1998

A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro

por João Adolfo Hansen

Resumo

As discussões quinhentistas sobre os indígenas não são antropológicas, mas teológicas. Deus é o fundamento do direito que regula a invasão e a conquista de novas terras. Esse pressuposto rege a política das monarquias ibéricas em sua busca de unidade e segurança contra inimigos internos e externos, o que implica monopólio da violência, combate às heresias, castigos exemplares. Segundo Foucault, o fato brutal da invasão antecede toda discussão jurídica sobre a escravização dos indígenas ou sobre a “guerra justa” contra eles. As discussões se adaptam aos acontecimentos que são a conquista territorial, a necessidade de mão-de-obra escrava, a competição comercial com outras nações europeias. A lei positiva reflete a lei natural que reflete a lei eterna. Mesmo para os defensores dos indígenas, que lhes reconhecem uma “alma”, “selvagem” só se define em oposição a “civilizado”. A nudez do selvagem mostra que ele ignora o pecado original. Os próprios jesuítas, adaptando sua catequese aos objetivos da expansão colonial e mercantilista, propõem a substituição da mão-de-obra indígena pela africana. Na universalidade cristã, o selvagem deve ser submetido pela força do verbo ou pela força das armas. Se lhe é dada a “liberdade de crer”, a definição de “liberdade”, no século XVI, é também teológica. Deus é o Bem e os índios só têm liberdade efetiva quando escolhem se orientar pelo Bem. Se recusam ou impedem a ação dos que lhes pregam a palavra de Deus, a guerra contra eles é justa.


A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para os doutrinar em.[1]

Aqui, vou relacionar os temas do poder político e da guerra para lhes falar da doutrina da “guerra justa” movida pela Coroa portuguesa contra os indígenas da sua colônia brasileira nos séculos XVI e XVII. Não faz muito tempo, Lévi-Strauss lamentou que a escolha europeia, no século XVI, tenha sido a cesura e o domínio, não a união, perguntando-se o que teria ocorrido se Carlos V e Montezuma tivessem constituído uma federação. É impossível responder, pois a história do que poderia ter sido é uma ficção improvável. Uma das telas de estilo flamengo de Vasco Fernandes, o Grão Vasco, datada de 1503, que hoje se acha em Viseu, figura a visita dos Reis Magos a Cristo. Um deles é um tupinambá: lá estão as plumas de arara, a borduna, o arco, as flechas, o rosto coberto de escarificaçães, as incisões de dente de cotia que enumeram os inimigos devorados… A citação do tupinambá pelo Grão Vasco é pacífica e eleva-o, segundo um esquema que se poderia chamar, com Lévi-Strauss, de “sociológico”.[2] Nos textos portugueses de que vou falar adiante domina, porém, a “biologia”: o índio é um ser do inferno verde, uma besta mista, heteróclita, em cuja monstruoidade também se pode ler, pelo avesso, o recalcado das fobias do observador, crente em Deus, temente do diabo, perseguidor da heresia, vassalo fiel que, vindo de uma nação de comerciantes fidalgos, não vê problema em aliar a ética do perfeito cortesão à acumulação. Acumulação primitiva também de capital simbólico: ao capturar as sociedades indígenas nas fórmulas teológico-políticas que regulam a expansão colonial, os textos quinhentistas as inscrevem numa memória europeia, com duração, espaço e características específicas da “política católica” ibérica. Como propôs um estudioso da história grega, Hartog, a sociedade se classifica ao classificar: chamar o monte visto do mar de monte Pascoal, apropriando-se dele com o nome do evento cristão, evidencia a natureza da forma mentis que veio nas primeiras caravelas e a fatalidade que aguardava os filhos de Mair Moñan.

Hoje, o saldo dessa história feita de genocídios é quase sempre o remorso acompanhado de uma bela, mas inofensiva indignação moral.

Não me parece historicamente adequado permanecer no âmbito moral da crítica aos colonizadores, lamentando o fato de que não trataram os selvagens equanimemente. Como lembrava Baeta Neves, a crítica moral é prisioneira inconsciente da mesma moral religiosa que ela responsabiliza por tê-los escravizado e dizimado.[3] Culpar os agentes históricos da conquista por não terem tido o discernimento antropológico que a nossa consciência democrática julga ter corre o risco de universalizar retrospectivamente nossos critérios iluministas de julgamento. Talvez seja melhor tratar de algo mais delicado e difícil. Aqui, vou tentar reconstituir alguns pressupostos doutrinários da “guerra justa” e dois modos principais como o tema aparece nos discursos do século XVI sobre o Brasil que chegaram ao presente.

Carl von Clausewitz escreveu que a guerra é a continuação da política por outros meios. Com Foucault, penso que é preciso inverter a fórmula e propor que a política portuguesa que se ocupa dos indígenas no Brasil do século XVI, assim como a espanhola que se ocupa deles na mesma época no rio da Prata, no Peru, no Caribe e na Nova Espanha, são uma continuação da guerra em tempos de paz.[4] Com isso, em vez de lhes dizer que a doutrina do direito aplicada pelos missionários, cronistas, viajantes, teólogos e juristas à discussão da natureza do selvagem é um limite pacífico que especifica o legal e o legítimo das medidas adotadas, proponho que o direito é um instrumento de sujeição também quando estabelece a legitimidade delas. Embora em muitas situações particulares ele tenha efetivamente servido à defesa dos indígenas, como é o caso muito admirável de Bartolomé de Las Casas e de Manuel da Nóbrega, no século XVI, e de Antônio Vieira, no XVII, mesmo assim não vou pensá-lo pelo viés da legalidade ou da legitimidade que ele fundamenta e regula, mas pelos mecanismos de sujeição que põe em prática. Isso porque as discussões quinhentistas sobre os indígenas não são antropológicas, mas teológicas: Deus é o fundamento metafísico do direito, da política e da ética que regulam a invasão e a conquista das novas terras. Por outras palavras, nos textos que vou referir, é algo impensado e impensável o pensamento que autonomiza a história do fundamento divino e que é a condição do relativismo cultural instaurado pelo Iluminismo desde o século XVIII. Neles, o indígena não é representado segundo o pressuposto que a antropologia chamou de “pensamento selvagem”, ou seja, segundo as próprias razões da razão selvagem que necessariamente implicam a relativização das razões do observador. A universalidade da religião cristã na base do direito inclui tais razões a priori, classificando-as como falta de Bem. Em todos os casos, trata-se de um modo de pensar fundado metafisicamente como a analogia escolástica, ou seja, um modo de pensar que estabelece relações de semelhança entre as práticas indígenas e o princípio metafísico que o regula. Ele é, por isso, o princípio doutrinário do sentido da ação e um limite teórico dela. Não há, no caso português, nenhuma formulação sobre o indígena que não seja teologicamente determinada por ele. Tanto a legalidade quanto a ilegalidade das medidas adotadas pela Coroa, pelos padres e pelos colonos pressupõem a universalidade do Deus de Roma. Mesmo na versão aparentemente mais branda, a do projeto jesuítico que reconhece a humanidade dos povos invadidos e que inúmeras vezes intervém em sua defesa contra a expropriação colonialista, a mesma humanidade não é tida como diferença cultural, mas como identidade de uma mesma substância espiritual criada por Deus, a alma. A religião católica afirma que a alma participa na substância metafísica do divino como um efeito criado e um signo reflexo; por isso, a alma é o núcleo teórico, vamos dizê-lo assim, das classificações do indígena como “animal” ou como “humano”. A atribuição ou a produção de uma “alma” para ele, como ocorre nas práticas dos jesuítas, logicamente pressupõe que é um “próximo”, como no mandamento Amar o próximo, da Bíblia; no caso, porém, um próximo metafísica e politicamente muito distanciado da lei eterna de Deus, pois de alma boçal, embaçada e corrompida pela bestialidade dos pecados. É preciso salvá-la, propõem os padres, e essa caridade católica, que tem a teologia por fundamento e limite, significa a extinção da cultura indígena como a “destribalização” acusada por Florestan Fernandes.[5]

A legitimidade da “guerra justa” contra os bárbaros do Brasil também pressupõe Deus. Então, a “guerra justa” é doutrinada e regrada reciclando-se tópicos medievais do direito canônico. Ela é dada como uma situação de exceção relativamente à centralidade do poder monárquico, tido

pelos agentes colonizadores como natural, legítimo e pacífico, porque o pacto que o estabelece está fundado na ética e na metafísica cristãs. A caracterização da guerra como situação de exceção, contudo, desloca e encobre o fato de que o próprio poder central, que se afirma natural, legítimo e pacífico, é também um poder de exceção, uma vez que não há poder naturalmente instituído.[6]

A partir de 1517, data das teses polêmicas e logo heréticas de Lutero, as versões católicas do poder reafirmam que ele só é legítimo quando a normalidade que institui é uma evidência da presença da luz natural da Graça na natureza e na história. Essa normalidade também aparece como exceção, porém, quando lembramos os processos pelos quais ela é estabelecida como a paz do “bem comum” dos reinos governados por príncipes católicos.

A política das monarquias ibéricas do século XVI é definida cristãmente como uma arte de manter a unidade e a segurança do reino contra inimigos internos e externos. Contra a hipótese maquiavélica de que o poder é um artifício desvinculado da ética visando o triunfo nas competições da cidade, a doutrina católica adapta tópicas testamentárias à redefinição da política no novo estado de coisas decorrente das Descobertas e da Reforma protestante, reafirmando a ética medieval como espelho ou modelo da ação dos príncipes.[7] Visando a unidade e a segurança do reino, a política pressupõe a necessidade da concórdia de cada um consigo mesmo, como autocontrole dos apetites prescrito pela ética aristotélica relida em chave neo-escolástica, e a amizade de todos os indivíduos e estamentos, como concórdia do todo do corpo político do Estado.

