A dança, pensamento do corpo
por Helena Katz
Resumo
A dança é como o pensamento do corpo, e esse corpo, como a mídia básica, exemplar dos processos de comunicação da natureza.
Quando se olha para o corpo humano, percebe-se que se trata de um exemplo privilegiado. Não há melhor lugar para deixar explícito o tipo de relacionamento existente entre natureza e cultura. Corpo é mídia, nada além de um resultado provisório de acordos cuja história remonta a alguns milhões de anos.
Uma vez que é o cérebro o comandante de quase todas as ações do corpo, deve-se atentar para a necessidade de pensar o corpo num contexto irrigado por informações plurais e capazes de promover novas percepções. Cérebros são estruturados de maneira complexa. Cérebros complexos e sistemas nervosos não se desenvolveram em plantas ou fungos, por exemplo, muito provavelmente por terem sido dispensáveis à sobrevivência deles.
Nosso corpo é a porta de entrada do conhecimento. Para o evolucionismo, a cada geração, o programa genético reproduz uma espécie de duplo eixo: o organismo como resultado de uma sequencialidade de estruturas encaixadas pela origem material ou resultante da associação a um momento evolutivo. A continuidade entre natureza e cultura se reforça cada vez mais nessa proposta de corpo como locutor complexo que fala por construções que começam nas primeiras associações de forma operadas por suas sinapses.
Segundo Changeux, o pensamento pode ser considerado uma forma de atividade espontânea, assim como o sonho. Em termos celulares, o desencadeamento e a manutenção de uma atividade espontânea exigem um pequeno número de componentes moleculares.
Muitas células nervosas apresentam atividade oscilatória desse tipo, que pode ser encontrada até mesmo no embrião, ou seja, antes mesmo da possibilidade de qualquer interação com o mundo exterior. A atividade conserva-se no adulto, e os efeitos do meio transplantam-se para essa atividade espontânea. Ela permite ao embrião efetuar “experiências”. Num primeiro momento, entre o sistema nervoso e os órgãos embrionários ou entre diversos centros nervosos. À medida que os órgãos dos sentidos se tornam funcionais, essas “experiências” se voltam pouco a pouco para fora do corpo. Dada a imaturidade do sistema nervoso, tais comportamentos fetais permanecem muito rudimentares.
Quando um corpo dança ocorre um influxo nervoso por ignição espontânea ou sinal exterior; inicia-se uma dinâmica entre os conjuntos celulares (pré-mapas); a partir da pulsação, os processos internos inscrevem os “mapas” em relação ou não com o meio.
Tais “mapas” transformam-se em quase-hipóteses e estas resultam num julgamento de percepção. Nesse momento, o corpo mostra o resultado do processo: dá nascimento ao movimento. O tipo de movimento que percorre essas três etapas é o movimento de dança. — o pensamento desse corpo.
Para Mallarmé, a bailarina não é uma moça dançando, e sim uma metáfora, algo como um lugar onde o movimento se dá a ver. Produzida como uma série orquestrada de eventos em simultaneidade, a dança acontece nas estruturas neuroniais. No corpo que aprende a dançar existe um salto entre a repetição de movimentos e a sua transformação em dança. Entre uma sequência de aminoácidos e a molécula de RNA que dela se forma, iniciando a vida, também. A dança surge daquele instante fugaz e fulgurante semelhante ao do hiato entre o vivo e o não-vivo. E pode ser tomada como um modelo de entendimento da natureza.
O passo que vemos um corpo realizar não é um primeiro, e sim algo que surge já no final de um fluxo que se iniciou como uma ignição eletromagnética no cérebro. Para compreender a dança precisamos de olhos que vejam aquilo que não porta visualidade plena. Há que percorrer as dobraduras da sua materialidade para escapar, por vãos e desvãos, da falsa necessidade de lhe atribuir significados.
