1996

A harmonia essencial

por Luiz Henrique Lopes dos Santos

Resumo

Existe harmonia entre pensamento e realidade? Mas o que garante que o pensamento seja por princípio um discurso verdadeiro sobre o mundo? A questão remete a Parmênides, aos paradoxos dos sofistas e a Aristóteles, que buscou resolvê-los postulando o princípio de não-contradição (nada se pode afirmar e negar de uma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto) cuja validade se aplicaria a qualquer discurso, seja ele verdadeiro ou falso. O discurso racional estaria comprometido com a tese da inteligibilidade essencial do ser, a recusa dessa tese sendo uma alternativa prática, não filosófica. O mesmo caminho argumentativo será retomado 2400 anos depois por Wittgenstein, no seu Tractatus. Condições de sentido são condições de definição de possibilidades, e condições de verdade são condições de realização dessas possibilidades. Um espaço lógico define a estrutura essencial do mundo e a estrutura essencial do pensamento e da linguagem, cabendo à filosofia desmascarar as ilusões dogmáticas e analisar a lógica das proposições fatuais. Mas persiste um problema crucial: nada permite definir a estrutura desse espaço lógico único e necessário, baseado numa polaridade entre representação e conteúdo representado. O que Wittgenstein percebe, então, é que a correspondência entre pensamento e realidade é uma falsa questão. Importa apenas indagar em que grau nossas imagens dos fatos respondem ao mundo. Será esse, na fase final de sua obra, o desafio de uma filosofia verdadeiramente crítica.


As origens

A questão da harmonia entre pensamento e realidade é o resultado do aprofundamento filosófico do que parecem ser constatações triviais. Nosso conhecimento do mundo parece ser o produto da elaboração racional de elementos que nos são dados por meio do contato sensível com as coisas — produto que se sedimenta como a significação de um discurso. Parece ser também evidente que esse trabalho de elaboração, que supostamente nos conduz, do espetáculo de nossa vida perceptiva, ao conhecimento do que as coisas realmente são, em si e por si mesmas, é um trabalho crítico. Nossas percepções resultam da interação entre o sujeito que percebe e a coisa percebida, de modo que sempre cumpre indagar, diante do conteúdo dessas percepções, o que, nesse conteúdo, revela o que são, em si e por si mesmas, as coisas percebidas e o que simplesmente se deve à intervenção do sujeito que percebe. O discurso verdadeiro sobre o mundo é muito mais que o mero registro dos acontecimentos de nossa vida perceptiva. Ainda que se admita que ele se enraíze finalmente nesses acontecimentos, não há como negar que pressuponha também a mediação de uma atividade conceitual complexa de estruturação e fundamentação. Essa atividade, costumamos chamar de pensamento; a faculdade que dela se encarrega, costumamos chamar de razão.
De acordo com essa imagem de como se constitui nosso conhecimento do mundo, o conteúdo de nossas percepções depende do que são as coisas percebidas — e por isso ele pode dar testemunho do que essas coisas realmente são. Por outro lado, depende também da constituição e das circunstâncias particulares dos sujeitos que percebem — e por isso cumpre à razão medir o grau de fidelidade do testemunho dado. No entanto, não se poderia dizer o mesmo a respeito do pensamento? No final das contas, o pensamento é a atividade de um sujeito, e quantas vezes o que nos pareceu ser um discurso inegavelmente fiel à natureza das coisas, impecavelmente elaborado e legitimado pela crítica racional, não se revelou depois ser nada mais que o produto de um ponto de vista idiossincrático? Tanto quanto nossas percepções, o discurso racional sobre o mundo situa-se na confluência de um sujeito e um objeto, de modo que também nele caberia distinguir os elementos reveladores da natureza própria das coisas e os eventuais acréscimos e interferências de natureza subjetiva.
Nesse momento, a situação começa a ficar dramática. Se o exercício da razão, a atividade de pensar, deve também submeter-se à crítica racional, parece que não nos restaria senão optar entre um regresso infinito e um círculo vicioso. Se tudo aquilo que se apresenta a nós como um conhecimento do que as coisas realmente são só pode instituir-se como conhecimento genuíno depois de medido o grau de sua fidelidade ao que as coisas realmente são, como medir o grau de fidelidade do que se apresente como o conhecimento do padrão dessa medida?
Sob diferentes aspectos e em diferentes contextos, essa questão vem ocupando os filósofos desde os primórdios da filosofia. Hoje, gostaria de examinar uma formulação hiperbólica, exacerbada, da questão. Essa formulação, que podemos chamar de lógica, é a seguinte: o que garante que o pensamento seja, por princípio, capaz de nos proporcionar um discurso verdadeiro sobre o mundo, um discurso que nos revele o que as coisas são, em si e por si mesmas? Dada a forma essencial do pensamento e do discurso racional, o que garante que o ser seja acessível a uma atividade definida por essa forma, e possa ser significado por um discurso dotado dessa forma? O que nos autoriza a excluir a hipótese da inadequação entre a estrutura essencial do pensamento e do discurso, que cabe à lógica investigar, e a estrutura essencial da realidade, num grau suficiente para inviabilizar a revelação de qualquer elemento da realidade por meio de um discurso racional? O que garante que o que quer que o pensamento possa apresentar como sendo a forma essencial do mundo não seja nada mais que uma projeção indevida de sua própria forma lógica? Em suma, o que garante a harmonia formal entre o pensamento e o ser?
Uma solução paradigmática para a questão da harmonia formal entre o pensamento e a realidade é oferecida por Aristóteles no livro g da Metafísica. Para que sua relevância lógica e metafísica seja adequadamente aquilatada, é necessário situá-la numa linhagem que encontra sua origem no poema de Parmênides. O eixo da concepção do ser exposta na primeira parte do poema vem expresso no seguinte verso: “É o mesmo que há para pensar e para ser” (fragmento iii). O que pode ser pensado é o que pode ser, o que pode ser é o que pode ser pensado. Ora, se a possibilidade de ser pensado, a inteligibilidade, se confunde com a possibilidade de ser, as condições de inteligibilidade do ser são imediatamente condições ontológicas do ser. Assim, Parmênides faz mais que pressupor a acessibilidade do ser ao pensamento. Ele faz dela, mais que o produto de uma feliz coincidência, uma marca essencial do ser.
