2005

A liberdade livre [Rimbaud]

por Marcelin Pleynet

Resumo

Rimbaud fez uma pergunta fundamental que parece uma adivinha: “O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se?” Questão política da liberdade (ainda hoje atual) relacionada ao seu combate à ideologia republicana francesa, mas também questão poética, porque formulada numa língua outra. “É falso dizer: Eu penso”, ele escreve já aos 16 anos e meio numa carta ao seu professor Izambard. “Dever-se-ia  dizer: pensam-me. Perdão pelo jogo de palavras. Eu é um outro”. Desse confronto com as obviedades nascem os mal-entendidos que sua obra tem suscitado desde Verlaine (o amigo íntimo que buscou piedosa e equivocadamente enquadrá-lo como “poeta maldito”) e entre seus diversos e opostos admiradores (como o católico Paul Claudel e o surrealista André Breton). No único texto que Rimbaud fez questão de publicar, Uma estação no Inferno (1873), essa questão é trabalhada com todos os seus embaraços (revolta, ressentimento, infortúnio…). Pois se trata de uma passagem estreita que busca desvelar o “terror” (“Vinha o terror… Eu estava maduro para o trespasse”) arraigado nos hábitos. E Rimbaud tem consciência do seu isolamento nessa abertura e questionamento do Tempo. Como Nietzsche, cujo Zaratustra é também vidente e “aleijado” na ponte para o futuro. Quando fala de “desregramento de todos os sentidos”, ele está se referindo não só aos sentidos corporais, mas ao “bom senso” cartesiano, ao “senso comum” kantiano e, sobretudo, a uma “liberdade livre” – condição, diz ele, para “encontrar uma língua”, isto é, o inabitual da palavra antes que ela cesse de surpreender.


ADIEU

Oui, l’heure nouvelle est au moins très-sévère.

Car je puis dire que la victoire m’est acquise: les grincements de dents, les sifflements de feu, les soupirs empestés se modèrent. Tous les souvenirs immondes s’effacent. Mes derniers regrets détalent, — des jalousies pour les mendiants, les brigands, les amis de la mort, les arriérés de toutes sortes.

— Damnés, si je me vengeais!

Il faut être absolument moderne.

Point de cantiques: tenir le pas gagné. Dure nuit! le sang séché fume sur ma face, et je n’ai rien derrière moi, que cet horrible arbrisseau!… Le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d’hommes; mais la vision de la justice est le plaisir de Dieu seul.

Cependant c’est la veille. Recevons tous les influx de vigueur et de tendresse réelle. Et à l’aurore, armés d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides villes.

Que parlais-je de main amie! Un bel avantage, c’est que je puis rire des vieilles amours mensongères, et frapper de honte ces couples menteurs,

— j’ai vu l’enfer des femmes là-bas; — et il me será loisible de posséder la vérité dans une âme et un corps.

Arthur Rimbaud

 

Adeus

Sim, a nova hora é pelo menos muito severa.

Porque posso dizer que a vitória me possui: o ranger dos dentes, os silvos do fogo, os suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças imundas se apagam. Meus últimos lamentos se retiram — inveja dos mendigos, dos bandidos, dos amigos da morte, de todos os que foram passados para trás. Condenados, se eu me vingasse!

É preciso ser absolutamente moderno.

Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! o sangue seco fumega em meu rosto, e não tenho nada atrás de mim além deste horrível arbusto!… O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus.

Contudo, é a vigília. Recebamos todos os influxos de vigor e de autêntica ternura. E ao romper da aurora, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades.

Falava da mão amiga! Já é uma vantagem que eu possa rir dos velhos amores ilusórios, e cobrir de vergonha esses casais mentirosos — vi o inferno das mulheres, lá embaixo; — e então me ser permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.

Arthur Rimbaud

__________

Aceitem ou não, me obstino terrivelmente em adorar a liberdade livre.

Arthur Rimbaud, nov. 1870

Sempre tive escrúpulos em dirigir-me a um público numa língua que não fosse a que lhe é a mais familiar. Penso que isso é de certo modo uma falta de cortesia, ou mesmo de civilidade, e jamais o fiz sem primeiro desculpar-me. Assim, antes de tratar da obra de Rimbaud, faço alguns questionamentos nesse âmbito. Seria preciso, por certo, falar todas as línguas. Para o bom entendimento do que nos envolve no século XXI, e do que nos propõe o destino da mundialização, todas as línguas parecem dever ser mobilizadas. Mas o que aconteceria se cada um de nós falasse efetivamente todas as línguas? E de que se falaria? E não aconteceria o mesmo se o mundo inteiro falasse apenas uma única língua? O que seria daquilo que se exprime essencial e mundialmente em cada língua?

E se o bom entendimento do que dispõe o século XXI, e o chamado destino da mundialização, implicasse antes de tudo, e a cada vez, falar todas as línguas em cada uma delas, sempre, e para cada um, todas as línguas em uma, a sua?

Mas não é isso o que, de certo modo, realiza em cada língua a obra do poeta que merece esse nome (Dante, Villon, Shakespeare, Hölderlin, Rimbaud…) e que paradoxalmente, por essa razão, é na maior parte das vezes reconhecido internacionalmente… e intraduzível?

TUDO É FRANCÊS

O que passo a considerar, ao abordar a obra de Rimbaud, é o que sucede, no francês, com essa intrusão de um pensamento, de uma língua outra e no entanto a mesma, que produz acontecimento, e de tal modo que ela mobiliza, que ela atrai o interesse de todas as línguas… embora seja essencialmente intraduzível.

Rimbaud escreve em 15 de maio de 1871, numa carta a Paul Demeny chamada “A carta do vidente”: “Encontrar uma língua — De resto, toda palavra sendo ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! […] Será um discurso da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento fisgando pensamento e puxando”.

Fisguemos, pois, e puxemos, assinalando que hoje, quando tudo parece à disposição e pronto para ser consumido indiferentemente na inconsequência de um espetáculo generalizado, tal discurso parece inaudível; e que certamente não é inútil, ao abordar uma obra como a de Rimbaud, acentuar primeiro a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de traduzi-la, de compreendê-la, seja em que língua for, até mesmo, se posso dizer, em francês.

Conhecida e difundida como “poesia”, palavra que praticamente não tem mais sentido em língua nenhuma, a obra de Rimbaud, por essa mesma razão, não é mais legível hoje, e menos ainda, certamente, do que o foi durante sua vida, embora ela seja internacionalmente célebre e traduzida nas mais diversas línguas.

O que sucede com a obra de Rimbaud? O que se sabe dela? O que se quer saber? Em 1991, por ocasião do centenário da morte do poeta, Jack Lang, então ministro da Cultura, não recomendou às crianças das escolas que enviassem umas às outras um poema de Rimbaud?

Em abril de 2000, não é a carta, carta de poucas páginas, chamada do “vidente”, na qual Rimbaud escreve em particular que “tudo é francês, isto é, detestável em supremo grau”, que é arrematada pelo Estado e comprada pela soma de 3,3 milhões de francos?

O mesmo quanto ao Rimbaud poeta. O ícone religiosamente poético, e portanto ininteligível, não tem preço.

“Tudo é francês, isto é, detestável em supremo grau”, escreve Rimbaud no mesmo ano em que nasce a Terceira República.

Não convém reconsiderar o acontecimento que é a obra de Rimbaud, se quisermos simplesmente entender o que foi feito, entre outras, dessa frase arrematada por 3,3 milhões de francos pelo Estado francês?

Talvez se entenda melhor, se compreenda melhor o acontecimento que é o surgimento da língua de Rimbaud no francês, lembrando, por exemplo, que Philippe Pétain — que em 1940 converte a Terceira República num regime de colaboração com a Alemanha nazista —, nascido em 1852, é um exato contemporâneo de Rimbaud.

Sabemos que Rimbaud nasceu em 10 de outubro de 1854 e morreu em 10 de novembro de 1891. Esses dois homens falavam a mesma língua?

O que visa Rimbaud quando escreve: “Tudo é francês, isto é, detestável em supremo grau”, por ocasião da constituição da Terceira República? Regime nascido, em 1870, da repressão sangrenta à Comuna de Paris, e o mais longo da história desse país, a França, pois dura até sua conversão em um regime de colaboração com os nazistas, por um marechal da França, Philippe Pétain, em 1940.

Como ler Rimbaud? Essa evocação do destino da Terceira República francesa diz suficientemente que, para um homem de minha geração (eu que nasci em 1933, ano em que, convém lembrar, Hitler chegava ao posto de chanceler do Terceiro Reich, e passei a maior parte de minha infância num país majoritariamente pétainista), Rimbaud permanece ativamente presente no centro do debate, no século XX e neste início do século XXI, com a “liberdade livre”.

Quantas vezes me vi em situação de retomar, e em sua forma mesma, a questão que, nos anos 1870, Rimbaud dirige numa carta a Ernest Delahaye, um de seus dois principais correspondentes da época: “O que há com teu país? Ele está doente?”.