O homem tem estado envolvido num processo permanente de co-evolução com a natureza. Depois da publicação do livro Sobre a origem das espécies, de Charles Darwin, em 24 de novembro de 1859, tornou-se evidente que quem ou o que viver neste planeta o faz como resultado de uma ocorrência de tipo evolutivo. Evolução, em termos técnicos, explicita um determinado tipo de acordo entre organismos e meios. A dança resulta de um deles e, por essa razão, pede entendimentos que a considerem sem ignorar essa perspectiva. Para responder a uma das questões propostas para este ciclo de conferências e que pondera sobre a maneira como a filosofia e as artes trataram o corpo ao longo de sua história, aqui a dança será apresentada como o pensamento do corpo, e esse corpo, como a mídia básica, exemplar dos processos de comunicação da natureza.
O final do século XX popularizou de tal forma Darwin e Freud que seus conceitos acabaram por perder o impacto da sua extraordinária singularidade. Com a evolução sucedeu o mesmo que com o inconsciente, ambos desfocados pelo uso excessivo em aplicações imprecisas. Com a evolução, o principal acabou desentendido. Trata-se de uma ideia, na verdade simples, e que pode ser resumida no fato de que os mais capazes de sobreviver e reproduzir transmitem a seus descendentes as características que lhes permitem funcionar assim, e isso provoca a evolução dos traços que mais beneficiam o organismo para que possa continuar operando dessa maneira, ou seja, com sucesso. De imediato se percebe que o foco não são os seres que resultam desse processo, mas aquilo que permite a sua reprodução — e isso se constitui em um dos principais pontos para a compreensão não somente da própria evolução, como também de seus opositores. Tudo o que tira o homem do papel de personagem central encontra forte resistência entre os adoradores do antropocentrismo.
Evidentemente, explicações sobre a origem e a história do mundo existem desde sempre. Mitos tribais já se dedicavam a explicar quem ou o que dava origem ao mundo, como os homens haviam sido criados e o que aconteceria no futuro. Segundo Ernst Mayr, o biólogo que propôs a síntese moderna da genética com a teoria evolutiva, as respostas já elaboradas a tais questões podem ser agrupadas em três classes: as do mundo de duração infinita (Aristóteles acreditava que o mundo sempre existiu, outros filósofos gregos descreviam o mundo organizado em ciclos que sempre retornavam ao início); as do mundo constante, de curta duração (bíblicas, criacionistas); e as do mundo em evolução (mudança constante).
Dadas as sólidas raízes do dogma cristão no pensamento ocidental, a aceitação da ideia de evolução não foi imediata e encontra resistência ainda hoje. Foram necessárias muitas descobertas nos séculos XVIII e XIX para que o mundo deixasse de ser considerado somente um sítio de atuação constante das leis físicas, sem história e sem mudança. As da geologia, por exemplo, revelaram que a Terra era muito mais velha do que o que a Igreja proclamava ao propor 4044 a. C. como a data oficial do início de tudo.
A proposta de que a vida se regula pela evolução resultou em uma das mais profundas revoluções já experimentadas pelo homem, pois mexeu no ponto central do que até então se aceitava: o homem perdeu o cetro de “o mais especial entre os seres”, aposentando ex-triunfos como o da scala naturae, aquela escada concebida por Charles Bonnet em 1745, onde o homem ocupava o topo de uma série de degraus que começavam com coisas inanimadas, como pedras e minerais, e se organizavam numa sequência de gradações de perfeição.
O conceito darwiniano de evolução apoia-se na seleção natural e pede a compreensão do mecanismo da hereditariedade. A reprodução de modelos, ou seja, o modo como estruturas conseguem ser replicadas a partir de um simples ovo, como é o caso da vida, depende, numa instância bastante básica, da possibilidade de armazenagem, transmissão e interpretação de informação. Nesse caso, de uma informação que dá a forma.
Para que a vida se tornasse mais complexa, os modos de armazenar, transmitir e interpretar informação precisaram se transformar. Quando se olha para o corpo humano, percebe-se que se trata de um exemplo privilegiado. Não há melhor lugar para deixar explícito o tipo de relacionamento existente entre natureza e cultura. Não há outro tão apto a demonstrar-se como um meio para que a evolução ocorra. Corpo é mídia, nada além de um resultado provisório de acordos cuja história remonta a alguns milhões de anos. Há um fluxo contínuo de informações sendo processadas pelo ambiente e pelos corpos que nele estão. Assim, a transformação torna-se pré-requisito. São os próprios processos de colaboração com que a natureza nos ensina a sobreviver que nos ajudam a combater o antropocentrismo.
