse do amado. A amizade está assim dispensada da ambiguidade do desejo e da paixão amorosa, portanto, privada de seus aspectos negativos. Mas, inversamente, a amizade é o que colore positivamente o desejo ou a paixão amorosa. Retirem do amor toda dimensão amical: o parceiro sexual poderá se tornar um objeto e o amado um inimigo, como nos grandes ciúmes ou na violência conjugal. A amizade não é o amor, pois é sem desejo e sem paixão; no entanto, é um componente essencial sem o qual o amor se transforma em seu contrário.

Inversamente, se o amical se mistura ao desejo sexual, este pode se tornar aspiração à fusão física de dois eus, um eu e outro eu-mesmo. E então pode haver ternura. Enamorado, o sexo não é mais a necessidade de possuir outra pessoa, é desejo amável de unir-se a esse outro que é ele próprio como eu, um sujeito de desejo. É aspiração a fazer um outro todo com o outro eu-mesmo. É esse componente amical do amor que explica as atenções eróticas canhestras ou os embaraços respeitosos dos namorados iniciantes. A amizade é sem desejo, no entanto, é um componente essencial do desejo, sem o qual ele se torna violência.

Mas seria absurdo definir o amor como uma espécie de amizade à qual se acrescentam o desejo e a paixão, porque seria implicitamente definir a amizade como uma espécie de amor em que falta alguma coisa. Ora, à amizade não falta nada, justamente! E é o que explica sua estabilidade por oposição à precariedade do amor. Vejamos por quê.

A AMIZADE COMO RELAÇÃO ÉTICA

Na verdade, a amizade não pode ser um gênero do qual o amor seria uma espécie, por uma razão simples mas de consequências consideráveis: a amizade é por definição uma relação recíproca, o amor é conceitualmente de sentido único.

Pois o essencial é isto: para ser amigos, é preciso que os dois o sejam. Por outro lado, pode-se estar enamorado sozinho. Você pode querer ser o amigo de alguém, mas não pode ser o amigo desse alguém sem que ele o seja também de você. (Mesmo no Facebook, só se pode ser “amigo”, embora num sentido bastante degradado do termo, daquele ou daquela que se aceita como “amigo”.) Inversamente, você pode amar alguém sem que essa pessoa lhe ame. Não há sentido em dizer-me amigo de quem ignora que é meu amigo, ao passo que posso estar enamorado de quem o ignora, de quem não está enamorado de mim ou de quem ama outra pessoa. Um amigo sem amigo é uma contradição de termos, mas um enamorado não amado é uma situação banal e um dos temas privilegiados tanto da tragédia como da farsa. Aliás, em amizade não há termo que corresponda ao adjetivo “enamorado”.

Dos três componentes do amor – amizade, desejo, paixão – apenas o amical é essencialmente recíproco, e essa é uma das razões da fragilidade do amor. Os outros dois só podem ser recíprocos por acidente (feliz, certamente). Em outras palavras, é evidentemente possível desejar quem me deseja ou me apaixonar por quem está apaixonado por mim, mas depende da sorte! Isso não está inscrito no conceito de desejo ou de paixão. Você desejar X não é razão alguma para que X lhe deseje. Você é bonito? Tem outros títulos de desejabilidade a fazer valer? Está apaixonado por Y por essa ou aquela razão, seja porque lhe parece admirável ou por outro motivo racional qualquer, seja porque é vesgo (para retomar um exemplo de Descartes[8]) ou outro motivo irracional qualquer, mas não há razão alguma para que ele ache você admirável ou interessante. Ao contrário, a ligação de amizade é de mútua escolha. Faz parte do conceito de amizade o não podermos ser amigo de quem não é nosso amigo. Poderia eu dizer-me amigo de Adauto se Adauto não fosse meu amigo? Trata-se de algo necessariamente recíproco, mesmo não sendo necessariamente simétrico: às vezes um admira mais o outro, às vezes um tem mais necessidade do outro, às vezes um se confia mais ao outro. As relações amicais assimétricas são frequentes; uma relação amical não recíproca é impossível.

Isso tem uma consequência considerável que nos permitirá esclarecer o problema ético. Uma vez que a amizade é por definição recíproca, há uma ética da amizade e uma virtude que se deduz dessa reciprocidade: a lealdade. Trair um amigo é romper o contrato moral implícito da amizade, pois ela se confunde com essa relação mesma. Todos sentimos que a traição de um amigo é, do ponto de vista moral, a pior de todas. Não é necessariamente a que mais faz sofrer, mas é a mais condenável e a mais abjeta. É mais fácil perdoar o amado que o amigo, pois se pode continuar amando o infiel, mas não se pode mais ser amigo do amigo desleal.

