A descoberta do homem e do mundo
por Gerd Bornheim
Resumo
O Mundo Novo foi construído a partir de uma experiência radical de ruptura e aponta para uma totalidade aberta, plural. Para além da aventura náutica, dois traços definem o conceito de Descobrimento: universalidade e espírito crítico. A própria origem latina da palavra universal, unus versus alia (uma unidade contraposta a outras), já diz isso. E o que significa a Ciência, possível somente numa cultura universalizante, senão o abandono dos antigos universais teológicos, concretos? Sua base filosófica é o nominalismo. Conceitos são nomes, palavras, como as de um dicionário. Essa destituição do elemento divino, que afetará também a política e a arte, será o fundamento da revolução industrial e da máquina. Mas o elemento realmente novo das Navegações é a descoberta da alteridade e o fascínio pelas diferenças. Afirma-se o conceito de Humanidade. Afirma-se também a imaginação como complemento da racionalidade a serviço da autocrítica. Além disso, o corpo humano passa a ser valorizado como objeto de prazer e de cuidados na sua dimensão de finitude. O cálculo inventou um olhar que leva à Ciência, que leva à máquina, que propicia transformações sociais que refazem a mente e o corpo. Nessa dialética entre homem e máquina são grandes os riscos de alienação e robotização, porque a máquina estende-se até alcançar o corpo em sua ambiguidade entre ser e ter. Junto com o descobrimento da alteridade externa, a alteridade se torna interior ao próprio homem que tropeça no desconhecido do seu corpo.
Por sua atualidade e suas dimensões, nosso tema – o conceito de descobrimento – é em tudo momentoso e de uma abrangência que em nada perturba a força de sua singularidade. Trata-se, para nós, da exploração de um conceito que haure toda a sua razão de ser de uma experiência inédita, nunca vista quer em suas motivações, quer na amplidão de suas consequências. Baste por ora dizer que as águas do descobrimento ainda hoje não se aquietam, nem mesmo na mais estável de todas as areias. E busca-se aqui um conceito. Convém iniciar, já por isso, com algumas observações introdutórias.
De três, a primeira observação lembra que não caberia limitar o fato do descobrimento, ainda que construído à saciedade pelas fantasias de um cálculo por assim dizer preciso, ao acosto aleatório numa praia baiana que era a total negação de um porto seguro. Quero dizer que o acontecer do descobrimento não pode ser entendido simplesmente a partir de um acaso factual, bem estabelecido em suas coordenadas históricas e geográficas. Se assim se quisesse, esse acaso já esgotaria tudo, tudo traria consigo, aprazer-se-ia de ser a superação do passado e a promessa de algum futuro – essa proa encalhada na areia e que mal suspeitava a quantas veio: é que os mares são atravessados por desígnios ambíguos e a paisagem disfarça mal a incerteza das incógnitas. Esse ponto exato, entretanto, tão afeito a uma aferição conceituai precisa, a rigor nada adianta. Quero dizer que a experiência factual vive das bastardias que promete, e ainda hoje o conceito de descobrimento só existe em função das fronteiras que teima em devassar. Este o nosso tema. Ou seja: o conceito de descobrimento continua, mesmo em nosso tempo, vivendo da impossibilidade de emparelhar-se com qualquer tipo de completeza; é que tratamos de um conceito congenitamente plural. Parece que ele se quer essencialmente aberto, como que a ignorar para sempre o próprio sentido de suas premissas – parece desde cedo que tudo converge para essa pequena coisa, que ninguém entende muito bem, e que vem sendo apelidada de aldeia global. Fiquemos por ora nisso: o conceito de descobrimento acaba fazendo-se alheio a qualquer impacto meramente factual. O que interessa está em pensar todo o sentido que esse elemento pontual possa oferecer; em verdade, ele vem de certo descortino e traz em seu bojo – não por ele mesmo, que nada é causa de nada – a invenção de um mundo nunca dantes navegado.
Em segundo lugar esta outra observação: claro que as delimitações se fazem fatais. É justamente a singularidade dos eventos que exige a delimitação de fronteiras – aquilo que lhe é anterior, ou aquilo que se edificou em sua consequência. Seja suficiente chamar a atenção aqui para a particularidade de um corte que se estabeleceu com a descoberta do Novo Mundo. A ocorrência talvez pareça nem ir além do anedótico, o que está longe de lhe tirar toda a imensa significação que esconde. E é que nós, americanos, não tivemos Idade Média. O descobrimento como que relega ao passado toda a riqueza, ainda que decadente, do mundo medieval. A experiência do elemento gótico, por exemplo, estaria fadada a restringir-se à nostálgica e paupérrima reencenação daquele estilo pela debilidade do romantismo já serôdio. E a que poderia vir então o gótico? O corte nem gerou tanta inquietação, antes pelo contrário – mas nós não tivemos Idade Média. Todo o nosso mundo, o Mundo Novo, foi construído a partir de uma radical experiência de ruptura: o homem novo, que pelas navegações parece incompatibilizar-se com as suas próprias raízes, promete a si mesmo um mundo totalmente outro. Sua missão é nova: a construção de um mundo realmente inédito. Portanto, a ruptura veio com toda a força de sua violência – a violência, diga-se logo, das mutações necessárias. Repito: nós não tivemos Idade Média. A experiência de ajoelhar-se nesse esplendor da Verdade que era uma catedral gótica só se verifica para nós em termos de extravagância turística. Nosso mundo é realmente outro. Entretanto, convém observar que as fronteiras entre o antes e o depois por vezes se tornam embaçadas. Assim, por exemplo, esse monge tão profundamente medieval que foi Lutero soube entender e abrir-se para o feito maior que era o capitalismo emergente; fala-se, por isso, das afinidades entre o protestantismo e sua ética profundamente medieval, e essa experiência em tudo futurosa que foi o advento do capitalismo. Outro exemplo: o barroco, em sua teimosia católica, e já pela presença dos padres vieiras nas embarcações dos descobridores, iria atrelar, ao que se continua vendo, o espírito novo a crenças que já nada tinham a ver com o próprio espírito do descobrimento. Ficamos, assim, a meio caminho. É que tais fronteiras se fazem geradoras de conflitos. E o que é pior: conseguem também abafar os conflitos nos muros brancos do barroco. Ao que tudo indica, porém, o retardamento das coisas, no fundo, deixa incólumes os desígnios implantados pelo espírito novo do Novo Mundo, mas os processos por vezes se revelam de mais difícil consecução. E, seja como for, mesmo os avessos dos descobrimentos, ainda que empanem, não chegam a arrefecer os ímpetos de implantação de um mundo realmente novo. A análise que acabo de fazer revela ao menos que a elaboração de um conceito, mesmo que avigorado pela força de sua própria necessidade, dificilmente consegue alcançar a transparência dos conceitos ditos exatos. De resto, é a impossibilidade de atingimento de total transparência que move o próprio sentido de uma pesquisa que se quer afim com parentescos que nem poderiam ser ignorados. Passo a uma terceira observação, que desenvolve o que vem de ser dito. São agora, até que sucintamente, questões de método. Se se busca o conceito, como entendê-lo? Como dizer esse conceito de descobrimento?