A tese da inteligibilidade essencial do ser fundamenta uma estratégia de argumentação que podemos chamar de lógica. Se o pensamento tem uma forma essencial, que cabe à lógica investigar, se dessa forma podemos derivar condições que algo deve necessariamente cumprir para constituir-se como objeto de pensamento, se essas condições são, à luz da tese da inteligibilidade do ser, também condições ontológicas de possibilidade do ser, então uma reflexão lógica sobre a forma do pensamento pode fundar conclusões ontológicas acerca da forma essencial do ser. Assim, o poema não só pressupõe a harmonia formal entre pensamento e ser, como faz dela premissa fundamental no estabelecimento do que é, por essência, o ser.
A respeito do não-ser, observa Parmênides, absolutamente nada se pode pensar ou dizer, nem sequer que ele não é. Quem pensa, pensa algo, e a palavra algo refere-se ao que é; quem pensa o que não é não pensa nada, ou seja, absolutamente não pensa. O não-ser absolutamente não pode ser pensado; portanto, o não-ser absolutamente não é. Ora, pensar que há vários seres é pensar que há coisas que diferem umas das outras; essas coisas difeririam pelo ser ou pelo não-ser; como elas são, não diferem pelo ser, e diferir pelo não-ser é não diferir por nada, pois o não-ser absolutamente não é. Assim, não se pode pensar que há vários seres; portanto, o ser é uno. Entretanto, se não se pode pensar nenhuma diferença, não se pode pensar nenhuma mudança — nenhuma geração, nenhuma corrupção, nenhum movimento. Portanto, o ser é eterno e imutável.
A mesma estratégia de argumentação leva o Estrangeiro de Eléia, a personagem que conduz o diálogo Sofista de Platão, a cometer o parricídio metafísico que, no interior da tradição eleata, abre caminho aos revisionismos platônico e aristotélico. O sofista, ensina o Estrangeiro, ao fazer do homem a única medida de seus próprios discursos, ao recusar-se a medi-los por um padrão supostamente independente — o que as coisas realmente são, em si e por si mesmas —, define-se como um embusteiro. Em vez da verdade, oferece aos homens simulacros da verdade. O segredo de seu sucesso na cidade é sua habilidade em vender gato por lebre, em revestir seu discurso falso com a aparência da verdade. No entanto, observa o Estrangeiro, a essa definição nada lisonjeira, pode-se imaginar que o sofista contraponha uma objeção surpreendente — na medida em que manifesta uma cumplicidade profunda entre o que parecem ser dois extremos filosóficos, o eleatismo radical e o relativismo sofista. Essa objeção é o chamado paradoxo do discurso falso.
A definição proposta para o sofista implica a distinção entre discursos verdadeiros e falsos. No entanto, como fundamentar essa distinção? Aparentemente, o discurso verdadeiro é o que diz o que é, o discurso falso é o que diz o que não é. Todavia, Parmênides não mostrou que absolutamente nada se pode dizer sobre o não-ser, nem sequer que ele não é? Um discurso é mais que uma sequência de sons ou inscrições gráficas, é uma sequência de símbolos que diz algo. Mas, como lembra Parmênides, a palavra algo refere-se ao que é. Portanto, um encadeamento de sinais ou é significativo, diz 
algo, diz o que é, e é um discurso verdadeiro; ou então não diz nada, não é significativo e, portanto, não é um discurso. Um discurso diz o que é ou não é um discurso, é verdadeiro ou não é um discurso. Aparentemente, as condições de significatividade de um discurso qualquer bastam para excluir, por princípio, a possibilidade de sua falsidade.
As dificuldades implicadas pela distinção entre o verdadeiro e o falso não param por aí. Ao paradoxo do discurso falso, o Estrangeiro acrescenta outro, que podemos chamar, por amor à simetria, o paradoxo do discurso verdadeiro — que Aristóteles, na Metafísica, vai atribuir a Antístenes. Pretendemos dizer o que é uma coisa A e enunciamos: “A é B”. Ora, ou “A” e “B” significam a mesma coisa, e o enunciado não diz mais que “A é A”; ou significam coisas diferentes e, nesse caso, o enunciado diz que A é o que A não é. Em outras palavras, ao pretendermos enunciar o que uma coisa é, ou dizemos que ela é o que é, o que nada nos ensina a respeito dela — pois nada ensina sobre o homem quem diz que o homem é homem, ou sobre o bem quem diz que o bem é o bem —, ou dizemos que ela é o que ela não é, e o que dizemos é trivialmente falso. O paradoxo do falso parece mostrar que um discurso é trivialmente verdadeiro ou não é um discurso; o paradoxo do verdadeiro parece mostrar que um discurso é trivialmente falso ou nada pode revelar sobre o que as coisas são.
Também no caso do paradoxo do verdadeiro, suas origens remontam ao poema de Parmênides. Se o não-ser absolutamente não é, nada há além do ser a respeito do que se poderia pensar ou dizer algo. E, se o ser é uno e apenas o ser é, nada há, além do ser, para ser pensado e dito a respeito do ser. Portanto, tudo o que se pode verdadeiramente pensar e dizer a respeito do ser é que o ser é o ser, o ser é. Mas esse enunciado é, por assim dizer, o grau zero da enunciação. Ele nada nos revela além do que já devemos conhecer para compreender o que significam as palavras que o compõem. A própria combinação das palavras, sua articulação num discurso, num logos, seria inteiramente irrelevante do ponto de vista do conhecimento. Desse ponto de vista, só seria relevante a apreensão simples e imediata, não discursiva, do ser enquanto significação única de todo nome — e, nesse caso, que tarefa restaria, no que concerne à revelação do ser, ao discurso racional do filósofo, o que distinguiria o saber racional do filósofo e a inspiração do oráculo?
O que está em questão é a própria possibilidade do discurso racional sobre o ser. As premissas dos paradoxos parecem caracterizar traços da forma essencial desse discurso, suas conclusões parecem excluir a possibilidade de que um discurso dotado dessa forma possa servir à revelação do que as coisas são, em si e por si mesmas. Ameaçando a distinção entre o verdadeiro e o falso, o paradoxo do falso solapa o ideal da medida do valor do pensamento e do discurso pelo padrão da natureza própria das coisas. E o paradoxo do verdadeiro parece completar esse trabalho de dissolução do conceito de discurso racional sobre o ser, já que parece mostrar que só seria possível revelar, por meio de um discurso racional, o que as coisas realmente são, se as coisas realmente fossem o que elas realmente não são.
