1999

A demarcação das terras e o futuro dos índios no Brasil

por Carlos Alberto Ricardo

Resumo

Os  direitos  indígenas  às  terras estão inscritos nas leis desde a legislação colonial do princípio do século XVII. Mas é na Constituição de 1988 que, pela primeira vez, há um capítulo especial para eles consagrando com mais detalhes o princípio de que os índios são os primeiros e naturais donos das terras que tradicionalmente ocupam. O ato governamental de reconhecimento das terras indígenas tem conteúdo meramente declaratório, ou seja, não constitui o direito indígena propriamente dito, mas tem sua importância política ao fixar clara e publicamente a real extensão da posse indígena. Entretanto, ainda que demarcadas, boa parte das terras indígenas no Brasil foi invadida (por madeireiros, fazendeiros, garimpeiros, posseiros, colonos) ou é visada por interesses públicos (por exemplo, por meio de obras de infra-estrutura) e privados (como os requerimentos de empresas de mineração).

A cada etapa do avanço das frentes de expansão da sociedade nacional, sob determinadas conjunturas políticas específicas, o Estado nacional refaz suas contas no que diz respeito às terras indígenas, impondo um padrão de confinamento progressivo em terras cada vez mais reduzidas. Entre as várias alternativas em jogo, a aproximação dos projetos indígenas com estratégias não indígenas de uso sustentável de recursos naturais, sejam públicas ou privadas, aumentaria as chances dos índios de equacionarem favoravelmente, no futuro, o domínio de terras extensas com baixa demografia. Sabe-se que, as terras indígenas, ainda que tradicionalmente ocupadas, não sobreviverão como oásis em regiões onde triunfar qualquer modelo de desenvolvimento predatório dos recursos naturais.

Por isso, é imprescindível contar com uma clara política compensatória por parte do Estado que faça valer na prática os direitos constitucionais, garantindo as demarcações de terra e serviços diferenciados, ainda que básicos, de saúde e educação e que, acima de tudo,  valorizem estrategicamente a sociodiversidade nativa e sua correlação com a biodiversidade.


Em memória de Virgínia Valadão*

A Constituição federal, promulgada em outubro de 1988, tem um capítulo e outros dispositivos dispersos que tratam dos direitos especiais “dos índios”, expressão da luta dos índios e das organizações que os apoiaram na década anterior, os quais estabeleceram um movimento social morfologicamente sui generis, capaz de estabelecer uma correlação positiva, com grande eficácia simbólica, com o chamado processo de redemocratização do país, a partir da segunda metade dos anos 70.

Nesse período, contrariando as teses pessimistas e catastrofistas do início da década de 1970, foi se firmando a convicção de que, longe de desaparecerem e serem encarados como uma categoria social transitória no cenário brasileiro, à qual o legislador deveria reconhecer apenas direitos temporários, os povos indígenas voltaram a crescer, estão aqui para ficar e deveriam ser tratados como tal.

Nesse contexto de um novo paradigma sobre a chamada “questão indígena”, a Constituição federal de 1988 rompe com a tradição assimilacionista. Reconhece aos índios direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a legitimidade para ingressarem em juízo na defesa e na conquista de direitos.

Os direitos indígenas às terras, por exemplo, estão inscritos nas leis desde a legislação colonial do princípio do século XVII. No período republicano, a Constituição de 1934 já assegurava formalmente a posse inalienável das terras indígenas. Mas é na Constituição de 1988 que, pela primeira vez, há um capítulo especial para os direitos (coletivos) indígenas, consagrando com mais detalhes o princípio de que os índios são os primeiros e naturais donos das terras que tradicionalmente ocupam, quais sejam, “aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (artigo 231).

Essas terras são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, reconhecidos aos índios direitos originários e imprescritíveis sobre elas, isto é, os de posse permanente e usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Embora o direito dos índios a uma terra determinada independa do reconhecimento formal, pela mesma Constituição de 1988 o poder público está obrigado a promover tal reconhecimento, através do que vulgarmente se chama de demarcação. O artigo 67 das disposições transitórias da Constituição em vigor previa o término das demarcações para 5 de outubro de 1993, o que não ocorreu. O ato governamental de reconhecimento das terras indígenas tem conteúdo meramente declaratório. Não constitui o direito indígena propriamente dito, mas tem sua importância política ao fixar clara e publicamente a real extensão da posse indígena. Desde a promulgação do Estatuto do Índio (Lei nº 6001, de 1973), esse reconhecimento formal dos direitos territoriais indígenas passou a obedecer a procedimentos administrativos que foram se modificando, regulados por decretos do Executivo.

