A construção da notícia (1)
por Eric Nepomuceno
Resumo
A manipulação, a prepotência, a sabotagem da informação e da notícia: com mais ou menos delicadeza, com maior ou menor engenho, assim são construídos os noticiários na mais poderosa máquina de comunicação do Brasil, a Rede Globo de Televisão.
Um meio de comunicação é um meio de informação. Entretanto, no Brasil, os meios de comunicação acabam sendo meios de deformação, de incomunicação. A construção da notícia na televisão parte de um vício que na verdade afeta a quase todos os meios de comunicação no Brasil: a manipulação, em maior ou menor grau.
Existe o consenso de que a população, ou seja, a audiência majoritária, não teria alcance para qualquer coisa além das mesmas cem ou 120 palavras utilizadas na redação de um telejornal. Por isso, o vocabulário utilizado nos principais noticiários da televisão brasileira é de uma enorme pobreza estarrecedora. Mas será necessário escrever com se escreve, confundindo indigência criativa com simplicidade?
A televisão brasileira repete, em sua ação, o mesmo hábito das elites do país: olhar no espelho e buscar o rosto do amo, e não querer ver a própria face. O modelo perfeito é o modelo dominador — no caso, o norte-americano.
A televisão é um veículo que oferece infinitas oportunidades e abre um sem-fim de possibilidades para o exercício do jornalismo e da criação. Mas é um veículo perigoso. O veículo é bom; o condutor costuma ser maldoso. A primeira vítima desse atropelamento é o ofício do jornalista. A segunda é o público.
1) Sempre que penso no assunto, acho que devo um — ou, pelo menos um — agradecimento à televisão brasileira. Ou, mais especificamente, à Rede Globo de Televisão.
Explico: em agosto de 1983 eu estava voltando ao Brasil após dez anos e meio de ausência praticamente ininterrupta, e vim diretamente para trabalhar na Globo.
O país era, naquele 1983, certamente diferente do que eu havia deixado, e vivia um lento e arrastado processo de abertura democrática. Eu voltava trazendo na bagagem da memória aquilo que vivi nas reviravoltas políticas da Argentina de 1973 e na Espanha de 1976, onde processos de abertura haviam trazido ventos de esperança e ansiedade ao povo. E também as imagens de brutais fechamentos no Uruguai e no Chile, sempre em 1973, e na própria Argentina três anos depois. Havia ainda o renascer da esperança na Nicarágua de 1979. Eu vinha de volta, enfim, com uma bagagem variada de experiência em processos políticos que mexeram com a vida cotidiana em diferentes países. E o Brasil, sempre tão peculiar, guardava mistérios que a Globo rapidamente me ajudou a começar a desvendar. E nem tanto pelo que eu via nas telas, mas sobretudo pelo que eu via da maneira de levar a notícia às telas. O poder, os mecanismos de controle do poder.
2) Eu estava de regresso fazia poucas semanas, e vivia aquelas marés de reencontros e redescobertas. Naquele tempo, os postos de gasolina fechavam depois das oito da noite, e não abriam aos domingos. E, um belo domingo, todos os postos do país funcionaram normalmente porque a Rede Globo de Televisão estava fazendo uma campanha de solidariedade para não sei quais infelizes do mundo. Foi, confesso, um impacto: a Globo tinha poder para abrir os postos que o poder militar fechava. Fantástico.
O presidente se chamava João Baptista Figueiredo e tinha mandado tirar o “p” de Baptista para ser mais popular. O vice-presidente chamava-se Aureliano Chaves e não tinha mandado tirar nada, já que não pretendia lutar contra o impossível. Eles encabeçavam o governo, simbolizavam o poder — o poder de, entre outras coisas, fechar urnas eleitorais e postos de gasolina. Mas a Globo inventava uma campanha qualquer, se autopromovia numa espécie de incessante e enjoativa maratona que arrecadava muito menos do que ela gastaria para obter a mesma publicidade, o país aplaudia e os postos de gasolina abriam. Pode parecer anedótico e pouco significativo, mas me impressionou. Era um símbolo do que acontecera em meu país.