Para desembaraçar esse emaranhado lógico, o Estrangeiro recorre à mesma estratégia de argumentação que encontramos no poema de Parmênides. As condições de possibilidade do discurso racional sobre o ser parecem contraditórias. Para que um enunciado da forma “A é B” possa nos revelar o ser de seu tema, parece que A e B devem ser, ao mesmo tempo, idênticos e diferentes. À primeira vista, o modo como o Estrangeiro pretende dissolver esse paradoxo é tão paradoxal quanto o próprio paradoxo. A solução proposta consiste simplesmente em aceitar a conclusão aparentemente inaceitável da argumentação paradoxal e modelar um conceito de ser que a torne não contraditória. Para isso serve a noção de participação. Essa noção nada mais é que o resultado do esforço de conciliação das exigências aparentemente inconciliáveis que o Estrangeiro encontra no conceito lógico de enunciado. Se dizemos verdadeiramente o que é o homem quando dizemos, por exemplo, que o homem é animal, é apenas na medida em que o nome animal significa o ser do homem e também algo diferente do homem, é apenas na medida em que o ser do homem é constituído por seres diferentes dele, entre os quais o ser do animal, é apenas na medida em que, por ser o homem um misto, o homem e o animal são, ao mesmo tempo, idênticos e diferentes — parcialmente idênticos e parcialmente diferentes. De modo geral, só é possível dizer o que uma coisa é caso o ser dessa coisa participe do ser de outras.
Assim, são condições de possibilidade do discurso enunciativo sobre o ser que haja muitas coisas e que algumas delas não sejam ontologicamente incomunicáveis. Ao lado do sentido absoluto do ser, como pura existência e pura identidade consigo mesmo, é preciso admitir que há um sentido relativo do ser: o ser como constituição de uma coisa por outras, como participação de uma coisa em outras, como comunhão dos diferentes. No entanto, para que haja coisas diferentes, é preciso admitir que há coisas que não se comunicam. Se tudo participa de tudo, se tudo constitui tudo, tudo é uma coisa só. Se A e B são diferentes, então nem tudo que constitui o ser de A constitui o ser de B ou vice-versa. Isso significa que a identidade própria de uma coisa mista (seu ser absoluto) é determinada não só por aquilo que a constitui, mas também por aquilo que não a constitui, não só por aquilo que ela é, mas também por aquilo que ela não é. Se homem e animal são diferentes, é porque o animal não é tudo que o homem é, ainda que o homem seja tudo que o 
animal é. Ao lado do não-ser absoluto, como pura ausência e diferença absoluta, é preciso admitir que há também um não-ser relativo, como ausência de um ser em outro. E também é preciso admitir que, tanto quanto o ser relativo, o não-ser relativo é uma determinação intrínseca do ser absoluto de uma coisa mista. Consuma-se assim o parricídio, o abandono do lema de Parmênides: o ser é e o não-ser não é. Para que se preserve a possibilidade do discurso racional sobre o ser, é preciso admitir que uma coisa pode ser o que ela, em certo sentido, não é, e que ela pode não ser o que, em certo sentido, ela é. Uma coisa pode ser (absolutamente) o que ela não é (relativamente) e pode não ser (absolutamente) o que ela é (relativamente).
Assim, pressionado pela necessidade de desvencilhar-se do paradoxo do verdadeiro, o Estrangeiro é levado a montar um cenário ontológico para o discurso, cenário que lhe permitirá dissolver também o paradoxo do discurso falso e, dessa maneira, delimitar um conceito coerente de discurso racional sobre o ser. Dados dois nomes, que signifiquem duas coisas diferentes A e B, definem-se duas alternativas exaustivas e exclusivas: ou B está presente no ser de A ou B está ausente do ser de A, ou B determina positivamente o ser de A ou B determina negativamente o ser de A. Se digo que A é B, apresento a primeira alternativa como sendo a real, em detrimento da segunda; se digo que A não é B, apresento a segunda como sendo a real, em detrimento da primeira. Se é real a alternativa que apresento como real, digo o verdadeiro, caso contrário, digo o falso.
Essa caracterização do modo como o enunciado, seja ele verdadeiro ou falso, se institui como um símbolo significativo — de que Aristóteles vai fazer, no tratado Da interpretação, o núcleo de seu conceito lógico de verdade — implica atribuir ao verbo significar uma ambiguidade, responsável pela aparência paradoxal do paradoxo do discurso falso. Para o nome Sócrates, por exemplo, significar é simbolizar algo, manter com uma outra coisa uma certa relação. Para um enunciado, significar é articular, de uma entre duas maneiras, a afirmativa e a negativa, nomes de duas coisas e, dessa maneira, apresentar como real uma entre duas relações mutuamente exclusivas entre as coisas nomeadas. Se a escolha no plano enunciativo recai sobre a relação realmente existente entre as coisas, o enunciado diz-se verdadeiro, caso contrário ele se diz falso. Portanto, que o enunciado mantenha com alguma coisa uma relação de simbolização é o que o define como verdadeiro, mas absolutamente não é o que o define como significativo. O que o define como significativo é o fato de que, por meio dele, se veicula a apresentação de uma entre duas possibilidades exaustivas e exclusivas, relativas à determinação do ser de alguma coisa, como sendo a que se efetiva na realidade. Para o enunciado, significar é definir essas possibilidades e privilegiar uma em detrimento da outra. Ele é, antes de tudo, a exteriorização simbólica de um ato de escolha. Se a escolha é correta, se a possibilidade privilegiada é a que se efetiva na realidade, o enunciado é verdadeiro; se é incorreta, o enunciado é falso, fracassa em simbolizar a realidade, mas nem por isso deixa de ser significativo, já que uma escolha incorreta não deixa, por ser incorreta, de ser uma escolha.
Para ser significativo, o enunciado não precisa significar alguma coisa, basta que veicule uma pretensão de simbolizar alguma coisa. Aplicado a um nome, o verbo significar requer um objeto direto, é essencialmente transitivo; aplicado a um enunciado, ele é essencialmente intransitivo. O enunciado é um símbolo que não precisa simbolizar nada para instituir-se como símbolo significativo. Ele é o veículo de um ato, que, enquanto tal, se define por um fim, e não pela obtenção efetiva desse fim. O enunciado visa a realidade como o arqueiro visa o alvo, observa Platão. Como o ato de atirar a flecha ao alvo não deixa de ser um ato de atirar a flecha ao alvo quando a flecha não atinge o alvo, um ato de enunciar não deixa de ser um ato de enunciar por não cumprir seu fim, por não atingir seu alvo, por não dizer que as coisas são precisamente aquilo que elas realmente são.