O que se pretende aqui está em estabelecer com certa visão de totalidade – dessa totalidade sempre descerrada do que possa ser o descobrimento. Os seus inícios escapam aos parâmetros de uma realidade claramente verificável, ainda que sobre eles quase tudo possa ser dito; e os seus fins como que escapam pelos vieses que tolhem a própria possibilidade de um conhecimento que se pretendesse afeito a causas finais. O paradoxo concentra-se todo neste ponto: é que trata de uma totalidade aberta, rigorosamente indefinível, mas que se deixa esclarecer através de análises que acabam compondo um discurso. destinado a saber-se sempre enquanto incompleto. Nesse sentido, o conceito vive de sua própria generosidade, e de algo como a consciência de seus limites ou de sua insuficiência definitiva. Quero dizer que as análises que nos esperam não poderiam compatibilizar-se com o estabelecimento de essenciais definíveis em sua particularidade exata. Por tais caminhos, qualquer discurso sobre uma questão como a do descobrimento nem sequer conseguiria instaurar o seu ponto de partida. E são as questões dessa natureza que realmente interessam às exigências da educação, da política, ou daquilo que já Aristóteles insistia em chamar de cultura. Foi justamente o reconhecimento de toda a importância que deve ser vista no conhecimento calcado na exatidão das determinações particulares que levou Aristóteles a defender a sua concepção de dialética, que se nada oferece de exato, termina sendo em suas probabilidades a razão de ser de toda exatidão. De fato, o que importa está no desenvolvimento dessa cultura, dessa paideia, e isso já explica o porquê de a dialética constituir-se no método mais amplamente utilizado por Aristóteles. Um tanto inspirado no velho grego, permito-me adiantar algumas considerações sobre as características de dois traços fundamentais para o entendimento dessa imensa cultura que foi e continua sendo o descobrimento. São eles: a universalidade e o espírito crítico.
Pois o descobrimento foi antes de tudo a instauração destas duas coisas: a criação de uma experiência inédita da universalidade, e de uma universalidade que soube deixar-se perpassar pela prática da invenção de um espírito crítico também ele inédito. O tema só poderá ficar claro através das análises subsequentes, mas, desde logo, avanço algumas indicações de caráter introdutório. Entenda-se aqui o universal na acepção latina da palavra, que parece congregar em si a duplicidade de seu sentido grego, como conceito universal (katholou – o homem, por exemplo, em contraposição à individualidade de Sócrates) e como genos, gênero e que tudo tem a ver com gênese. Pois a decomposição da palavra latina ensina-nos que a palavra universal se compõe a partir de unus versus alia ou plura – uma unidade contraposta a outras. Digamos que a vocação para a universalidade, inscrita em tudo, concerta as coisas particulares; tudo se faz habitado por jogos de contraposições: cada singularidade está contraposta a outras singularidades, e é no estofo dessas contraposições que se edifica aquela vocação de universalidade. Sirva aqui a situação do filho dentro da família como claro exemplo do que vem de ser dito; realmente, a educação se processa através de um jogo crescente de contraposições, que arrancam do berço, da presença dos pais, das experiências progressivamente mais coletivas, que alcançam a escola e por aí afora. A própria possibilidade da educação assenta nesses avanços que desentranham a configuração do universal – sem esse cultivo dos universais o homem ficaria adstrito ao absurdo de sua singularidade individual. Neste sentido, o descobrimento não passa de uma modalidade de cultura do universal, de um jogo de intensas contraposições, ressalvada, no caso, a amplidão do conceito: o que nele desponta é nada menos do que a ideia de Humanidade. Voltarei mais adiante ao tema. O que importa desde já está em chamar a atenção para o conceito de descobrimento entendido enquanto uma prática de realização de um certo universal, ou de um complexo de universais. Estamos, evidentemente, ao nível do universal concreto, isto é, de um universal que se vai construindo através do processo histórico. Este elemento concreto está na origem de qualquer sentido que a palavra universal possa vir a oferecer. Assim é que a ciência só se verifica dentro dos limites de uma cultura universalizante, que se faz em princípio de possibilidade da própria invenção da ciência compreendida enquanto quesito de determinação particular exata. Um exemplo: os navegadores consagraram e foram, afinal, a razão de ser da Escola de Sagres (fundada já em 1416); é que de há tempos as coisas em Portugal se preparavam, e de muitas maneiras, para a prática universalizante dos navegadores. Outro exemplo: o enciclopedismo de Aristóteles em sua fase final buscava precisamente isto: inventariar a universalidade que chegou a ser concretizada pela evolução da cultura grega; a biblioteca de Aristóteles está na gênese da Universidade ocidental, e deve ser interpretada como o lugar de cultivo dos universais, ou melhor, do trânsito entre os universais concretos e os universais científicos.
A afirmação de que o descobrimento configure um universal concreto no sentido que vem de ser estipulado apenas define o objetivo do presente ensaio. E seu objetivo está também em entender que uma característica essencial do descobrimento reside numa forma muito peculiar daquilo que passou aos poucos a ser explicitado como constitutivo do espírito crítico próprio da época. O que afirmo, nessas amenidades preambulares, é que o espírito crítico também se constitui, e isso em seus modos de ser peculiares, no contexto de embates históricos bem determinados. A própria ideia de descobrimento fomenta um tipo de comparação entre culturas que certamente não será completamente novo, mas termina por alcançar entre nós uma intensidade que chega a pôr em risco os próprios fundamentos do mundo ocidental. Realmente, o cultivo da comparação vai a ponto de poder instituir-se até mesmo numa espécie de princípio de morte. A partir de certo momento, a crítica já não se compraz com a elegância dos comentários meramente intelectuais; ela acaba inspirando, como de fato aconteceu, um nefando comércio com a ideia do absurdo. do sem-sentido radical de toda realidade. Pois o conceito de descobrimento acoberta essas coisas díspares; a educação para o universal passa a exercer-se em bases insólitas, chegando até mesmo aos limites extremos de sua própria negação. Mas não pretendo neste escrito estender-me no âmbito de tais extremismos – trata-se, todas as contas feitas, e não são poucas, do surto de conceitos-limites. Prefiro deter-me, a seguir, naquela educação crítica da universalidade.
O DESCOBRIMENTO E A NATUREZA DO UNIVERSAL
O tema se revela crítico já por um simples fato que só apresenta de inocente as suas aparências: não é que se começa a discutir, com um fervor inédito, sobre a própria natureza dos universais? Convém não esquecer, e apenas aceno ao tema, que os descobrimentos já se deixam inserir no que pode ser considerado a segunda grande revolução na história do próprio homem – a primeira se verifica no Neolítico, com o estabelecimento dos hábitos sedentários nas emergentes povoações, com o trabalho transformador da natureza, com a divisão do trabalho e, expressando isso tudo, com a invenção da doutrina dos dois mundos, o dos homens e o dos deuses, que consolidaria as bases remotas de toda a questão dos universais. É exatamente essa consolidação que sofre os seus primeiros sérios percalços já nos inícios dos tempos modernos. O que se discute, com um vigor em tudo novidadeiro, está nada menos do que na própria natureza do universal; cresce a insatisfação com as bases teológicas que sempre pretenderam justificar os universais, e arma-se então um embate que ainda hoje mostra os seus vestígios. De um lado, subsiste e com muita energia a velha tradição platônica, que encontraria no último grande metafísico ocidental, Hegel, a sua manifestação por assim dizer conclusiva: haveria; para o idealista, uma realidade onto-teológica dos universais, sempre associada portanto à presença do elemento divino; o real por excelência estaria justamente como que concentrado nos universais, garantindo-se assim o realismo metafísico de todo saber. Acontece que, já partir dos fins da Idade Média, põe a desenvolver-se uma outra corrente, o nominalismo, destinada a não economizar no que quer que fosse as consequências de seu sucesso; agora, o universal já não ostenta os seus travestires teologais, e os conceitos não passam de sinais, de símbolos de uma realidade que, ela sim, oferece a consistência do real. Por aí entende-se o êxito que começa a fazer a composição dos dicionários, ou o impacto desse momento maior do século XVIII, que foi a criação da Enciclopédia Francesa. Trata-se, portanto, a propósito dos universais, de uma discussão sobre os fundamentos. Ou mais simplesmente, está em causa o repúdio de qualquer alusão ao presumível caráter teológico no espaço que constitui os universais, e isso, em última instância, devido ao mero reconhecimento de que qualquer contágio teológico representaria apenas trastes inúteis, ou ainda, o que é muito grave, um sério entrave ao próprio desenvolvimento da ciência.