Segundo a doutrina católica do poder adotada em Portugal, da concórdia individual e da amizade do todo nasce a paz. Para assegurá-la, a Coroa aplica medidas de várias espécies, como o monopólio da violência fiscal, judiciária e militar; o combate às heresias; a censura intelectual; os castigos exemplares, açoites, fogueira, forca, garrote vil e degredo. O “bem comum” do reino é definido, então, como um estado de equilíbrio dos interesses e conflitos particulares obtido pela subordinação voluntária do todo do corpo místico da comunidade à cabeça do Império, o rei, num pacto de sujeição pelo qual os indivíduos, os estamentos e as ordens se alienam do poder. Abrindo mão dos direitos e declarando-se súditos, recebem os privilégios que os hierarquizam. Nessa hierarquia, que desce da cabeça real até as plantas dos pés escravos, os indígenas têm a liberdade de integrar-se como membros subordinados, pois então a liberdade dos indivíduos e do todo do reino é entendida paradoxalmente como subordinação hierárquica à cabeça mandante, o rei.

Com Foucault, pode-se dizer que o fato brutal da invasão e da ocupação dos territórios habitados pelos povos classificados como “selvagens”, invasão e ocupação sempre acompanhadas dos massacres e da espantosa variedade de atrocidades praticados pelos espanhóis e portugueses em todas as partes onde estiveram, do México à Patagônia, do litoral do Brasil aos Andes, antecede lógica e cronologicamente toda discussão jurídica sobre a escravização deles ou sobre a “guerra justa” contra eles. As discussões de Vitoria, Molina, Oviedo, Acosta, Gómara, Las Casas, Sepúlveda, na área espanhola, e de Nóbrega, Anchieta, Cardim e Vieira, na portuguesa, adaptam-se objetivamente aos acontecimentos, quero dizer, são produzidas pelos acontecimentos ou pela mediação deles, não importa a intenção particular dos agentes, que muitas vezes é admiravelmente justa. Por isso, elas têm necessariamente que também incluir como determinação do seu sentido o dado bruto e objetivo da invasão. Assim, as adaptações pretendem regular o direito de guerra contra os indígenas fixando as condições e os momentos em que seria “guerra justa” ou situação de exceção. Mas são objetivamente uma teoria da guerra aplicada como a “política católica” da monarquia portuguesa na conquista territorial, obtenção de mão­de-obra escrava e competição comercial, religiosa e política com outras potências europeias.

A carência do Bem católico que é produzida quando a perspectiva da verdade cristã constitui uma alma para o indígena que é classificado, no ato, como “animal”, “gentio”, “selvagem” e “bárbaro”, é simultaneamente suplementada por duas espécies básicas e, podemos dizê-lo hoje, complementares de intervenção. Ambas são violentas pelo mero fato de serem intervenções, embora tenham uma violência de graus ou intensidades diversas. Genericamente falando, a intervenção dos que afirmam que o indígena é um “cão” ou um “porco” bestial, bárbaro e “escravo por natureza”, e a intervenção dos que afirmam que é “humano”, mas selvagem, e que deve ser salvo para Deus por meio da verdadeira fé, que o integra como subordinado, escravo ou plebeu.

Quando lemos os textos de cronistas e jesuítas que atuaram no Brasil nos séculos XVI e XVII, observamos que produzem um novo objeto de conhecimento, “o índio”. O novo objeto – chamado de “índio” por causa do equívoco geográfico de Colombo, que acreditou ter chegado à Índia, em 1492 – é construído por meio de um mapeamento descritivo de suas práticas, ao qual se associam prescrições teológico-políticas que as interpretam e orientam segundo um sentido providencialista da história, que faz de Portugal a nação eleita por Deus para difundir a verdadeira fé. Obviamente, não havia “índio” nem “índios” nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nômades, não cristãos e sem Estado. No contato, repito, os missionários e os cronistas do século XVI classificam a pluralidade desses povos como “índios” e, simultaneamente, produzem uma essência, “o índio”, que definem como alma selvagem ou animal sem alma naturalmente subordinados às instituições. Quando classificam o novo objeto com as metáforas “animal”, “gentio”, “índio”, “selvagem” e “bárbaro”, também evidenciam a positividade prescritiva da universalidade de “não­índio”, ou seja, o “civilizado”, branco, católico, de preferência fidalgo e letrado.

Aqui, uso o termo selvagem como sinônimo de “homem da natureza”, bom ou mau, que as doutrinas do poder propõem como pressuposto lógico e cronológico da constituição política das sociedades. No século XVI, quando os indígenas do Brasil são dados pelos colonizadores como “selvagens” ou “homens da natureza”, também são caracterizados como gente sem história. Em decorrência, como um campo aberto para as intervenções das trocas civilizadoras. Como Nóbrega escreve em carta de, 10/8/1549: “Acá pocas letras bastan, porque es todo papel blanco…”.[8] Quanto ao “bárbaro”, só se define em oposição a “civilizado”: bárbaro é o que balbucia a língua que se quer civilizada, ou seja, é o não-civilizado, como os germanos que Tácito compara aos romanos no Germania. No século XVI, é corrente o lugar-comum: a língua geral falada na costa do Brasil não tem F, L e R. Sem Fé, sem Lei e sem Rei, o selvagem não conhece a revelação da verdadeira Igreja, nem a justiça da racionalidade hierárquica do Império, nem o governo da monarquia cristã. Ou seja: só há “bárbaro” diferencialmente; para que exista, é preciso haver uma civilização precedente ou contemporânea que ele destruiu ou tenta destruir.[9] Nos discursos de então, são bárbaros os tapuias que resistem à civilização portuguesa e que, ao contrário dos selvagens pacíficos ou pacificados, constantemente a atacam, aterrorizando os engenhos e as vilas com sua liberdade feroz. Considerando-se que a paz do “bem comum” define a finalidade cristã alegada pela monarquia na colonização, a guerra contra os bárbaros é justa. Por exemplo, é justa a guerra contra os tamoios do litoral de São Vicente e Rio de Janeiro, em 1563-64, bárbaros enquanto são aliados dos huguenotes franceses, enquanto se recusam a ser catequizados e a subordinar-se ao governador-geral.

Na “política católica”, as táticas e as estratégias adotadas na redução dos selvagens e bárbaros são definidas como um direito e um dever, pois a subordinação ou a extinção deles significa caridade para com os indivíduos e amor do bem comum. Na propaganda fidei jesuítica, a alma do índio deve ser salva do inferno por meio da conversão; pode-se mesmo obrigá-lo a ser salvo, pois é preferível que seja cativo e tenha a alma salva a que viva a liberdade natural do mato com ela condenada ao inferno.

Na prática de Nóbrega, Anchieta, Luís da Grã e Cardim, no Nordeste, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro e em São Vicente, no século XVI, e na de Vieira, no Maranhão e Grão-Pará, no século XVII, encontra-se, justificando as intervenções, a afirmação reiterada de que a lei positiva das sociedades indígenas é plenamente legal como convenção humana que regula a vida coletiva, pois o direito canônico estabelece que as sociedades humanas não dependem da revelação cristã para se instituírem politicamente. Mas o fato de as sociedades indígenas estarem corrompidas pelas “abominações” de costumes bárbaros e atrozes, que evidenciam a ação do diabo, impõe o dever de reduzi-las à primeira verdade perdida ou talvez esquecida, a Palavra de Deus, legitimando-se sua participação hierarquizada na divindade por meio dos sacramentos católicos, como o batismo, que a tornam visível. Em 1657, numa carta enviada do Estado do Maranhão e Grão-Pará ao rei d. Afonso VI, de Portugal, Vieira escreveu que, nos quarenta anos anteriores, os portugueses haviam matado 2 milhões de índios na Amazônia. O maior horror, segundo ele, era pensar que tantas almas postas sob a jurisdição de um reino que tinha por missão expandir a fé católica, haviam morrido sem o batismo e ardiam no inferno.[10]

Pressupondo tal concepção de legitimidade, as cartas de Nóbrega, que chega à Bahia em 1549, chefiando a missão enviada pelo rei d. João III; os autos de Anchieta, que chega em 1554; os tratados dos cronistas Pero de Magalhães Gândavo, em 1570, e Gabriel Soares de Sousa, em 1583, estabelecem relações de concordância analógica entre acontecimentos locais e eventos narrados na Bíblia; referem atos virtuosos de tipos heroicos; refazem genealogias exemplares, como vidas de santos, propondo-os como modelos de virtudes a serem imitadas; fazem extensas descrições dos hábitos selvagens, curiosidades e coisas fantásticas da terra. Imitam gêneros antigos, como o diálogo platônico, a história de Heródoto, as épicas romana e grega, a física aristotélica, a epístola paulina, a história natural de Plínio, o auto, o itinerarium e a peregrinatío medievais. Na catequese jesuítica, as referências fornecem tópicas da memória, da vontade e da inteligência que produzem a unidade virtuosa da alma cristã caridosamente imposta ao selvagem. Todas as referências pressupõem a definição católica, reafirmada ao longo do século XVI contra Lutero e Maquiavel, das três leis que devem estar presentes em qualquer sociedade legítima: a lei eterna de Deus, que é a causa primeira ou a razão universal que faz o mundo ser e desejar o ser; a lei natural da Graça inata, que é a presença de Deus na alma e no mundo, como aconselhamento do livre-arbítrio e orientação racional e providencial da história; a lei positiva, que são os códigos legais inventados pelos homens para organizar a política das sociedades. Na doutrina das três leis, a lei positiva só é legítima se for um reflexo da lei natural que reflete a lei eterna.