Por sua vez, não há ética do amor. Há virtudes, certamente, mas não há normas. A lealdade é a virtude da amizade, mas não do amor – cujas virtudes se nomeiam em geral doçura, paciência, compreensão, indulgência, desapego de interesses, devoção, abnegação, sacrifício etc., virtudes todas elas de sentido único, justamente.

Sendo o amor só acidentalmente uma relação, não se pode ser infiel ou desleal em relação ao amado enquanto amado. Por certo podem-se trair compromissos com quem quer que seja, inclusive o amado! Isso é sempre uma conduta odiosa, ainda mais quando ofende ou fere. Mas nada no próprio amor obriga o amante enquanto amante, a não ser, justamente, a dimensão amical do amor, que compromete o amante na lealdade que define a amizade. Esta também incita o amante a desejar fazer bem ao amado e a fazê-lo efetivamente. Mas se ele deixa de desejá-lo, e portanto de fazê-lo porque deixa de amar, não há nada aí que infrinja alguma ética.

Em realidade, o que explica a estabilidade da amizade em oposição à precariedade do amor é outro traço – uma característica ontológica. A amizade é uma relação; a paixão é um estado; o desejo é uma disposição. Na amizade, o outro é um “outro eu”. Na paixão, o outro está em mim. No desejo, o eu está voltado para o outro. Mas, sobretudo, a amizade, o desejo e a paixão não têm a mesma proveniência antropológica.

O desejo vem longinquamente do mundo das necessidades naturais (o acasalamento), do qual é a expressão propriamente humana. Com efeito, para haver o humano é preciso mais que o instinto biológico de reprodução dos seres vivos, é preciso o desejo, o qual não existe sem fantasmas, sem representações, sem leis, sem tabus, sem frustrações, sem violência às vezes, sem beleza também, pois no fundo do desejo humano há alguma aspiração ao belo.

A paixão, por sua vez, vem do mundo das emoções, é o afeto sob sua forma obsedante. A que mundo humano ela pertence? Para haver o humano, é preciso mais que emoções, que motivam as ações de muitos animais; é preciso mais que apegos a territórios, a objetos ou a congêneres, como os bichos: é preciso paixões que levem os humanos a se alçar acima de seus próprios interesses e a agir por uma ideia, às vezes contra eles mesmos e com frequência contra toda a razão.

E a amizade, de onde vem? A amizade pertence ao mundo da socialização humana, do qual é a realização afetiva elementar e a mais perfeita. Pois, para haver o humano, é preciso mais que o gregarismo animal, mais que a necessidade dos outros ou que a ligação biológica entre aparentados: é preciso a socialidade propriamente humana. Com efeito, não há humanidade sem uma comunidade de trocas recíprocas, que pode ser de três espécies.

Há, primeiro, a realidade da comunidade política (a cidade) – que deveria ligar a fraternidade dos concidadãos e deveria ser ligada pela ideia de justiça. Isso não significa que toda comunidade política é justa! De forma alguma. Significa apenas que a justiça é o bem próprio a que toda comunidade política deveria visar. É a virtude política por excelência.

Mas essa comunidade está encerrada entre outras duas: uma comunidade máxima e uma comunidade mínima. A comunidade máxima é a própria humanidade, e deveria ser ligada pela ideia universalizável segundo a qual todo ser humano deve poder ser, para qualquer outro ser humano, um semelhante – ou seja, a caridade ou a simpatia universal. É o laço que nos liga implicitamente a todos os homens de maneira igual. Isso não significa que todos os homens se sintam ligados entre si por esse amor ao próximo ou esse humanismo universalista! De forma alguma. Significa que ele define o bem propriamente moral, aquele a que deveríamos visar em todas as nossas relações humanas. É a virtude ética por excelência.

A comunidade política também é limitada, embaixo, por uma comunidade mínima, a que reúne dois seres que se escolheram reciprocamente, sem desejo e sem paixão. É a amizade. Ela é a relação eletiva entre aqueles que são um para o outro, não concidadãos na cidade idealmente justa nem semelhantes na comunidade humana, mas um outro eu que permite a cada um ser plenamente ele mesmo. E a virtude que lhe corresponde é a lealdade.