Então, o corpo. Sistemas pré-bióticos se atraíram reciprocamente para uma rede comunicativa e, como resultado dessa ação, conseguiram a criatividade necessária para a construção gradual de uma célula. Condições locais permitiram que informações emitidas por um deles pudessem ser recebidas por um outro. A partir desse momento, os sistemas de membranas — agora fechadas — passaram a contar com um germe de informação vinda do outro, ou seja, estabeleceu-se uma protocomunicação.
Nesse estágio ainda rudimentar, o organismo ainda não dispõe de uma dinâmica auto-referencial. Antes, o sistema precisa organizar seus componentes espacialmente para que possam vir a ser redescritos no alfabeto digital do DNA/RNA. Hoffmeyer e Emmeche chamam de dualidade de código (code-duality) a mensagem codificada analogicamente pelo organismo e redescrita digitalmente no código do DNA. Organismos e DNA, ambos carregam uma mensagem que é passada através de gerações.
A essa altura, DNA e meio estabelecem uma ligação de tal ordem que eventos de fora do corpo passam a poder ser traduzidos no corpo. Quando isso ocorre, a membrana transformou-se em interface. Dessa maneira, o entendimento que o sistema tem do ambiente adquire importância fundamental para o próprio sistema, que passa a ter a capacidade de fazer distinções. Surge, como diz Emmeche, o Umwelt. De acordo com Hoffmeyer, trata-se do passo mais significativo na aquisição de competência semiótica, que permite fazer distinções num espaço-tempo onde antes existiam apenas diferenças. O Umwelt pode ser confundido com o self pelo leitor menos atento mas, na verdade, nada tem de psicológico. Dependendo da especificidade dos órgãos dos sentidos da espécie a que pertence determinado sujeito (um organismo animal) e de acordo com a sua organização e as suas necessidades biológicas, esse sujeito lida com o ambiente. O sujeito constrói o seu Umwelt. O habitat refere-se ao que é externo, o nicho, à função daquela espécie no ecossistema, e o Umwelt, ao mundo experienciado pelo organismo.
QUEM FAZ ISSO? O CORPO
Muito cedo, Jakob von Uexküll tornou-se antidarwinista e, por essa razão, foi associado ao vitalismo. Em Endosemiosis, texto de Thure von Uexküll, Werner Geigges e Jörg M. Hermann, citado por Emmeche (1999), está dito: “Jakob von Uexküll cunhou o termo Umwelt (‘universo subjetivo’, ‘mundo fenomênico’ ou ‘mundo do self) como oposto a Umgebung — meio ambiente”. Todos os que transpõem o que está fora para dentro de si constroem o seu Umwelt — portanto, não se trata de uma exclusividade do homem. Qualquer ser vivo capaz de processar informações produz mundos interiores, mesmo as bactérias, pois também elas são capazes de uma integração estável entre a auto-referência e a referência-do-outro. Quem estranha a inclusão das bactérias provavelmente desconhece que elas desenvolveram uma capacidade de fazer distinção baseada em hábitos citomoleculares historicamente apropriados e construídos dentro da arquitetura dinâmica macromolecular da célula e do seu DNA. Na sua superfície, dezenas de milhares de receptores de moléculas de proteínas se ligam a moléculas selecionadas no ambiente, mediando a química de fora a padrões de atividade interna. Como se vê, as bactérias nos ajudam a perceber que as noções de dentro/fora passam a pedir um outro entendimento, no qual a ideia de identificação de distinções via separação geográfica perde o vigor.
Tais apontamentos a respeito do trânsito entre o dentro e o fora dizem respeito a todas as instâncias do corpo. Uma vez que é o cérebro o comandante de quase todas as ações do corpo, deve-se atentar para a necessidade de pensar o corpo num contexto irrigado por informações plurais e capazes de promover novas percepções para velhas questões. Cérebros são estruturados de maneira complexa, e só podemos entender nossos conceitos como parte deles quando sabemos que tanto conceitos como pensamentos ou percepções, ideias, sentimentos, sensações etc. aparecem por configurações de conexões sinápticas que se reconectam permanentemente. Cérebros complexos e sistemas nervosos não se desenvolveram em plantas ou fungos, por exemplo, muito provavelmente por terem sido dispensáveis à sobrevivência deles. Células nervosas (neurônios) são especializadas em comunicação de longa distância. Tais células compensam a determinação de sua estrutura corpórea com a indeterminação de sua mobilidade. Neurônios podem estabelecer contato com células localizadas muito longe deles exatamente porque dispõem de dendritos (para inputs) e axônios (para outputs) de tamanhos diversos.