O modelo histórico que fundamenta a doutrina católica da legitimidade das leis positivas das sociedades como reflexo proporcionado e justo da lei natural da Graça inata é o Decálogo, a lei natural que foi escrita e transmitida a Moisés no Sinai pelo próprio Jeová. Segundo os colonizadores do Brasil, toda lei, para ser legítima e não apenas legal, deve pressupor como modelo a universalidade dos Dez Mandamentos. Da perspectiva da legitimidade fundamentada pela doutrina, a mera observação dos “índios” evidencia a corrupção da lei natural: fazem guerras por vingança; comem carne humana; não têm senso de propriedade; são polígamos, sensuais e luxuriosos. Santo Agostinho afirma que os órgãos sexuais são a parte maldita que transmite o pecado no ato da geração; logo, a roupa é “decência civil”. A nudez dos selvagens evidencia que não têm vergonha das vergonhas e que ignoram a culpa do pecado original. E, principalmente, não adoram a Deus ou a nenhum deus; ou adoram uma multiplicidade de deuses, demônios e ídolos.

A constituição das práticas indígenas como selvageria e abominação aparece nas duas interpretações conflitivas de que falei. Uma delas, exposta por cronistas que representam os interesses dos colonos, afirma que as leis positivas das sociedades indígenas são bárbaras porque não se baseiam no Decálogo. A Política, de Aristóteles, que afirma ser próprio do inferior subordinar-se ao superior, permite concluir que os indígenas são bárbaros, isto é, escravos por natureza. Pero de Magalhães Gândavo, no Tratado da Terra do Brasil, de 1570, chega a definir o indígena como um vegetal, uma erva má que afoga as boas plantas cristãs, na passagem em que declara ser impossível numerar e compreender a multidão de bárbaro gentio que a natureza semeou pela terra do Brasil. Gândavo afirma que andam armados contra as nações humanas (os portugueses), mas reconhece com alívio que, como são muitos, felizmente a Providência Divina permite que façam guerras uns aos outros e se destruam. Se assim não fosse, os portugueses não poderiam viver na terra, nem seria possível conquistar tamanho poder de gente.[11] Essa tese é corrente entre os coloniais, apesar da bula papal de 1537, que decretou que os occidentales & meridionales Indos tinham alma, ou seja, que eram gente como os católicos e que era vedado escravizá-los.[12] A mesma tese da “servidão natural” do índio, considerada inválida pelo papa em 1537, foi declarada herética pela sessão do Concílio de Trento que se realizou em Valladolid, em 1550. Como ordem religiosa a serviço de Roma, é contra ela que se bate a Companhia de Jesus.

Defendendo a versão católica oficial, os inacianos definem o índio como ser humano criado por Deus e dotado da luz natural, mas concedem que é um homem desmemoriado da verdadeira lei, a lei eterna. Logo, defendem a urgência de salvar-lhe a alma imortal, fornecendo-lhe a memória da justiça e do Bem por meio de leis positivas justas. O projeto catequético é homólogo da conquista da terra por isso, pois ocupa espiritualmente o vazio que é constituído pela produção de almas assim como o vazio pressuposto do território é ocupado militarmente. O que significa disciplinar os corpos por meio de práticas que produzem outra percepção para ele, como o aldeamento ao lado das vilas portuguesas, a proibição do nomadismo, das guerras intertribais e dos rituais antropofágicos, o encobrimento da nudez com roupas que evidenciam o senso cristão do pecado, a obrigação à monogamia e a audição repetida da palavra de Deus. Mas, principalmente, implica subordinar o tempo dos catequizados ao trabalho proposto como categoria transcendente ou, como dizia Horkheimer, como ideologia ascética em que religião e poder se fundem intimamente. Aqueles que não aceitam a catequese e tentam impedi-la são eliminados, caso dos caraíba tupis, xamãs que iam de tribo em tribo falando de Mair Moñan, a terra sem mal, dizendo evidentes mentiras sobre os portugueses: que era preciso ouvir a voz dos mortos exigindo a carne dos inimigos; que a água do batismo matava; que os portugueses só queriam roubar as terras, violentar as mulheres e escravizar os homens. Segundo o imaginário da caça às bruxas que então campeia na Europa, os caraíba tupis são “feiticeiros” e, sempre que necessário ad maiorem Dei gloriam., eliminados pelo braço da justiça secular dos governadores.

O núcleo substancial da doutrina da catequese e da guerra é, no caso, o mesmo que foi exposto por padres e doutores da Igreja, como são Jerônimo, santo Agostinho, Isidoro de Sevilha e santo Tomás de Aquino. Entendida como um estado de exceção, a guerra associa-se duplamente à prática catequética dos jesuítas e às práticas de escravização dos colonos. Na catequese jesuítica, ela é uma sanção que só se aplica ao gentio bravo, bárbaro, ou a casos individuais de barbárie, como os xamãs tidos por “feiticeiros”. Como limite manipulável pela cobiça dos colonos, só ocorre com justiça quando são atendidas três condições: causa justa, autoridade legítima de quem a faz e maneira reta de fazê-la. Não é qualquer um que pode começá-la, pois só o rei a pode declarar. Como afirma Isidoro de Sevilha, deve haver declaração prévia para que seja justa e quem a empreende deve ter virtudes cristãs, pois a finalidade do conflito também deve ser virtuosa. Santo Agostinho afirma que fazer a guerra não é delíto, mas que fazê-la por causa do lucro é pecado. Logo, o modo de realizá-la determina sua justiça: não se molestam os inocentes, os embaixadores, os estrangeiros e os clérigos; as coisas sagradas devem ser respeitadas e, em teoria, os inimigos não podem ser ofendidos mais que o necessário, pois é preciso manter a boa-fé para com eles. A dureza da agressão deve ser proporcional às culpas e aos delitos. Como diz santo Agostinho: “O desejo de ofender, a crueldade na vingança, o ânimo implacável, a ferocidade, a ânsia de dominação e outras coisas semelhantes são o que se deve condenar na guerra”.[13] Faz-se uma “guerra justa”, enfim, para se obter a paz da justiça e da prática da virtude que teoricamente impedem que os malvados continuem agindo. Neste sentido, o fim de toda “guerra justa” é a paz do “bem comum” do reino. Entre as várias causas que tornam uma guerra justa, deve-se lembrar a defesa contra agressões, quando a força é repelida com a força. Também é justa quando feita para se recobrar coisas tomadas injustamente. No caso, entende-se que é legítima não só para recobrar as coisas próprias, mas também as de aliados e amigos. É o que ocorre na luta contra os huguenotes franceses invasores da baía de Guanabara, em 1564; ou, em 1624 e 1640, no combate contra os holandeses calvinistas no Nordeste. Terceira causa para uma “guerra justa” é a necessidade de impor o castigo a malfeitores que não foram punidos ou que foram castigados com negligência. É o caso, a partir de 1562, das várias expedições punitivas contra os caetés do Nordeste, que comeram o bispo Sardinha, em 1556. Em todos os casos, a guerra é justa porque é empreendida em nome da justiça dos princípios cristãos, como acontecia nas cruzadas chefiadas pelos reis portugueses no Norte da África. O rei de Portugal tem o título de Grão-Mestre da Ordem de Cristo e a missão de dilatar a fé e o Império contra os infiéis. A universalidade cristã também implica que a guerra é justa quando realizada contra os que impedem os missionários de divulgar a fé, caso dos caraíba tupis.

Retomo aqui o que vinha dizendo no início. Se é verdade que o poder político assim entendido como uma arte cristã de produzir e manter a paz do “bem comum” do reino faz reinar a mesma paz, também é verdadeiro, como disse com Foucault, que ele produz a paz reinscrevendo a guerra como relação de forças nas instituições e nos corpos. No século XVI, quando os processos de centralização das monarquias ocidentais estão redefinindo o poder dos reis, a contínua produção de desequilíbrios e desigualdades pela Coroa evidencia a inversão proposta no início desta explanação: a política é uma continuação da guerra por outros meios em tempos de paz.

A questão dessa continuidade da guerra aplicada contra os habitantes das novas terras invadidas ou, como se diz piedosamente, “descobertas” pelos espanhóis e portugueses, aparece determinada nas discussões jurídicas do poder monárquico realizadas em várias instâncias, no século XVI, principalmente quando se trata de definir a natureza do selvagem, a legalidade da instituição monárquica, a legitimidade da posse das novas terras invadidas e das medidas que o poder central adota na conversão, sujeição e extermínio dos seus habitantes. A discussão teológico-política desses temas não se dissocia, evidentemente, da expansão mercantilista e das novas possibilidades de obtenção de riquezas[14] nas terras invadidas. A discussão é elemento ativo da expansão.