3) Fui contratado quando ainda morava no México, e a ideia era participar do projeto de desenvolver mais o noticiário relacionado à América Latina. Era, com certeza, uma proposta interessante. Na quarta ou quinta semana de trabalho, fui chamado pelos responsáveis pelos noticiários e ouvi um pedido um tanto constrangedor: “Não use mais a palavra ‘somozista’ quando se referir ao pessoal da Guardia Nacional que luta contra os sandinistas”. O pedido veio acompanhado por uma explicação: “É que ‘somozista’ é um termo pejorativo, seria editorializar a notícia. O correto é usar ‘rebeldes'”. Fiz então um extenso relatório explicando quem era quem nos grupos armados instalados em Honduras, na Costa Rica e na Flórida. Expliquei que a maioria se auto-classificava de “somozista”, da mesma forma que décadas antes havia quem se definisse como nazista, fascista, franquista, salazarista etc., sem achar que isso fosse pejorativo. Depois de muita discussão, autorizaram que a palavra maldita fosse usada — Mas só no Jornal da Globo, que era exibido por volta de meia-noite, uma audiência considerada “qualificada”. No Jornal nacional, não: a palavra tinha mesmo de ser “rebeldes nicaraguenses”.
Ou seja: quem pode ficar acordado até meia-noite para assistir a um noticiário de televisão faz parte da audiência qualificada, e pode saber que existiam somozistas que gostavam de ser chamados de somozistas. Os outros, os tais 60 milhões de espectadores do maior telejornal do país, eram sumariamente considerados não-qualificados. Desqualificados. Foi uma segunda lição: a palavra “rebelde” certamente traz uma conotação muito mais editorializada, dilui a informação. Rebelde é o menino que não toma banho, a menina que não toma sopa. Rebelde pode facilmente ganhar tintas românticas.
4) Depois de ver posto de gasolina abrir graças a uma campanha de autopromoção despudorada, depois de ver alguém não poder ser chamado daquilo que diz ser, veio a terceira lição. Certo dia usei no Jornal da Globo, aquele destinado à audiência qualificada, a expressão “regime militar do general Pinochet”. Nada feito: era, no máximo, governo do general Pinochet. Ditador, nem pensar. Afinal, se eu dizia governo do general Pinochet, já ficava evidente tratar-se de um regime militar. Perguntei se na França do general De Gaulle havia regime militar. Esqueci a resposta.
Depois veio a vez da África do Sul. Durante meses, em 1984, os choques entre a polícia branca e a população negra eram violentos e se sucediam em proporção geométrica. A ordem: suspender a insistência no noticiário sobre mortes de negros na África do Sul. Havia inclusive uma carta do embaixador sul-africano à direção da Globo. Tentei argumentar que a função do embaixador era essa, e que minha função era noticiar aqueles massacres rotineiros. Disse que a insistência era de quem matava, e não de quem noticiava. Resumo da conversa: “Pois é, mas são ordens lá de cima”. E o que era esse “lá de cima”: ordens divinas? Então, por que Deus não mandava a polícia branca da África do Sul parar de matar negros sul-africanos?
Ouvi a recomendação que servia como uma espécie de código, de álibi para consciências travessas: era preciso “ser profissional”.
5) Quando fui trabalhar na Globo eu tinha 35 anos de idade e dezoito de profissão. Ou seja, havia vivido e trabalhado o suficiente para conhecer as regras do jogo das grandes empresas jornalísticas. Encontrei, na Globo, alguns nomes de peso no jornalismo brasileiro, com experiência maior do que a minha, e inclusive alguns nomes que me acostumara a respeitar desde que comecei no ofício. Mas nunca tinha vivido experiência semelhante, o contorno, o boicote à informação, exceto, é óbvio, nos tempos da ditadura, quando havia censores na redação corrigindo tudo o que ia ser impresso.
Foi diferente, e certamente bem mais amargo, ver companheiros de ofício cumprindo o mesmo papel, anos depois — e devo dizer que com eficácia bem maior.