A indeterminação do cérebro é sua força. Cada cérebro adapta-se ao corpo onde se encontra. Não há harmonia preestabelecida de modificações no cérebro para acompanhar as modificacões no corpo. Um cérebro em desenvolvimento pode desenvolver uma organização correspondente on line, durante o seu desenvolvimento. A indeterminação do cérebro em desenvolvimento, a indeterminação das conexões sinápticas, a indeterminação da atividade global de formação de padrões, a indeterminação da linguagem. Se o cérebro co-evolui com relação à linguagem, nós dispomos, no nosso corpo, das conexões necessárias para entender as relações da natureza com a cultura. Baseada nessa hipótese está a proposta aqui apresentada: biologia e física são tão responsáveis por nosso sistema de conceituar quanto a cultura. Cultura não pode ser tomada como uma ação exclusivamente humana sobre a natureza, uma vez que o homem não existe como um observador instalado fora da natureza, contemplando-a através de uma moldura. O homem está inteiramente implicado naquilo que observa, uma vez que a matéria se comporta no trânsito natureza—cultura—natureza—cultura… tal qual uma fita de Moebius.
A dança, nessa fita, por ser também informação, é processada como todas as que existem sob a forma de signo. O conceito de signo aqui adotado é o de Charles Sanders Peirce (1839-1914), o filósofo norte-americano que apenas começa a ser redescoberto. De acordo com Peirce, qualquer evento, mesmo a predição de um acontecimento futuro, possui uma conexão física com o objeto que representa. Signos possuem três características: qualidade material, aplicação puramente demonstrativa e apelo a uma mente. Tudo do mundo cabe ern pelo menos alguma delas.
Por ser um tipo especial de conexão física com um objeto, o signo acomoda a memória do passado necessária para ser armazenada pelo sistema e a manipula no sentido de produzir o comportamento futuro do signo. E faz ainda mais, pois escapa do ponto de vista tradicional da causalidade quando oferece a noção de semiose para o lugar ocupado pela explicação de que é uma estrutura causal que faz a informação fluir. Para Peirce, pensar não é uma percepção imaterial de uma mente ou espírito, e sim um processo fisiológico do corpo. Sua lógica ou semiótica explica-se em termos de consciência ou fenômeno psicológico, e fenômeno psicológico pode ser entendido como parte dos processos de cognição. A cognição está encarnada, é do corpo.
Introspecção, autoconhecimento, desejo, imaginação, crença, intuição, consciência, questões de sentido em geral, todos esses assuntos são temas que permitem estudos fora das habituais formas de enunciá-los e que se combinam em pelo menos uma forte característica: começam com alguém apontando na direção de seu diafragma e dizendo: “Para mim…”. Mas, quando se assume a dança como uma experiência, essa noção se distende até a de que a dança é um estado mental, no sentido de um estado mental ser aquele do qual não se tem consciência de, mas consciência com.
Quando se entende que as membranas encontraram meios para realizar associações não locais, criando as sociedades de cérebros descritas por Freeman, isso colabora para que se desvendem as experiências sem a necessidade de crer que isso se faz olhando para dentro de si mesmo. Afinal, as experiências com os objetos carregam toda a informação necessária para se saber como ela é. A objetividade se enraíza na natureza social do conhecimento humano. Membranas comunicam-se com membranas diretamente para construir o mundo na imagem do coletivo — um ponto de vista sem lugar específico.