Em 1940, aos sete anos de idade, estou como muitos franceses à beira de uma estrada de província assistindo à chegada dos panzers alemães. Aos doze anos, em 1945, na praça de uma aldeia, vejo uma mulher humilhada e de cabeça raspada em nome do novo conformismo da multidão. Nos anos 50, a França e os franceses morrem na Tunísia, no Marrocos, na Indochina para salvar o império colonial da Terceira República. Em 1954, os anacronismos nacionalistas levam o governo francês a “pacificar” o território argelino. É a guerra com suas sequelas de crimes e torturas. Sou convocado. Nessa questão os criminosos não foram apenas militares; aquele que lhes deu carta branca, François Mitterrand, será, em 1981, 27 anos mais tarde, eleito presidente da República. Trata-se então, muito seriamente, de fazer esquecer maio de 68 na França. E não é para confirmar esse esquecimento que, em maio de 2002, os franceses, de direita e de esquerda, unem-se para plebiscitar o mesmo, e outro “novo homem”, Jacques Chirac?

Pensamentos retroativos? Talvez… No entanto é desde meu nascimento, em 1933, que a questão se apresenta para mim e, retroativamente, se abre a esta outra questão: “O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se?”. Perspectiva declarada, imediata e contínua de minha leitura de Rimbaud.

“As pessoas estão exiladas em sua pátria!”, escreve Rimbaud a seu professor Georges Izambard, em agosto de 1870. O que sucede com essa “pátria”, com o francês, a França? O século XIX é só um começo na disposição da sujeição voluntária e generalizada, o obscurecimento, “o futuro de uma ilusão” (e, consequentemente, o futuro das resistências e das lutas vãs, surdas e clandestinas contra esses obscurantismos)… O século XX inteiro se desdobra socialmente como o campo de experimentação de técnicas de alienação, de repressão e de sujeição, tais como os séculos passados nunca haviam conhecido antes.

Em outras palavras, acompanha o que se apresenta socialmente como um progresso, as profundas mudanças, o abalo das fundações históricas e culturais, a mobilização, geralmente confusa, de inteligências e energias sacrificadas a contraemprego.

Marx e Engels, em 1848, darão uma boa descrição desse momento específico: “A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, isto é, todo o conjunto das relações sociais. Essa mudança contínua da produção, esse abalo ininterrupto de todo o sistema social, essa agitação, essa perpétua insegurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações sociais tradicionais e fixas com seu cortejo de noções e de ideias antigas e veneráveis se dissolvem; e todas as que as substituem envelhecem antes mesmo de poderem se ossificar”.

Que a burguesia seja apenas um dos vetores da sujeição planetária à ordem lógica do desenvolvimento hegemônico das ciências e das técnicas não altera em nada esse processo, a sociedade moderna sendo essencialmente uma sociedade burguesa.

Nascida da Revolução Francesa, que sucumbe no Terror, uma nova sociedade se impõe, de início empiricamente, revolucionando o conjunto das relações sociais e estabelecendo tecnicamente, em nome da ciência, seu poder sobre formas de sujeição, de repressão e de terror tanto quanto possível mais discretas e racionais, isto é, mais eficazes.

Ao longo desse século XIX que passa da Primeira República ao Império, à Restauração dos Bourbon, à Monarquia de Julho, à Segunda República, ao Segundo Império, à Terceira República, a França moderna busca confusamente formas de governo suscetíveis de aterrorizar sem “terror”. Assim como a Primeira República nasce do grande Terror de 1793-1794, nada impede que a Terceira nasça da repressão sangrenta à Comuna de Paris. E não acabou, o futuro dessa ilusão tem futuro; o século XX, sabemos, herdará todos os arcaísmos dessa ideologia republicana de que o século XXI não parece preparado para livrar-se.

Em 1952, por exemplo, François Mauriac, que inicia então sua campanha contra a mediocridade dos políticos da Quarta República, fará esta avaliação em seu Bloc-notes: “Todo o nazismo está prefigurado na glorificação do falso Henry”*,[1] entenda-se, no caso Dreyfus, que, como sabemos, estende-se sob a Terceira República de 1894 a 1906, data da reabilitação de Alfred Dreyfus.

Nesse contexto, que se pode considerar constituído de diversos modos de dispor a liberdade humana no quadro de uma sujeição generalizada e, se posso dizer, prospectiva, é que convém levar em conta a maneira pela qual se dispõem, impensáveis, a obra e a vida de Rimbaud.

Impensáveis tanto para as melhores das interpretações quanto para as mais escrupulosas das biografias, porque elas se acham literariamente limitadas a esse contexto, independentemente do fundo ideológico sobre o qual se estabelecem, penetrando mais fundamentalmente nele, isto é, abrindo nele um caminho.

Em condições históricas de uma feroz mediocridade, a obra e a vida de Rimbaud são ainda hoje, e não deixarão de ser, um acontecimento, na medida em que sua questão fundamental (“O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se?”) assume, para o humano, o desvelamento dinâmico de toda palavra, de toda existência e de todo pensamento. Na medida, portanto, em que essa questão, que atravessa todas as formas de organização social, implica, para ser entendida, uma reserva necessária quanto às crenças religiosas, religiosamente mantidas, nessas formas de organização.

Para que uma questão como essa (“O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se?”) se imponha, como a impõem a obra e a vida de Rimbaud, é preciso que a lógica (o pensamento) que lhe é própria seja bem justificada. O que pode certamente ser entendido e demonstrado se nos interrogamos sobre os automatismos e os hábitos adquiridos, de opiniões e de saber, que tal “lógica” contraria. Rimbaud assinala isso a seu correspondente Delahaye em 1872: “os hábitos não oferecem consolo aos lamentáveis dias”.

No momento em que seu pensamento se desdobra, e excepcionalmente se expõe, na carta de 15 de maio de 1871 a Paul Demeny (carta chamada, não sem razões múltiplas e contraditórias, “A carta do vidente”), Rimbaud, alguns dias antes, em 13 de maio, faz significativamente preceder esta única lição (“Decidi oferecer-lhe uma hora de literatura nova”, escreve a Paul Demeny)… Rimbaud faz então preceder essa carta de outra, endereçada a seu ex-professor de retórica Georges Izambard. Esta, de 13 de maio, destinada a um membro do ensino, versa significativamente sobre a função social da transmissão do saber.

De Charleville, em 13 de maio de 1871 (dois dias antes, portanto, de enviar a célebre “Carta do vidente”), Rimbaud escreve a Georges Izambard, seu ex-professor: “Eis-nos aqui de novo, professor. Temos deveres para com a sociedade, o senhor me disse; o senhor faz parte do corpo docente: segue a velha rotina, eu também sigo o princípio: procuro cinicamente me manter;[2] desenterro antigos imbecis do colégio: tudo que posso inventar de tolo, de sujo, de ruim em ação e em palavras, ofereço-lhes: pagam-me em cerveja e mulher. Stat mater dolorosa, dum pendet filius — Tenho deveres para com a sociedade, é justo —; e tenho razão. O senhor também tem razão quanto a hoje”.

Descrição cuja ironia não deve nos escapar. Ao descrever o que faz, Rimbaud ilustra ironicamente o que pensa do ensino, do que lhe ensinaram, desse “princípio” que ele segue: “Eis-nos aqui de novo, professor […] o senhor segue a velha rotina, eu também sigo o princípio […] tudo que posso inventar de tolo, de sujo, de ruim em ação e em palavras, ofereço-lhes […]”.[3]

Nesse mês de maio de 1871, Rimbaud excepcionalmente se explica sobre os “deveres para com a sociedade” e sobre o que sucede com ela.

Como não foi percebido que essas explicações valem para toda a sua estada na sociedade europeia e, de maneira geral, para a sociedade ocidental?

Tomando altitude ao escrever, dois anos mais tarde, em 1873, Uma estação no inferno,** no capítulo intitulado “O impossível” Rimbaud revelará a perspectiva na qual se dispõe seu pensamento: “Os filósofos: o mundo não tem idade. A humanidade se desloca, simplesmente. Estais no Ocidente, mas livres para habitar vosso Oriente, por mais antigo que se furte — e habitar nele confortavelmente. Não sejais um vencido. Filósofos, sois de vosso Ocidente”.

É divertido ler, nas Oeuvres complètes da edição da Pleiade, o comentário de Antoine Adam à carta de 13 de maio de 1871 sobre o ensino: “Os historiadores”, escreve Antoine Adam, “não estão de acordo sobre esses ‘imbecis do colégio’. Serão ex-colegas? Serão professores? É naturalmente impossível decidir”.

“Naturalmente” não deixa de ser espirituoso! Então não é a seu ex-professor que Rimbaud escreve?

Como não levar em conta que, nesse mês de maio de 1871, Rimbaud define o mais explicitamente possível o que é para ele a “sociedade”? “Antigos imbecis do colégio” — que poderão eventualmente tornar-se professores, como a mãe aflita agarrada ao filho.