Nesse percurso argumentativo, é importante identificar as posições relativas da lógica e da ontologia. O estabelecimento da possibilidade do discurso racional sobre o ser não resulta da convergência de duas investigações independentes. Não se trata de apreender, por um lado, a estrutura da realidade e, por outro lado, a estrutura lógica do discurso enunciativo, para finalmente reconhecer que vivem em estado de harmonia. O que faz o Estrangeiro é derivar, por meio de uma análise lógica do conceito de enunciado, conduzida sob a pressão dos paradoxos, um rol de condições que a realidade deve cumprir para se constituir como tema de um discurso enunciativo. Em seguida, apoiado sobre a tese da inteligibilidade essencial do ser, conclui que a realidade efetivamente cumpre essas condições. Porque a realidade é inteligível e porque só é inteligível o que cumpre tais e tais condições, a realidade cumpre essas condições.
Ao fragmentar a unidade monolítica do ser de Parmênides, ao conferir cidadania ontológica ao não-ser, enfim, ao atribuir à realidade uma estrutura essencial determinada, o Estrangeiro não faz mais que traduzir ontologicamente exigências lógicas que encontra implicadas no conceito de discurso racional sobre o ser. Deve-se reconhecer que o ser tem essa estrutura essencial porque ela é a infraestrutura ontológica requerida pela forma essencial do discurso sobre o ser, e a acessibilidade ao discurso é uma das marcas essenciais do ser.
A tese da inteligibilidade essencial do ser é, pois, o alicerce mais fundamental do edifício ontológico construído no Sofista. Tomá-la como um pressuposto irredutível não seria, porém, escamotear a questão da harmonia formal entre pensamento e realidade, desvencilhar-se dela por meio de um ato arbitrário, e portanto irracional, de postulação? É certo que toda tentativa de fundamentar a tese parece confrontar-se com uma dificuldade insuperável. Essa fundamentação seria tarefa de um discurso racional e, se esse discurso finalmente nos revelasse que a inteligibilidade é uma marca essencial do ser, caberia ainda perguntar: o que garante que aquilo que um discurso nos apresenta como sendo uma marca essencial do ser realmente é uma marca essencial do ser? Em suma, apenas poderíamos reconhecer um discurso como a fundamentação de que a acessibilidade ao discurso é um atributo do ser sob a pressuposição de que esse discurso pode ter acesso aos atributos do ser, ou seja, sob a pressuposição precisamente do que se trataria de fundamentar.
Postular o que não conseguimos fundamentar não seria a negação mais cristalina da própria atitude racional, que define a filosofia? A atitude genuinamente racional não seria a das escolas malditas do pensamento grego, a sofística e o ceticismo, a atitude de recusar-se a submeter o valor dos discursos a um padrão de medida supostamente independente das condições e circunstâncias subjetivas de sua produção — padrão do que as coisas são em si e por si mesmas? Se o ser não está disponível como padrão para a medida do valor dos discursos humanos, a atitude genuinamente racional não seria a de conformar-se em buscar a medida do que dizemos ser ou não ser no elemento subjetivo da produção dos discursos, cujos limites são para nós intransponíveis, na disposição dos sujeitos — natural ou convencionalmente instituída —, para dizer ou abster-se de dizer isso ou aquilo? Gostemos ou não, ensina Protágoras, o homem é a última medida de todas as coisas, a medida do ser das coisas que são e do não-ser das coisas que não são, simplesmente por não haver outro candidato disponível para o posto.
Devemos então concluir que o edifício ontológico exposto no Sofista está assentado sobre um terreno pantanoso, sobre um ato arbitrário de postulação, um ato ingênuo de fé irracional ou, quem sabe, um ato não tão ingênuo de má-fé filosófica? No livro g da Metafísica, Aristóteles oferece uma resposta negativa a essa questão. Há um princípio, diz Aristóteles, que é, ao mesmo tempo, o princípio mais fundamental do ser e o princípio mais fundamental do discurso racional sobre o ser: o princípio de não-contradição. Em sua roupagem ontológica, ele afirma ser impossível que algum atributo pertença e não pertença a alguma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Na formulação lógica, trivialmente equivalente, ele afirma que nada se pode afirmar e negar da mesma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Para a maioria de nós, o princípio não carece de justificação, pois sua validade necessária revela-se imune a qualquer espécie de dúvida. No entanto, há quem tenha posto em questão essa validade — Heráclito e Protágoras, por exemplo. Que direito podemos alegar para sobrepor nossa convicção, ainda que inabalável, à desses filósofos?
Evidentemente, se o princípio é o fundamento último de toda demonstração, ele não pode ser estabelecido, sem circularidade, por meio de uma demonstração. Tampouco podemos enfrentar seus adversários com o método usual da refutação dialética. De nada nos adiantaria enredá-los em contradições, já que sua tese é precisamente que não há mal nenhum em enredar-se em contradições. No entanto, observa Aristóteles, há uma modalidade sui generis de refutação que, se não é capaz de obrigá-los a afirmar o princípio, ao menos é capaz de impedi-los, e a qualquer um, de transgredi-lo.
Suponhamos que um adversário do princípio afirme que algo é um homem e, ao mesmo tempo, que a mesma coisa não é um homem. Ao dizer que é um homem, escolhe uma entre duas alternativas exclusivas, apresentando-a como real; ao dizer que não é um homem, escolhe a outra dessas alternativas, apresentando-a como real. Ao pretender conjugar esses dois atos num só, acaba por escolher as duas alternativas. Ora, quem, diante de duas alternativas, escolhe todas na verdade não escolhe nenhuma. Escolher é decidir-se por uma alternativa em detrimento de outras. Quem escolhe tudo, de fato não escolhe nada. Da conjunção dos dois atos de escolha simplesmente não resulta um ato de escolha. Isoladamente, as duas combinações de palavras veiculam atos de escolha enunciativa; a conjunção de ambas não veicula nenhum ato de escolha e, portanto, não é, por definição, um enunciado. Ao tentar enunciar algo que transgrida o princípio de não-contradição, o adversário acaba por proferir uma combinação de palavras desprovida de sentido.
Assim, Aristóteles estabelece a validade necessária do princípio na base da impossibilidade de sua transgressão. Em certo sentido, essa impossibilidade é prática: estamos impedidos de transgredi-lo porque toda tentativa de transgressão resulta necessariamente frustrada. A transgressão é impossível não porque uma combinação de palavras que desobedeça ao princípio seja um enunciado que não possa ser verdadeiro, mas porque uma tal combinação de palavras não veicula um sentido e, portanto, não chega a ser um enunciado. Se enunciamos, se dizemos algo, então respeitamos o princípio, pois ele nada mais é que a expressão do traço mais essencial do enunciado — sua bipolaridade. A refutação aristotélica é um argumento ad hominem: não se refuta um enunciado, pois não há enunciado para ser refutado; refuta-se a pessoa que pretenda enunciar em desobediência ao princípio, mostrando-se que sua intenção de enunciar é frustrada pela própria ação por meio da qual se propõe a cumpri-la — já que nenhum ato que transgrida o princípio, precisamente por transgredir o princípio, pode valer como um ato de enunciar.