De maneira muito abreviada, podemos lembrar que tudo o que surge no mundo luta para permanecer, e que a chave para tal se encontra na capacidade de produzir continuidade. No final do século de Darwin, o filósofo Charles Sanders Peirce já falava em semiose — nome com o qual descrevia a ação permanente que um signo tem de produzir outro a partir de si mesmo, de modo que o novo signo produzido seja capaz de portar a mesma propriedade de produzir outro a partir de si mesmo, mostrando tal propriedade — a semiose — como o mecanismo que necessita da produção de signos para se perpetuar.
O desejo de permanecer, que leva à necessidade de fazer outro a partir de si mesmo, pode se realizar porque no mundo onde vivemos as informações tendem a operar dentro de um processo permanente de comunicação e, nesse movimento de trocas constantes, enquanto se modificam, as informações vão também transformando o meio. As mudanças que resultam desse processo se classificam em três tipos: regulares (dia e noite, marés etc.), irregulares (clima, economia etc.) e contínuas (evolução).
Caso a vida funcione, de fato, de acordo com uma estrutura como esta aqui descrita, com o passar do tempo, as trocas permanentes de informação tenderiam, quase como uma consequência natural, a borrar as suas próprias delimitações, produzindo, então, uma plasticidade não controlável de fronteiras. Assim, o fato de as fronteiras estarem muito móveis hoje, tanto na ciência como na arte, não passa de um traço evolutivo. A compreensão da vida como produto e produtora de um mundo em rede e regida por uma inestancável troca de informações marca uma diferença básica. E nela a ideia do corpo como mídia ocupa posição central.
O fisiologista Claude Bernard, em 1878, citava cinco características das coisas vivas: organização, geração (reprodução), nutrição, desenvolvimento e suscetibilidade à doença e à morte. E anunciava também: “Em fisiologia, é necessário renunciar à ilusão da definição de vida. Conseguimos apenas caracterizar o seu fenômeno”. No início do século XX, os físicos Niels Bohr, Max Delbrück e Erwin Schrödinger ajudaram a desenhar um conceito de vida baseado no code-script (expressão cunhada por Schrödinger, em 1943). Dez anos depois, James Watson e Francis Crick descobriram a estrutura em dupla hélice do DNA e nos ensinaram que o mistério da vida era habitado por reações químicas. No entanto, a comprovada existência dos pares das moléculas adenina-timina e citosina-guanina ainda não desalojou as pseudo-explicações a respeito do início da vida.
A partir da argumentação de Carl Sagan no seu livro Life, Claus Emmeche propõe cinco tipos de definição: a fisiológica, a metabólica, a bioquímica, a genética e a termodinâmica. Na fisiológica, todo sistema com funções de ingestão, metabolismo, excreção, respiração, movimento, crescimento, reprodução e reação a estímulos externos é sistema vivo. Trata-se, todavia, de uma lógica que traz problemas, porque o automóvel, por exemplo, cabe nela. Na metabólica, um sistema vivo é aquele que se distingue do seu meio e troca materiais sem mudar as suas propriedades gerais com o entorno. Na bioquímica, elege o sistema que contém informação transmissível geneticamente e codificada no DNA e no RNA e que cria proteínas. Na genética, existe vida quando o sistema possui unidades (organismos) que conseguem se reproduzir e transmitir os seus genes a gerações sucessivas. E na termodinâmica, vida é um sistema aberto que troca energia e matéria com o meio.
A biologia contemporânea entende que a combinação das cinco definições consegue cobrir quase todas as formas de vida hoje conhecidas. Mesmo assim, o conceito de vida ainda continua vago. Essa mesma espécie de vaguidão acompanha as discussões em torno do corpo. Mesmo que Dennett tenha explicado que não existe um homúnculo que é o anfitrião das experiências que nos acontecem ou o tradutor delas para nós, não são poucos os que ainda “acreditam” na voz interior. Todavia, não há fantasma dentro da máquina. A introspecção não representa um processo pelo qual se olha para dentro, ouvindo uma voz interna ao cérebro (a voz do homúnculo), e sim uma percepção deslocada — conhecimento de fatos internos (mentais) por meio de uma prontidão sobre fatos externos, físicos (Drestske). O mais importante é não confundir aquilo que se experimenta com a experiência de estar experimentando.