Nos primeiros trinta anos depois da chegada de Cabral, os portugueses estabeleceram relações de troca com os selvagens do litoral, principalmente na forma do escambo, pelo qual os indígenas forneciam a mão-de­ obra e o ibirapitanga, o pau-brasil, em troca de quinquilharias e objetos de ferro.[15] Sabe-se com os autos e as cartas de Anchieta, por exemplo, que os franceses foram aliados dos tupinambás, tamoios, caetés e potiguaras, tornando-se inimigos dos inimigos desses grupos, tupiniquins e tabajaras, por sua vez aliados dos portugueses. No comércio com as tribos, os contatos iniciais capitalizam o dado cultural nuclear da memória social dos grupos tupis do litoral, a guerra intertribal. Pareceriam indicar que os huguenotes franceses, arranhando a costa aqui e ali, ao contrário da colonização portuguesa logo baseada na agricultura extensiva, teriam tido relações caracterizadas pela isenção do juízo quanto aos indígenas, constituídos em parceiros comerciais.[16] Villegagnon, contudo, classifica o indígena de bête portant la figure humaine [besta de aparência humana];[17] e Le Testu faz do desconhecimento de Deus a razão da existência do sauvage.[18]

Nos primeiros tempos da conquista territorial, os portugueses mantêm o padrão de contato e trocas esporádicas – pelo menos até 1534, com a iniciativa das capitanias hereditárias logo fracassada por ser o descentramento um alvo fácil de resistência indígena. Como demonstra Lestringant, a ocupação francesa é similar. Restrita à exploração comercial do pau-brasil, não realizou nenhuma ocupação militar englobante nem, muito menos, teve preponderância ideológica, em razão da mesma dispersão. Conforme Lestringant, é a partir de 1534 que ocorre um deslocamento da estratégia colonizadora.[19]

A escravização sistemática dos selvagens e as “guerras justas” só começam para valer, contudo, a partir do estabelecimento do governo­geral e da missão jesuítica chefiada por Nóbrega, em 1549. Mas já nos primeiros anos do século XVI várias expedições portuguesas e espanholas foram enviadas ao Atlântico Sul, como as de Américo Vespúcio (1501), Solís (1512 e 1515), João de Lisboa (1515), Fernão de Magalhães (1520), Loyasa (1525), Sebastião Caboto (1526), Diego Garcia (1526), Martim Afonso de Sousa (1530). Quase todas elas aprisionaram e escravizaram indígenas que habitavam o atual território do Brasil. Eles eram vendidos em Sevilha, Lisboa, Porto Rico, Santo Domingo e na região do Prata. Na América, a prática foi iniciada por Colombo que, no final do século XV, levou escravos do Caribe para a Espanha, causando a indignação da rainha Isabel, a Católica. A real indignação não decorria, porém, da infração de um preceito moral por Colombo, mas do fato de ele ter se apropriado indevidamente do monopólio da Coroa.[20] A rainha aceitava a servidão de mouros e judeus na Espanha e a Coroa espanhola era proprietária de escravos, tendo autorizado várias expedições que saíram à caça deles nas ilhas do Caribe. O contingente desses escravos capturados pelas primeiras expedições é pouco conhecido, mas é possível rastrear informações parciais em relatos de viajantes e cronistas. Logo depois da expedição de 1501, Américo Vespúcio relata, numa carta para o senhor de Florença, Lorenzo de Medici: “[…] fizemos um acordo de apresar escravos, carregar com eles os navios e voltar para Espanha; e fomos a certas ilhas e tomamos pela força 232 almas e as carregamos e voltamos para Castela”. Uma razão adicional aparece, quando se refere às índias tupi-guaranis do litoral brasileiro levadas para os navios com fins sexuais: “[…] mostravansi molto desiderosi di congiugnersi con noi cristiani”.[21]

É preciso lembrar que as discussões sobre a escravidão dos selvagens e a “guerra justa” contra eles relaciona-se intimamente com o padrão português de ocupação territorial. Como se sabe, inicialmente houve duas frentes principais de ocupação: no Nordeste, a Bahia e Pernambuco, zonas do cultivo do açúcar e de demanda crescente de mão-de-obra escrava; no Sul, a capitania de São Vicente e, no planalto acima da serra do Mar, a partir da segunda metade do século XVI, a vila de São Paulo de Piratininga, lugar onde a caça do ”gentio da terra” foi uma das principais atividades econômicas dos habitantes, principalmente depois que os holandeses ocuparam as praças fornecedoras de negros em Angola. O historiador Taunay afirma que, no século XVI, para uma população de mais ou menos 4 mil almas livres, havia cerca de 70 mil escravos índios na capitania. No início do século XVII, segundo jesuítas, uma só bandeira paulista teria capturado 300 mil guaranis nas terras do Guairá, no atual Paraguai, que estavam reduzidos a 20 mil quando a bandeira regressou a São Paulo.[22]

Também é preciso lembrar a triangulação Lisboa-Brasil-África. Os portugueses ocupam sítios estratégicos no Congo desde as expedições feitas no século XV por Diogo Cão. A jurisprudência que se foi acumulando sobre a escravidão de africanos, realizada desde 1474, tornou-se uma fonte fundamental de referência na definição da “guerra justa” feita no Brasil contra os bárbaros, principalmente nas propostas jesuíticas de substituição da mão-de-obra indígena pela africana. Na época, os contatos com as regiões da África começaram como aliança e amizade. O Vaticano e o reino de Mombaça estabeleceram relações diplomáticas; um filho do rei manicongo foi nomeado bispo em Roma; vários homens do Congo, Angola e Mombaça receberam títulos portugueses de conde, marquês e duque; o rei d. Manuel III, de Portugal, trocou correspondência com o rei negro Afonso I, do Congo,[23] tratando-o como um irmão, um igual. Enquanto isso, a primeira lei portuguesa oficial sobre a liberdade dos índios foi baixada, em 20/3/1570, pelo rei d. Sebastião. Decretava que não seria permitido escravizar índios já catequizados e aldeados pelos padres inacianos; mas que seria possível escravizar índios por razões graves, como a antropofagia, numa “guerra justa”. Era justa quando feita contra os “[…] que costumam atacar os portugueses ou a outros gentios para os comerem”.[24] Na prática, por isso, qualquer grupo indígena não aldeado pelos jesuítas podia ser considerado “bárbaro” pelos colonos. Formalmente, a lei de 1570 protegia os índios postos nas aldeias sob a autoridade dos padres; ao mesmo tempo, fornecia justificativas jurídicas manipuladas como álibi pelos colonos e traficantes para guerrear, capturar e escravizar os selvagens que viviam a liberdade natural do mato.

Em todos os casos, a própria instituição da escravatura não é posta em questão. O que se discute é a legalidade e a legitimidade da posse de escravos indígenas, considerando-se legítima a posse cristã que garante a salvação da alma. Quanto aos africanos, nada. Em 1575, os portugueses estão estabelecidos em Luanda, Angola, e trocam mercadorias e escravos com os comerciantes holandeses de Amsterdão e Antuérpia. Enquanto procuram prata no interior de Angola, os portugueses transportam escravos negros para as plantações de cana-de-açúcar da Bahia e Pernambuco. A partir de 1580, com a União Ibérica, que junta as coroas da Espanha ede Portugal, o abastecimento português de escravos negros estende-se para as regiões dominadas pelos espanhóis no Novo Mundo.

Os cronistas que tratam do tráfico negreiro invariavelmente o justificam em termos cristãos. É, por exemplo, o que se lê na Crônica dos feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara que, depois de narrar os horrores do tráfico, propõe ao rei d. Henrique que os escravos vão alcançar a salvação de suas almas.[25] Encontra-se o mesmo argumento em Vieira, no século XVII, no famoso Sermão do Rosário pregado aos homens pretos de um engenho baiano. Reconhecendo que sofrem como Cristo e mais que ele no “doce inferno” dos engenhos de açúcar, afirma que devem conformar-se, pois terão a paga de tanta dor no céu.

Como lembrou argutamente Antônio José Saraiva, a guerra e a pirataria nas costas da África eram apresentadas aos contemporâneos dos primeiros navegadores portugueses como um prosseguimento das guerras de cruzada contra os mouros empreendidas havia séculos pelos cristãos da Espanha.[26] Em 16 de junho de 1452, o rei português tinha obtido do papa Nicolau V um breve que lhe concedia o direito de invadir e submeter os territórios em poder dos sarracenos, pagãos e infiéis inimigos de Cristo, e de escravizar seus habitantes. Quando as caravelas portuguesas chegam à África e começam o tráfico, continua-se a afirmar em Portugal que é feito com justiça, pois os escravos são uma presa obtida em ataques aos muçulmanos inimigos da fé cristã. Desde o início, a escravidão dos negros foi definida como “guerra justa” ou guerra contra infiéis. Logo o tráfico se tornou um magnífico negócio e as pilhagens dos contatos iniciais passaram a ser substituídas pela sistematicidade do comércio com os sobas, chefes africanos que vendiam escravos capturados em guerras intertribais. Ou como conquista obtida numa guerra classificada como “guerra justa”, segundo o imaginário da cruzada, ou como mercadorias trocadas e compradas, os negros africanos foram sempre definidos como escravos. Neste sentido, os jesuítas, como Nóbrega, Anchieta e Vieira, e dominicanos, como Las Casas, propõem a importação de africanos para a América em substituição dos escravos indígenas: “Sem negros, Pernambuco não existe, e, sem Angola, não existem negros”, dizia Vieira em 1648. Isso porque “[…] o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”.

Nos discursos, o cativeiro africano aparece justificado teologicamente pela narrativa bíblica de Cam, filho de Noé. Noé, inventor do vinho, um dia se embebeda e fica nu. A lei hebraica proibia a visão da nudez paterna pelos filhos. Cam vê o pai nu, enquanto seus irmãos, Sem e Jafé, lançam um manto sobre ele, sem vê-lo. Quando fica lúcido, Noé amaldiçoa Cam: será escravo dos próprios irmãos e a escravidão se perpetuará na própria pele dos seus filhos.

Saraiva argumenta que as coisas foram um tanto diferentes com os espanhóis que chegaram a Tenochtítlan, no vale do México, e a Cajamarca, no Peru, onde encontraram povos altamente civilizados. Se era possível justificar os ataques à África e a escravização dos negros como uma “guerra justa” contra infiéis inimigos da fé cristã, se era possível explicar o cativeiro dos negros pela referência a Cam, como justificar a invasão de territórios habitados por gente que não era muçulmana, que não era negra, que nunca tinha invadido nenhuma terra cristã, que nunca tinha ouvido falar de Cristo e que nunca tinha perseguido nenhum missionário cristão? Gente, enfim, totalmente alheia à Europa?[27]

Sabe-se o que foi a invasão espanhola do México e do Peru: uma desenfreada cobiça de ouro acompanhada do sangue. Os milhões de mortos são um número espantoso como espantosa é a crueldade empregada. Apesar de tudo, porém, nas colônias da Espanha os interesses de lucro e enobrecimento imediato dos conquistadores, como Caboto, Cortés, Pizarro, Alvarado, Valdívia, não eram sempre os mesmos proclamados pela Coroa, ciosa da sua soberania. E o padrão espanhol de colonização facultava a existência de várias instituições propícias ao debate intelectual, como as universidades e a imprensa, diversamente da predação portuguesa, que sempre definiu sua colônia brasileira como “empório”. Na Espanha, a divergência dos interesses permitiu, justamente, a contradição e a polêmica acerca dos procedimentos aplicados à conquista das novas terras. É o caso, estudado magnificamente por Lewis Hanke, do grande debate realizado em 1550, em Valladolid, onde se opuseram Las Casas e Sepúlveda,[28] que retomarei adiante. Na Espanha, em 1512, as Leis de Burgos anexaram à doutrina do direito a doutrina do direito dos índios. Em 2 de junho de 1537, o papa emitiu a bula que proibia a escravidão dos índios, embora não fizesse nenhuma menção aos africanos. A bula, porém, foi quase sempre esquecida. O imperador Carlos V, julgando que interferia em sua autoridade, proibiu que fosse divulgada nas Índias Ocidentais e o papa não voltou a insistir.

