A infância consumida
Resumo
Fugindo da fórmula tradicional dos programas infantis da televisão, a TV Cultura de São Paulo sempre produziu bons programas infantis pré-escolares como o premiadíssimo Vila Sésamo, os projetos Curumim, Jardim Zoológico, Bambalalão, Catavento e Rá Tim Bum.
Rá Tim Bum foi uma série de 190 programas diários de meia hora com o objetivo principal de suprir ou complementar a formação pré-escolar. Levando em conta que é entre os três e os seis anos de idade que a criança adquire as noções de lateralidade, proporcionalidade, começa a desenvolver o raciocínio lógico-matemático, tem o primeiro contato com as palavras escritas, adquire a percepção rítmica, a percepção espaço-temporal, desenvolve a coordenação motora etc., habilidades que são o instrumental básico para seu posterior aprendizado e alfabetização, o Rá Tim Bum tinha como meta preparar as crianças tanto no aspecto cognitivo quanto no social, emocional e até mesmo físico, para iniciarem os estudos.
Partindo da constatação de que uma criança de quatro anos é dispersa foi criado um formato fragmentado e ágil: cada meia hora de programa era composta de pequenos quadros que variavam de cinco a noventa segundos de duração.
Durante a realização do projeto foram feitas pesquisas e experiências com classes de crianças de várias camadas sociais. Estas pesquisas serviam para testar o nível de assimilação das mensagens, redirecionar alguns quadros em função disto e para antever quais seriam as personagens de maior aceitação.
A resposta que o Rá Tim Bum teve mostrou o quanto está correto seu slogan: “Aprender é divertido”. Mostrou também a viabilidade econômica de programas educativos, uma vez que conseguem boa audiência. É preciso deixar de encarar a televisão como um eletrodoméstico nocivo. No Brasil, a TV é uma ferramenta poderosa para a recuperação do atraso educacional.
Quando os primeiros programas infantis apareceram na televisão, traziam uma fórmula: entre um desenho animado e outro, uma apresentadora num estúdio fazia joguinhos, lia cartinhas, fazia merchandising e as crianças mandavam beijinhos para “o pessoal lá de casa”. Assim era o Pim-Pam-Pum, o Zás-Trás, a Sessão Zig-Zag e seus seguidores.
Trinta e cinco anos depois a fórmula ainda é a mesma: Xuxa, Mara, Angélica, Bozo e seus seguidores. Este é um formato de programa muito rentável, pois seu custo de produção é baixíssimo e, além dos intervalos comerciais, comporta tantas ações de merchandising quanto se queira. Noventa segundos de programa são suficientes para a realização do “jogo do iogurtezinho”, por exemplo: as crianças competem, o vencedor ganha o produto; enquanto ele o degusta (cláusula obrigatória nos contratos), a apresentadora diz que ama todos os espectadores abandonados diante da TV e sugere que eles também comam um iogurte, que faz bem para a saúde. Depois vem o jogo do sorvete, o jogo do fabricante de brinquedos, e tantos quantos forem os contratos fechados. Os departamentos comerciais das emissoras literalmente pautam os programas infantis. Good business.
A TV Cultura de São Paulo, por suas condições, sempre pôde fugir a esta regra. A casa tem tradição de bons programas infantis pré-escolares. Foi a TV Cultura que produziu a primeira série do premiadíssimo Vila Sésamo, realizou os projetos Curumim, Jardim Zoológico, Bambalalão, Catavento e agora seu irmão mais rico: o Rá Tim Bum. A ideia aqui é expor a experiência da realização deste projeto.
Rá Tim Bum é uma série de 190 programas de meia hora. Vai ao ar diariamente em três horários no estado de São Paulo e uma vez por dia nos outros estados do Brasil, pela TVE.
O objetivo principal do Rá Tim Bum é o de suprir ou complementar a formação pré-escolar. É entre os três e os seis anos de idade que a criança adquire as noções de lateralidade, proporcionalidade, começa a desenvolver o raciocínio lógico-matemático, tem o primeiro contato com as palavras escritas, adquire a percepção rítmica, a percepção espaço-temporal, desenvolve a coordenação motora etc. Estas noções e habilidades são o instrumental básico para seu posterior aprendizado e alfabetização, ou seja, os primeiros passos nesta direção são fundamentais para que a criança consiga acompanhar o currículo da primeira série. Hoje, de cada cem alunos matriculados no primeiro grau, apenas dezessete terminam o ciclo básico. O elevadíssimo índice de reprovação e posteriormente de evasão escolar, principalmente na primeira série, se dá em grande parte pelo despreparo das crianças ao ingressar na escola. O Rá Tim Bum tem como meta principal preparar as crianças tanto no aspecto cognitivo quanto no social, emocional e até mesmo físico, no que for possível, para iniciarem os estudos.