Quase todas as experiências possuem a qualidade do “parecer com”. Embora difícil de ser descrita, essa qualidade consegue ser explicada por intermédio da prontidão proprioceptiva de nossos estados corporais. Quando vemos, não apenas vemos, mas sentimos que estamos vendo algo com nossos olhos (Damasio). Não se trata de uma sensação espiritual, mas material, pois essa é uma ocorrência no corpo, produto dos nossos sentidos.
A teoria do Umwelt de Uexkül se inscreve nesse viés externalista, mesmo sendo uma maneira de lidar com o mundo do ponto de vista do animal. O discurso externalista constitui a abordagem a partir do ponto de vista sem lugar específico (a view from nowhere) ao qual Hoffmeyer se refere quando defende que não há maneira de escapar ao externalismo em ciência.
A dança, que só se oferece como ação, resulta e produz uma pluralidade de fenômenos em pura imediatidade. A dança se dá numa orquestração de eventos que obedecem a uma única instância prévia e básica: a existência de um corpo. Corpo vivo com esta vida que surgiu da estabilização cósmica, vivo como nós, estas emergências de estrelas que somos, ou vivo como uma vida doada por equações matemáticas. Corpo no qual o conhecimento não passa de uma ferramenta evolutiva.
Tudo o que brota, brota como forma que, mais adiante, por associação de semelhança, ganhará vividez. Forma: atrator de similitudes e parecenças. No corpo, um contínuo representar como que inaugura a cada vez um novo universo. Química num útero gasoso. Sem placas, sem nome, sem esquinas. O movimento é um inventor do futuro.
Vale lembrar o Princípio da Incerteza de Heisenberg (1927), que dizia que um elétron, orbitando o núcleo de um átomo, não tem nem posição nem velocidade definidas. Quanto mais se consegue precisar uma das referências, mais se torna confusa a outra. Trata-se de uma ocorrência estranha, pois nem sequer se pode dizer que o elétron tem posição, até que essa posição seja efetivamente medida. O elétron, portanto, não passa de uma névoa de possibilidades, aquilo que os físicos identificam como onda de probabilidade, e, embora possa parecer estranho, todas as possibilidades de localização do elétron existem de alguma forma simultaneamente. As ficções governadas pela realidade, no entanto, são coerentes com ela. Embora ninguém tenha segurado um nêutron nas mãos, quando a bomba de nêutrons explode, não há como duvidar dela.
Um elétron que nem partícula subatômica ainda é, que existe como “névoa de possibilidades” e que se fixa pela intervenção do mundo macroscópico. Quanta similaridade com a dança, aquela que Valéry diz ser “a poesia que rodeia a ação de criaturas vivas em sua qualidade de completude”. O que são os passos de dança senão “névoas de possibilidades” que uma ação presentifica para, nesse exato instante de presentificação, lhe conferir posição e velocidade, posição e velocidade, que, no instante seguinte, por fruto de outra ação, ganharão outra presentificação? Não à toa, Valéry insiste: “A dança, depois de tudo, é meramente uma forma de tempo, a criação de uma espécie de tempo ou de uma espécie muito distinta e singular de tempo”.
Tomemos um passé, um passo simples em dança (um movimento no qual o pé da perna que está com o joelho dobrado sobe até o joelho da perna de apoio). Sejamos como quem aprende paciência sem cartilha para acompanhar o que sucede ao corpo que faz um passé.
Os físicos estatísticos estudam as ligações entre o mundo microscópico e o macroscópico e buscam reproduzir em seus modelos matemáticos um tipo de memória que permita o reconhecimento de padrões, denominados atratores. Quando vemos um passé sendo executado, um impulso nervoso dispara pelas nossas sinapses, procurando o atrator, a memória conhecida que identifique esse fenômeno que está batendo à porta de nossa percepção. Ao nascer, o cérebro humano tem cerca de 30 bilhões de neurônios. A cada dez anos de vida, perdemos 1% desse total. Mas o que determina o cérebro não é a quantidade de neurônios, e sim suas ligações, as sinapses. Reconheço um passé porque o sinal nervoso descobre, na biblioteca de padrões que os humanos portam, sua forma mais semelhante. Esse passé existia como possibilidade da aptidão biomecânica.