Ao contrário do que ocorre na Espanha e nos territórios ocupados por ela, a conquista da América portuguesa não é acompanhada de nenhuma polêmica teórica de vulto. Os jesuítas conheciam a bula de 1537, contudo, como evidencia o Diálogo sobre a conversão do gentio, de 1556, em que Nóbrega defende a humanidade do selvagem, argumentando que também ele tem as três faculdades escolásticas que definem o “humano”, memória, vontade, intelecto. Alegando que suas abominações não são essenciais, mas que decorrem da ignorância e que podem ser corrigidas, Nóbrega recupera cristãmente, todavia, a quase-diferença cultural que produz, pois também afirma que o selvagem é inconstante.[29] Como Viveiros de Castro demonstrou, o padre universaliza a noção cristã da alma como unidade e coerência que fundamentam a noção escolástica de “pessoa”. Com isso, justifica imediatamente a intervenção.[30] Encontra se a mesma universalização do pressuposto em Anchieta. Em uma carta em espanhol, de 16 de abril de 1563, que enviou de São Vicente para o padre Diogo Lainez, Geral da Companhia de Jesus, afirma:

Parece-nos que estão as portas abertas nesta capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam sujeitados e postos sob o jugo. Porque, para esse gênero de gente, não há melhor pregação que espada e vara de ferro, na qual. mais que em nenhuma outra, é necessário que se cumpra o compelle eos intrare.[31]

O tópico do compelle eos intrare [obriga-os a entrar], relativo à conversão e ao ingresso dos pagãos no grêmio da humanidade católica, é o mesmo de outros discursos do século XVI sobre o “bárbaro”, o “selvagem”, o “gentio”, o “índio”. Anchieta dá por evidente a necessidade de converter os gentios ao cristianismo, afirmando que a ação missionária conta com o auxílio da Providência Divina, que lhe orienta o sentido. O tópico da sujeição do selvagem, obtida ou pela força do verbo ou pela força das armas, relaciona-se ao tema, que foi rotineiro principalmente na primeira metade do século XVI, da dificuldade de definição desse “gênero de gente”.

Anchieta e seus contemporâneos, Nóbrega, Vitoria, Las Casas, Sepúlveda, admitem que o selvagem é “gente”, embora não seja consensual a definição da qualidade dessa “gente”. Na carta em questão, é gente que só entende a espada e a vara de ferro. Nóbrega escreve que é gente sine consilio et semper prona ad malum, gente sem juízo e sempre inclinada ao mal.[32]

E Vieira, na Amazônia do século XVII, que é “gente boçal”.

Nesse campo em que as definições da humanidade do selvagem e as providências pacíficas e guerreiras conflitam, mais dois tópicos comparecem. Também estão no trecho da carta de Anchieta: o programa da pregação universal como propaganda fidei e a definição das condições materiais e espirituais para realizá-la. De novo, a questão da guerra contra o bárbaro é central. Sua discussão implica retomar outros tópicos e circunstâncias da disputa da Igreja romana com os luteranos em negócios do poder espiritual, e do papa, ameaçado em sua infalibilidade de vice-Cristo, com os reis católicos e protestantes em negócios do poder temporal. No momento em que Anchieta escreve a carta, já ocorreram na Europa dois eventos decisivos para o destino dos selvagens na América: um deles foi a sessão de 8 de abril de 1548, do Concílio de Trento, que redefiniu a traditio; o outro, a sessão do mesmo Concílio, realizada em Valladolid, em 1550, onde se debateu a tese da “servidão natural” defendida por Sepúlveda.

Como se sabe, uma das principais teses de Martinho Lutero contra Roma foi a doutrina da sola scriptura. Segundo Lutero, para a verdadeira adoração de Deus não são necessários os ritos visíveis da Igreja romana, pois o fiel deve ler as Escrituras individualmente, buscando orientação para a vida. Os teólogos reunidos no Concílio de Trento declararam a tese anátema, e, para combatê-la, redefiniram a traditio, a tradição, em dois sentidos. Por um deles, afirmaram que por tradição deviam ser entendidos os textos canônicos dos doutores da Igreja e comentaristas autorizados das Escrituras. Por outro, determinaram que o padre, não o fiel, era a única autoridade capacitada para retomar e fazer a traditio ou a transmissão da verdade dos textos canônicos. O padre deveria transmiti-la por meio da pregação oral, combatendo a ideia luterana da leitura da sola scriptura. Como uma empresa de conquista espiritual enviada para um lugar distante com o fim de converter os gentios e combater os hereges, a missão jesuítica no Brasil rearticula a traditio. Esta é uma determinação decisiva, que faz do monopólio do ensino da palavra escrita das autoridades da Igreja pelos jesuítas um agente extremamente eficaz de colonização.

Aqui, é essencial lembrar o estudo de Michel de Certeau sobre Jean de Léry, o huguenote que esteve no Rio de Janeiro com a expedição de Villegagnon. A escrita do cronista é colonizadora, propõe De Certeau, demonstrando que no texto de Léry, Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil (1578),[33] a representação da sociedade tupinambá é articulada segundo um sistema de quatro oposições generalizáveis para outros documentos do século XVI que funcionam como “hermenêutica do outro”:[34] a oralidade, ou a comunicação própria das sociedades ditas ”selvagens”; a espacialidade, ou o quadro sincrônico das sociedades indígenas classificadas como sociedades sem história; a alteridade, ou a diferença que evidencia um corte cultural; a inconsciência, ou o estatuto conferido aos fenômenos coletivos indígenas, quando são referidos a uma significação que lhes é estranha e que se aplica a eles como um saber vindo de fora. a civilização europeia.

No caso português, pode-se dizer, tal hermenêutica, que funciona como as técnicas da descrição, do comentário, da explicação e da interpretação, é operada segundo padrões retóricos e teológico-políticos específicos do imaginário da dilatação da fé e do Império. Porque é uma hermenêutica escrita, ela combina, na memória artificial da letra, como diz Michel de Certeau, o poder de reter e armazenar o passado, em oposição às fábulas selvagens, que o perdem e esquecem na oralidade, com o poder de superar e vencer a distância, em oposição à voz selvagem, circunscrita ao presente da enunciação e ao auditório. A escrita faculta a acumulação primitiva de dados simbólicos extraídos da observação dos “selvagens”, conservando-os intactos para usos futuros, como um arquivo das coisas do Brasil. Como poder de memória da experiência e poder de previsão do futuro, a escrita coloniza. Assim, no caso português, observa-se nela uma dupla reprodução, ou seja, uma repetição ortodoxa, que preserva o passado da traditio das autoridades canônicas, e uma repetição missionária. que avança baseada na traditio aplicada aos dados simbólicos preservados e adaptados às novas situações, conquistando o espaço, a oralidade, a falta de história e a inconsciência dos selvagens com os processos do tempo teológico-político que os hierarquiza.

Para assegurar a autoridade do poder enquanto se ocupa do novo, a escrita mantém intacta a relação com seu lugar de produção originário, a Europa e as autoridades canônicas que orientam o sentido dos enunciados. Aqui, de novo, concorrem os modelos retórico-poéticos de organização da escrita e a teologia-política cristã, que fundamenta a jurisprudência do Estado português aplicada aos negócios coloniais.

Nos textos quinhentistas sobre os indígenas do Brasil, encontramos uma dupla articulação, como disse: em uma delas, os enunciados figuram a gigantesca dispersão do novo, maneiras de viver dos indígenas, animais de estranhas raças, coisas assombrosas ou curiosas que a terra produz, descritos de maneira muito analítica, com profusão de minúcias. Na mesma dispersão analítica, produzida com um mapeamento classificatório, a enunciação projeta o princípio que unifica teológica e politicamente o que é dito. A proliferação e a multiplicidade dos seres e eventos da nova terra são subordinadas, enfim, como semelhanças distantes do mesmo princípio interpretativo que as atravessa como universalidade de causa primeira e final, Deus. Logo, tudo que é diferente é interpretado como uma variação distante Dele. Imagem invertida da Europa, o Novo Mundo é visto perspeculum, por espelho, como no trecho do apóstolo Paulo. Feita como uma tradução ou uma extensão da traditio redefinida em Trento, a interpretação aplica o filtro teológico à visão do que é visto. Não há nenhuma naturalidade na observação, mas total subordinação da experiência do novo ao padrão cultural vivido como universalidade de lei de Deus. Montaigne relativiza essa universalidade no ensaio sobre os canibais; Léry oscila entre universalidade e convenção, pois não é católico e tendencialmente se abstém de julgar as abominações indígenas;[35] os cronistas portugueses, como Gândavo e Gabriel Soares de Sousa, adotam a universalidade, assim como os jesuítas, Nóbrega, Anchieta e Cardim, para fundar a ação portuguesa no Brasil na analogia escolástica. Entendendo que a analogia de proporcionalidade faz do Novo Mundo um efeito e um signo criados por Deus, e que a analogia de proporção faz dele um resultado hierarquizado a distância, nos confins da criação, afirmam que nele bruxuleia pálida a luz natural, que deverá ser evidenciada em leis positivas legítimas.