Os comentadores sustentam que aqui Rimbaud evoca a própria mãe. Certamente, por que não? Mas ater-se a isso é esquecer que Rimbaud acha essa “poesia subjetiva” (esse tipo de raciocínio) “horrivelmente insípida”, acrescentando que, quanto a isso, “tem razão”. O mesmo vale, portanto, para o que se deveria entender por “transmissão do saber”.

Mas isso não é tão evidente assim. Daremos a esta carta de um jovem poeta de dezesseis anos e meio, de um gênio precoce, o crédito de um pensamento capaz de emitir um juízo sobre a filosofia ocidental, isto é, sobre a história da metafísica?

Porque é realmente disso que se trata. É difícil, por exemplo, lendo o que Rimbaud escreve a Georges Izambard, em 13 de maio de 1871 — “É falso dizer: Eu penso. Dever-se-ia dizer: Pensam-me. Perdão pelo jogo de palavras. Eu é um outro…” —, não evocar o questionamento do cogito ergo sum de Descartes. Embora pareça que ninguém mais quer pensar nisso.

Como chegar a um acordo sobre a importância a atribuir à frase de Rimbaud que visa aos “imbecis do colégio”? Estudantes? professores? filósofos? É preciso considerar os universitários seriamente debruçados sobre essa espinhosa questão!

Sem esquecer que Rimbaud já qualifica de “rotina” (“o senhor segue a velha rotina”) o ensino, a instrução pública por trás da qual se dissimulam politicamente as escolas de formação ideológica e republicana que terão em Victor Hugo, especialmente, um porta-bandeira.

“Velha rotina”, “cabide universitário”: “o senhor acabará como um satisfeito que não fez nada, nada tendo querido fazer”.

Se entendermos realmente o que, aos dezesseis anos e meio de idade, Rimbaud escreve a seu professor (em 1871), o que veio a seguir não é algo logicamente esperado e inteligível? Isso desde que se queira entender por “poesia” uma palavra na palavra — uma palavra que fala —, uma palavra que fala na palavra, quando ela é a singular essência dessa “liberdade livre” que distingue o homem na totalidade das coisas e do universo: quando é pensamento em ato.

Ressalve-se que a miséria do mundo revelada por Rimbaud está (forma dessa miséria) intrinsecamente embutida no programa social de formação e de instrução pública da segunda metade do século XIX, com o objetivo (e Rimbaud o compreenderá) de tornar precisamente ininteligível qualquer outro discurso que não o autorizado na “velha rotina” da dívida social: “Temos deveres para com a sociedade”. Rimbaud evidencia que essa “dívida”, forma de sujeição voluntária, tem essencialmente por função submeter a inteligência a “antigos imbecis do colégio”, ocupados em reduzir tudo ao social. Ainda a Izambard, Rimbaud esclarece: “O senhor não compreenderá tudo; e eu quase não saberei lhe explicar”.

Realmente, nunca, e hoje menos do que nunca, se quis reconhecer que Maio de 68 na França foi antes de tudo, na origem, um movimento estudantil e universitário, uma crise interna ao saber, e portanto ao ensino — essencialmente uma revolta interna contra as formas e os modos de transmissão da ideologia leiga e republicana do saber.

Um dos pensadores, ainda hoje o mais lucidamente ativo e cujos livros (em particular A sociedade do espetáculo, publicado em 1967) são os únicos a formular verdadeiramente o que determina Maio de 68, o “situacionista” Guy Debord, escreverá: “Foi a poesia moderna dos últimos cem anos que nos levou até aí. Éramos alguns a pensar que seu programa devia ser executado na realidade, e que em todo caso não havia outro”. Como desconfiar que, ao falar de “poesia moderna”, Debord não esteja evocando, em primeiro lugar e essencialmente, Rimbaud?

Chegamos até aí. E a partir daí todos parecem ter ficado muito prudentes sobre o assunto.

Ao destacar certas declarações e os movimentos de Rimbaud, entre 1870 e 1871, a crítica e os poetas de profissão contentam-se geralmente com um Rimbaud simpatizante da Comuna de Paris. Rimbaud communard, logo convertido num Rimbaud politicamente correto, de esquerda. Em suma, um Rimbaud que vem confirmar o ensino das escolas leigas e as leis do magistrado Émile Combes. Mas é preciso reconhecer que, tanto à direita quanto à esquerda, tanto ao clericalismo quanto ao anticlericalismo, Rimbaud é muito dificilmente convertível.

O debate, como sabemos, opõe no começo do século XX — e não certamente por acaso — dois dos principais e dos mais vigilantes leitores de Rimbaud: o católico Paul Claudel e o trotskista André Breton. Ambos dão a Rimbaud uma importância quase mística — Claudel em particular, que faz dele, como sabemos, praticamente um dos elementos constitutivos de sua conversão ao catolicismo. Mas, no que concerne à dificuldade de converter Rimbaud a qualquer religião que seja, é sem dúvida André Breton quem diz mais. Este, por razões muito próximas às de Guy Debord (que, num certo momento, chegou a frequentar o Surrealismo), foi certamente quem captou da maneira mais justa o acontecimento que constitui, no francês, o surgimento da língua de Rimbaud.

Por prova basta a atitude de Breton por ocasião da publicação, cuidadosamente orquestrada pelos meios literários parisienses, de um texto de Rimbaud (La chasse spirituelle [A caça espiritual]) que era considerado perdido, e cuja falsidade Breton foi o único a afirmar, antes que os autores da mistificação o confessassem.

André Breton, é incontestável, demonstra uma excepcional compreensão — paradoxalmente, pode-se dizer — formal da língua, da frase, do fraseado de Rimbaud. Tem por ele uma admiração que, como amiúde no autor dos Manifestos do Surrealismo, parece tomar a forma enfática de um culto.

Nada, porém, pode reduzir a obra de Rimbaud a uma simples apreciação; por mais enfaticamente elogiosa que seja, esta não deixará, num momento ou noutro, de criar embaraços a seu autor.

Assim, não se pode ignorar que, em 1930, no Segundo manifesto do Surrealismo, ao intimar seus companheiros a tomar partido na revolução social, André Breton julga dever, excepcionalmente, fazer reservas em relação a Rimbaud. Ele escreve então: “Rimbaud se enganou, Rimbaud quis nos enganar. Ele é culpado perante nós de ter permitido, de não ter tornado inteiramente impossível certas interpretações desonrosas de seu pensamento, gênero Claudel”. E, com certeza, o anticlericalismo leigo de Breton se revela tão obscurantista, se não mais, que o clericalismo católico de Claudel, a menos que se trate aí das duas faces da mesma moeda, ilustrando a função do artista e do poeta a serviço da Igreja católica ou da Igreja republicana e leiga, ambas, como todos sabem, tendo sempre necessidade de santos e de mártires, de místicos revolucionários.

Tais mal-entendidos — o de Claudel, o de Breton — integram leituras “poéticas” que qualificarei de programadas por um “encantamento incompreensível, e uma dormência sobrenatural”.

Sob a forma da religião poética, a socialização leiga, ou clerical, de Rimbaud revela apenas a exatidão do julgamento de Nietzsche ao declarar, em 1870: “Acreditamos ampliar nossas dimensões ao acolher um grande gênio. Na verdade, encolhemos as do gênio para fazê-lo penetrar em nós”.

Onde reencontraremos, onde seguiremos Rimbaud em sua obra?

Convém, mais uma vez, lembrar que o único livro que Rimbaud fez questão de publicar, e de fazer conhecer, tem por título Uma estação no inferno, e desconfiar do sucesso de certos clichês que os contemporâneos de Rimbaud julgaram dever difundir.

É surpreendente que Verlaine — que se acreditou o mais próximo, o mais íntimo amigo de Rimbaud — tenha criado os clichês que ainda hoje dominam a obra e a biografia de Rimbaud? A má ação tem por título Les poètes maudits [Os poetas malditos], e apresenta-se então, como se apresentará com frequência a seguir, acobertada sob a admiração mais sincera.

Da iniciativa de Verlaine, é pouco dizer que foi comandada por uma vontade de vulgarização, para não dizer por uma vulgaridade, que historicamente conheceu e conhece ainda hoje um grande sucesso. O recente livro do ministro das Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin, com cerca de oitocentas páginas sobre a poesia, intitulado, a partir de uma frase de Rimbaud, Éloge des voleurs de feu [Elogio dos ladrões de fogo], não é senão a consagração oficial e quase governamental desse mal-entendido.

Em 1884, quando Rimbaud vive exilado em Aden, em que consiste essa publicação de Verlaine, Les poètes maudits, que associa Rimbaud precisamente àqueles de quem ele fugiu? Sabe-se que, entre todos, aquele de quem Rimbaud mais quis se afastar foi Verlaine e o que este representa da sociedade literária do Parnaso contemporâneo. Como não lembrar o que Rimbaud escreve nas últimas linhas de Uma estação no inferno: “Que dizia eu de mão amiga? Uma bela vantagem é que posso rir dos velhos amores mentirosos, e cobrir de vergonha essa gente mentirosa — Eu vi o inferno das mulheres nesse mundo!”?