Estranha orfandade essa, a dos novos universais: eles enchem agora dicionários e enciclopédias. E se desprezam, por justíssima causa, qualquer vinculação de ordem teológica, isso significaria o quê? Que os universais se fazem alheios à questão do fundamento? Que o caráter abstrato dos dicionários deva repousar sobre um vazio que acaba esclerosando até mesmo a geração do sentido? Porque o dicionário é abstrato, e tudo se passa como se estivesse localizado aquém do sentido, antes do ser, numa vacuidade completamente descompromissada – daí, de resto, a sua índole utilitária, instrumental. Nem penso aqui nos conceitos universais formalmente considerados: o nominalismo soube ocupar-se do tema de modo até mesmo transparente através do reconhecimento da simples formulação dos enunciados científicos. Penso aqui, sim, naquilo que mais acima chamei de universais concretos, que embasam afinal de contas a própria possibilidade de toda pedagogia, da paideia tão cara a Aristóteles. Sem o universal concreto todo projeto educacional, no sentido mais amplo da palavra, torna-se rigorosamente inviável. A questão é: onde encontram esses novos universais o seu fundamento? A partir de onde pode-se agora entender todo projeto de cultura e educação? Ou seja: descartada a teologia, qual a base real que nutre os universais concretos? De onde sorvem eles o sentido que os impregna? E mais: qual a sua relação com o descobrimento e a instauração do chamado mundo novo? São perguntas desse teor que permitem ao menos vislumbrar todo o peso que se patenteia em experiências como a do descobrimento. E outra vez: por fundamental que sejam, os feitos dos descobrimentos não passam de um momento inserido em um sentido bem mais amplo do que a simples aventura náutica, e o que importa está no desvendamento das muitas dimensões que esse sentido soube assumir.
Diria que a derrocada do platonismo – cometimento muito menos intelectual do que possa parecer – viria a estabelecer novos critérios para a constituição de qualquer sentido averiguável na ideia de fundamento o na de qualquer associação que lhe pudesse ser feita. E tais critérios encontravam o seu horizonte mais longínquo mas também o mais vizinho nas categorias de espaço e tempo. Aliás, nem poderia ser por acaso que estas duas breves palavras tenham passado por transformações tão radicais no correr da filosofia moderna e da contemporânea. O que se arma por trás desse processo todo está nada menos do que na instituição de um modo totalmente novo de compreensão do mundo, uma compreensão que se quer progressivamente sempre mais calcada nos seus estatutos de finidade radical; digamos, sem quaisquer laivos de pretensão, que o que está em causa reside por inteiro no que deve ser chamado de ontologia da finitude – mas sem pretensão: não se entenda aqui essa ontologia como uma teoria determinada que possa ser contraposta a outras doutrinas mais ou menos próximas ou distantes: o pensamento da finitude no caso quer significar tão-somente a demarcação de um novo terreno, a medrança de um solo outro todo eivado de vontades outras que não as estipuladas pelo escolasticismo tradicional. Em que se imiscuíam realmente os bravos navegadores? Amparados em uma ciência forçosamente incipiente, sempre a dois passos de uma inciência abissal, mergulhavam em medos e destinos que se confundiam até mesmo com o sem-sentido. É essa incerteza radical que inventa deveras o navegador, mesmo que agarrado às suas cepas. A América acaba sendo a China, e as praias da Bahia ofereciam os cenários do paraíso terrestre. Claro que novidades tão insólitas e alvissareiras faziam fremir os corredores vaticanos de toda sorte: a China afinal tão próxima? E que paraíso seria esse a desdizer as fantásticas elucubrações douradas do teatro medieval?
A pergunta se mostra clara: o que trazia em seu bojo, entre tantas coisas, a ciência, e a inciência dos navegadores? Em face de todas as riquezas, empobreço a análise com a referência a apenas dois indicadores. O primeiro prende-se ao contexto das ambiguidades fatais de todos esses rumos e rumores, e vincula-se à presença daquilo que estou aqui chamando de platonismo, ou seja, no caso, às insistências evangelizadoras que vinham enxertadas nas próprias quilhas dos cascos dos novéis navios. A evangelização buscava o quê? Reduzir os novos paraísos do além-mar às ribanceiras do bíblico? Mostrar à grandeza chinesa que ela se deve converter? Levou um bom tempo para que a consciência ocidental se desse conta do sentido dos propósitos que formavam a própria essência dos processos evangelizadores, qualquer que pudesse ser a religião ou seita. E levou também tempo para que os estudiosos se apercebessem de que os procedimentos evangelizadores abrigavam, em verdade, métodos calculados de reducionismo, processos de descaracterização, e que, afinal, evangelização e genocídio são palavras que acabavam acobertando a sua inteira sinonímia. A questão é grave: o Ocidente estaria destinado a inventariar eternamente o mesmo, por processos que levaram à destruição do outro; que implicavam a redução da alteridade à condição de peruana sombra de si mesma? Volto daqui a pouco ao assunto a propósito da análise da questão da alteridade.
Outro indicador, tíbio porque mormente subentendido, a revelar as implicações dos feitos dos navegadores alia-se justamente àquela transformação há pouco alvitrada por que começam a passar as noções de espaço e tempo. Sabe-se que a tradição do pensamento ocidental exibe uma óbvia preferência pelo conceito do tempo, e deixa o espaço como que a reboque. Mesmo em Heidegger, para citar a mero título de exemplo uma posição que deve ser considerada avançada, o espaço só se deixa esclarecer a partir da temporalidade. Pois não é que os novos navegadores preferem trilhar os caminhos opostos e avançar com suas práticas pelas dimensões infinitas do espaço? Eles demarcam a arte e a ciência da navegação enquanto conquista espacial, e, para eles, a significação como que exaustiva do tempo concentra-se na imensidão de um espaço que permanece inexaurível. Além disso, o espaço conduz realmente, efetivamente, ao outro, ao fabulário chinês ou paradisíaco, às pimentas-do-reino e à preciosidade das pedras. Pois parece evidente que, nos descobrimentos, está em causa uma vivência incrivelmente nova da espacialidade e, ainda que por extensão, da temporalidade também. Mas não tento aqui explanações que poderiam ser em tudo sugestivas e que impressionariam precisamente por seu caráter novidadeiro; apenas lembro o que estava se passando, não somente no manejo do leme das embarcações, mas também na originariamente inciente ponta do pincel dos pintores, do cisel dos escultores e nas arquitraves das edificações; ou ainda, logo em seguida, no que passaria a acontecer na nova ciência, a começar pela astronomia. Não me poderia furtar, todavia, de referir aqui outro exemplo para aclarar nosso tema, já analisado por mim alhures,[1] sobre Shakespeare, saboroso precisamente por combinar certo ineditismo com o que parece ser um desprevenido procedimento na sua construção dramatúrgica; era possivelmente a simples presença do air du temps que levava nosso poeta a reinventar a própria vigência dos modos de ser das categorias do espaço e do tempo no teatro. Apenas menciono aqui o fato de que nosso autor foi o primeiro grande viajor da história do teatro, e ele viaja no espaço e no tempo: é a Dinamarca, é Verona, é Veneza, é Roma, é Atenas, é todo o império da realeza britânica. Nada disso na manifestação do instante absoluto que tudo decidia na mítica tragédia grega e nos não menos míticos mistérios medievais – é que tempo e espaço eram tragados pela onipresença por assim dizer absoluta do próprio instante. Shakespeare foi o homem que temporalizou e espacializou o teatro em função já de uma mentalidade completamente nova, que avançava no próprio sentido dos novos tempos e literalmente esquecia tudo aquilo que constituía a razão mesma de ser de todo o grande teatro do passado: o ato da fé.