Na sessão do Concílio de Trento realizada em Valladolid, na Espanha, em 1550, a tese do dominicano Juan Ginés de Sepúlveda defendendo a servidão natural dos selvagens e a justiça do extermínio deles pelos católicos foi declarada herética. Os teólogos ali reunidos descobriram uma semelhança entre ela e a tese de Lutero sobre a natureza humana depois do pecado original. Sepúlveda afirma que os índios do México são servos por natureza porque seu domínio político das regiões invadidas pelos espanhóis pode até ser legal, segundo as próprias leis, mas não legítimo, pois não é domínio fundado na verdade da revelação de Cristo. Lutero, por sua vez, numa das teses de Wittenberg, de 1517, afirma que a lei do pecado original [lex peccati], transmitida de pai para filho no ato da geração, corrompe irremediavelmente a natureza humana, tornando-a incapaz de reconhecer o verum Deum absconditum, o verdadeiro Deus oculto. Em decorrência, se cada homem individual não é capaz de distinguir o bem do mal ao agir, os homens em conjunto, como sociedade, tendem sempre à anarquia. Logo, os poderes políticos que existem – e que devem existir – são totalmente necessários para a manutenção da ordem social. É Deus quem confere diretamente o poder aos reis para impor a ordem. E, se o rei reina por “direito divino”, isso significa que, sendo enviado por Deus, também é um vigário dele, um vice-Cristo, como o papa em Roma.

A tese polêmica da servidão natural dos selvagens, exposta por Juan Ginés de Sepúlveda de modo rigoroso no diálogo intitulado Tratado das justas causas da guerra contra os índios, ou Democrates alter, impresso pela primeira vez em Roma, em 1550, dividiu o mundo católico. A crueza das conclusões de sua argumentação impecavelmente lógica demonstra o que efetivamente ocorria na prática em todos os lugares onde a universalidade cristã tinha sido levada pelos conquistadores. No diálogo, debatem Demócrates, um teólogo, e Leopoldo, um alemão contagiado de erros luteranos. Leopoldo é um tipo ingênuo e tosco, acreditando que a guerra é proibida pela lei divina. Demócrates, figura do humanista embebido da tradição canônica da Igreja, convence-o de que ela pode ser “guerra justa”. Principalmente quando se trata de submeter povos bárbaros, servos por natureza, à autoridade das instituições cristãs.

É necessário definir servidão, e Demócrates aplica um distinguo escolástico, indicando duas espécies dela e afirmando que o termo significa duas coisas muito distintas, conforme seja tratado por um jurista ou por um filósofo. Para os juristas, servidão significa uma coisa acidental, que decorre de uma razão de força maior e do direito das gentes e, às vezes, do direito civil, ao passo que os filósofos chamam servidão a fraqueza ou a estupidez do entendimento, além de costumes inumanos e bárbaros. Segundo os filósofos, há no mundo um único princípio que determina a servidão natural. É o princípio da racionalidade da criação, que atesta a presença de Deus na natureza e na história. É ele que permite afirmar que tudo quanto segue a luz natural ou que é feito segundo a luz natural é feito segundo a vontade de Deus. Se é natural que o macho domine a fêmea, que a mulher seja submissa ao marido, que os filhos obedeçam ao pai, também é natural que o perfeito impere sobre o imperfeito ou que o excelente domine sobre o seu contrário. Nas palavras de Demócrates:

Os que excedem aos demais em prudência e engenho, embora não em forças corporais, estes são por natureza senhores; pelo contrário, os lentos de entendimento, embora tenham todas as forças corporais para cumprir todas as obrigações necessárias, esses são por natureza servos, e é justo e útil que o sejam.[36]

Como sempre, é a autoridade da Bíblia que justifica a argumentação: “Aquele que é néscio servirá ao sábio” [Provérbios]. Também a autoridade da passagem da Política, em que Aristóteles afirma ser próprio do inferior subordinar-se naturalmente ao superior. A decorrência lógica da tese é a de que sempre será justo, segundo o direito natural, que os povos bárbaros e inumanos se submetam ao governo dos príncipes e de nações mais cultas e humanas para que, por meio do exemplo de virtudes, abandonem a barbárie. Se os bárbaros recusam tal império, ele pode ser-lhes imposto por meio da força das armas. Essa guerra será justa, segundo o direito natural.[37]

Os exemplos de “servidão natural” propostos por Demócrates são de novo os do México. O fato de os mexicanos fazerem sacrifícios humanos e comerem os corações dos sacrificados em cerimônias religiosas evidencia a barbárie que os faz naturalmente servos. Segundo Sepúlveda, na Bíblia há inúmeros e claríssimos indícios de que Deus julga justo o extermínio dos bárbaros mexicanos pelos conquistadores, pois suas abominações são ofensivas. Os episódios do dilúvio universal ou da destruição das cidades pecadoras de Sodoma e Gomorra o comprovam. A Bíblia afirma:

Se ouvires alguém dizer em uma das tuas cidades que saíram os filhos de Belial no meio do teu povo e perverteram os habitantes de tua cidade, e que disseram: vamos e sirvamos aos deuses estrangeiros que ignorais, pergunta solícito e diligente a verdade, e se descobrires que é certo o que se diz e que foi perpetrada tal abominação, ferirás em seguida os habitantes daquela cidade com o fio da espada e a destruirás com tudo que há nela.[38]

Leopoldo lembra, porém, o fato de que os pagãos do México nunca souberam da existência de Cristo. Tal desconhecimento poderia ser uma justa causa para provar que há injustiça por parte dos espanhóis. Demócrates retruca que o fato de adorarem ídolos os torna culpados, provando a justiça da submissão deles aos espanhóis, pois a mesma submissão realiza a vontade de Deus revelada em várias passagens bíblicas contra as abominações. Os astecas infringem a lei natural, por isso é lícito destruí-los.

Seguindo ortodoxamente o direito canônico, Demócrates reconhece que o próprio papa não pode obrigar os pagãos com palavras e leis cristãs; mas pode, por todos os meios, entre eles a guerra, afastá-los dos crimes contra naturam, trazendo-os para a verdadeira religião que os salvará. Os pagãos mexicanos não podem ser castigados pelo fato de serem infiéis, nem podem ser obrigados a receber a fé de Cristo, pois a crença depende da vontade e a vontade não pode ser forçada. No entanto, podem e devem ser impedidos de praticar crimes contra a lei natural, principalmente aqueles que mais ofendem a Deus, como a idolatria.

A universalidade do pressuposto doutrinário de Sepúlveda que, num primeiro momento, veta a intervenção, é acionada para justificá-la. Aqui, mais uma vez, a instituição produz a perversão que justifica a medida adotada. Além disso, Demócrates afirma que os astecas sacrificavam anualmente cerca de 20 mil vítimas e que a guerra contra costume tão bárbaro também é defesa dos inocentes. Isso porque, como alega, o homem que não defende o próximo das ofensas, podendo fazê-lo, comete o mesmo delito que o criminoso.[39] Como sentencia são Jerônimo, cortante e luminosamente: “O que fere os maus naquilo em que são maus e tem instrumentos de morte para matar os piores é ministro de Deus”.[40]

Concluindo que os bárbaros mexicanos estão obrigados a receber a dominação dos espanhóis conforme as leis da natureza, Sepúlveda afirma que isso certamente lhes será mais proveitoso, pois a virtude, a humanidade e a verdadeira religião são mais preciosas que o ouro e a prata. Por isso mesmo, se recusam a dominação, podem ser compelidos a aceitá-la pela força das armas numa “guerra justa”, porque feita pela lei da natureza.

Essa necessidade de submeter os pagãos à verdade cristã era antiga. No século XIII, o cardeal-arcebispo de Óstia, Enrico de Susa, conhecido como Ostiense, escreveu uma Summa aurea, onde propôs que os povos gentios teriam tido domínio civil e político sobre os territórios que habitavam antes de Cristo vir ao mundo. A partir da vinda do Salvador, porém, os poderes temporais e espirituais teriam ficado vinculados à pessoa de Cristo, que os teria transmitido integralmente ao primeiro papa, são Pedro, que os transmitiria a todos os outros. Logo, os infiéis podiam ser privados de seus reinos e posses pela autoridade apostólica à qual estariam obrigados a obedecer.

A mesma tese foi adotada por Palacios Rubios, conselheiro do rei d. Fernando, o Católico, da Espanha, em 1512. Num tratado chamado De insulis oceanis [Sobre as ilhas do oceano], Palacios Rubios reconheceu que na América certamente havia vários domínios pagãos sem a autorização do papa; isso ocorreria devido a uma permissão eclesiástica precária, que seria revogável. Nesse sentido, Palacios Rubios inventou o Requerimiento, uma intimação escrita em espanhol que era lida pelos conquistadores para os indígenas com quem faziam contatos pela primeira vez. O Requerimiento declarava que o rei de Castela, o imperador Carlos V, era senhor daqueles territórios e que os selvagens e bárbaros, seus habitantes, estavam intimados à submissão total a ele, dono do mundo desde a doação feita pelo papa Alexandre VI. Como sempre, resguardava-se cristãmente o livre-arbítrio dos selvagens, livres para escolher entre a sujeição, abrindo mão do seu domínio, ou a guerra e o extermínio.