6) Em janeiro de 1984 começou a se esboçar no Brasil a campanha pelo retorno das eleições diretas — a “diretas-já”. Houve um ato na praça da Sé, em São Paulo, reunindo milhares de pessoas. Na redação da Rede Globo no Rio todos nós víamos, pelos monitores, as imagens da praça lotada, os discursos inflamados. E quem estava em casa recebeu a seguinte informação: “Na praça da Sé, um show musical, com mensagens políticas, atraiu a presença…”. O conjunto vocal integrado por Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, teria nascido ali. Quem estava em casa vendo a Globo não foi informado que havia nas ruas um movimento que em pouco tempo se transformaria na maior mobilização popular da história contemporânea de todos nós, brasileiros. A Rede Globo só tomou conhecimento público da campanha nos últimos comícios — sobretudo o realizado no Rio de Janeiro, muitos meses depois daquele janeiro, e que reuniu 1 milhão de participantes. As outras emissoras levaram ao ar imagens dos comícios em seus noticiários e, aquele comício realizado no Rio, a Manchete transmitiu ao vivo. A Globo só entrou no ar quando percebeu que não poderia continuar ignorando o óbvio. Naquela altura, mais de 15 milhões de brasileiros já haviam saído às ruas, nas mais importantes capitais do país, pedindo “diretas-já”. Só não haviam saído na Globo.
7) A manipulação, a prepotência, a sabotagem da informação e da notícia: com mais ou menos delicadeza, com maior ou menor engenho, assim são construídos os noticiários na mais poderosa máquina de comunicação do meu país. Durante seu primeiro governo no Rio de Janeiro, entre 1983 e 1987, Leonel Brizola não existiu para a Globo. Era algo inacreditável: sua voz não aparecia nos noticiários. Ele ficava mastigando no ar enquanto o locutor dizia o que ele estava falando. Havia algo mais do que má vontade contra o governo, algo mais do que crítica permanente: havia uma clara manipulação da opinião pública, uma persistente distorção dos fatos. A construção da Passarela do Samba — o Sambódromo, por exemplo. Primeiro, o noticiário era todo conduzido para um ponto: não será terminado a tempo. Depois, mudou o rumo: vai ficar pronto mas não é seguro. Quando ficou pronto e os testes mostraram que era seguro, restou um último recurso: na véspera da inauguração e do Carnaval, Cid Moreira informou, solene — “Vai chover no Carnaval”. Não choveu.
Em São Paulo, a prefeita Luiza Erundina inaugura túneis subterrâneos que, curiosamente, são mostrados de helicóptero. Ou seja, quem está em casa vê apenas chão, e não o que foi aberto lá embaixo.
A televisão brasileira mostrou as imagens do primeiro homem caminhando na Lua. A televisão brasileira mostrou a todos nós que a Terra é azul, coberta de nuvens.
A televisão brasileira não mostra o Brasil — a não ser o Brasil adocicado, como aquela balinha que vem embrulhadinha uma a uma.
8) Um meio de comunicação é um meio de informação. No Brasil, a tônica é outra e as exceções são pouquíssimas: os meios de comunicação acabam sendo meios de deformação. De incomunicação. Existe sempre a desculpa de que a televisão é um veículo com características próprias, de uma tremenda responsabilidade. É verdade. O problema, então, é o uso que se dá ao veículo, a maneira pela qual ele é conduzido. Um BMW é um exemplo de máquina perfeita, de veículo soberbo. Malconduzido, ele pode atropelar, mutilar, deformar, matar. Afinal, de quem é a culpa: do revólver, ou da mão que o empunha e aperta o gatilho?
Existe uma diferença enorme entre ser responsável e ser competente. Responsabilidade no trato com o público é uma coisa, cumplicidade com as elites é outra, certamente diferente. Não podemos jamais esquecer que Hitler foi competente, e Mussolini também. A televisão brasileira é das mais competentes do mundo.