Em suma, ou nos submetemos ao princípio de não-contradição ou nos abstemos de pensar e dizer o que quer que seja. Recusar o princípio não é afirmar seu contrário, já que não há contrário para ser afirmado. À questão da validade do princípio, não há como oferecer uma resposta falsa, pois a única alternativa à resposta correta é abster-se de pensar e dizer e, portanto, abster-se de responder.
O pulo-do-gato na argumentação aristotélica consiste em encontrar a validade do princípio implicada nas condições de sentido de todo e qualquer discurso, seja ele verdadeiro ou falso. A validade do princípio é estabelecida num plano anterior à distinção entre o que é efetivamente verdadeiro e o que é efetivamente falso, no plano da distinção entre o que tem sentido e o que não tem sentido, entre o que é discurso e o que não é discurso, entre pensar e não pensar. Há determinações que uma coisa tem, mas faz sentido dizer e pensar, falsamente, que ela não as tem. Mas há determinações que uma coisa tem e não faz sentido dizer e pensar que ela não as tem, pois toda tentativa de dizê-lo resulta na mera proferição de combinações de palavras vazias de sentido, incapazes de veicular qualquer pensamento.
A lição geral a ser extraída da argumentação é que não há alternativa discursiva para o reconhecimento de que o ser cumpre, por definição, as condições que a forma essencial do discurso impõe ao que se possa pretender constituir como objeto de discurso. Se digo que uma coisa é isso ou aquilo, posso não ter como estabelecer se o que digo é verdadeiro ou falso, mas não tenho como recusar que a coisa é permeável ao discurso, pois, se meu discurso é verdadeiro, então revela o que a coisa é, se é falso, o discurso contrário é verdadeiro, e esse discurso contrário revela o que a coisa é. A permeabilidade do ser ao pensamento não é pressuposto apenas pela verdade dos discursos verdadeiros, mas igualmente pela falsidade dos discursos falsos. Se digo que isto é um homem, e meu discurso é falso, é porque isto não é um homem e, portanto, é verdadeiro o discurso contrário, é possível fazer da coisa o objeto de um discurso que revele o que ela realmente é ou não é, ainda que eu seja incapaz de determinar qual seja esse discurso.
Se pretendo dizer que o ser é impermeável ao pensamento e ao discurso, ou minha pretensão é bem-sucedida, minhas palavras constituem um discurso, o objeto desse discurso, o ser, não é impermeável ao pensamento e ao discurso, e o que digo é trivialmente falso; ou minha pretensão fracassa, minhas palavras não remetem a nada além delas próprias, não constituem um discurso, verdadeiro ou falso, a respeito do ser. Ao instalar-me no elemento do discurso racional, comprometo-me inevitavelmente com a tese da inteligibilidade essencial do ser. Portanto, ao filósofo não está aberta a possibilidade de recusá-la. A recusa da tese é, sem dúvida, uma alternativa prática, mas não é uma alternativa filosófica. Posso recusar a tese, mas, ao fazê-lo, abro mão do discurso racional, abro mão do exercício da razão, abro mão da filosofia.

O retorno

Cerca de 2400 anos depois, esse mesmo caminho argumentativo é refeito, agora sob o prisma do aparato analítico de uma nova lógica, por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus (como que confirmando a observação de Plotino de que toda a filosofia é pouco mais que um comentário, ainda que não deliberado, de Platão e Aristóteles). Também sob a pressão do paradoxo do discurso falso, Wittgenstein vai encontrar na bipolaridade a marca essencial da representação proposicional do mundo. Também para Wittgenstein, representar proposicionalmente consiste em privilegiar um entre dois polos de uma alternativa exaustiva e exclusiva, 
apresentando-o como real em detrimento do outro — que uma outra proposição, a negação da primeira, poderia, por sua vez, apresentar como real, em detrimento daquele que a primeira privilegia. No entanto, Wittgenstein leva a extração das consequências da tese da bipolaridade essencial da proposição muito mais longe do que o fizera Aristóteles.
Vimos que a tese da bipolaridade é formulada para dar conta da distinção entre condições de sentido e condições de verdade de um enunciado, entre condições cujo cumprimento é necessário para que o enunciado tenha sentido e condições cujo cumprimento torna o enunciado verdadeiro. A tese define, como condição essencial de sentido de uma representação proposicional do mundo, que ela consista no privilégio conferido a um dos polos de uma alternativa exaustiva e exclusiva em detrimento do outro. Ora, isso significa que só pode haver representação proposicional se o representado é um entre dois polos de uma tal alternativa, uma entre duas possibilidades exclusivas, de modo que a realização de uma seja a não-realização da outra. Em outros termos, só pode ser representado proposicionalmente algo que, sendo real, poderia não ser real e, não sendo real, poderia ser real. Dizer que a proposição é bipolar é dizer que só o que é logicamente contingente pode ser representado proposicionalmente.
No curso do aprofundamento da tese da bipolaridade essencial da proposição, Wittgenstein recorre a um argumento que é crucial para o que nos interessa. O desfecho do argumento é que o mundo é uma região circunscrita no interior de um espaço de possibilidades, que deve estar disponível independentemente da ocorrência de qualquer fato no mundo e, portanto, independentemente da verdade ou falsidade de qualquer proposição.
O sentido de uma proposição, argumenta Wittgenstein, é definido pelas possibilidades cuja realização, ao invés da não-realização, é condição de verdade da proposição. As condições de sentido de uma proposição são as condições que definem as possibilidades cuja realização ou não-realização constituem as condições de verdade ou falsidade da proposição. Condições de sentido são condições de definição de possibilidades, condições de verdade são condições de realização de possibilidades, que se supõem independentemente definidas. Assim, a condição de sentido de uma proposição não apenas não pode ser condição de verdade de si mesma, como não pode ser condição de verdade de nenhuma outra proposição. Se o fosse, não seria condição de definição de uma possibilidade, mas condição de realização de uma possibilidade.