Como a própria produção de conhecimento na área da pré-escola é muito restrita, a maioria das instituições seguem modelos escolares concebidos de forma rígida e inadequados para esta faixa etária. Nesse sentido, o programa fornece às professoras de creches e pré-escolas um repertório de atividades e métodos adequados.
O projeto foi iniciado por um grupo de pedagogas e psicólogas que, após a realização de seminários, elaboraram um roteiro/currículo, programa por programa, com os objetivos pedagógicos que deveriam ser trabalhados a cada dia. Estes objetivos estavam divididos em doze áreas do conhecimento, como socialização, higiene e saúde, coordenação motora e percepção audiovisual entre outras.
Sabendo o que deveria ser dito, os autores e diretores entraram no circuito e o passo seguinte foi a criação de um formato. Tínhamos algumas dúvidas quanto à capacidade didática da televisão. Principalmente para esta faixa etária o contato direto com a mãe ou com a professora nos parecia imprescindível. Como mostrar, a uma criança que não sabe ler, 62 vezes a palavra casa sem que ela durma diante da TV? Percorrer aqueles quase 2100 objetivos pedagógicos nos levou a antever a série mais chata já produzida pela televisão.
Nossa busca passou a ser a de criar um formato muito atrativo. Se as crianças não aprendessem nada, ao menos iriam se divertir. Queríamos garantir audiência.
Partindo da constatação óbvia de que uma criança de quatro anos é dispersa, tem dificuldades para acompanhar uma trama muito complicada ou reconhecer muitas personagens, e de que não teria a mínima boa vontade conosco e assim que se cansasse mudaria de canal, optamos por fazer isso antes dela. Criamos um formato fragmentado e ágil: cada meia hora de programa é composta de pequenos quadros que variam de cinco a noventa segundos de duração. Mesmo quando uma criança não gosta de uma determinada personagem ou de uma história, ela permanece atenta, porque sabe que em poucos segundos vai acontecer alguma coisa completamente diferente.
A estrutura é sempre a mesma: uma família com pai, mãe, avó, vizinhos e duas crianças da faixa etária a que se destina Rá Tim Bum abrem o programa em alguma situação doméstica que vai desembocar no “tema” do dia — por exemplo, o pai chega correndo todo molhado, porque está chovendo lá fora. Eles falam alguma coisa sobre a água e ligam a TV. Neste momento entra a abertura do Rá Tim Bum que durante esse episódio, em vários quadros, estará mostrando a água e falando sobre ela. Metade desses quadros são fixos, apresentados diariamente, com personagens que as crianças já conhecem e que foram criadas para cumprir determinados objetivos pedagógicos; por exemplo: o detetive Máscara, que é o expert do raciocínio lógico, o grupo de funk que ensina a somar e subtrair, o “Show da Esfinge”, que faz testes visuais etc. Entre os quadros das personagens fixas são exibidas entrevistas na rua, desenhos animados, ensaios visuais, clipes com as músicas-temas do programa, imagens de natureza comentadas por crianças, danças, jogos que requisitam respostas do espectador, exercícios de coordenação motora, crianças em atividades pré-escolares e uma história mais longa todos os dias. Entre estes quadros inserem-se algumas reações da família que assiste ao programa e, no final, os membros dessa família retornam fechando a situação criada no início.
Ao criarmos as personagens fixas, demos a elas uma gama enorme de características psicológicas, de virtudes e de frustrações para que cada espectador conseguisse encontrar aquela com a qual se identificasse. Nesta trupe de dezessete personagens temos desde a menina que fica brincando no quarto sozinha, até um viajante do espaço que está começando a descobrir como funciona o mundo, passando por uma fadinha, um sujeito organizadíssimo, um monstro estabanado, uma cobra perversa e alguns professores, animadores de auditório e jornalistas.
Como linguagem narrativa, nossa opção foi a de buscar a diversidade. Os quadros incorporam todos os formatos existentes na TV: de entrevistas na rua a dramatizações naturalistas, passando por musicais, farsas, pastelões, dramas mexicanos, telejornalismo, desenhos animados e todas a referências de TV possíveis, inclusive de comerciais; para falarmos de higiene pessoal, por exemplo, criamos três breves comerciais cujos jingles defendem as vantagens de se tomar banho ou escovar os dentes. Estes comerciais, assim como numa TV comercial, foram repetidos à exaustão.
Sempre vimos o programa como uma cachoeira de estímulos: quando a criança não fosse envolvida pelo texto, a música ou a imagem poderiam pegá-la. O ritmo ágil se impôs pela própria experiência que as crianças têm das outras emissoras. Impossível competir com tiros e explosões espaciais montado numa tartaruga, a menos que ela seja ninja.