9) A construção da notícia na televisão parte, então, de um vício que na verdade afeta a quase todos os meios de comunicação no Brasil: a manipulação, em maior ou menor grau. No caso da televisão em si, a questão é mais grave justamente pelo seu alcance. Num país de escassa leitura como o nosso, onde a vendagem de jornais é extremamente parca, meios como rádio e televisão têm uma força redobrada. Cada vez que um apresentador de telejornal põe rosto e voz no vídeo, está levando sua palavra a um número de pessoas centenas de milhares de vezes maior do que o atingido pela notícia impressa num jornal. Nos últimos anos surgiram variações em torno da pasteurização e da banalização da notícia, e algumas destas variações apresentam ares de inovação. Mas continua dominando, olímpica, a fórmula que se tornou clássica: intercalar notícias “para baixo” com notícias “para cima”, vulgarizando a informação. Num veículo ágil, que corre o permanente risco da superficialidade, a fórmula em questão torna-se ideal para a neutralização da informação e, acima de tudo, para que ela caia imediatamente no esquecimento. Qualquer pesquisa feita com a audiência de um telejornal indica que o espectador retém menos de 5% do que ouviu, e é inclusive incapaz de citar mais do que duas ou três notícias dentre aquelas vinte que acaba de receber. Quando se tenta a fórmula de aprofundar a informação, o resultado é, em nove de cada dez vezes, trágico. A reflexão não cabe na fórmula adotada pela imensa maioria dos noticiários da televisão brasileira. Há, porém, um aspecto grave: a confusão entre levar o espectador à análise e reflexão, e o livre-arbítrio do apresentador que opina sobre tudo e sobre qualquer coisa, sem jamais sequer riscar o verniz da superfície. Até nisso a televisão brasileira insiste no cacoete de transformar tudo em show, em espetáculo. A esmo, determina-se com lógica marcial: “É uma vergonha!”, “Isso não pode ser!”. É a filosofia do pasteleiro chegando ao reino azulado. Fica-se então com duas opções básicas: o Ventríloco, aquele que recheia a voz de impostação e lê exatamente o que está escrito, dando a impressão de ser a pessoa mais bem informada do país, e o Achômetro, aquele que acha qualquer coisa a respeito de qualquer coisa, e com uma leviandade de dar medo determina o que é ou o que deixa de ser uma vergonha. Uma violenta manifestação no centro de Porto Alegre, reprimida com furor pela polícia, aparece na determinação do Achômetro como “coisa de baderneiro, uma vergonha”. Do outro lado da moeda, uma greve é comentada e analisada essencialmente pelos empresários e políticos alinhados com o governo. Sindicalista, na televisão brasileira, é novidade, e mesmo assim restrita a segundos. Na média, cada sindicalista é sufocado por três empresários ou representantes patronais.
10) No dia em que o senador Luís Carlos Prestes morreu, vi uma das mais espetaculares demonstrações de manipulação da informação nestes tempos de noticiário sem censura institucional, oficial. Foi no noticiário do SBT, na voz de Boris Casoy. Após a notícia da morte de Prestes, acompanhada de um breve perfil, o apresentador emendou outra, recordando a passagem de uma data qualquer relacionada a Benito Mussolini e à Itália fascista. Aproveitou para esparramar sua filosofia sobre o culto à personalidade. Prestes e Mussolini viraram caldo do mesmo feijão. Pessoalmente, acho isso um desrespeito à história, a minha e a do meu país. Nunca fui filiado ao partido político que Prestes encabeçou durante décadas; acho que sua prática política e boa parte das posturas que ele adotou e defendeu ao longo da vida são, no mínimo, discutíveis; muitas são inevitavelmente criticáveis. Resumir sua figura e sua biografia a um mero exemplo do culto à personalidade comparável a Benito Mussolini é, do meu ponto de vista, o exercício de uma molecagem leviana e de muita irresponsabilidade, para continuar no terreno das boas maneiras. Achei na hora e continuo achando até hoje que é muito pouco decente poder dispor de um espaço que é público, é uma concessão pública explorada comercialmente por grupos empresariais, e aproveitar esse espaço para opinar de maneira tão absurdamente leviana. Alguém se dispôs a analisar o papel dos noticiários de televisão ao longo da doença de Tancredo Neves? Alguém tentou investigar a maneira com a qual, nos bastidores das emissoras, ali onde a notícia é finalmente construída, planejava-se a maneira de conduzir a opinião pública? Na Globo, que é onde eu estava, as instruções eram límpidas e cristalinas. Embora eu tenha participado pouquíssimo daquela cobertura, limitando-me a comparecer a pouquíssimas reuniões e raríssimos plantões madrugadas afora, ouvi claramente que era preciso reforçar a noção de martírio de Tancredo, ressaltar sua figura de “estadista”, explorar ao máximo as reações populares, obviamente estimuladas pela presença das equipes de reportagem. Lá dentro da emissora, observando os monitores, era impressionante notar o seguinte: as pessoas estavam na porta do Hospital das Clínicas, numa vigília que misturava em doses iguais aquela atmosfera compungida por encomenda e a vontade de aparecer no vídeo. Estavam todas em silêncio, numa espera amarga e absurda. De repente, acendiam-se os focos de luz da equipe de reportagem. E as pessoas, na medida em que iam sendo iluminadas, caíam num pranto desenfreado. Quando o choro estava no rosto de um número já significativo e impressionante, o plantão era posto no ar. Quem estava em casa imaginava multidões em vigília de dor.