Se, diante de uma proposição, indagamos por suas condições de sentido e aparentemente encontramos como resposta condições passíveis de representação proposicional, isso é sinal de que essas condições não são condições de sentido, mas condições de verdade, que remetem a condições de sentido mais primitivas. Mas, se a proposição tem sentido, em algum momento dessa análise regressiva devem ser alcançadas suas condições últimas de sentido. As condições últimas de sentido das proposições definem o conjunto total das possibilidades cuja realização ou não-realização uma representação proposicional qualquer representa, elas definem o que Wittgenstein chama de espaço lógico. O mundo, como o conjunto das possibilidades efetivamente realizadas, consiste, pois, numa circunscrição interna desse espaço, circunscrição que podemos descrever por meio de proposições. No entanto, o próprio espaço não pode ser descrito por proposições: se o fosse, ele consistiria na realização de certas possibilidades em detrimento de outras, seria não um espaço de possibilidades, mas uma circunscrição no interior de um espaço mais abrangente. Por definição, o espaço lógico é um 
espaço total, sem exterior.
Não é difícil perceber que essa maneira de caracterizar as condições lógicas da representação proposicional do mundo permite a Wittgenstein oferecer à questão da harmonia entre linguagem, pensamento e mundo a mesma espécie de solução que Aristóteles lhe oferece no livro g da Meta física. Por definição, o espaço lógico é o conjunto total das possibilidades de existência e não-existência de fatos no mundo, possibilidades que podem constituir o sentido de proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas. Dizer que o mundo só pode ser pensado como uma circunscrição do espaço lógico é, portanto, o mesmo que dizer que esse espaço fixa, ao mesmo tempo, a margem de manobra lógica do pensamento e da linguagem, a totalidade do que se pode pensar e dizer sobre o mundo, e a margem de manobra 
ontológica dos fatos do mundo. Quais sejam os fatos que existam e que não existam no mundo, só a experiência nos pode ensinar. No entanto, quaisquer que sejam eles, apenas podem ser concebidos como realizações de possibilidades desde sempre definidas como constituintes possíveis de sentidos proposicionais, possibilidades desde sempre inscritas na estrutura essencial do pensamento e da linguagem. Ser um fato é, por definição, ser a realização de uma tal possibilidade, ser o sentido possível de uma proposição, ser acessível ao pensamento e à linguagem. Se apenas posso conceber o mundo como uma circunscrição do espaço lógico, não posso conceber, nem sequer como hipótese, que houvesse fatos no mundo que fossem inacessíveis à representação proposicional, que fossem realizações de possibilidades exteriores ao espaço lógico. Concebê-lo seria conceber esse espaço como uma região de um espaço mais abrangente, portanto, não concebê-lo como o espaço lógico.
Ora, é precisamente esse, segundo o Tractatus, o erro da atitude relativista e cética diante da questão da harmonia formal entre o pensamento e a realidade. Exigir garantias da acessibilidade do mundo ao pensamento, a pretexto de que o que pensamos ser a forma essencial do mundo poderia não ser mais que a projeção da forma essencial do pensamento, é admitir a possibilidade de que a forma essencial do mundo não seja a forma essencial do pensamento, é admitir que o mundo possa ser a realização de possibilidades exteriores ao espaço lógico — de que o mundo é, por definição, uma região. Pelo contrário, só podemos conceber um mundo cuja forma essencial seja não apenas permeável, mas estritamente idêntica à forma essencial do pensamento — pois ou nós o concebemos assim ou simplesmente não concebemos nada.
Se o ponto do relativismo fosse apenas o reconhecimento da existência de uma correlação essencial entre o mundo e uma perspectiva representativa sobre o mundo, Wittgenstein nada teria a objetar ao relativismo, já que essa é uma das teses fundamentais do Tractatus. O erro do relativismo seria, do ponto de vista do Tractatus, fazer da existência dessa perspectiva um fato do mundo entre outros — ela existe, como poderia não existir, é assim, como poderia ser diferente. O espaço das possibilidades que encontramos realizadas e não realizadas no mundo existe, como poderia não existir, é assim, mas poderia ser diferente. A diferentes perspectivas possíveis corresponderiam espaços de possibilidades formalmente diferentes, e caberia então perguntar qual deles refletiria a forma que tem o mundo em si e por si mesmo, se é que algum a refletiria. Nesse caso, na impossibilidade de termos acesso imediato a essa forma, não nos restaria outra alternativa senão reconhecer a indecidibilidade da questão, a irrelevância da ideia de que um mundo existe em si e por si mesmo, e nos contentarmos com as várias versões do mundo que se pudessem formular, relativamente às várias perspectivas representativas disponíveis.
No entanto, contra-ataca Wittgenstein, um espaço lógico contingente não é um espaço lógico, e sim uma região no interior de um espaço mais abrangente — este sim, o verdadeiro espaço lógico, porque necessário e sem concorrentes. A possibilidade da representação proposicional do mundo pressupõe a unicidade do espaço lógico e, portanto, a unicidade da perspectiva representativa sobre o mundo. A estrutura que encontramos no mundo que podemos conceber não é uma entre outras possíveis, mas necessária e sem concorrentes. Nada nos impede então de concebê-la como a forma essencial do mundo, como a forma que o mundo tem em si e por si mesmo, ainda que a compartilhe com a perspectiva representativa que é seu correlato essencial.
Segundo o Tractatus, o erro relativista é, em última análise, o mesmo que a crítica lógica da filosofia encontra na base da metafísica mais dogmática: conceber o fundamento e a essência como fatos, isto é, como objetos possíveis de representação proposicional. O espaço lógico define a estrutura essencial do mundo e a estrutura essencial do pensamento e da linguagem, na medida em que define a totalidade do que pode existir e a totalidade do que se pode pensar e representar proposicionalmente. Esse espaço revela-se o fundamento absoluto e total do mundo e do pensamento e, por isso, não pode estar no mundo, como um fato do mundo entre outros, nem pode submeter-se ao trabalho representativo do pensamento e da linguagem. A filosofia define-se como o conhecimento da estrutura essencial do mundo e de seus fundamentos absolutos. A crítica lógica da filosofia revela que o mundo tem uma estrutura essencial e tem fundamentos absolutos, mas que estes são, por princípio, inacessíveis à representação proposicional. O propósito da filosofia é legítimo e valioso; apenas os meios que a filosofia tradicionalmente julgou apropriados para o cumprimento desse propósito é que são inadequados, a via tradicional seguida pela filosofia apenas a afasta desses propósitos, conduzindo-a a ilusões e contrassensos.
A importância do propósito filosófico justifica sua crítica lógica. Para Wittgenstein, como para Kant, a desqualificação de um certo tipo de aproximação aos pretensos objetos da metafísica é motivada pelo desejo de limpar o terreno para que nele se instale a aproximação possível e necessária àquilo que os metafísicos corretamente julgaram que valia apreender — e apenas fizeram-no canhestramente. Para Wittgenstein, como para Kant, a natureza incompleta e relativa do que é acessível à representação proposicional aponta para aquilo que o fundamenta e é, por isso, inacessível a uma tal representação. Mas esses fundamentos, que não são eles próprios fatos, não são também transcendentes, não estão fora do mundo, não constituem um outro mundo. São limites do mundo, são transcendentais.