Pode-se pensar que em 1884, quando publica Les poètes maudits, Verlaine não escolhe esse título em função do título que Rimbaud publicou dez anos antes? Como esse título não ficaria vulgarmente associado ao autor de Uma estação no inferno? O raciocínio é simples: como é que aquele que escreveu Uma estação no inferno não seria logicamente um poeta maldito? De resto, Verlaine dedica-se a isso já no prefácio da edição de 1884 de Les poètes maudits, especialmente no retrato que propõe de Rimbaud, e que dá a entender que ambos, ele e Rimbaud, teriam sido um casal.

Após o escândalo do mês de julho de 1873, em Bruxelas, e sua repercussão na França, quem terá lido de outro modo as linhas que Verlaine dedica amorosamente ao retrato de Rimbaud, na abertura de Les poètes maudits? Cito:

Não é mesmo “o Menino sublime” […] mas não sem o protesto dos lábios há muito sensuais e de um par de olhos mais perdidos numa lembrança antiga do que num sonho precoce? Um Casanova garoto [sic], mas de aventuras mais experientes, não ri nessas narinas ousadas? e esse belo queixo acidentado não parece “mandar às favas” toda ilusão que não deve a existência à mais irrevogável vontade? Enfim, a nosso ver, a soberba melena só pôde ser desfeita por sábios travesseiros, aliás calcados pelo cotovelo de um puro capricho sultanesco [sic] e pelo desdém viril de uma toalete inútil para essa literal beleza do diabo!.[4]

O que essa sopa afetiva e pederástica tem por função alimentar? Será preciso, a propósito da “melena […] desfeita […] por sábios travesseiros”, apresentar uma imagem mais realmente íntima de Rimbaud, lembrando que ele raspou os cabelos ao saber da morte de sua irmã Vitalie, em 1875?

Nada aí que Verlaine queira saber, ao construir a mitologia fantasmática de um Rimbaud “poeta maldito” com sua “literal beleza do diabo”, e cuja “maldição” ele quer dar a entender que partilhou. Pois um pouco adiante ele acrescenta, como para reduzir Rimbaud, eu diria, à medida dele, Verlaine: “Na época relativamente distante de nossa intimidade, o sr. Arthur Rimbaud era um menino”.[5]

O que significaram, e o que significam ainda hoje, tais declarações que associam antes de tudo, e essencialmente, Rimbaud aos “poetas malditos”, isto é, à miséria do meio poético e literário da época? Verlaine, em sua miséria, não é manifestamente, masoquistamente, por escolha, biográfica e literária, aquele que mais realmente quer ser “maldito”? Se houvesse necessidade, sua “conversão” viria nos confirmar isso.

Quando Verlaine escreve: “Na época relativamente distante de nossa intimidade…”, quem não entende que Verlaine, ao publicar Les poètes maudits, estabelece mitologicamente sua própria biografia? Uma biografia da qual Rimbaud, justamente com Uma estação no inferno, procurou se afastar.

Em seu título, em seu projeto, em sua realização, o objetivo de Les poètes maudits não pode ser visto senão como a própria negação do livro de Rimbaud; livro no qual Verlaine se vê implicado como “virgem louca”, livro que ele dolorosamente recebeu, que mantém sob sua posse, e cuja leitura ele está, mais ou menos conscientemente, decidido a obliterar.

O que diz, em sua leitura mais imediata, o título do livro de Rimbaud? Uma/ estação/ no/ inferno? Que diz esse título, senão que o autor considera ter passado (sublinho “passado”) “uma estação”, uma temporada, no inferno, e que ao sair se dá conta disso? “Maldito” ele seria se tivesse ficado ali. Essa, de fato, é toda a intriga do livro. Não é necessário ser um psicólogo hábil para compreender que fazer Rimbaud figurar entre os poetas “malditos” é, se posso dizer, um desejo piedoso.

É verdade que o século XIX, o século XX e o século XXI fazem do inferno uma concepção bastante banal, cotidiana e, em suma, familiar: “Creio-me no inferno, logo estou nele”, escreve Rimbaud.

Acreditamo-nos no inferno, logo estamos nele, vivemos sob uma fatalidade, somos “malditos”. Como não consideraríamos os poetas de que fala Verlaine e, de outro lado, Rimbaud, como curiosidades de outro tempo? Vimos outros, do gênero, infinitamente mais monstruosos… Então, a danação, o inferno, nós conhecemos e sabemos bem que é algo que se deixa viver!

Acontece que Rimbaud, quando escreve Uma estação no inferno, com toda a certeza não pensa que vive nele, e menos ainda que vive sob uma maldição, que é um dos condenados.

DANTE E RIMBAUD

É muito difícil considerar um livro, publicado em 1873 e intitulado Uma estação no inferno, sem fazer referência à Divina Comédia de Dante, que Rimbaud muito provavelmente leu, na tradução de Lamennais, tal como aparecia, em versão bilíngue, com um longo prefácio, nas Obras póstumas de Lamennais, em 1854 (essa leitura por Rimbaud é perfeitamente demonstrável).

Sabe-se que A Divina Comédia conhece um sucesso de tradução e uma influência mais ou menos manifesta na França, no século XIX. Balzac admirava-a sem reservas, cita com frequência Dante, e é por referência explícita à Divina Comédia que dá ao conjunto de sua obra o sobretítulo A comédia humana.

Rimbaud retoma o título de Balzac nas Iluminuras, no poema em prosa “Vidas”, onde escreve: “Eu ilustrei a comédia humana” (certamente evocando Uma estação no inferno) — e pode-se pensar por outro lado que, em outro poema em prosa, “Cenas”, ele busca uma nova compreensão da Divina Comédia de Dante, ao escrever “A antiga Comédia prossegue em seus acordes e divide seus Idílios”.

É verdade que, do conjunto dos três livros (“Inferno”, “Purgatório”, “Paraíso”) que compõem a obra de Dante, é “Inferno” que parece ter atraído mais particularmente o interesse dos escritores franceses dos séculos XIX e XX. Quem pensará por isso que Dante, qualquer que seja sua biografia, pudesse alguma vez ser considerado um “poeta maldito”? Rimbaud certamente não. De resto, se é difícil não evocar A Divina Comédia ao ler Rimbaud, convém imediatamente assinalar que o “inferno” rimbaudiano tem uma envergadura bem distinta (“absolutamente moderno”) que a do inferno dantesco.

Dante apenas atravessa o inferno como observador, “como um homem livre” (“come persona franca”, ele escreve no canto II, 132), enquanto Rimbaud passa ali toda uma temporada.

No entanto a ambição escatológica do francês “moderno” não é menor que a do florentino. Ela se distingue, primeiramente, em que “o moderno”, e em particular o francês, acha-se em situação de periodizar o inferno, o que implica um pensamento completamente diferente do tempo.[6]

“UMA” ESTAÇÃO

O que distingue a obra de Rimbaud, considerando que essa obra se fixa antes de tudo no único livro que ele buscou publicar (sabemos que foi editado por conta do autor), não é essencialmente “o inferno”: é que o inferno se fixa aqui em “uma” estação.

Se quisermos compreender melhor o que acontece com a obra de Rimbaud, é preciso, no que concerne a Uma estação no inferno, ficar vigilante tanto ao sentido que damos à palavra enfer [inferno] quanto ao que damos à palavra saison [estação, temporada], e desconfiar do que entendemos naturalmente por essas palavras.

Na obra de Rimbaud, a palavra saison não aparece pela primeira vez no título de seu livro Une saison en enfer. A palavra saison parece ocupar mais particularmente o escritor a partir de maio de 1872, isto é, a partir do momento em que Rimbaud, tendo vivido onze meses em Paris, em companhia de Verlaine, retorna a Charleville, para voltar a Paris dois meses depois.

A palavra saison impõe-se num poema datado de maio de 1872 e intitulado “Bannières de mai” [Bandeiras de maio] (Rimbaud talvez estivesse ainda em Charleville), do qual destaco os versos seguintes, tais como participam da elaboração da multiplicidade de sentidos que Rimbaud dá à palavra saison:

Qu’on patiente et qu’on s’ennuie

C’est trop simple. Fi de mes peines.

Je veux que l’été dramatique

Me lie à son char de fortune.

Que par toi beaucoup, ô Nature

Ah! moins seul et moins nul! —, je meure,

Au lieu que les Bergers, c’est drôle,

Meurent à peu près par le monde.

Je veux bien que les saisons m’usent.

À toi, Nature, je me rends;

Et ma faim et toute ma soif.

Et, s’il te plaît, nourris, abreuves.

Rien de rien ne m’illusionne;

C’est rire aux parents, qu’soleil,

Mais moi je ne veux rire à rien;

Et libre soit cette infortune.

Esperar com paciência e tédio

É simples demais. Desdenho minhas penas.