Então, hoje, o que se chama de demarcação das terras indígenas nada mais é do que a sistemática administrativa através da qual o poder público federal reconhece a incidência dos elementos descritos no parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição, citado acima.

De acordo com o decreto presidencial nº 22, de 4 de fevereiro de 1991, que estabelece a sistemática oficial de demarcação em vigor no momento, uma determinada terra indígena passa pelas seguintes etapas:

1) inicialmente é identificada por um grupo de trabalho técnico da Funai, cujo relatório, uma vez aprovado, tem seu parecer conclusivo publicado no Diário Oficial da União, e o processo é enviado ao ministro da Justiça;

2) aprovando-o, o ministro da Justiça emitirá, também com publicação no Diário Oficial, uma portaria de delimitação, da qual constam as coordenadas geográficas da terra, viabilizando assim, tecnicamente, e havendo recursos, a sua demarcação física;

3) uma vez concluída a demarcação, a terra estaria pronta para ser homologada por decreto do presidente da República e, finalmente, registrada no Serviço de Patrimônio da União e no(s) cartório(s) das comarcas correspondentes.

De acordo com o banco de dados do Instituto Socioambiental, a situação no final de 1998 era a seguinte:

Tabela 1

SITUAÇÃO DO RECONHECIMENTO OFICIAL DAS TERRAS INDÍGENAS DO BRASIL

Terras indígenas no Brasil: cômputos por situação

Total de terras indígenas: 563

Extensão total: 102 126 296 hectares (1 021 262 quilômetros quadrados) (12% da extensão do Brasil)

População indígena total: 30 000 (total aproximado, não incluindo os índios que vivem fora das terras indígenas) (0,2% da população brasileira)

SITUAÇÃO JURÍDICA NÚMERO EXTENSÃO(ha) PORCENTAGEM
A identificar

(2 interditadas)

69 2 697 000
Em identificação (5 interditadas) 61 2 298 380
Em identificação/

rPvis”1o

30 2 751 083
Com restrição de uso a não-índios 5 691 566
Total 165 8 438 029 29,31%
Identificadas/ encaminhadas ao Ministério da Justiça 1 4900
Identificadas/ aprovadas pela Funai.

Sujeitas a contestação

7 249 185
Total 8 254 085 1,42%
Delimitadas (7 em

demarcação)

47 17 695 825 8,23%
Reservadas 15 74966
Homologadas 66 17 278 964
Registradas no CRI e/ ou

nOSPU

262 58 384 427
Total 343 75 738 357 60,92%
TOTAL NO BRASIL 563 102 126 296 100,00%

Fonte: Instituto Socioambiental, situação em 15/12/98.

Vejamos a situação do reconhecimento das terras indígenas na chamada Amazônia legal brasileira:

Tabela2

SITUAÇÃO DO RECONHECIMENTO OFICIAL DAS TERRAS INDÍGENAS

Amazônia legal

Total de terras indígenas: 367

Extensão total: 100 883 079 hectares (1 009 655 quilômetros quadrados)

(20,16% da extensão do Brasil)

População indígena total: 180 000 (total aproximado, não incluindo os índios que vivem fora das terras indígenas (1 % da população brasileira)

Há 53 indícios de grupos indígenas ainda não contatados, ditos “isolados”, na região.

SITUAÇÃO JURÍDICA NÚMERO EXTENSÃO(ha) PORCENTAGEM
A identificar

(2 interditadas)

37 2 697 000
Em identificação

C4 interditadas)

38 2 298 380
Em identificação/

revisão

26 2 736 138
Com restrição de uso

a não-índios

5 691 566
Total 106 8 423 084 28,89%
Identificadas/ aprovadas pela Funai. Sujeitas a contestação 5 239 860 1,36%
Delimitadas (2 em

demarcação

30 17 564199 8,17%
Demarcadas pelo Incra 2 58
Homologadas 43 17 198 150
Registradas no cm e/ou

no SPU

181 57 457 728
Total 226 74 655 936 61,58%
TOTAL DA AMAZONL4 367 100 883 079 100.00%

Fonte: Instituto Socioambiental, situação em 15/12/98.