As duas indicações feitas já bastam para que se comece a perceber as modificações essenciais nos modos como o homem dos tempos modernos passa a assumir categorias tão basilares quanto o espaço e o tempo. É pelos conceitos do espaço e do tempo, e pelo inusitado das experiências que sabem suscitar, que principiam a constituir-se os horizontes mais extremos não somente das transformações por que passam a verificar-se as vivências do universal, como também o problema do próprio sentido que o tema possa mostrar. Entende-se, por isso, que inicie-se a organização de duas novas ciências com todas as suas crescentes ramificações, que são a história e a geografia. A presença destas duas ciências no pensamento moderno oferece, como não poderia deixar de ser, um panorama dos mais complexos e fascinantes; a análise do tema exigiria um amplo espaço e foge das coordenadas mais estreitas do presente ensaio. Mas permito-me lembrar, a mero título exemplificativo, a posição de um Kant, para quem o conhecimento da natureza deriva da geografia física, da descrição da Terra, e que fala em três níveis da geografia, a física, a moral e a política.[2] Talvez a tripartição nem seja suficiente para o entendimento da inteireza da ação de nossos navegadores quinhentistas. Entrementes, a consideração maior acerca de nosso tema viria a ser assumida pela história. Para Marx, por exemplo, a “única ciência” seria a história; ele queria dizer, evidentemente, que tudo passa pelo processo histórico, pela historicidade inerente a todo labor humano, mesmo o mais inocentemente formalista. A posição de Marx revela-se interessante porque haveria, segundo ele, dois níveis da história: a dos homens, mas também a história da própria natureza, e estas duas histórias não poderiam ser separadas da categoria tempo,[3] visto que tudo é processo. Assim, o espaço, seguindo-se sempre os traços de uma vetusta tradição, termina marginalizado, o que parece fazer com que a geografia desfaleça em suas bases ontológicas; acontece que o espaço é como que “engolido” pela ciência da natureza dita histórica. Seja como for, espaço e tempo desempenham na nova era um papel que já nem poderia ser marginalizado. Análises subsequentes vão confirmar o que vem de ser dito, a iniciaram-se em seguida pelas observações que faço a propósito do nominalismo.
A IMPORTÂNCIA DO NOMINALISMO
Já aventamos a que veio: discute-se aí o embasamento da própria possibilidade da ciência, ou o seu processo de legitimação. Sabe-se que o nominalismo, negativamente considerado, constituiu um processo de crítica aos próprios fundamentos platônicos da ciência, com resultados que foram muitíssimo além do que poderiam ter imaginado os seus promotores da já extenuada Idade Média; mas nessa agonia o nominalismo conseguia apontar para os novos tempos. Permito-me rascunhar o mais simples dos esquemas para caracterizar o nosso tema. Se a ciência quer ser uma explicação racional da realidade, e para fazê-lo lança mão de conceitos universais, tais conceitos deveriam conter em si a própria força daquela realidade. A fundamentação desses conceitos, iniciada por Platão e desenvolvida subsequentemente de muitas maneiras, pretende que o conceito seja de algum modo a expressão exata do real por excelência, ou seja, da realidade divina em si mesma; o real não está nos indivíduos, nas aparências fugazes, nas existências restritas à sua contingência, e sim no fundamento divino de todo o real criado por Deus. Bem mais tarde se dirá que, então, valeria dizer que a essência precede a existência. A essência está no real propriamente dito, é o elemento divino, o estável, o imutável, o imóvel, o geral e necessário, isto é, tudo aquilo que deve ostentar a dignidade da ciência, e toda ciência não passa de teologia. Já a existência configuraria o efêmero, o contingente, o móvel e mutável, a particularidade do indivíduo destituído da consistência do universal; os medievais se compraziam em dizer que o indivíduo era apenas um acidente, accidens. Ou então dir-se-á, entre nós, com as palavras de ardente zelo evangelizador do padre Manuel Bernardes, em seu livro Nova floresta, que é de 1706: ”Estime-se a espécie, não se conte o número”.[4] Assim, salva-se a possibilidade de uma ciência desde que alicerçada no real considerado excelente, e perde-se a transitoriedade do indivíduo que nem poderia ser princípio de constituição de alguma ciência, posto que passa, posto que é nada. Tal é a coerência do nosso teólogo: “Ó glória que não passas! Tudo por ti se pode passar, maiormente ficando este tudo convertido em nada, uma vez que é coisa que passou”.[5]
Pois o nominalismo viria proceder a uma interessantíssima e revolucionária inversão nessa dicotomia platônica. Agora, é a existência que precede a essência; as essências passam a ser consideradas enquanto conceitos vazios de qualquer conteúdo, simples palavras, justamente aquilo que se lê nos dicionários – afirmemos que os dicionários e as enciclopédias são nominalistas em seu próprio estofo inspirador. A existência, ao contrário, é que traz consigo todo o porte da realidade; o indivíduo, enquanto datado, situado no espaço e no tempo, é que passa a assumir todo o peso do real, dosado numa espécie de cidadania ontológica. Apenas uma inversão, mas que se planta na origem daquilo que alguns tempos mais tarde passaria a ser denominado como sendo nada menos que a morte de Deus. E de fato assim foi. As coisas se processaram então com uma rapidez espantosa. Claro que os inícios não poderiam deixar de ser um tanto vacilantes: Galileu ainda teimava em considerar-se platônico e pitagórico, mas ele já entendia dos fundamentos da hipocrisia; e Newton ainda conseguia acreditar que as leis da natureza eram a simplicidade enfim alcançada pelo homem da linguagem do próprio Deus. São apenas quimeras que o nominalismo logo dinamitaria. Pois o seu feito inaugural estava precisamente na destituição do elemento divino. Entretanto, veja-se a solércia: ainda em nosso tempo, Einstein pretendia responder aos defensores do indeterminismo com o esdrúxulo argumento de que Deus não joga dados, ao que os outros – Heisenberg, Schroedinger – prontamente responderam que a física não se ocupa de Deus. Pois esse desocupar-se de Deus foi, querendo-o ou não, inventado pelos nominalistas.