Visualmente o programa também buscou a diversidade: salta-se de fundos eletrônicos clean que ressaltam o movimento dos corpos dos bailarinos, por exemplo, para cenários farsescos e exagerados no seu desenho e nas suas cores. Procuramos sempre usar esta diversidade para conseguir dar ritmo ao programa. Sempre após um quadro em que se valoriza o texto, entra um outro em que a atenção principal está na música ou na imagem. No quadro da contadora de histórias, de quem se vê apenas meio-corpo, esta veste uma blusa neutra e sem detalhes, e o fundo é igualmente neutro, sem cor nem desenho, pois a atenção deve dirigir-se a objetos cotidianos que ela manipula e transforma: um grampeador vira jacaré, uma moranga é um árabe e uma tomada se transforma num porquinho. E lenha na fogueira da fantasia. Quem precisa de brinquedos prontos?
Dentro desta ideia de estímulo visual, o programa abusou da tecnologia eletrônica da TV; tivemos o cuidado, no entanto, de evitar o uso destes equipamentos para “enfeitar” as imagens, como geralmente ocorre, utilizando-os sim, no sentido de ampliar as possibilidades da fantasia. Em um dos quadros, dois peixes metade bonecos e metade humanos nadam num aquário desenhado contendo água e bolhas reais, no qual se misturam, ainda, peixes em desenho animado com peixes reais. Estes e todos os quadros que são sofisticados do ponto de vista tecnológico têm a virtude de não ostentar essa sofisticação. O resultado é sempre simples.
Tomamos a liberdade de acrescentar, ainda, alguns temas ao que foi inicialmente proposto: a morte, a crise conjugal, a pobreza e o desemprego, que são situações vividas no cotidiano da maioria das crianças. Nesta linha, em nossa versão dos “Três porquinhos”, os dois preguiçosos são mesmo engolidos pelo lobo e morrem, o terceiro fica com saudades, mas sobrevive. Contamos a história de uma mãe solteira que rejeita a filhinha, de uma Cinderela que era paralítica e continua sendo mesmo depois de casada com o príncipe, e outras tantas. Estes temas são mostrados sem maquiagem, porém com dignidade e esperança. A ideia é dar elementos a mais para que as crianças que se vêem em situações semelhantes possam elaborar seus conflitos.
Durante a realização do projeto foram feitas pesquisas e experiências com classes de crianças de várias camadas sociais. Estas pesquisas serviam para testarmos o nível de assimilação das mensagens, redirecionarmos alguns quadros em função disto e para antevermos quais seriam as personagens de maior aceitação. Para minha surpresa o professor Tibúrcio era sempre apontado como um dos preferidos. Foi uma personagem sugerida pelo ator que a interpreta. A ideia era que ele ensinasse explicitamente. Não tem história — ele vai direto ao assunto: “Vocês sabem o que é um círculo?”. O único diferencial é que ao invés de um quadro-negro ele usa um quadro branco eletrônico (de matar de inveja qualquer professora) do qual tira todo o seu material didático. As crianças adoram. Elas gostam de aprender.
O programa já está no ar há oito meses, além das pesquisas, as respostas que temos vêem das escolas do Sesi e do Senai que estão usando a série dentro das salas de aula. Tem funcionado. Como o programa é destinado a um segmento muito pequeno da população, crianças dos três aos seis anos, a audiência que temos obtido, seis pontos somando-se os três horários em que é veiculado, é surpreendente. Para efeito de comparação: Xou da Xuxa, para crianças de três a dez anos, numa emissora líder de audiência, com um trabalho de marketing elaboradíssimo, obteve a média de nove pontos esta semana.
A resposta que o Rá Tim Bum teve mostrou o quanto está correto seu slogan: “Aprender é divertido”. Mostrou também a viabilidade econômica de programas educativos, uma vez que conseguem boa audiência.
É preciso deixar de lado esta bobagem de encarar a televisão como um eletrodoméstico nocivo. Ela é hoje no Brasil uma ferramenta insubstituível se quisermos recuperar o atraso educacional no qual vivemos. Para termos cidadãos mais preparados, precisamos antes ter os professores, e para formarmos uma geração de professores capacitados e em número suficiente para dar um bom ensino básico a toda uma geração de brasileiros, caso haja interesse, levará no mínimo vinte anos. A televisão, com sua incrível penetração, poderia catalisar este processo, principalmente no que diz respeito à atualização, reciclagem e aprimoramento dos professores. Uma professora que dá aula no interior do Pará, sem nenhum acesso ao conhecimento relativo a sua área de atuação, poderia, ao invés disto, estar em contato com as melhores pedagogas do país.
O preconceito em relação à TV ainda é muito grande, mas a gente chega lá. O Rá Tim Bum é um pequeno passo nesta direção.
Ficha técnica
Coordenação pedagógica: Celia Marque
Autores: Flávio de Souza, Cláudia Dalla Verde e Tacus
Direção geral: Fernando Meirelles
Produtora responsável: Celia Regina Ferreira dos Santos
Co-produção: TV Cultura-FIESP/Sesi/Senai.
Em São Paulo, no ano do Senhor de 1990.