Os progressos havidos no reconhecimento formal, por parte do governo federal, dos direitos territoriais indígenas nos anos posteriores à Constituição de 1988 já permitem vislumbrar o término da demarcação de todas as terras indígenas na próxima década. Os dados da performance dos três últimos presidentes da República o demonstram:

Tabela 3

SITUAÇÃO DO RECONHECIMENTO OFICIAL DAS TERRAS INDÍGENAS NO PERÍODO 1990-8

Governos Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso

PRESIDENTE

DA REPÚBLICA

PERÍODO DECLARADAS EXTENSÃO HOMOLOGADAS EXTENSÃO
(ha) (ha)
Fernando Collorde

Mello

Jan. 90-

set. 92

58 25 794 263 112 26 405 219
Itamar Franco Out. 92-

dez.94

39 7 241 711 16 5 432 437
Fernando Henrique

Cardoso

Jan. 95-

dez.98

58 25 847 232 115 31 344 576
TOTAL 243 63 182 232

Fonte: Instituto Socioambiental.

Nota: A terra indígena Bau (PA), embora declarada pelo ministro Renan Calheiros, em 11 de dezembro de 1998, com 1.850.000 ha, não foi incluída no governo Fernando Henrique Cardoso porque já havia sido declarada em 21 de dezembro de 1991.

Não obstante, ainda que demarcadas, boa parte das terras indígenas no Brasil foi invadida (por madeireiros, fazendeiros, garimpeiros, posseiros, colonos) ou é visada por interesses públicos (por exemplo, por meio de obras de infraestrutura) e privados (como os requerimentos de empresas de mineração) Como se sabe, pela mesma Constituição de 1988, o subsolo das terras indígenas está excluído do direito de usufruto exclusivo por parte dos índios. Pertence à União, como de resto todo o subsolo do país, e sua exploração por terceiros, sob condições previstas na Constituição e regras especiais a serem definidas em legislação complementar, é a base de um grande número de expectativas de direito por parte de grupos empresariais privados. Como se não bastasse, em 1998 o governo federal

encaminhou projeto de lei ao Congresso Nacional que visa transformar todos os recursos genéticos em bens da União, lançando uma sombra de dúvida sobre o direito de usufruto exclusivo dos índios.

O FUTURO

Se é verdade que está afastada a hipótese do desaparecimento físico dos índios no Brasil, e que, portanto, não estamos diante de uma “causa perdida”, como se chegou a dizer anos atrás, é verdade também que o futuro dos índios dependerá em primeira instância, mas apenas em parte, deles próprios. Apesar das quase cem organizações indígenas que emergiram na cena política nos últimos quinze anos, via de regra reduzidos demograficamente e sujeitos às pressões crescentes das frentes de expansão econômica que avançam sobre suas terras e recursos naturais, os índios com frequência se veem imersos em correlações de força bastante desfavoráveis em nível regional, que as eventuais colisões de forças de apoio (meios de comunicação, apoio de ONGs do Brasil e do exterior, ações judiciais, projetos aplicados) não logram reverter a longo prazo.

Hoje 40% da população indígena do país vivem nas regiões mais ocupadas do Nordeste, Leste e Sul do Brasil, confinadas a 2% da extensão das terras indígenas. Por outro lado, 60% da população indígena atual, que vivem no Centro-Oeste e no Norte do país (Amazônia e cerrado), têm formalmente direito a 98% da extensão das terras indígenas. A história ensina que a cada etapa do avanço das frentes de expansão da sociedade nacional, sob determinadas conjunturas políticas específicas, o Estado nacional refaz suas contas no que diz respeito às terras indígenas, impondo um padrão de confinamento progressivo em terras cada vez mais reduzidas.

Será possível aos índios de hoje manter terras extensas e contínuas nas regiões Centro-Oeste e Norte do país no futuro, ou, para simplificar, a Amazônia de amanhã será (para os índios) como o Mato Grosso do Sul de hoje?