Quero que o verão dramático

Prenda-me a seu carro de fortuna.

Que muito por ti, ó Natureza

Ah, menos só e menos nulo! — eu morra,

Enquanto os Pastores, que estranho,

Estão quase a morrer pelo mundo.

Aceito que as estações me consumam.

A ti, Natureza, me entrego,

E toda a minha fome e minha sede.

Se te apraz, nutre, sacia.

Nada de nada me ilude;

Rir dos pais é rir do sol,

Mas eu não quero rir de nada;

E livre seja este infortúnio.[7]

Observamos que os versos não são rimados mas ritmados, e que o poema se apresenta como uma meditação em octossílabos. A palavra saison aparece igualmente na conclusão de uma carta datada “parmerde, Junphe 72” [parmerda (Paris-merda), junho de 1872] onde Rimbaud escreve: “Et merde aux saisons” [E merda às estações].

Mas é certamente num poema não datado (que é possível pensar tenha sido escrito entre abril e maio de 1873, e cujo primeiro verso é “Ó estações, ó castelos” [Ô saisons, ô châteaux] — poema que Rimbaud retoma e publica em Uma estação no inferno) que melhor se esclarece a meditação sobre a natureza, a morte e as estações que Rimbaud iniciou com “Bannières de mai”, e tal como culmina literalmente em Uma estação no inferno.

Há várias versões desse poema. Pierre Brunel, em sua edição crítica de Uma estação no inferno,[8] observa: “Esse poema teve certamente vários títulos: ‘Bonheur’ [Felicidade] (é o título indicado no rascunho de ‘Delírios II’), ‘Les saisons’ ou ‘Saisons’” (donde esta nota marginal num manuscrito: “c’est pour dire que ce n’est rien la vie: voilà donc les Saisons” [É para dizer que não tem importância a vida: eis portanto as Estações].

No final desse rascunho e dessa parte de Uma estação no inferno publicada sob o título “Delírios II”, o poema “Ó estações, ó castelos” é assinalado na frase seguinte: “Nas grandes cidades, na aurora ad matutinum, no Christus venit, seu dente, doce até a morte, me avisava com o canto do galo Feli(cidade)”.

O próprio poema confirma o que assinala esse rascunho: “Ó estações, ó castelos” participa do estudo da felicidade (“J’ai fait la magique étude/ Du bonheur, qu’aucun n’élude”). Convém citá-lo por inteiro, no original:

Ô saisons, ô châteaux!

Quelle âme est sans défauts?

Ô saisons, ô châteaux!

J’ai fait la magique étude

Du bonheur qu’aucun n’élude.

Salut à lui, chaque fois

Que chante le coq gaulois

Ah! je n’aurai plus d’envie,

Il s’est chargé de ma vie.

Ce charme a pris âme et corps,

E dispersé les efforts.

Ô saisons, ô châteaux!

L’heure de sa fuite, hélas!

Sera l’heure du trépas.

Ô saisons, ô châteaux!

*

Ó estações, ó castelos!

Que alma é sem defeito?

Ó estações, ó castelos!

Eu fiz o mágico estudo

Da felicidade que ninguém elude.

Saudemo-la, toda vez

Que cante o galo gaulês.

Ah! não terei mais vontade

Ela se encarregou de minha vida.

Esse feitiço tomou alma e corpo

E dispersou os esforços.

Ó estações, ó castelos!

A hora de sua fuga, infelizmente,

Será a hora do trespasse.

Ó estações, ó castelos![9]

 

Mais uma vez, há várias versões desse poema. A que acabo de citar é a que Rimbaud fez figurar na parte intitulada “Delírios II” de Uma estação no inferno. Tal fato assinalaria, se houvesse necessidade disso, que Rimbaud insistiu assim em marcar a função decisiva da palavra saison no título de seu livro.

O que leva Rimbaud a querer marcar, isto é, viver, de 1872 a 1873, especialmente por meio de “Bannières de mai” e do poema que publica em Uma estação no inferno?

As estações (saisons) estão aqui evidentemente associadas a uma meditação sobre o escoamento do tempo. Mas o que se deve entender por isso? Em primeiro lugar que, tanto em “Bannières de mai” quanto em “Ó estações, ó castelos”, esse escoar do tempo, ligado aos fenômenos naturais, deve ter um prazo: “a hora do trespasse” — a morte, quer seja ela natural ou não.

Em “Bannières de mai” temos: “Que muito por ti, ó Natureza/ […] eu morra […]/ aceito que as estações me consumam./ A ti, Natureza, me entrego”, onde se pode reter o “aceito” — “me entrego” — me entrego à evidência, à evidência do que Rimbaud pensa, ao antecipar a morte.

A meditação se torna mais manifesta em Uma estação no inferno com a frase, na última publicação do poema, que precede e a que segue “Ó estações, ó castelos”.

Lembremo-nos de que uma das versões manuscritas trazia na abertura a declaração que acabou suprimida por Rimbaud: “é para dizer que não tem importância a vida/ eis portanto as estações”, onde se pode ler: “a vida”, “as estações”. Mas o que mais?

Em Uma estação no inferno, a publicação desse poema é introduzida e preparada pelas linhas seguintes:

A Felicidade era minha fatalidade, meu remorso, meu verme: minha vida seria sempre demasiado imensa para ser devotada à força e à beleza.
A Felicidade! Seu dente, doce até a morte, me avisava com o canto do galo – ad matutinum, ao Christus venit – nas mais sombrias cidades.

*

Le Bonheur était ma fatalité, mon remords, mon ver: ma vie serait toujours trop immense pour être dévouée à la force et à la beauté.
Le Bonheur! Sa dent, douce à la mort, m’avertissait au chant du coq – ad matutinum, au Christus venit – dans les plus sombres villes.

Refiro-me a meditação porque, em junho de 1872, na carta que Rimbaud envia de Paris a Ernest Delahaye e que termina por “Et merde aux saisons. Et ‘colrage’ [courage]” [E merda às estações. E coragem], Rimbaud evoca suas condições e suas horas de trabalho: “Agora é à noite que trabalho da meia-noite às cinco [horas] da manhã […] Às três da madrugada a vela se apaga: todos os pássaros gritam ao mesmo tempo nas árvores: acabou. Não mais trabalho. Eu precisava olhar as árvores, o céu tomado por essa hora indizível, primeira da manhã”.

Isso transforma em algo bem diferente quando Rimbaud trabalha, alguns meses mais tarde, em Uma estação no inferno: “ad matutinum”, “ao Christus venit”.

É com toda a razão que os editores da obra de Rimbaud, Henri de Bouillane de Lacoste, Pierre Brunel e Steve Murphy[10] tendem a considerar “Ó estações, ó castelos” como um elo da gênese de Uma estação no inferno.

Resta considerar o próprio da meditação de Rimbaud, que parece associar e questionar a felicidade, as estações, o eterno retorno das estações e o escoamento do tempo.

J’ai fait la magique étude

Du bonheur, qu’aucun n’élude

[…]

L’heure de sa fuite, hélas!

Sera l’heure du trépas.

Se nos concentrarmos nesse ponto, Rimbaud parece antecipar sua fuga (“hélas”) levando em conta, se posso dizer, o “trépas” [falecimento, trespasse]… “é para dizer que não tem importância a vida/ eis portanto as estações”.

Não está aí, em essência, o objeto da meditação, da experiência meditativa de Rimbaud? Ela se esclarece melhor ainda ao mostrar, se examinarmos um verso bastante curioso, que o nacionalismo espontâneo e natural aos franceses, como o do cidadão de qualquer país, priva-o de sua conotação irônica e o torna ilegível. Rimbaud escreve:

J’ai fait la magique étude

Du bonheur qu’aucun n’élude.

Salut à lui, chaque fois

Que chante le coq gaulois.

Em outra versão: “Je suis à lui chaque fois/ Si chante son[11] coq gaulois” [Pertenço a ela toda vez/ que canta seu galo gaulês].

“Ninguém elude” a “felicidade” — ninguém elude seu patriotismo, de tal modo que a felicidade parece estar aí “toda vez que canta o galo gaulês”, e os dois versos seguintes não deixarão então de ser interpretados em sentido contrário: “Ah! não terei mais vontade,/ Ela [a felicidade] se encarregou de minha vida”.

O que saberemos dessa “felicidade”, e dos versos que inicialmente ela intitula, se não se esclarecer o que a associa emblematicamente ao “galo gaulês”? Se não se perceber que “o galo”, como símbolo da França, torna-se um emblema oficial na época de Luís Felipe e da Segunda República (1830-1852), quando figura na haste das bandeiras dos regimentos?

Rimbaud retornará uma única vez à palavra saison num dos poemas em prosa das Iluminuras, “Bárbaro” — e o fará com a mesma conotação. Que se entendam assim estes versos: “Bem depois dos dias e das estações, das pessoas e dos países […] restabelecido das velhas fanfarras de heroísmo — que ainda nos atacam a cabeça[12] e o coração — longe dos antigos assassinos […]” [Bien après les jours et les saisons, et les êtres et les pays […] remis des vieilles fanfares d’héroïsme – qui nous attaquent encore le coeur et la tête — loin des anciens assassins (…)].