Das três relações sociais propriamente humanas, a amizade é a menor e a mais perfeita.

Definimos assim e delimitamos a amizade. Distinguimo-la da justiça, da caridade, do amor, do desejo e da paixão. E podemos agora compreender por que ela é a mais robusta e a mais estável das relações humanas.

O que fragiliza a comunidade política é que a justiça permanece um ideal sempre visado e raramente atingido, porque não há realidade política que subsista sem a força de um poder: o poder de alguns (certos homens, certos grupos, certa classe) sobre outros. Ora, o poder político é, por hipótese, não recíproco e, portanto, dificilmente está a serviço da justiça para todos. O poder é com frequência corrompido pela busca de proveitos pessoais, e, quando há preocupação com outrem, não é por justiça, mas (infelizmente!) por amizade, a dos “pequenos arranjos entre amigos”, uma amizade na maioria das vezes interessada – a chamada corrupção.

O que fragiliza a comunidade humana é que o humanismo universalista permanece um ideal sempre a ser visado moralmente e que raramente se atinge, porque esbarra sempre, no melhor dos casos, nas fronteiras políticas (o nacionalismo) e, no pior dos casos, nas discriminações e segregações de todo tipo, de raça, religião, orientação sexual, gênero etc. O que fragiliza o amor é que ele é feito de três tendências – desejo, paixão, amizade – que jamais podem se harmonizar por completo. Ora é o desejo que prevalece, e ele é raramente altruísta; ora é a paixão, e ela é raramente razoável; ora é a amizade, mas então o amor propriamente dito corre o risco de extinguir-se. É verdade que os três componentes imiscíveis do amor são também as fontes dos maiores prazeres. A paixão traz a vivacidade; o desejo, seus gozos. Mas a amizade traz a alegria, que é o mais sereno dos prazeres.

É também o que faz da amizade a relação humana mais estável e a mais perfeita, e de sua virtude, a lealdade, a excelência mais real, ao contrário da justiça e da caridade, que permanecem ideais inatingíveis.

Podemos agora resolver as contradições iniciais da amizade e da felicidade que nos serviram de ponto de partida.

AMIZADE E FELICIDADE (O RETORNO)

O homem feliz não tem necessidade de ninguém, caso contrário seria dependente; e como ser feliz se se depende do que quer que seja? No entanto, ele tem necessidade de amigos, caso contrário não poderia se sentir nem se ver feliz. O amigo, portanto, não é um outro, pois então seria um obstáculo à liberdade – à autarcia – do homem feliz; o amigo não é si-mesmo, pois então não poderia servir de ponto de apoio exterior à consciência reflexiva da felicidade. A amizade não é nem relação consigo (evidentemente!) nem relação com um outro – enquanto outro.

A amizade não é nenhuma dessas duas relações – nem comigo nem com outros, mas sim com outro como eu. Pois com o amigo não se está nem sozinho como um deus, nem com os outros como na cidade; com o amigo se está, diz Epicuro, “como um deus [mas] entre os homens[9]”. Na amizade não se vive nem de pura contemplação das coisas ou de si mesmo, nem de trocas com os homens da cidade ou com os homens em geral. Vive-se das alegrias estáveis, ao alcance dos simples seres humanos que somos. Pois o que é o homem, ele que não é nem um deus nem um lobo para o homem? O homem é um ser que pode ter amigos.

Eis aí, talvez, o que nos define, todos nós. Eis aí o que basta à nossa felicidade, modestamente humana, seja nos dias felizes, seja nos dias infelizes. Eis aí, também, o que nos reuniu esta noite e o que nos reunirá, Adauto e eu, ainda por muito tempo. Trinta anos mais?

Notas

  1. Tradução de Paulo Neves.
  2. Aristóteles, Éthique à Nicomaque, livre I, ch. 6.
  3. Ibidem, livre VIII, ch. 1.
  4. Blaise Pascal, Pensées, Lafuma 136.
  5. Michel de Montaigne, “De l’amitié”, Essais, livre i, ch. 28.
  6. Aristóteles, La Grande morale, II, 15
  7. Alain, “Des passions”, Propos sur le bonheur (1925, 1928), ch. VI.
  8. Descartes, Lettre à Chanut, 6 juin 1647.
  9. Epicuro, Lettre à Ménécée, 135.

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