Em 1539, no tratado Relectio de indis, o grande teólogo e jurista dominicano Francisco de Vitoria, discutiu questões básicas da Conquista: se antes da chegada dos espanhóis os índios eram verdadeiramente donos dos territórios e quais eram os títulos ilegítimos e legítimos de conquista. Descartando os argumentos então correntes entre os adeptos da escravidão e do extermínio, Vitoria debate as afirmações de irracionalidade e pecados contra naturam que caracterizariam os selvagens. Suas principais referências doutrinárias são, como em todos os autores desse momento que tratam do tema, a Bíblia, a Política aristotélica, obras de santo Agostinho e a Summa theologica, de santo Tomás de Aquino. Aparentemente, a invasão das terras e a conquista espiritual do selvagem estariam justificadas pelo Evangelho, mais precisamente pela passagem onde Cristo ordena “Ide e ensinai a todas as nações, batizando-as no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.[41]Discutindo a passagem, Vitoria comenta a questão debatida por santo Tomás na Summa theologica: “Se é lícito batizar os filhos dos infiéis contra a vontade de seus pais”. A resposta de Tomás de Aquino é negativa: não é lícito batizar os filhos dos infiéis contra a vontade dos pais, porque é preciso haver o uso da razão para que a escolha seja livre. Vitoria transfere as palavras de Tomás de Aquino para a questão indígena:

De nenhum modo se há de fazer-lhes violência para que recebam a fé, já que o crer depende da vontade. Podem, contudo, os fiéis, se isto está ao seu alcance, obrigá-los a que não impeçam a pregação da fé com blasfêmias e maus empenhos, ou ainda, se chegam a tanto, com perseguições abertas. E por isso os fiéis de Cristo frequentemente declaram guerra aos infiéis, não para obrigá-los a crer, pois ainda no caso de vencê-los e escravizá-los, eles têm de ter a liberdade de crer.[42]

Perfeitamente lógico, sutil e justo, mas é oportuno definir essa “liberdade de crer”. Não se pode esquecer que, no século XVI, a definição de “liberdade” também é teológica. Deus existe e é o Bem; como o mal é falta de ser, só há liberdade efetiva quando a escolha se orienta pelo Bem de Deus. Logo, a liberdade é definida conio uma recta ratio agibilium, uma reta razão das coisas que se deve fazer para escolher o Bem; como os índios agem movidos por outros princípios, é fácil deduzir que estão a priori sem liberdade, pois são ignorantes do Bem. Logo, devem ser levados a agir livremente, ou seja, devem subordinar-se à palavra cristã e às instituições para serem livres. E, se as recusam ou impedem a pregação delas, a guerra contra eles torna-se justa. A ideia de que a salvação da alma é o que vale essencialmente na vida humana faz com que o cativeiro também seja entendido como a condição necessária para a liberdade do selvagem, definindo-se “liberdade”, mais uma vez, como a reta escolha do Bem que conduz à salvação. De modo complementar, como se disse; o índio que vive a liberdade natural do mato permanece cativo das abominações e tem a alma condenada ao inferno, por isso se pode caçá lo.

No Regimento do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, datado de 15/12/1548, o rei d. João III de Portugal declara.essa intenção salvífica:

Porque a principal causa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica.

No mesmo trecho, o rei ordena que todos os portugueses que vierem ao Brasil deverão ter

[…] especial cuidado de os provocar a serem cristãos e para eles mais folgarem de o ser tratem bem todos os que forem de paz e os favoreçam sempre e não consintam que lhes seja feita opresso nem agravo algum […] de maneira que fiquem satisfeitos e as pessoas que lhas fizeram sejam castigadas como for justiça.

No Regimento, contudo, também se lê:

Eu sou informado de que os gentios que habitam ao longo da costa da capitania de Jorge de Figueiredo da vila de São Jorge até a dita Bahia de Todos os Santos são da linhagem dos Tupinambás e se alevantaram já por vezes contra os cristãos e lhes fizeram muitos danos e que ora ainda estão alevantados e fazem guerra e que será muito serviço de Deus e meu sererem lançados fora dessa terra para poder se povoar assim dos cristãos como dos gentios da linhagem dos Tupiniquins que dizem é gente pacífica e que se oferecem a os ajudar a lançar fora e a povoar e defender a terra.[43]

O mesmo Regimento que determina a paz com a gente pacífica determina a guerra contra os que não aceitam como natural a invasão portuguesa. “Lançar os Tupinambás fora dessa terra para poder se povoar” é uma finalidade afirmada como evidentemente justa, pois a posse das novas terras tinha sido autorizada pela bula papal do século XV. O Regimento previa, por isso, que os índios pacíficos ou pacificados seriam agrupados em aldeias e mantidos sob a jurisdição dos jesuítas, o que passou a ser feito pelos padres no tempo do terceiro governador-geral, Mem de Sá. Além de irem às tribos, fazendo pregações de madrugada, na mesma hora em que os xamãs falavam, trazendo inicialmente as crianças, depois as mulheres e finalmente os homens adultos para a catequese nas aldeias, os jesuítas também passaram a trocar os “índios de corda” que tinham sido capturados nas guerras intertribais e que seriam sacrificados e comidos. Admitiam a escravização deles e, como se pode ler na correspondência dos padres, às vezes alguns “índios de corda” recebiam o batismo antes de serem mortos ritualmente pelos adversários, o que para os inacianos provavelmente significava que tinham ido para as barrigas salvos do inferno. Os primeiros aldeamentos foram feitos na Bahia; em 1561, os padres tinham já organizado onze aldeias. Em 1556, o bispo Pero Fernandes Sardinha, que havia polemizado com Nóbrega por causa, principalmente. de os jesuítas aceitarem a confissão de índios por meio de intérpretes, foi morto e comido pelos caetés do Nordeste, quando naufragou o navio que o levava de volta para Portugal. Imediatamente, declarou-se a justiça da guerra contra os bárbaros, mas os caetés só foram castigados em 1562, quando se baixou uma lei conhecida como “lei contra os caetés”, definida como “guerra justa” contra bárbaros cruéis e assassinos. Como demonstrou Georg Thomas, uma parte dos indígenas aldeados e já convertidos pertenciam ao grupo caeté e os colonos interpretaram a lei que declarava a guerra contra eles e a justiça de sua escravidão como uma medida generalizável também para os convertidos. Os índios aldeados que saíam para plantar roças ou caçar foram declarados selvagens pelos colonos, sendo escravizados, porque, pela manipulação da lei, passavam a ser tão bárbaros como os seus primos do mato. Muitos dos aldeados, vendo-se ameaçados pela escravidão, fugiram para o sertão e tornaram-se uma presa justificada. Uma junta formada pelo governador, o ouvidor-geral e os jesuítas conseguiu, em parte, que os indígenas escravizados fossem soltos. De modo geral, pode-se dizer que a pressão contínua dos jesuítas nos vários conflitos que desde logo estouraram com os bispos, o clero regular, outras ordens religiosas e os colonos desejosos de lucro, conseguiu fazer com que os reduzidos nas aldeias não fossem escravizados. No entanto, os colonos necessitavam de mão-de-obra; como não podiam obtê-la diretamente nos aldeamentos.dominados pelos inacianos, os indígenas livres do mato foram automaticamente colocados à disposição do trabalho, como demonstra com precisão o trabalho de Georg Thomas.[44]