De resto, não é só com o poema “Ô saisons, ô chateaux!”, publicado em Uma estação no inferno, que Rimbaud evoca o reinado de Luís Felipe.

Em outra passagem de Uma estação no inferno, intitulada “O impossível”, após ter escrito: “Eu mandava ao diabo as palmas dos mártires” [J’envoyais au diable les palmes des martys]” e ter acrescentado: “No entanto quase nem imaginava o prazer de escapar aos sofrimentos modernos…” [pourtant je ne songeais guère au plaisir d’échapper aux souffrances modernes…”]), Rimbaud conclui: “O sr. Prudhomme nasceu com o Cristo” [M. Prudhomme est né avec le Christ].

O sr. Prudhomme,*** a imagem, o arquétipo do burguês da época de Luís Felipe, a figura moderna de felicidade “que ninguém elude” [“l’heure sa fuite, hélas!/ Sera l’heure du trepas”]. O sr. Prudhomme nasceu com o Cristo… afirmar isso não é caracterizar “a felicidade” em questão e pôr em cena o vasto período histórico onde têm lugar “os sofrimentos modernos”?

O sr. Prudhomme e o Cristo… O que isso quer dizer, senão que é preciso entender-se, no tempo, sobre a felicidade “que ninguém elude”, e compreender bem do que se trata quando Rimbaud explica: “é para dizer que não tem importância a vida — eis portanto as estações”?

Enfatizo que a expressão “é para dizer” assinalaria, como se houvesse necessidade de dizê-lo, que tudo isso quer dizer alguma coisa… Mas o quê? A “felicidade” (“seu dente, doce até a morte”), a vida, as estações… É preciso entender-se sobre o eterno retorno das estações e o tempo tal como passa na periodização sazonal.

As estações (“Ó estações, ó castelos”) assinalam certamente o tempo que parece poder ser, em seus castelos, habitado naturalmente, com felicidade, mas é não menos naturalmente que a hora da fuga da felicidade, “infelizmente, será a hora do trespasse…”.

Para acompanhar o que Rimbaud coloca então em jogo, convém lembrar que, em “Bannières de mai”, os versos “Aceito que as estações me consumam/ A ti, Natureza, me entrego” prosseguem por esta declaração espantosa: “E livre seja[13] este infortúnio”. O que é ser livre de sua própria morte?

Não é da “fortuna” dessa espantosa liberdade que trata Uma estação no inferno?

A meditação poética de Rimbaud leva-o a descobrir que o tempo, no seu escoar, no periódico retorno sazonal do escoamento do tempo, não é senão a caracterização do tempo como passado, como escoamento do sucessivo e distanciamento em exílio de todo instante… O escoar do tempo não é senão a caracterização temporal como “passagem” (“hélas”), ou a “felicidade” do sr. Prudhomme não é senão uma morte disfarçada em vida: um inferno climatizado. Com Uma estação no inferno, o pensamento de Rimbaud busca esclarecer esse “hélas!”.

A última parte do livro, intitulada “Adeus”, o confirma. Convém entender assim: “O outono já![14] [o que não deixa de evocar “l’heure de sa fuite, hélas!”] — Mas para que lamentar um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da clareza divina — longe das pessoas que morrem nas estações” [L’automne déjà! — Mais à quoi bon regretter un éternel soleil, si nous sommes engagés à la découverte de la clarté divine — loin des gens qui meurent sur les saisons].

Haveria portanto, para Rimbaud, um saber, um modo de ser, uma clareza divina (e como um pensador não divinizaria a clareza?)… haveria a descobrir uma clareza divina que evita todas as queixas (“hélas!”) e todos os lamentos (“déjà!”)… “loin des gens qui meurent sur les saisons”.

Lembremos que, em “Bannières de mai”, Rimbaud escreve:

Que muito por ti, ó Natureza

Ah! menos só e menos nulo! — eu morra

Enquanto os Pastores, que estranho,

Estão quase a morrer pelo mundo.

Haveria então um saber “menos nulo”, um conhecimento, uma clareza necessariamente divinos, que sairiam pelo mundo em busca das cercanias da morte, longe dos que morrem nas estações?

Se considerarmos que, no título do livro que Rimbaud publica em 1873, deve ser dada uma importância se não superior, ao menos igual ao sentido da palavra saison do que ao sentido da palavra enfer, seremos também obrigados a considerar que o que devemos entender por “estações” é que define o inferno e os seus limites.

QUESTIONAR O TEMPO

De fato, UMA estação no inferno não é uma estação entre outras — uma estação no eterno retorno das quatro estações —, mas certa disposição quanto ao tempo, podendo enquanto tal ser um inferno. É uma disposição do tempo em que a caracterização e a fixação do temporal são vividas como escoamento do sucessivo, uma disposição do tempo em que o “era” do passado se fixou na rigidez e na impossível proximidade de todo instante (“O outono já!” — “sua fuga, infelizmente!”).

Não é aqui o inferno a estação, a travessia sazonal desse hélas!, e das formas que ele toma no tempo em que se estabelece como periodicidade crônica?

Compreender-se-á que Uma estação no inferno é uma meditação sobre a vida como “espírito”, corpo — música no corpo —, felicidade, e sobre a antecipação da morte[15] como imanência de uma certeza: uma meditação sobre o tempo.

UMA estação no inferno estabelece, na disposição natural do eterno retorno das quatro estações, a fixação de um período (UMA estação) que oblitera e aliena toda livre compreensão (“e livre seja este infortúnio!”) do tempo.

Assim Rimbaud dispõe no prólogo a Uma estação no inferno as dificuldades que, periodizando e datando o inferno, ordenam todos os discursos, todas as palavras. A primeira dessas dificuldades é o acesso, a dificuldade de acesso ao passado.

A primeira palavra do prólogo (convém insistir na palavra “prólogo” para designar as páginas que precedem a estação), a palavra que vem antes de todo discurso manifesto, é justa e significativamente a palavra jadis [outrora] — a evocação da memória do “outrora cria embaraços no inferno.

Rimbaud abre o prólogo de Uma estação no inferno invocando, mais do que evocando, o passado. Esse passado na voz presente do poeta cria embaraços no inferno e, portanto, leva à “descoberta da claridade divina”. Ele abre o prólogo invocando muito classicamente (segundo o modelo de Homero e dos poetas gregos) sua memória [16] “Outrora, se lembro bem,[17] minha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam” [Jadis, si me souviens bien, ma vie était un festin où s’ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient].

O prólogo é essencialmente dedicado a pôr em cena os embaraços com esse jadis,[18] seu distanciamento, sua perda, o poeta estando no inferno por uma noite ter encontrado uma beleza amarga, por ter-se armado contra a justiça, por tê-la injuriado, por ter fugido: “Uma noite, sentei a beleza sobre meus joelhos. — E a achei amarga — E a injuriei. Eu me armei contra a justiça” [Un soir, j’ai assis la beauté sur mes genoux. — Et je l’ai trouvée amère — E je l’ai injuriée. Je me suis armé contra la justice].

O que se deve entender por “Eu me armei contra a justiça”? Alguns comentários interpretam: me armei contra a justiça social. Devemos segui-los? Será essa uma das preocupações do Rimbaud que parodia o “temos deveres para com a sociedade”? Será essa uma preocupação de Rimbaud quando ele evoca a vida como “um festim”?

Não se deve, ao contrário, considerar que Rimbaud (sob a autoridade do jadis) se refere ao pensamento convencional para o qual, já que tudo passa, tudo merece passar, e que é a justiça mesma essa lei do tempo que lhe impõe devorar os filhos?

Num dos rascunhos de Uma estação no inferno, Rimbaud escreve: “Melhor evitar [a mão] brutal da morte…” e, na entrelinha: “estúpida justiça”.

Sendo assim, o “eu me armei contra a justiça — confiei meu tesouro ao ódio” me parece mais exatamente visar a um mesmo obstáculo quanto ao tempo. Mas o que significa esse obstáculo situado na perspectiva, no ponto de fuga, de um “outrora” em que “a vida era um festim onde se abriam todos os corações”?

Não é essa revolta, esse armamento, essa fixação cega que determinam todos os embaraços e todos os ressentimentos embaraçados quanto ao tempo, com a admirável lógica do que segue? “Consegui fazer desaparecer do meu espírito toda a esperança humana” [Je parvins à faire s’évanouir de mon esprit toute l’espérance humaine]. Pode-se entender como: consegui fazer desaparecer do meu espírito tudo o que o homem, em sua essência, pode esperar dele mesmo enquanto esse homem.