Embora não sendo “naturalmente ecologistas”, aos índios se deve reconhecer o crédito histórico de terem manejado os recursos naturais de maneira branda, provocando poucas perturbações ambientais até a chegada dos conquistadores europeus. É fato também que, diante de pressões concretas, contínuas e via de regra impunes, ainda que ilegais, das formas predatórias de exploração dos recursos naturais em vigor na Amazônia, por exemplo, vários povos indígenas tenham se atrelado ativamente a esses modelos, como sócios menores. Tal é o caso do envolvimento dos Kayapó com garimpeiros e madeireiros no sul do Pará, exemplarmente multiplicado pela mídia e que causou uma enorme erosão do capital simbólico acumulado pelo movimento indígena-indigenista na cena pública nacional e internacional na década de 1980. Apesar disso, mesmo com os Kayapó, é bem evidente que as terras indígenas estão, via de regra, relativamente entre as mais preservadas ambientalmente de suas regiões de entorno. Basta examinar as imagens de satélite, ou mesmo mapas impressos pelas secretarias de Meio Ambiente dos estados da Amazônia brasileira.

Entre as várias alternativas em jogo, a aproximação dos projetos indígenas com estratégias não indígenas de uso sustentado de recursos naturais, sejam públicas ou privadas, em tese aumentaria as chances dos índios de equacionarem favoravelmente, no futuro, o domínio de terras extensas com baixa demografia.

Mesmo nos casos em que, do ponto de vista da conservação e do uso sustentável dos recursos naturais, os índios estão fazendo a sua parte e dão sinais explícitos de sua intencionalidade – como os quinze povos que habitam o Parque Indígena do Xingu (MT) -, se não houver contrapartida na mesma direção por parte dos atores públicos e privados, esse esforço de nada adiantará. Embora preservada pelas formas tradicionais (atualizadas) de ocupação, a sustentabilidade dos índios do Parque do Xingu, a mais consagrada terra indígena do país, está ameaçada. Por exemplo, todas as cabeceiras dos afluentes do rio Xingu, que conformam essa unidade territorial multiétnica no coração do país, estão fora do parque e sofrem um acelerado processo de deterioração pela ação de madeireiros e pelo estabelecimento de grandes agropecuárias. Isso tem causado a poluição das águas que correm para dentro do parque, provocado incêndios florestais e sobrepesca, gerando conflitos e afetando negativamente a qualidade de vida dos índios.

Ou seja: no futuro, as terras indígenas, ainda que tradicionalmente ocupadas, não sobreviverão como oásis em regiões onde triunfar qualquer modelo, ainda que reciclado, de desenvolvimento predatório dos recursos naturais.

No mesmo sentido, é imprescindível contar com uma clara política compensatória por parte do Estado, que faça valer na prática os direitos constitucionais, garantindo não somente as demarcações de terra, mas também serviços diferenciados, ainda que básicos, de saúde e educação, e que valorize estrategicamente a sociodiversidade nativa e sua correlação com a biodiversidade. Claro está que uma nova política indigenista deveria romper com a pesada tradição colonial do indigenismo brasileiro e estar aberta a um regime de parcerias com os próprios índios e outras organizações de apoio da sociedade civil.

* Virgínia Valadão (1952-98) foi antropóloga do Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Dedicou vinte anos de atividades profissionais aos direitos e formas de expressão dos povos indígenas no Brasil e, apesar de ter abraçado uma causa que tradicionalmente corrói esperanças, manteve o ânimo e a alegria de viver.

BIBLIOGRAFIA

Manuela Carneiro da Cunha, “O futuro da questão indígena”. Estudos Avançados. São Paulo: USP-INEA, vol. 8, nº 20, jan.-abr. 1994, pp. 121-36.

Júlio Cesar Melatti, Índios do Brasil. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora UnB, 1987.

Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização. A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Carlos Alberto Ricardo, “A sociodiversidade nativa contemporânea no Brasil”. ln: Povos indígenas no Brasil: 1991/1995. São Paulo: ISA1996, pp. I-XII.

Fany P. Ricardo & Márcio Santilli, Terras indígenas no Brasil: um balanço da era Jobim. São Paulo: ISA, 1997 (Documentos, 3).

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