O dogmatismo é o produto da realização de uma aspiração natural por meios equivocados. A aspiração é atingir as condições de possibilidade, os fundamentos absolutos dos fatos do mundo. O equívoco é pretender representá-los proposicionalmente, apreender essas condições e esses fundamentos por meio do pensamento discursivo. Esse seria o equívoco dogmático por excelência. Pelo contrário, a tarefa legítima da filosofia, a tarefa de uma filosofia realmente crítica, seria, negativamente, desmascarar as ilusões dogmáticas e, positivamente, exibir a forma essencial do mundo através da análise lógica do sentido das proposições factuais.
Após uma década de desinteresse pela filosofia, Wittgenstein propõe-se a desincumbir-se dessa tarefa positiva da filosofia crítica. Ao fazê-lo, depara-se com dificuldades que rapidamente percebe serem muito mais comprometedoras, do ponto de vista da viabilidade do projeto crítico do Tractatus, do que ele pudera de início suspeitar. O que leva Wittgenstein a encarar essas dificuldades como sintomas de uma crise irreversível de sua primeira filosofia não é propriamente seu conteúdo particular, mas a maneira como elas se apresentam: a questão filosófica da exibição da forma essencial do mundo exibe a marca característica dos falsos problemas da filosofia dogmática — a indecidibilidade — e assemelha-se incomodamente a uma questão de fato. Rapidamente, percebe que o Tractatus apenas varrera para debaixo do tapete um problema crucial: a forma essencial da proposição obriga a que se postule a existência do espaço lógico, mas não permite que se defina sua estrutura. Por um lado, o espaço lógico não é construído; por outro lado, sua estrutura não se encontra visível na superfície do pensamento e da linguagem. Portanto, a solução do problema filosófico da caracterização dessa estrutura deveria ser, em algum sentido, descoberta.
Nesse momento, Wittgenstein percebe que o Tractatus lançara mão do procedimento dogmático mais típico. A metafísica dogmática postula a acessibilidade dos fundamentos últimos do mundo e do pensamento; não os encontrando imediatamente acessíveis na superfície do mundo, localiza-os num fundo oculto, duplica a realidade postulando dois planos, o plano profundo da essência e o plano superficial das aparências. O Tractatus postula a acessibilidade dos fundamentos últimos do pensamento e do mundo e, não os encontrando na superfície do pensamento e da linguagem, localiza-os num fundo oculto da linguagem, duplicando a linguagem pela postulação de duas camadas: uma camada aparente, inessencial, e uma camada profunda, a ser desvelada pela análise lógica, onde se encontraria a essência comum do pensamento e do mundo.
Se o Tractatus conduz a esse resultado dogmático, é porque de alguma maneira pressupostos dogmáticos se imiscuíram no caminho que leva de sua motivação crítica inicial ao fracasso final. Ora, Wittgenstein não está disposto a abrir mão de um dos pilares do Tractatus, que vimos ser mero corolário da tese da bipolaridade: a ideia de que tudo que se pode pensar, pode-se pensar a partir de uma perspectiva, como a realização de uma possibilidade situada num espaço de possibilidades, que mantém com essa perspectiva uma relação interna — espaço que define e é definido por essa perspectiva. Assim, o desvio de rota só pode ter ocorrido no curso do argumento que desemboca na postulação de um espaço lógico único e necessário.
Mas como poderia ser bloqueado esse argumento? Apenas através da recusa da ideia de que há uma única forma essencial de representação do mundo, que o pensamento e a linguagem compartilhariam com o próprio mundo. Se há uma única forma essencial de representação do mundo, então há um único espaço lógico — aquém da suposta variedade de formas de representação que um exame superficial de nossos discursos parece exibir. Nesse caso, como a estrutura desse único espaço lógico não pode, por definição, ser conhecida empiricamente, e como o conceito da forma essencial da proposição não basta para determinar qual seja essa estrutura, só restaria postular sua acessibilidade a uma modalidade extraordinária de experiência, na qual essa estrutura se mostraria de corpo presente, como a forma comum dos fatos empíricos e do sentido das proposições que os representam — experiência propiciada pela análise lógica completa dessas proposições. Esse é o movimento dogmático que o segundo Wittgenstein encontra no núcleo argumentativo do Tractatus.
Ora, essa maneira de formular o problema do dogmatismo no Tractatus denuncia manifestamente o pressuposto dogmático mais fundamental: nada mais e nada menos que o essencialismo, isto é, a ideia de que o mundo tem, em si e por si mesmo, uma estrutura essencial, que se revela na estrutura essencial da linguagem e do pensamento. Se o mundo tem, em si mesmo, uma estrutura essencial, ele tem uma só estrutura essencial, inclui-se num único espaço lógico. Se o que institui uma linguagem como tal não são as propriedades arbitrárias dos sinais, mas a estrutura lógica que institui os sinais como símbolos, e se essa estrutura é a única estrutura do mundo, então há uma única linguagem, logicamente discernível sob diferentes roupagens exteriores, materiais ou mentais. Se o que uma proposição representa tem, em si e por si mesmo, uma estrutura, e esta deve ser a estrutura do sentido da proposição, então esse sentido tem uma e uma só estrutura, a ser revelada pela única análise completa da proposição. O caráter inefável das condições de sentido de uma proposição é garantido pela unicidade da linguagem, que exclui a possibilidade de que a condição de sentido de uma proposição seja descritível de uma perspectiva distinta daquela que confere sentido a essa proposição.
Mas como confrontar, desse novo ponto de vista, a boa e velha questão da harmonia entre linguagem, pensamento e realidade? Como, sem incidir na modalidade mais selvagem de relativismo, manter a ideia fundamental de que tudo que se pode pensar, pode-se pensar a partir de uma perspectiva, como a realização de uma possibilidade situada num espaço de possibilidades definido por essa perspectiva? Na medida em que nada pode ser pensado senão de uma perspectiva, ou a comparação entre esta e seus objetos de pensamento se faz sob sua própria luz — e então o veredicto de adequação segue-se trivialmente e é vácuo — ou a comparação se faz de outra perspectiva, e seus resultados valerão apenas relativamente a essa perspectiva. No Tractatus, esse argumento não conduzia ao relativismo graças à unicidade da linguagem, ao fato de que a perspectiva do pensamento sobre o mundo era caracterizada como essencialmente única. Abandonada essa tese de unicidade, o relativismo não seria inevitável?