Sem dúvida, como já referi, as coisas passariam por uma fase de turbulências. Por outro lado, contudo, o modo como os historiadores das ideias e da epistemologia consideram o nominalismo deixa muito, ou tudo, a desejar. É que eles fazem as suas análises por vias demasiado limitadas à especificidade filosófica. Mas uma filosofia restrita à filosofia, mesmo quando bem-feita, é a coisa menos filosófica que se possa imaginar. E por acréscimo, empobrecedora. Digamos que a filosofia começa do outro lado dela mesma. Em verdade, o nominalismo, bem examinada a situação, acaba comprometendo-se com dimensões que impressionam pela extensão dos territórios que invade. Nem constitui exagero afirmar que, ao longo dos tempos modernos, tudo se vai fazendo nominalista. Não só a filosofia e a ciência, mas também a política e a arte, e não faço a seguir senão acenar aos temas.
Como seria de esperar, os embates passam a verificar-se em todas as frentes. A começar pela filosofia. Com os ingleses empiristas o nominalismo avança aguerrido para encontrar em Kant o seu paladino maior; Kant nem pode ser entendido sem Newton: ele queria saber como funcionava a cabeça do cientista, autor, afinal, da única ciência válida da época; mas por outra parte Kant consegue desteologizar a física newtoniana. E o processo se repete, para dar mais um exemplo, com o formalismo da ética kantiana: ele acaba dizendo que a Diké, a Justiça, a deusa-patronesse da filosofia e da tragédia gregas, não exerce mais qualquer função decisória, assim como o Cristo medieval também já não é mais juiz. A força do pensamento de Kant, entrementes, ou a sua fraqueza, não impediu que a filosofia moderna concluísse o seu ideário com o extraordinário sinfonismo, por exemplo, da filosofia hegeliana. Já do lado das ciências a situação avança de modo mais decisivo e parece que mais seguro. Digamos que há aí um andar que se processa no silêncio dos laboratórios, na calculada padronização das proporções, e as passagens se fazem cada vez mais transparentes, a ponto de se poder dizer que, já no século passado, toda ciência se converte em nominalista. Volto logo ao tema. Com referência à política, entenda-se bem o que afirmo. Vê-se de imediato que a mencionada formalização da ética e seus desdobramentos no mundo jurídico têm tudo a ver com o nominalismo. Mas o nominalismo tem tudo a ver também com a premência das transformações políticas; de fato, entendo que se deva associar o nominalismo ao fim da monarquia e ao advento da democracia. A figura monárquica do rei, como a do Cristo, consolidava apenas um tipo de universal concreto que autorizava o rei a dizer até mesmo que ele é a lei, o universal judicante. E é exatamente esta função que se volatiliza com o nascimento da democracia. Por que não avançar, então, que a democracia assume em seu próprio cerne um caráter nominalista? O voto democrático não teria cunho nominalista? E para concluir o elenco destes tópicos, duas palavras sobre a situação da arte. Considere-se que toda a grande arte do passado (a “pequena” arte nada tinha a ver com a arte propriamente dita) exauria-se em desvendar aqueles universais concretos – a mitologia dos deuses, os heróis, os reis, os santos, o Cristo, e tudo o que se lhes assemelhasse. Pois não é que ao final do período barroco da arte e já antes dos graves cometimentos políticos que se anunciavam, a arte religiosa e toda a sua temática simplesmente desaparecem? Do barroco passa-se ao rococó: parece um passe de mágica. A rara arte religiosa que ainda possa surgir deve ser debitada por conta das crenças pessoais dos respectivos artistas. Realmente, já não cabe falar de arte religiosa no sentido daquilo que Hegel chama de substância objetiva. A estética e a arte, em verdade, se alicerçam agora em duas linhas que nunca conheceram tamanho privilégio: uma arte do objeto e outra do sujeito, ou da expressão. O que importa agora está em pintar esta particular natureza morta, que se basta sem ser cópia de nenhuma Ideia: ou este retrato, que nada mais deixa esplender de universal, representa tão-só algo como o comerciante que mora na esquina, ou algum vizinho dele, mesmo que seu nome seja Descartes; ou ainda os delírios, postos nos sons, de uma fantasiosa sonata talvez ébria de infinito, mas que não consegue abandonar o estatuto do simplesmente humano. Por que não ver nesta arte – e nem falo aqui nos prolongamentos contemporâneos da arte, que recusam até mesmo aquela hegemonia das categorias de sujeito e objeto – sua profunda afinidade com o que poderia ser denominado, sem nenhum sentido depreciativo, de euforia nominalista? Mas queria, nas considerações feitas, ressaltar tão-somente que o nominalismo parece exibir uma problemática muito mais ampla do que permite supor os por vezes míopes comentários meramente filosóficos do tema, ainda que eu não veja no que foi dito mais do que um desafio a ser bem analisado.
Não me afasto do tema sem antes desdobrar alguns comentos sobre o estatuto da nova ciência dos tempos modernos, a partir da vigência de seus pressupostos nominalistas. Esta ciência. aliás, bifurca-se em duas grandes áreas. Se ao tempo de Kant havia, como foi dito, uma única ciência, a físico-matemática, exemplo absoluto de tudo o que se pudesse imaginar sobre o ser e o dever ser da ciência, no largo correr do século passado aconteceu um desdobramento não só da ciência, como do próprio conceito de cientificidade, em tudo surpreendente. É como se a proliferação das ciências devesse dar conta de cada recanto da realidade e cada recanto escondesse um mundo progressivamente mais complexo, a reclamar olhares diferençados. Mas logo as consciências se fizeram concordes em que havia nas bases dois grandes ramos científicos: o das ciências da natureza e o das ciências históricas: objetos diversos, metodologias diferentes, e por aí afora. Ocorre, porém, que tudo isso se fez – e é para isso que quero chamar a atenção a seguir – na esteira do já tão alteado nominalismo.
Mas repito: creio não haver excesso em afirmar que toda ciência de nosso tempo embasa-se no nominalismo. No que respeita às ciências da natureza, onde está o cometimento do nominalismo? Há um asserto, que já fascinava Marx, na Enciclopédia de Hegel que bem ajuda a esclarecer o nosso tema; nele, afirma-se que “a razão é tanto astuta quanto poderosa[6]. A frase deixa-se explicar pelo filósofo em um contexto que se quer essencialmente teológico. A astúcia estaria na “atividade mediadora”, que aparentemente faz uma coisa, mas na ordem dos fins acaba fazendo outra. Assim, por exemplo, é que a providência divina concede aos homens crerem no mundo e em seu processo, mas astúcia reside no fato de que essa concessão só aparentemente aceita o jogo das tais aparências, e tudo o que acontece realiza em verdade a plenitude das intenções do próprio Deus. Ocorre que o universal divino já nada tem a ver com o nominalismo, e a astúcia da razão desloca-se então para outro contexto: onde está ela agora? A universalidade da conceituação científica – a proporção de dois para um entre hidrogênio e oxigênio na constituição da água – passa a ser apenas um signo, um indicativo daquilo que se constata na natureza, mas a rigor o correspondente objetivo dessa entidade científica não existe, não pode existir, e nem deve existir. Claro que tanto quanto possível os laboratórios vão entregar-se ao mister de construir uma água quimicamente pura. E é justamente neste ponto que residem os novos modos da astúcia da razão; é que no esforço sempre caricatural de reconstituir aquela fórmula, a aproximação desejada acaba revelando um outro sentido: se o correspondente da fórmula não existe nem precisa existir, ela consegue em contrapartida transformar-se em princípio de manipulação, e por essa astúcia a manipulação se torna poderosa: ela inventa a química e toda a farmácia. Em definitivo, o poder da astúcia da razão está nos fundamentos de toda a revolução industrial – e isso significa que não é só a ciência que se revela nominalista, mas também a construção do aparelho tecnológico, da máquina, na própria condição de seu estatuto. É que os endereços agora se querem outros que não os hegelianos.