Rimbaud retorna, o mais explicitamente possível, a esse movimento infernal e a esses embaraços na seção de Uma estação no inferno intitulada “Delírio II, Alquimia do Verbo”, onde escreve: “Meu caráter se azedava. Eu dizia adeus ao mundo…” e ainda: “Minha saúde ficou ameaçada. Vinha o terror… Eu estava maduropara o trespasse…” [Mon caractère s’aigrissait. Je disais adieu au monde…/ Ma santé fut menacée. La terreur venaitJ’étais mur pour le trépas…].

Ele faz a demonstração disso: submeter-se à convenção segundo a qual “já que tudo passa, tudo merece passar” e armar-se contra essa “estúpida justiça” para “evitar a mão brutal da morte” são a mesma coisa, é algo que fixa igualmente o tempo e participa igualmente do não-acesso ao “outrora”.

O próprio da justiça (e da revolta contra a justiça) do “já que tudo passa, tudo merece passar” não é antes de tudo voltar a vontade contra o tempo? Tempo que não é senão o do ressentimento, do espírito de vingança e da autodestruição que arrasa e condena, tempo do terror e do trespasse?

Assim, na encenação do prólogo a Uma estação no inferno, Rimbaud dispõe os modos dessa má vontade que diz “Eu”:

Eu me armei contra a justiça,

Eu fugi. Ó feiticeira, ó miséria, ó ódio, é a vós que meu tesouro foi confiado.

Chamei os carrascos para, ao perecer, morder a coronha de seus fuzis.

A infelicidade foi meu deus

E a primavera me trouxe o riso medonho do idiota.

*

Je me suis armé contre la justice

Je me suis enfui. Ô sorcière, ô misère, ô haine, c’est à vous que mon trésor a été confié!

J’ai appelé les bourreaux pour, en périssant, mordre la crosse de leurs fuzils

Le malheur a été mon dieu

Et le printemps m’apporté l’affreux rire de l’idiot.

Uma estação no inferno desdobra o tempo e a travessia, e o desvelamento do tempo do terror, de suas origens, de suas consequências, de seu término nos limites do moderno, da sujeição à morte dos amigos da morte, os atrasados de todo tipo”, diz finalmente Rimbaud.

E ele manifesta isso explicitamente, é uma antecipação quanto a seu ser terminado, o prazo na iminência de uma certeza (“ultimamente me achando a ponto de…” — “eu estava maduro para o trespasse”), que o leva a retomar, a pensar, a descobrir a disposição panorâmica dessa “estação”.

“Ultimamente me achando a ponto[19] de dar a última fífia, pensei em buscar a chave do festim antigo, onde recuperaria talvez meu apetite”: fífia: som falso e discordante, a última “fífia” é o último som falso e discordante, a última falsa nota (assim, é realmente, é finalmente de música e de poesia que se trata nessa antecipação), e essa falsa nota é também, evidentemente, a morte (a morte na partitura). A maioria dos comentários evoca a esse respeito a temporada de Rimbaud no hospital, depois que Verlaine disparou contra ele um tiro de revólver. Mas compreende-se bem, ao ler as linhas que precedem e as que seguem, que a busca da “chave do festim antigo” ocorre num mundo que não é senão um enorme hospital, um enorme asilo de velhos, o asilo de velhos do inferno, o inferno como asilo de velhos.

É com esse “ultimamente” (“e ultimamente me achando…”) que o inferno se abre e se periodiza, se atualiza e se historiciza, ou seja, que ele é atravessado de um modo diferente. O inferno se abre e se periodiza (em uma estação), e se embaraça a partir do momento em que o demoníaco pode entender que o ressentimento, o espírito de vingança, não o intima senão a conquistar a morte em seu asilo de velhos — o asilo de velhos da morte sendo então, precisamente, o corpo do demoníaco.

Assim é ao próprio demônio que Rimbaud faz dizer: “Permanecerás hiena etc., exclama o demônio, conquista a morte…” – “Permanecerás hiena etc.” que deve ser entendido como: te alimentarás de lixo.

O inferno, aqui, esse período do inferno, se assemelha, nesse epílogo, ao que Nietzsche formulou ao escrever: “A vontade, essa libertadora, tornou-se uma malfeitora; e, por não poder voltar atrás, ela se vinga sobre tudo que pode sofrer. Eis aí, por certo, eis aí tudo o que é a vingança mesma: o ressentimento da vontade contra o tempo e seu ‘era’… E, como aquele que quer sofre por não ter podido querer atrás, o querer e toda a vida haveriam de ser — castigo”.[20]

Não é o caso, evidentemente, de forçar a aproximação entre Rimbaud e Nietzsche, mas ainda assim é na crise própria ao término sem fim da metafísica, e no desvelamento do “estágio supremo” desse término (a era do niilismo), que surge no francês e no alemão essa meditação (esse pensamento) sobre o Tempo… e o que se esclarece nesse pensamento sobre o Tempo.

“Que venha, que venha/ O tempo que a gente ama” [Qu’il vienne, qu’il vienne,/ Le temps dont on s’éprenne] escreve Rimbaud em “Canção da torre mais alta” [“Chanson sur la plus haute tour”], quando retoma o poema em Uma estação no inferno.

Quanto a Nietzsche, ele se pergunta: “quem ensinou a se reconciliar com o Tempo e com algo mais elevado que toda reconciliação?”.

Mas o que se passa então? Por que e como se explica que, lendo a segunda parte de Assim falava Zaratustra (ela data de 1882-1883), no capítulo intitulado “Da redenção” (ou ainda “Da libertação”), não se possa ler Nietzsche, que apresenta Zaratustra como “um vidente que quer e cria um futuro e uma ponte para o futuro” — mas também, de certo modo, um aleijado nessa ponte, que se pergunta se “é um poeta ou um homem de verdade”… Por que não se pode ler essas linhas, entre outras, sem evocar Rimbaud?

Sabemos perfeitamente que Rimbaud não pôde ler Nietzsche e que Nietzsche não leu Rimbaud (a “Carta do vidente” data de 1871, e Uma estação no inferno, de 1873; quando Nietzsche publica o segundo livro do Zaratustra, em 1883, Rimbaud administra os negócios de sua casa comercial de Harar, nos confins da Etiópia, na Abissínia).

Mas podemos saber e compreender que a afinidade de inteligência nessas duas obras participa, no tempo, de duas atitudes quanto a uma mesma abertura… uma mesma abertura quanto ao Tempo, quanto ao questionamento do Tempo visto como possibilidade do fundamento da essência do homem, para além do homem considerado em seu aspecto cotidiano. Questionamento do tempo visto em sua dimensão mais ampla e tal como nele se desvela uma travessia.

Rimbaud, numa das prosas das Iluminuras, justamente intitulada “A uma razão”, escreve: “Muda nossa sorte, calibra os fiéis da balança, a começar pelo tempo[21] [Change nos lots, crible les fléaux]. Deve-se entender “calibra” [crible] como “examinar com cuidado”, e “fiéis da balança” [fléaux] como a haste horizontal de uma balança em cujas extremidades são suspensos os pratos.

Vejamos a totalidade dessa prosa:

Um toque de teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa a nova harmonia.

Um passo teu é o levante dos novos homens e sua marcha.

Tua cabeça se desvia: o novo amor!

Tua cabeça se volta – o novo amor!

“Muda nossa sorte, calibra os fiéis da balança, a começar pelo tempo”, te cantam essas crianças. “Eleva, não importa aonde, a substância de nossas fortunas e de nossos desejos”, te imploram.

Vinda de sempre, que partirás a toda parte.

*

À une raison: Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie

Un pas de toi c’est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche. Ta tête se détourne: le nouvel amour!

Ta tête se retourne — le nouvel amour!

“Change nos lots, crible les fléaux, à commencer par le temps”, te chantent ces enfants. “Elève n’importe où la substance de nos fortunes et de nos voeux”, on t’en prie.

Arrivée de toujours, qui t’en iras partout.

A “Razão” singular (que essa prosa diz ser por essência musical: “a nova harmonia”), a meditação, o pensamento de Rimbaud (que está para a história do pensamento assim como o gênio precoce de Mozart está para a história da música), esse livre pensamento participa da abertura de um estudo (“Foi primeiro um estudo”, explica Rimbaud em “Delírios II, Alquimia do Verbo” e, entre outros, nas Iluminuras: “Retomemos o estudo ao ruído da obra devoradora…” [Reprenons l’étude au bruit de l’oeuvre dévorante…]).

Um “estudo”, de fato, singularmente determinado por uma inteligência poética (criadora) precoce, quanto à consciência de seu isolamento e de seu isolamento de si mesma, e quanto ao isolamento implicado pelo próprio Tempo: “esse isolamento sendo a primeira condição de possibilidade de uma diferenciação entre pessoa e comunidade”, escreve Heidegger em 1930, no seu curso sobre Kant intitulado Da essência da liberdade humana.[22]

O ressentimento contra o tempo e seu “era”, o inferno, o inferno do medo e do ressentimento do medo, participam aqui da experiência singular: do clarividente “estudo” de Rimbaud (“Foi primeiro um estudo”).