11) O jornalismo investigativo é uma ausência quase que absoluta na televisão brasileira. A sóbria serenidade do editor-apresentador Renato Machado, no programa Noite Dia, levado ao ar tarde da noite pela Rede Manchete, é o avesso da pasteurização e da vulgarização dos noticiários exibidos em horário de enorme audiência. A tônica geral é outra: a presença do jornalista no vídeo perde espaço, sempre, para a fórmula da notícia-show, do repórter-espetáculo. Escreve-se essencialmente mal na televisão brasileira. O veículo ainda não conseguiu, após todos esses anos, criar gerações de telejornalistas: os que apresentam trabalho de melhor nível (em alguns raríssimos casos, de alto nível) são, em sua esmagadora maioria, profissionais que vieram da imprensa escrita. E mais: de gerações que se formaram nas redações e no exercício do ofício, e não em salas de aula. Estilistas como Lucas Mendes, dono de um dos mais esplendorosos textos da televisão brasileira, não fizeram escola. O poder do veículo, capaz de transformar rostos atraentes e corpos elegantes em imagens subitamente populares, abre espaço para que a bela e solerte repórter global transforme o pintor mexicano Diego Rivera em Diogo de Riviera, ou para que o astuto repórter dominical transforme um dos líderes da então contra-revolução nicaraguense, Arturo Cruz, em membro do governo, ao perguntar a ele quais eram os principais opositores ao seu grupo sandinista. O vocabulário utilizado nos principais noticiários da televisão brasileira é de uma pobreza estarrecedora. Existe o consenso de que a população, ou seja, a audiência majoritária, não teria alcance para qualquer coisa além das mesmas cem ou 120 palavras utilizadas na redação de um telejornal. Não se trata, é evidente, de propor que os noticiários utilizem linguagem acadêmica ou passem a adotar o estilo de Guimarães Rosa para contar como foi o incêndio ali da esquina, ou que se busque inspiração em Drummond de Andrade e Manuel Bandeira para relatar o encontro entre Bush e Gorbatchov. Mas será necessário escrever com se escreve, confundindo sempre pobreza de vocabulário com clareza, confundindo indigência criativa com simplicidade?
12) A televisão brasileira repete, em sua ação, o mesmo hábito das elites do país: olhar no espelho e buscar o rosto do amo, e não querer ver a própria face. O modelo perfeito é o modelo dominador — no caso, o norte-americano. E aí repete o mesmo vício que fez um latino-americano ilustre e desconhecido, Simón Rodríguez, que foi mestre e tutor de Simón Bolívar, exclamar uma vez, referindo-se aos políticos de seu país: “Já que vocês imitam a metrópole em tudo, por que não imitam a originalidade? Veja como a Europa inventa, e veja a América como imita!”.
Simón Rodríguez era considerado louco. Defendia o nosso direito a ter uma linguagem própria. Ou seja, uma linguagem digna.
13) Estas são as minhas anotações pessoais, o meu depoimento resumido. A televisão é um veículo que oferece infinitas oportunidades e abre um sem-fim de possibilidades para o exercício do jornalismo e da criação. Mas é um veículo perigoso como um Porsche quando posto em mãos mal-intencionadas. Na televisão brasileira, a notícia é construída com habilidade quase sempre malvada. O veículo é bom; o condutor costuma ser maldoso. A primeira vítima desse atropelamento é o ofício do jornalista. A segunda somos todos nós.