E o nominalismo está presente também nos fundamentos das ciências históricas. Se a negação de qualquer realidade no próprio seio do conceito universal conseguiu perpetrar uma imensa revolução, não menos revolucionária é a afirmação em tudo nominalista de que a concretude se refugia nessa grandeza maior que passa a ser a realidade do próprio indivíduo. Assim, se já os antigos recusavam a possibilidade de se constituir uma ciência do indivíduo, agora é precisamente esse indivíduo que passa a reivindicar para si uma ordenação até mesmo privilegiada da cientificidade – é no século passado que se fundam as ciências históricas, e o indivíduo alcança a dignidade de plenitude ontológica, ele se alça exatamente àquilo que constitui a sua identidade original.
Toda essa dupla revolução, a do conceito universal abstrato e a do. atingimento do indivíduo concreto, pertence – e é isso que deve ser bem compreendido – aos labores dentro dos quais se encaixam também os navegadores e os seus descobrimentos. Começa-se a perceber: o fato e o conceito do descobrimento, pela força das idades, vai construindo aos poucos toda a extensão de seu perfil. Pois continuemos nossa viagem.
A ALTERIDADE E O MUNDO DAS VIAGENS
Digamos que nossos navegadores por todos os lugares viajam, e fazem até mesmo a viagem viajar. Quero dizer que o próprio sentido da viagem subitamente se altera, e instala o homem de maneira a que dirija o seu olhar para endereçamentos que o levam a desvendar um gosto surpreendentemente novo pelas coisas diferentes. Não deixa de ser simples perceber a complexidade do tema, e é claro que há toda uma protohistória a respeito do que vou afirmar. Observe-se que o que importa aqui está na extensão e na intensidade das novas experiências, a par da transmutação de um sentido que corre de modo paralelo a tudo o que o Novo Mundo começa a oferecer de verdadeiramente novo. Isso em nada desmerece os avanços de outros empenhos viageiros, de velhos gregos, de romanos e nem de tantas outras empresas. Mas é importante não perder a agudeza do olhar, e perceber que nossos bons cristóvãos e cabrais mexem numa urdidura que põe em causa até mesmo as raízes neolíticas da história do homem.
Pois onde está o elemento novo das novas navegações? Nem penso aqui na dura realidade dos meios e utensílios outrora empregados, sempre o desfraldar das mesmas velas, e isso ao longo de milênios, até que fossem superados pela parafernália moderna das locomotivas e das aeronaves. Evidentemente, tudo isso tem o seu peso em nada desprezível, e que em nada desmerece – dou um salto – a experiência de um Goethe, sempre nostálgico e ávido por embrenhar-se no coração da eterna Grécia; mas, naqueles anos, ainda era difícil viajar, e nosso poeta não conseguiu ir além das praias da Sicília, de onde recitava, em grego, voltado para Atenas, os versos de Homero. Pois os tempos modernos descobrem até isto, que a imaginação se faz viajante. Logo volto a esse tema da imaginação. Interessa-me por ora chamar a atenção para um outro tipo de experiência, que uma breve comparação permitirá elucidar.
Penso aqui no centro latino de Paris, naquela estranha rua, de nome Vaugirard, imagino que uma das artérias mais extensas da história do urbanismo humano; de certo modo, ela foi feita para nem ter fim: os peregrinos cristãos forçavam para que se estendesse até para além dos mais estranhos espaços, de montanhas quase intransponíveis, e os passos trilhavam, e queriam fazê-lo, o terreno inóspito, duro, árduo, repleto de toda uma penalogia escrita no pó, até atingir a grande revelação. Caminhavam no coração de Paris até a distante Santiago de Compostela, já em plena Espanha. O interessante está em perscrutar o sentido que toda essa andança efetivamente oferecia, já tão verticalmente alheia até mesmo às experiências análogas do homem moderno. É que o peregrino medieval jamais abandonava, alheio a qualquer intempestivo quixotesco, a seriedade do que poderia ser chamado de a mesmidade do mesmo. O mesmo é aquilo que não muda nunca de nome, no caso o do Cristo. Porque os peregrinos de antanho já estavam desde toda a eternidade fincados nessa verdade absoluta do Cristo. E a significação da viagem não ultrapassava jamais essa identidade do mesmo; no sol da Espanha era o mesmo Cristo parisiense que confirmavam. O peregrino perseguia aquilo que ele já sabia, a confirmação absolutória de um Absoluto desde sempre creditado, ele nunca se desprendia das fronteiras de uma verdade que se exauria em exigir a sua própria confirmação, ainda que, e mesmo principalmente, através de milagreiras penas sequiosas de redenção. Os tortuosos caminhos ratificavam a identidade do príncípio e do fim: do mesmo se ia ao mesmo, e tudo isso mais nada tinha a ver com o mundo.
Já o nosso sagaz navegador moderno cultiva a astúcia da descoberta do outro. Ao cabo de cada viagem, qual a paisagem, qual o novo paraíso, que tipo estranho de homem outro, e mesmo, e muito, que nova riqueza, que novas promessas de riqueza? Por aí, e por tantas rotas, passaria a deslumbrar-se o saber moderno. Afirmemos que, nesse processo, a viagem moderna põe em jogo o estatuto ontológico da mesmidade do mesmo, e abre-se em direção à descoberta das dimensões da alteridade do outro. Não retomo aqui a questão fundamental da aversão metafísica tradicional em relação à categoria do outro – já nos inícios do pensamento ocidental a tentativa de Platão de buscar a reabilitação da alteridade vem denominada por ele mesmo de parricídio, e é em nome desse parricídio que Aristóteles expulsará, com a falsa aparência das coisas definitivas, o outro de qualquer tipo de presença no âmbito da ciência.[7] Com os descobrimentos modernos é justamente essa categoria do outro que se vê literalmente promovida e se torna objeto de uma descoberta que iria infiltrar-se em todas as dimensões da cultura ocidental. Dou por enquanto apenas um corriqueiro mas nada ingênuo exemplo disso. Já cedo formou-se na Europa o cultivo dos famosos “Cabinets d’Histoire naturelle”; neles, a pesquisa habitualmente nem seria tão grande, mas a moda se alastrava: os gabinetes colecionavam tudo o que não se tinha em casa, a fomentar uma curiosidade que aposentava os truísmos em que se disfarçavam os velhos hábitos do pensamento. A grande novidade reside agora no fato de que a dita curiosidade transladava-se aos poucos para a visão das diferenças – a presença do outro constrói o preciso alicerce de tudo o que possa constituir o fascínio da diferença. O tema apresenta uma vastidão deveras impressionante – comprovam-no os relatos dos muitos viajantes, de diversas nacionalidades, que pervagavam nossas selvas – e parece-me que continua à espera de análises que mostrem a carga de sua progressiva constância e de sua abrangência. O assunto, visto pelo viés filosófico, leva a repensar coisas tão essenciais quanto o estatuto do erro, da contradição, das próprias bases da cientificidade, e isso a ponto de suscitar, na contramão, posições de um reacionarismo extremo.