Os paleontólogos que estudaram os 52 pedaços do fóssil descoberto em 1974 nas encostas de Hadar, na Etiópia, e que recebeu o nome científico de Al 288-1, podem garantir que aquele ser, dada sua anatomia, não fazia passes. Apelidada de Lucy, o fóssil de 3 milhões de anos constituiu uma importante peça na cadeia evolutiva. Revelou-se totalmente símia no crânio e inteiramente humana no resto do corpo.
A hominização começou com a posição vertical. A bacia de Lucy revela uma parturição tão delicada quanto a nossa, em posição oblíqua e com dupla rotação. Lucy, portanto, não dava à luz como os símios. Seu joelho, contudo, se aproxima do deles. Seu menisco dispõe-se sobre a tíbia como o dos chimpanzés e não em disposição dupla como o nosso. Isso resulta em maior mobilidade e menor precisão nos modos de articular. Com bipedalismo talvez ocasional, provavelmente Lucy não fazia mesmo passé.
O passé de Ana Botafogo distancia-se 3 milhões de anos de Lucy. Entre o corpo de ambas, uma série de rupturas se deu: primeiro, a bacia, depois, o braço, as pernas, os pés e, então, a cabeça. A história desse tipo de organização que chamamos de corpo humano alinhava adaptações e transformações sucessivas. A perpetuação da espécie significa apenas o aumento de autonomia desse sistema. Seus elementos — os órgãos —, além de indicarem a divisão do trabalho fisiológico que opera a partir da diferenciação das células, inspiraram também alguns a desenharem a imagem do corpo humano como máquina. Dependendo do tipo de energia em circulação em cada época, a modelagem a priorizava. Leonardo da Vinci, por exemplo, projetou máquinas voadoras e submarinas depois de estudar animais aéreos e aquáticos.
Feito de partes, o corpo se mostra como unidade. A anatomia, espécie de esquartejamento organizado, obedece ao velho desejo de fatiar o mundo para melhor entendê-lo. Mas só a dimensão temporal garante uma compreensão plástica e dinâmica desse sistema.
O homem atual surgiu há cerca de 500 mil anos e, nos últimos 200 mil, nada de essencial se modificou no seu esqueleto. O bipedalismo, que alarga o tórax, também desloca a omoplata para trás. É vantajosa para as mãos, mas não para as espáduas. Para ficar de pé, o homem precisou desenvolver uma bacia grande o suficiente para prender os músculos das nádegas. O fêmur assumiu uma posição oblíqua para alongar o seu “pescoço”, desenvolvendo uma geometria antimecânica, que predispõe a joelhos tortos e pernas arqueadas. Em cada etapa das rupturas parciais, o corpo portava as suas “névoas de possibilidades” de movimento. A atualização delas, há 3 milhões de anos ou agora, resulta do mesmo procedimento: uma ação do mundo macroscópico torna visível um entre os possíveis. Um estímulo que chega como pressentimento de forma e que, por associação por semelhança, percorre um circuito neuronal, ao fim do qual dá à luz o fruto dessa química de formas.
Nosso corpo é a porta de entrada do conhecimento. Antigamente, era entendido como um catálogo de órgãos definidos por funções individuais. Em 1655, Belon mostrou a homologia geométrica entre as partes do esqueleto de um pássaro e as de um homem ao estendê-los na mesma posição. Thyson, em 1600, descobriu a proximidade entre o chimpanzé e o homem. A desvinculação entre órgão e função, todavia, só viria a acontecer no debate travado entre Georges Cuvier e Etienne Geoffroy Saint-Hilaire. Cuvier postulava que a unidade do organismo resulta de correlações tão precisas que nenhuma modificação poderia inviabilizá-la. Para Saint-Hilaire, continuador de Lamarck, a unidade surgiria como resultado das transformações operadas pelo meio.
O evolucionismo confirmou Saint-Hilaire. A cada geração, o programa genético reproduz uma espécie de duplo eixo: o organismo como resultado de uma sequencialidade de estruturas encaixadas pela origem material ou resultante da associação a um momento evolutivo. A continuidade entre natureza e cultura se reforça cada vez mais nessa proposta de corpo como locutor complexo que não fala apenas por suas retas e curvas, mas também por construções que começam nas primeiras associações de forma operadas por suas sinapses.