Assim, numa primeira versão de “Sangue ruim” [“Mauvais sang”], Rimbaud escreve: “O inferno, ali com certeza os delírios de meus medos” e, no corpo do texto: “o inferno, castigo eterno”. E ainda, em “O impossível”: “Não há um suplício real no fato de que, desde essa declaração da ciência, o cristianismo, o homem se iluda, prove a si mesmo as evidências, se encha de prazer ao repetir essas provas, e viva apenas assim? Tortura sutil, tola, fonte de minhas divagações espirituais. A natureza poderia se entediar, talvez! O sr. Prudhomme nasceu com o Cristo”.

O tempo do ressentimento contra o Tempo não produz cultura, ciência, sociedade, do Cristo ao sr. Prudhomme… do Cristo aos modernos? Não dá ele sentido à história, tal como ela termina nesse inferno (“o inferno, ali com certeza os delírios de meus medos”), tal como se instala no regime do terror, tal como é explorada a seguir num regime de terror climatizado, tal como regula finalmente o mundo conforme as ciências e as técnicas?

MÉTODO – OU LIBERDADE LIVRE

Mas se quisermos realmente seguir o que está em jogo nessa questão, o que a encenação desenvolvida no prólogo a Uma estação no inferno supõe, quanto ao tempo e à periodização do inferno, devemos ainda considerar o movimento do pensamento e do método próprio ao poeta.

“Breve vigília de embriaguez, santa! Nem que seja apenas pela máscara que nos deste. Nós te afirmamos, método! Não esquecemos que ontem glorificaste cada uma de nossas idades” [Petite veille d’ivresse, sainte! Quand ce ne serait pour la masque dont tu nous as gratifié. Nous t’affirmons, méthode! Nous n’oublions pas que tu as glorifié hier chacun de nos âges], escreve Rimbaud na prosa das Iluminuras intitulada “Manhã de embriaguez”.

Método do despertar e do despertado. Já em 13 de maio de 1871, em sua carta sobre o ensino e a retransmissão do saber, Rimbaud se apresenta como “empenhado na descoberta da clareza…”.

Ele escreve: “Quero ser poeta e trabalho para me tornar vidente: o senhor não compreenderá tudo e eu quase não saberei lhe explicar. Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos” (Rimbaud sublinhou “vidente” e “todos os sentidos”). E ele repete na carta de 15 de maio (a “Carta do vidente”): “O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado[23] [raisonné] desregramento de todos os sentidos ”.

É curioso que não tenham se inquietado com essa declaração, e que em geral tenham sumariamente entendido “desregramento de todos os sentidos” como um desregramento apenas dos cinco sentidos. Verlaine e os meios literários parisienses insistiam (e ainda insistem) na versão de um Rimbaud “menino sublime”… “ladrão de fogo”, jovem vadio. “Todos os sentidos” significa por certo, e na medida em que são pensamento,[24] o desregramento dos cinco sentidos, no sentido, se posso dizer, que damos a cada um deles. Mas justamente, a propósito de sentido, como não entender também, entre outras coisas, o “desregramento” do “bom senso” que é em Descartes sinônimo da “razão”? O desregramento do “senso comum” (do Gemeinsinn kantiano) como faculdade de julgar o belo por um sentimento de valor universal, o desregramento do “sentido moral”, do “sentido da história” e de todas as histórias, e do “sentido da liberdade”, tanto no conceito de “liberdade negativa” (liberdade como independência, liberdade entendida como livre de alguém ou de alguma coisa) quanto no conceito de “liberdade positiva” transcendental (Kant)?

A frase atribuída a Rimbaud, que teria declarado que o que ele escreve “quer dizer tudo o que isso diz e em todos os sentidos”, não se acha justificada desse ponto de vista (do ponto de vista do desregramento de todos os sentidos)?

Rimbaud está totalmente consciente de ter de trabalhar “um longo, imenso e pensado 25 desregramento de todos os sentidos” — condição para, escreve ele um pouco mais adiante nessa mesma carta, “encontrar uma língua”, “o homem não trabalhando, não estando ainda despertado…”.

ENCONTRAR UMA LÍNGUA

É à experiência de um “despertar”, de um “despertado” que se determina, no desregramento pensado de todos os sentidos, que nos convida a utilização feita por Rimbaud da palavra saison em Uma estação no inferno… Essa “estação” uma, entendida como período que vale tanto por um ano quanto por um conjunto de tempo bem mais vasto: “um tempo infinito” contabilizado, historicizado na duração do tempo. “Ele durou dois mil anos”, diz Rimbaud, que observa noutra parte que “o pensamento requer larga espessura de tempo”… “Uma estação de 2000 anos com o inferno”, aqui agora em abril de 1873, e aqui agora na aurora do século XXI.

Que sentido pode ter o desregramento que Rimbaud pratica nessa continuidade? O que é que Uma estação no inferno faz aparecer como desregramento das estações e do tempo? “A natureza se entediaria?”, pergunta Rimbaud.

A compreensão de tal desregramento pensado de todos os sentidos parece tender, primeiro, a descobrir que o senso comum, aquilo que entendemos imediatamente, aquilo que parecemos entender naturalmente (na ordem lógica da retransmissão do saber), não costuma ser senão o habitual de um longo hábito que esqueceu o inabitual de onde um dia brotou — surpreendendo o homem na estranheza e envolvendo o pensamento em seu primeiro espanto — como as estações, a natureza… “A liberdade na salvação”, declara Rimbaud.

Será preciso, para concluir, explicar que esse habitual (ao qual se trata de aplicar o desregramento) é aqui em primeiro lugar, mais particularmente, mais essencialmente, a palavra, na medida em que ela, em seus hábitos convencionados, cessou de surpreender, isto é, de falar?

Notas

* Nome do coronel que forjou uma acusação de traição contra Alfred Dreyfus. (N. T.)

** O título original é Une saison en enfer, que também poderia ser vertido para Uma temporada no inferno, título, aliás, empregado em algumas edições em português da obra. Neste artigo, preferimos Uma estação no inferno, pois essa tradução corresponde melhor aos propósitos do autor quando comentará a multiplicidade de sentidos da palavra saison, como o leitor verá adiante. (N. T.)

*** Referência a um tipo criado por Henri Monnier, representando a nulidade magistral e satisfeita consigo. O termo também significa “probo”. (N. T.)

[1] François Mauriac, Bloc-Notes, Paris, Seuil, 1993. Col. Points, t. 1 (1952-1957).

[2] Grifos meus, Rimbaud destaca apenas a palavra manter.

[3] Grifos meus.

[4] Paul Verlaine, “Les poètes maudits” em Oeuvres en prose, completes, Paris, Gallimard, 1972, Bibliothèques de la Pléiade. Grifos meus.

[5] Grifos meus.

[6] Sobre o duplo movimento de compreensão e de atualização do que associa a obra de Dante e a de Rimbaud, deve-se ler o único livro que esclarece e dimensiona uma considerável questão (L’ancienne comédie porsuit ses accords et divise ses Idyles), livro que Philippe Sollers dedicou à Divina Comédia. Ver a versão publicada pela Gallimard, na coleção Folio (Paris, 2002). É nesse mesmo livro que Sollers propõe uma investigação para nós aqui decisiva quando escreve: “Convoco Rimbaud nem que seja por uma razão de bom senso, a saber: que ninguém se perguntou o que queria dizer: Une saison en enfer. Por que une saison?”. Grifos meus.

[7] Grifos meus.

[8] Arthur Rimbaud, Une saison en enfer, edição crítica por Pierre Brunel, Paris Librairie José Corti, 1987.

[9] Grifos meus.

[10] Arthur Rimbaud, Oeuvres Complètes, edição crítica de Steven Murphy, Paris Librairie Honoré Champion, 1999. Vol. I: “Poèsies”.

[11] Grifo meu.

[12] Grifo meus.

[13] Grifos meus.

[14] Grifos meu.

[15] Sobre o princípio de “antecipação do ser terminado”, ver Martin Heidegger, “O conceito de tempo”, conferência de 1924 que se apresenta como o primeiro resumo de sua obra maior Ser e Tempo, em Martin Heidegger, Cahiers de l’Hernes, Paris 1983.

[16] “Memória, filha da Memória”, “Musa, dize-me o herói…”, assim começam  A Odisséia e A Ilíada, A Teogonia, Os trabalhos e os dias… e, de maneira mais geral o canto do aedo grego.

[17] Grifos meus.

[18] Que pode também se entender por “j’ai dit” [eu disse].

[19] Grifos meus.

[20] Friederich Nietzsche, Assim falava Zaratustra, segunda parte: “Da redenção”.

[21] Grifos meus

[22] M. Heidegger, De l’essence de la liberte humaine: introduction à la philosophie, Paris, Gallimard, 1987.

[23] Grifo meu.

[24] Empédocles: “Pois o sangue que banha o coração é pensamento”; e Nietzsche: “de tudo o que é escrito gosto apenas do que é escrito com sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é pensamento” (Assim falava Zaratustra, cit.).

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