Avento aqui mais um exemplo dessa abertura para a diferença: a antropologia científica. Trata-se evidentemente de uma ciência nova, que só poderia medrar no solo fertilizado por aquelas modificações no campo da ciência acima apontados. Pois a antropologia alicerça-se no exato reconhecimento da importância específica das diferenças. A novidade, portanto, que parece instalada no próprio berço da antropologia, está em que o survey do cientista assume o barco. O antropólogo constitui uma raça de gente que nasce com os pés plantados na proteção mínima das galochas: uma certa hegemonia do conceito de alteridade reclama que ele avance para adentrar-se na humanidade dos menores habitáculos, encravados na estranheza de pantanais e pedregais. Penso aqui nos barcos daqueles antropólogos, de tantos deles, que já na virada do século souberam dar vida nova aos propósitos dos grandes navegadores clássicos. Claro que agora já se sabe do planeta, as rotas estão codificadas, as economias definidas, mas continua o velho deslumbramento, o fascínio pela descoberta do outro, a atitude, agora mais debruçadamente científica, de perscrutar as diferenças, de flagrar a diferença enquanto razão de ser do outro: cria-se até uma pedagogia do outro, o reconhecimento, por exemplo, da superioridade de certos comportamentos de tribos nativas das ilhas dos mares do Sul em relação aos procederes da puritana sociedade ocidental; e começa-se a perguntar: será verdade que o sentimento de culpa tem de fato caráter universal? Mesmo um Lévi-Strauss, um tanto atordoado pelo excesso fragmentador das diferenças, buscou nos bororos matogrossenses tão-só as suas estruturas específicas, alheio, como nem poderia deixar de ser, a quaisquer denodos de ordem evangelizante: nem a ciência transformadora, nem os enlevos da pauliceia desvairada – apenas a diferença.
E chegamos então a isto: o planeta filmado como um imenso catálogo, talvez sempre inacabado, de diferenças as mais díspares. Spengler enfim caducou: não existe apenas o elitismo de meia dúzia de “grandes” culturas, e sim o mapeamento de uma diversidade que torna suspeitas as hierarquias de superior e inferior, de normal e anormal, e mesmo de velharias como a de espiritualidade e materialismo. Trata-se, vê-se logo, de um jogo em tudo perigoso: onde fica, afinal, a estabilidade dos valores da cultura ocidental, precisamente da cultura que se deixou inebriar pelas diferenças? Tanto que, hoje, todo mundo já sabe: não existem mais culturas definitivas, todas elas são mortais. E já não resta dúvida: estamos todos instalados no reino das diferenças. Mas, ao mesmo tempo – e urge que se pense aquela morte-, estamos engajados num novo tipo de construção. Não há de ter sido por acaso que o século XVIII criou o conceito de Humanidade, entendido justamente como albergue possível da geografia das diferenças. Nem dá aqui para entrar no tema, não obstante toda a sua urgência. Não há de ser também mero devaneio inconsequente a hodierna cunhagem da expressão “aldeia global”, aparentemente tão cândida. Veja-se, entretanto, na palavra aldeia um prolongamento das diferenças, e no adjetivo global aquele desígnio que começou a ser fabricado na forja leibniziana do conceito de Humanidade. Imagino que tenha ficado manifesto que estou apenas indicando as fronteiras mais extremas da faina descobrimentista que varre nossos horizontes já faz um bom tempo – e continua e continuará a fazê-lo. De repente, até o Universo se torna pequeno.
A ALTERIDADE E O MUNDO DA IMAGINAÇÃO
Com certeza, os descobridores em todos os sentidos devem muito aos arroubamentos de sua imaginação – a imaginação, ela também, que nem se sabia histórica, vive do outro. Ou melhor: o outro passa a provocar toda uma nova cultura da imaginação, de seu sentido e de suas funções – tudo situado muito aquém dos arquétipos e da mesmidade de suas transformações. Por isso mesmo, nada há de simples em observar que o início dos novos tempos se querem em tudo racionalistas. Nem penso tanto na filosofia, que veio tarde, e sim – coisas já referidas anteriormente – na harmonia musical, no geometrismo que acaba se instalando na pintura, na escultura, na arquitetura, e também, logo mais, no advento do pitagorismo da nova física. O curioso está em que, sobre este fundo de uma racionalidade de estilo tão definido, de um requinte tão elaborado, termine se criando uma elevadíssima cultura das forças da imaginação. É toda uma vasta literatura que parece estar nas bases, pelas vias de alguma de suas terminais, por exemplo, das raízes do Brasil, e que, tanto quanto vejo, não encontra similar na história. Penso aqui na copiosa produção de utopias que, a seu modo, também inventam as origens dos tempos modernos; penso sobretudo em seu ineditismo, que não encontra precursores nem em Platão nem em santo Agostinho, como pretendem intérpretes desavisados. De fato, como interpretar as utopias e esse seu singular adendo que é o tão festejado bom selvagem? Já me ocupei do tema em outro lugar,[8] e retomo-o aqui num de seus aspectos por mim um tanto negligenciado, maiormente essencial para o nosso tema de agora. Como interpretar as utopias? Enquanto suficiência da fantasia literária? Isso nem existe. Como texto programático a ser posto na prática política? Demasiado cedo para isso, e nem o autor da mais famosa das utopias, Tomás Morus, político e primeiro-ministro inglês, perdeu o seu tempo com tal tipo de empenho. Seria então uma espécie de nostalgia do paraíso perdido? Mais fácil seria considerar o lugar da utopia como a superação daquele velho paraíso já tão desfalcado em sua zoologia. Seria o seu oposto, um aceno à construção do futuro? Talvez aqui, considerada numa ampla perspectiva histórica, a hipótese comece a revelar-se interessante. E mais complicada.[9] Porque as utopias representam uma cuidada desconstrução de tudo aquilo que o homem novo estava construindo para si mesmo e os seus pósteros. Realmente, o bom selvagem e as populações utopistas nada têm a ver com os novos valores – a autonomia, o individualismo, o poder político, o Estado nacional, o trabalho, a propriedade privada, o capitalismo, o poder da ciência, a cidadania plena, e por aí afora. Convenhamos que para configurar um ato revolucionário ou uma simples situação de crise o novo fabulário da imaginação não se deixa acomodar muito bem no contexto das devastadoras inovações que vinham sendo postas em prática pela criatividade do homem moderno – afinal, até o conceito desse homem novo é invenção dele mesmo. Não por isto, mas já por isto, prefiro explorar uma outra hipótese.
Esta hipótese – quero dizer: sugestão de trabalho – centra-se precisamente na função do imaginário. Nesta linha, a utopia não incitava a atos revolucionários, nem saberia ser princípio provocador de crises derribadoras – isso tudo viria mais tarde-, porquanto, em sua gênese, a utopia seria algo como uma complementação daquele tão bem calculado e tão bem-sucedido racionalismo; digamos que aquela esfera do racional, talvez por vir provida de uma aura de secura reducente, passasse a exigir certa modalidade de contrapeso: a produção pelo imaginário seria exata mente esse contrapeso em busca de alguma forma de equilíbrio. De fato. toda a questão está em entender qual a relação entre o sucesso do racional com esse elemento imaginário, provido de uma índole tão forte e bem caracterizada. Não penso que levaria muito longe avançar que o imaginário seria apenas uma dimensão por assim dizer psicológica, que viesse suprir por meio do recurso a um suposto irracional aquilo que pudesse estar faltando ao exercício da racionalidade. Tal tipo de justificação acabaria compondo um quadro com partes que, no fundo, permaneceriam alheias uma da outra. Nada disso: o imaginário vem munido de uma forma de vigência que decorre de dentro daquele exercício racional. O imaginário não reside em algum modelo de marginalidade ou de insuficiência que rondasse o racional, ele é antes uma forma de duplicação da racionalidade demandada pelo modo como a nova racionalidade desdobra o seu lugar próprio. Se esse exercício do racional repele todas as milagrarias e os seus pertences, ele solicita um cultivo do imaginário que é milagreiro à sua maneira: ele inventa as utopias e os bons selvagens. A diferença está em que essa nova função do imaginário arraiga-se por inteiro na própria racionalidade e termina constituindo um novo tipo de exercício, que estaria por assim dizer numa razão de segundo grau, ou seja, o novo estatuto da racionalidade é tão vigoroso que leva à formação dessa outra racionalidade, que em suas construções nada mais seria do que a reflexão sobre os constituintes primeiros do racional. É como se essa razão primeira, a da cientificidade, projetasse para fora de si um contraste a partir do qual ela se tornasse crítica em função de seus próprios procedimentos. Essa reflexão segunda constituir-se-ia assim literalmente em reflexo, ela seria como um espelho polimorfo, todo feito de contrastes a serviço da autocrítica.