NOTAS

  1. P. Manuel da NÓBREGA, S. J. “Cartas da Baía, 8/5/1558′”, em Serafim LEITE, S. J. (org.), Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, v. II, p. 450.
  2. É sempre necessário associar Lévi-Strauss ao “Essai 33” de Montaigne, que, amavelmente cético, expõe sua dúvida quanto à universalidade da hermenêutica cristã aplicada aos seres da América, lembrando que também na Europa huguenotes e católicos se entredevoravam e que a fome e a pobreza, tidas como naturais no mundo cristão não existiam entre os selvagens. Conforme Montaigne, o fato de os selvagens não usarem cuecas é provavelmente a maior diferença entre eles e os europeus.
  3. Luís Felipe Baeta NEVES, O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Colonialismo e repressão cultural, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 17.
  4. Michel FOUCAULT, “II faut défendre la société”, em François EWALD e Alessandro FONTANA (dir.), Cours au Collège de France (1975-1976),Paris, Seuil-Gallimard, 1997, p. 24.
  5. Florestan FERNANDES, “Antecedentes indígenas: organização social das tribos tupis”, em Sérgio Buarque de HOLANDA (dir. e introd. geral), História geral da civilização brasileira, 6ª ed., São Paulo-Rio deJaneiro, Difel, 1981 [A época colonial – Do descobrimento à expansão territorial, t. 1, voL 1].
  6. M. FOUCAULT, “II faut défendre ia société”, op. cit.
  7. Jean-François Courtine demonstrou que os conflitos políticos que opõem os Estados europeus no século XVI e início do XVII são formulados como oposições de teologia contra teologia. Com Kantorowicz, propõe que: “Sous l’autorité du pape en tant que princeps et verus imperator, l’appareil hiérarchique de l’Eglise romaine [.,.] montra une tendance à devenir le prototype parfait d’une monarchie absolue et rationnelle sur une base mystique, tandis que simultanément, l’État manifesta de plus en plus une tendance à devenir une qua­si Église et, à bien des égards, une monarchie mystique sur une base rationnelle”. Ver Jean­ François COURTINE, “L’héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de l’Âge Classique”, em Henry MECHOULAN (dir.), L’État Baroque 1610-1652. Regards sur la pensée politique de la France du premier XVII siècle, Paris, Vrin, 1985, pp. 109-10.
  8. P. Manuel da NÓBREGA S.J., em Cartas dos primeiros jesuítasdo Brasil, v. 1, p. 142.
  9. M. FOUCAULT, “II faut défendre la société”, op. cit, pp.174-5.
  10. P. Antônio Vieira, S. J., “Carta LXXVII Ao rei D. Afonso VI 1657 Abril 20”, em João Lúcio de AZEVEDO, Cartas do padre António Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, t. 1, p. 468: “As injustiças e tiranias, que se têm executado nos naturais destas terras, excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo”.
  11. Pero de Magalhães GÂNDAVO, Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, Belo Horizonte, São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1980, p. 52. No mesmo capítulo, Gândavo dá notícia das “guerras justas”: “[…] mas porque os mesmos índios se alevantarão contra elles [os portugueses] e faziam-lhes muitas treições, os governadores e capitães da terra destruirão-nos pouco a pouco e matarão muitos delles, outros fugirão para o Sertão, e assi ficou a costa despôvoada de gentio ao longo das Capitanias. Junto dellas ficarão alguns índios destes nas aldeas que são de paz, e amigos dos portuguezes”.
  12. O texto da bula encíclica Sublimis Deus, do Archivo General de Indias, foi editado pela primeira vez por Helen Rand PARISH e Harold E. WEIDMAN, em Las Casas en México. Historia y obra desconocidas, México, Fondo de Cultura Económica, 1996, pp. 310-1. Cito dois trechos dela que interessam imediatamente à questão discutida. Inicialmente, a referência à caracterização dos indígenas como “animais” e “escravos por natureza” pelos conquistadores: “[…] inventou (o Demônio) um modo nunca ouvido até agora para impedir que a palavra de Deus se pregasse aos gentios para que se salvassem. Pois incitou alguns satélites seus que, com desejo de satisfazer sua cobiça, ousam afirmar que os índios ocidentais e meridionais (e outros gentios que vieram ao nosso conhecimento nestes tempos) devem reduzir-se a nosso serviço como brutos animais, sob o pretexto de que são excluídos da Fé católica. E com efeito os reduzem à escravidão, apertando-os com tantas aflições como as com que apertam os brutos animais que os servem”. E a determinação: “Com autoridade apostólica, pelas presentes determinamos e declaramos: Que os ditos Índios e todas as outras gentes (infiéis) que no futuro venham ao conhecimento dos cristãos, ainda que estejam fora da Fé de Cristo, não estão privados nem devem ser privados de sua liberdade nem do domínio de suas coisas; mais ainda, que podem livre e licitamente desfrutar, possuir e gozar da liberdade e de tal domínio, e não se devem reduzir à escravidão, E que qualquer coisa que se fizer em contrário, resulta inválida, nula, e de nenhuma força nem valor. E que os mesmos índios e outras gentes devem ser atraídos à dita Fé de Cristo pela pregação da palavra de Deus e o exemplo da boa vida”.
  13. SANTO AGOSTINHO, De verbis Domini, et habetur (23, q. 1), cit. por Juan Ginés de SEPÚLVEDA, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios (advertencia de Marcelino Menendez y Pelayo, estudio de Manuel Garcia-Pelayo), México, Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 73.
  14. Ricardo Rodriguez MOLAS, Los sometidos de la Conquista. Argentina, Bolívia, Paraguay; Buenos Aires. Centro Editor de América Latina, 1985, p. 11.
  15. Alexander MARCHANT, Do escambo à escravidão. As relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil (1500-1580), Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional. 1943 (Brasiliana, vol. 225).
  16. Hélène CLASTRES, “Introduction”, em Yves D’EYREUX. Voyage au nord du Brésil en 1613-1614, Paris, Payot. 1985, p. 15. Hélène Clastres reproduz a fala de um índio velho ao sieur des Vaux: ..[…] De même vous autres Français, quand ali commencement vous veniez en ce pays, ce n’était que pour trafiquer simplement avec nous… En ce temps là vous ne parliez pas de vous habituer, vous vous contentiez de nous venir voir tous les ans une fois, et à chaque fois de demeurer quatre ou cinq lunes seulement avec nous, et incontinent vous retourniez en votre pays avec nos marchandises pour nous en apporter d’autres dont nous avions besoin. Maintenant pour vous y établir, tu nous a persuadés de faire des forteresses, disant que c’était pour nous défendre contre nos ennemis. Et pour ce même sujet tu nous as amené un Bourouvichavé e des pay. II est vrai que nous ne sommes aises, mais cepen­ dant les Pero en ont fait ainsi. Depuis que les pay sont venus, vous avez planté des croix, ainsi que les Pero. Vous commencez à instruire et à baptizer, ainsi que les Pero; vous dites que vous ne pouvez vous servir de nos filles sinon en mariage et quand elles auront reçu le baptême, comme disaient les Pero. Au commencement vous ne vouliez pas d’esclaves non plus que les Pero. Maintenant vous en demandez et en voulez avoir comme ils firent à la fin. Je ne crois pas pourtant que vous ayez le même dessein que les Pero, aussi n’en ai-je pas de crainte. car étant vieil comme je suis, désormais je ne crains plus rien: mais enfin, je dis ingé­ nument ce que j’ai vu de mes yeux…
  17. Nicolas de VILLEGAGIO “Lettre à Calvin”, em Paul GAFFAREL, Histoire du Brésil

    français. Paris, Maisonneuve. 1878, pp. 292-397.

  18. “[…] tous les habitants de cette terre […] n’ayant connaissance de Dieu’·, em LE TESTU, Cosmograpbie universelle selon les navigateurs tant anciens que modernes, Paris, Archives du Ministére des Armées. D.t.z, 1556.
  19. Frank LESTRINGANT. “Les stratégies coloniales de la France au Brésil au XVIéme siècle et leur échec”, em Michel BALARD (dir.), État et colonisation au Moyen Âge et à la Renaissance, Lyon. La Manufacture, 1989, pp. 463-76.
  20. R. R. MOLAS, Los sometidos de la Conquista, p. 27.
  21. Cit. em idem, ibidem, p. 28.
  22. Informação do historiador TALLAY, cit. em idem, ibidem, p. 33.
  23. Idem. ibidem, p. 20. Ver também C. R. BOXER, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440- 1770). Lisboa, Edições 70, 1981.
  24. Georg THOMAS (ed.), Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640), São Paulo. Loyola. 1981, pp. 220-1.
  25. O historiador português J S. da Silva Dias examinou o Tratado sobre a guerra que será justa, texto de um anônimo português do século XVI, provavelmente um dominicano. Demonstrando que o Tratado inclui as lições de Caetano, Vitoria e Tomás de Aquino, Silva Dias data-o ele meados do século XVI propondo que foi escrito num momento em que o abandono das praças de África e o desvanecimento dos “fumos da Índia” levavam à prudência na doutrina ela guerra. Assim, o Tratado preconiza ”[…] a par de uma guerra limitada, ele intimidação e castigo, o condicionamento das relações comerciais com o gentio e a sua lusitanização ideológica” (p. 184). A análise feita por Silva Dias dos tópicos principais da “guerra justa” expostos no Tratado evidencia a lição escolástica tradicional que faz da virtude cristã o critério definidor da justiça da guerra. Neste sentido doutrinário, o Tratado é muito semelhante ao de Sepúlveda. Ver J. S. da SILVA DIAS, Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI, 3ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 1988. pp. 182-91.
  26. António José SARAIVA, “O P. António Vieira e a questão da escravatura dos negros no século XVII”, em História e utopia. Estudos sobre Vieira (trad. Maria de Santa Cruz). Lisboa, Ministério da Educação-Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, pp. 55-72.
  27. Idem, ibidem, p. 65.
  28. Lewis HANKE,”O grande debate de Valladolid- 1550-1551: a aplicação da teoria de Aristóteles da escravidão natural aos indígenas americanos, em Aristóteles e os índios americanos, São Paulo, Martins. s.d.
  29. P. Manuel da NÓBREGA S.J., “Diálogo sobre a conversão do gentio” em Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. v. II.
  30. Eduardo Viveiros de CASTRO, “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1992, nº 35.
  31. P. José de ANCHIETA, S. J., “Carta ao Geral Diogo Lainez, de São Vicente. a 16 de abril de 1563”, em Cartas: informaçães, fragmentos históricos e sermões de José de Anchieta, Belo Horizonte, São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1988, p. 196.
  32. P. Manuel da NÓBREGA, S. J., “Carta do P. Manuel da Nóbrega ao Dr. Martim de Azpilcueta Navarro, 10 de agosto de 1549”, em Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. v. 1. p. 136.
  33. Jean de LÉRY, Viagem à terra do Brasil (trad. e notas Sérgio Milliet). Belo Horizonte, São Paulo; Itatiaia, Edusp. 1980.
  34. Michel de CERTEAC, L’écriture de l’histoire, Paris, Gallimard, p. 221.
  35. Evidentemente. a interpretação do selvagem feita por um huguenote francês e a de um jesuíta português são diversas e mesmo inimigas. quando se lembram os conflitos religiosos que agitam a Europa no século XVI. O huguenote acredita na predestinação e, de modo geral, abstém-se de julgar os indígenas pois pode ser que a alma de um pecador já esteja salva. O padre jesuíta, por sua vez, defende a doutrina da luz da Graça inata reafirmada em Trento. Segundo ela, todos os homens são capazes de distinguir o mal do bem. O que permite adotar o ponto de vista da virtude e julgar como pecaminosas as práticas dos selvagens e as dos colonos interessados em escravizá-los.
  36. J. G. de SEPÚLVEDA, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, pp. 84-5.
  37. Idem, ibidem, pp. 85-7.
  38. Deuteronômio, 18.
  39. G. de SEPÚLVEDA, Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los índios, p. 131.
  40. SÃO JERÔNIMO, citando Ezequiel, 3,21.q.5. [… qui matos perrcutit in eo quod mali sunt, et habet vasa interfectionis, ut occidat pessimos, minister est Dei]. em idem. ibidem. pp. 130-1.
  41. Mateus, 28,19.
  42. Santo Tomás de AQUINO, Summa theologica. 11-11, 10, 8.
  43. G. THOMAS (ed.), Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640), pp. 220-1.
  44. Idem. ibidem, pp. 81-104.

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