Segundo Changeux, titular da cadeira de comunicações celulares do Collège de France, o pensamento pode ser considerado uma forma de atividade espontânea, assim como o sonho. Em termos celulares, o desencadeamento e a manutenção de uma atividade espontânea exigem um pequeno número de componentes moleculares. Uma espécie de eletrencefalógrafo instalado no Laboratório de Neurociência da Universidade de Calgary, Canadá, registrou uma pulsação (espécie de relógio biológico) com apenas três células nervosas de uma lesma-domar. Nela, já se faz presente uma atividade rítmica com a regularidade de um relógio.
Muitas células nervosas apresentam atividade oscilatória desse tipo, que pode ser encontrada até mesmo no embrião, antes de os órgãos dos sentidos se desenvolverem — ou seja, antes mesmo da possibilidade de qualquer interação com o mundo exterior. Aparece no pinto aos três dias e meio do desenvolvimento embrionário, e a partir da décima semana de vida fetal nos seres humanos. A atividade conserva-se no adulto, e os efeitos do meio transplantam-se para essa atividade espontânea. Ela permite ao embrião efetuar “experiências”. Num primeiro momento, entre o sistema nervoso e os órgãos embrionários ou entre diversos centros nervosos. À medida que os órgãos dos sentidos se tornam funcionais, essas “experiências” se voltam pouco a pouco para fora do corpo. Dada a imaturidade do sistema nervoso, tais comportamentos fetais permanecem muito rudimentares.
Eis a proposta do que acontece quando um corpo dança:
a) ocorre um influxo nervoso por ignição espontânea ou sinal exterior;
b) inicia-se uma dinâmica entre os conjuntos celulares (pré-mapas);
c) a partir da pulsação, os processos internos inscrevem os “mapas” em relação ou não com o meio.
Tais “mapas” transformam-se em quase-hipóteses e estas resultam num julgamento de percepção. Nesse momento, o corpo mostra o resultado do processo: dá nascimento ao movimento. O tipo de movimento que percorre essas três etapas é o movimento de dança — o pensamento desse corpo. Em 1990, Arnaldo Antunes já escrevia:
Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro.
Talvez buscando minimizar a hostilidade que sabia que seu livro iria despertar, Darwin não descreveu a relação de proximidade do homem com os chimpanzés, embora já a conhecesse. Restringiu-se a anunciar o futuro do Homo sapiens em apenas treze palavras: “Much light will be thrown on the origin of man and his history” [Mais luz incidirá sobre a origem do homem e sua história].
Como a bruma que fica depositada em cima das árvores, a teoria da evolução darwiniana inspira hipóteses de outra ordem. Observe-se, num corpo humano, o eixo formado pela cabeça, pelo pescoço e pela coluna (eixo da verticalidade) com os braços (eixo relacional), que favorecem nossa comunicação com o entorno. Curiosamente, a interseção de ambos se dá na região da glote, justamente o órgão que favoreceu o desenvolvimento de nossa oralidãde. Na parte inferior do corpo, é a bacia que cruza com as pernas na região do plexo solar — onde acontece uma outra “fala”, a da libido, do sexo e da perpetuação da espécie. No corpo entendido como resultado de variação (oralidade) e seleção (verticalidade), a dança pode ser tratada como uma das formas que a natureza encontra para realizar as suas operações.
O corpo se oferece como um geral onde pululam particularidades. Nessa sociedade de dezenas de milhares de milhões de células chamada corpo, cuja história remonta aos Australopithecus (um nome coletivo que abriga quatro ou cinco espécies) de 5,5 milhões de anos atrás, ocorrem distribuições gravitacionais, tal qual uma escultura que ainda não secou. Muito tempo ainda será preciso até que o corpo possa ser investigado como uma arquitetura de processos, ao mesmo tempo estável e adaptativo, individual e geral. Nele, a dança acontece como um fenômeno peninsular, não insular, que jamais prescinde da ligação com o continente ao qual pertence. Que se faz em teia e, portanto, pede conhecimentos plurais para ser investigada.
A dança é o que impede o movimento de morrer de clichê.
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