Para o segundo Wittgenstein, a única saída é recusar que o contato entre linguagem e mundo seja um confronto entre a linguagem como um sistema estruturado e um mundo estruturado, recusar que a medida da confiabilidade da linguagem e do pensamento seja sua capacidade de reprodução da estrutura do mundo, seja por imitação, seja por identidade estrita, como no Tractatus. Em outras palavras, recusar que, no produto do contato entre linguagem e mundo, se possam decantar dois polos, a contribuição da linguagem e a contribuição do mundo, a forma da representação e o conteúdo representado — dois polos que, embora essencialmente correlacionados, ainda assim seriam discerníveis. Sem essa recusa, não haveria como evitar que a forma da representação fosse projetada no representado como sendo sua estrutura essencial, não haveria como evitar a alternativa: ou essencialismo ou relativismo.
Para escapar desse impasse, o segundo Wittgenstein é obrigado a romper com o paradigma clássico da representação. O perspectivismo, sem o apoio da unicidade da forma essencial do pensamento, conduz inevitavelmente ao relativismo, a menos que o contato entre a linguagem e o mundo deixe de ser entendido como uma relação entre dois polos que, se não podem ser distinguidos antes do contato, podem ser distinguidos depois, como portadores, cada um por sua própria conta, da estrutura essencial que lhes seria comum. É esse o pressuposto dogmático fundamental do Tractatus. Para superar o dogmatismo, não basta o reconhecimento de que, na parceria entre linguagem e mundo, não há sócio majoritário. É preciso também reconhecer que, nos produtos dessa sociedade, não há como isolar o quinhão de cada sócio. No Tractatus, o mundo é o que a descrição completa do mundo descreve e, no conteúdo dessa descrição, distinguem-se a contribuição exclusiva do pensamento, a contribuição exclusiva do mundo, e ainda o que institui a linguagem como linguagem e o mundo como objeto possível de representação, sua forma essencial comum. A partir do reconhecimento da multiplicidade e da autonomia das perspectivas do pensamento sobre o mundo, apenas se pode concluir que todas se equivalem caso se admita, de início, que o único critério de privilégio de uma perspectiva é sua adequação à estrutura que o mundo possuiria em si e por si mesmo, independentemente de qualquer relação com qualquer perspectiva. A recusa dessa admissão esvazia de sentido as polêmicas metafísicas tradicionais que opõem uns aos outros realistas, idealistas, solipsistas. relativistas e céticos, ao dissolver o padrão ideal que todos concordam em utilizar, seja para medir o grau da harmonia entre o pensamento e o mundo, seja para declarar a inviabilidade dessa medida.
Tal como entendida tradicionalmente, a chamada questão da harmonia entre linguagem, pensamento e realidade é uma falsa questão. No entanto, há um sentido em que ela preserva toda sua relevância filosófica. Se é descabida a pretensão de determinar em que grau nossas formas de representação do mundo correspondem à forma que o mundo teria em si e por si mesmo, ainda assim faz sentido indagar em que grau nossas imagens dos fatos respondem ao mundo. Seja como for, lembra Wittgenstein, o certo é que o valor de nossas imagens do mundo não depende apenas de nós. Até certo ponto, nossas formas de representação do mundo são autônomas, e mesmo arbitrárias — pois fundam-se tão-somente nos atos humanos de instituição que fazem delas formas humanas de representação do mundo. No entanto, isso não faz desses atos o padrão único da medida do valor de nossas representações.
Em primeiro lugar, está implicado nas formas de representação que chamamos de racionais que a verdade de uma descrição dos fatos do mundo seja legitimada por nossa experiência do mundo, que sua verdade ou falsidade não se deixe antecipar a partir de nada que seja produto unicamente de instituição humana. Instituímos decerto os espaços lógicos, mas não o que neles se realiza como um fato do mundo. O erro de Protágoras foi ignorar uma distinção a que Platão e Aristóteles souberam dar a devida importância: a distinção entre condições de sentido e condições de verdade de nossos discursos. O homem é certamente a medida do sentido dos enunciados, a medida do que as coisas podem ser ou não ser, mas o homem não é a medida da verdade dos enunciados, ele não é a medida do que as coisas efetivamente são ou não são no mundo. O que as coisas são ou não são no mundo, só o mundo pode nos ensinar.
Em segundo lugar, o reconhecimento da autonomia e arbitrariedade das formas de representação não implica o reconhecimento de sua absoluta incomparabilidade, do ponto de vista das responsabilidades que assumem enquanto formas de representação deste mundo. O propósito de todas elas é a representação dos fatos, de uma maneira que sirva aos propósitos com que nos pomos a representar os fatos. Que uma delas responda mais ou menos que outra a tais propósitos, evidentemente não é algo que possamos estabelecer a nosso bel-prazer, mas algo que depende das particularidades de uma e outra, tanto quanto das particularidades deste mundo. Se o mundo se tornasse muito diferente do que ele é, lembra Wittgenstein, muitas de nossas formas de representação passariam a ser simplesmente inutilizáveis.
Finalmente, a autonomia e arbitrariedade das formas de representação não implicam necessariamente sua incomunicabilidade. A questão da harmonia com o mundo só pode ser formulada em relação a uma família de formas de representação que, por compartilharem, num grau suficiente, conceitos como os que designamos por palavras como verdade, aparência, mundo, conhecimento, razão, justificação, opinião, dúvida, reconhecemos como formas racionais de comércio simbólico com o mundo. Diante de um discurso refratário a certas obrigações mínimas impostas por esses conceitos, nem sequer o reconheceríamos como outra forma de representação do mundo. Essa família de conceitos define o que chamamos de racionalidade e, nessa medida, não deve nada a ninguém. Ela é relativa apenas a si mesma e, nessa medida, é precária — embora nem mais nem menos que todos os produtos persistentes de nossa história natural. Mas, sendo relativa apenas a si mesma, não tendo concorrentes, sendo o que provê o conteúdo factual de tudo que tenha conteúdo factual, inclusive da própria ideia de que temos uma história natural, ela é também, em algum sentido, um absoluto — pois além dela, por princípio, não se pode mais retroceder.
Vislumbra-se assim uma solução original para o antigo impasse. Confrontar a questão da harmonia essencial entre o pensamento e o mundo sem o apoio do ideal dogmático passa a ser o desafio da filosofia não dogmática, o desafio da filosofia verdadeiramente crítica, desafio que Wittgenstein não se cansou de enfrentar até seus últimos escritos sobre a certeza, e legou a quem possa interessar.

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