O contraste é o outro da sociedade, no reverso que constrói a utopia; e é o outro do homem, no reverso que cria o bom selvagem. Isso significa que a produção imaginária funciona à maneira de um referencial cujo sentido estaria na confirmação crítica e ao mesmo tempo na consciência dos limites, das fronteiras. A utopia não destrói a nova sociedade, nem a substitui no que quer que seja, a utopia constitui um parâmetro exterior à sociedade, mas ao mesmo tempo inventado por essa sociedade; o bom selvagem não é a simples substituição do santo tradicional, ele é a projeção do homem novo naquilo que esse novo não é, como que a comentar os seus limites. O bom selvagem institui-se em elemento mais novo do novo, talvez a prenunciar promessas ainda indecifráveis. O homem moderno, que é a invenção de uma forma de olhar, olha até isto: a sua própria invenção desde um olhar outro, que o vê desde fora, pelo contraste em relação a toda a construção da modernidade. A reflexão chega, pois, a este ponto: é como se o olhar olhasse a si próprio. O homem moderno não é o bom selvagem, mas ele se deixa medir a partir do selvagem, o selvagem é o que lhe falta e por isso configura um certo paradigma. De certo modo, todo esse imaginário vive da negação do outro que o gerou; parece até que o homem vê-se agora enquanto sua própria transitoriedade – mas trata-se de uma transitoriedade que nada mais tem a ver com a superação do mundano: ela busca muito mais a ratificação reavaliadora servindo-se de seu reverso; ferve a sociedade, em algum lugar ela se quer outra que não ela mesma, e ferve o corpo humano, ele se vê em outras promessas de cama e mesa. O imaginário inventaria por inteiro o principal índice de um mundo em transformação, e que se quer a si próprio enquanto transformação. Tudo é viagem. É que o descobrimento se desdobra em mais de um nível – em ao menos dois. E sua novidade maior está precisamente no fato de que toda criação de nível nada tem a ver com a redenção em nome do sobrenatural, que começava a ver corroídas as suas próprias bases – o sobrenatural passa a ser substituído por uma insólita e sólida cultura do imaginário. Tudo agora se faz natureza, mas duplicada e reduplicada, reflexa e reflexiva, sempre querendo-se a si mesma, o olhar perquiridor que vive de sua suficiência e também de suas perplexidades. Talvez caiba até dizer que o melhor retrato do bom selvagem esteja na representação de Adão feita por Miguel Ângelo – o toque da mão divina, entretanto, já começa a ser dispensado; é como se o próprio Deus tomasse a iniciativa de despedir-se. Grandiosa criação essa de Miguel Ângelo, a do olhar do primeiro homem: o filho inventa o pai, e o reduz à condição de um passado definitivo.
Gostaria de resumir tudo o que acima disse num conceito, o de transparência. O trajeto desse conceito se estende do descobrimento ao auto descobrimento, estas. coisas vistas num sentido estritamente sociocultural. Entenda-se que, sem tais novas perspectivas, o próprio conceito de descobrimento desfaleceria. Os descobridores não podem ser reduzidos a um acidente inconsequente – o peso deles nem vem deles. Toda a sua grandeza está na extensão daquilo que seus feitos conseguiram promover, ainda que eles devessem permanecer sobrestados pela imprevisibilidade. Mas é precisamente a possibilidade de previsão que acaba gerando o conceito de transparência. O que se entende, pois, aqui por transparência? Digamos que se trata de um certo modo de ser por meio do qual o tecido sociocultural alcança um determinado grau de visão, certamente de muitas maneiras e em diversos níveis, mas sempre visão de sua própria consistência interna. Diria que a transparência brota do anverso a exigir o seu reverso. Essa transparência realmente se verifica? À primeira vista, a resposta deve ser negativa. As culturas são sólidas, elas se querem impermeáveis, vivem de uma tradição que se pretende em tudo respeitada; para elas é essa opacidade do continuísmo que interessa, ainda que se forjem impérios. As sociedades costumam ser essencialmente opacas. Pois em contraposição à tal opacidade é que se começa a perceber o que aqui está sendo apelidado de transparência: os tempos modernos souberam construir uma sociedade ininteligível sem certa prática da transparência. É como se os descobridores, ou melhor, a própria ideia de descobrimento viesse estabelecendo uma bem.cuidada prática da comparação. E a comparação faz exatamente isto: ela rouba às coisas o seu conteúdo fechado, o que se compara perde um tanto de sua consistência opaca, e por isso mesmo se faz gerador de transparência. Essa transparência repousa numa certa cultura do reverso – eu invento o reverso e me julgo desde fora.
Isso não existiu, por exemplo, na densa opacidade tão característica do mundo medieval. Os seus extremos mais díspares, quais sejam, as fantasias paradisíacas do mundo que virá e as fabulações dos bestiários inferiores até ajudavam para tornar mais consistente a opacidade daqueles tempos. Isto é: depara-se-nos um mundo destituído da prática da transparência; a autoridade eclesial fazia-se em princípio de ocultação. Mas um certo exercício da transparência deve sem dúvida ser visto na antiga Grécia. Sem entrar na análise do tema, lembro apenas que um pré-socrático de primeira água inventou, tanto quanto vejo, o próprio conceito de crise cultural, ou seja, daquilo que estou chamando de transparência. Foi Xenófanes. Os gregos nunca foram ateus ou materialistas – isso são coisas modernas. Xenófanes não criticava a divindade, a Justiça, os valores fundamentais da vida grega – a transparência não poderia ir tão longe. Criticava, sim, os modos cotidianos, populares de entender todos esses valores, e isso em nome do próprio princípio da transparência que é a racionalidade em exercício: Xenófanes queria o trânsito da crença pré-crítica para o nível da conceituação propriamente crítica. Ou pense-se no hábito grego, desde Licurgo, de escrever uma constituição para cada cidade, de por em conceitos aquilo que a cidade pode e deve ser. Ou pense-se em Aristóteles, sobretudo no velho Aristóteles, que pretendia dedicar-se à elaboração do conceito desses conceitos constitucionais – seu último livro chama-se A constituição de Atenas. Aristóteles inventou não a palavra, mas o conceito de enciclopédia: ele queria pensar toda a cultura grega, todos os seus feitos, as suas proezas, o mundo de suas criações, o seu labor filosófico – catalogar absolutamente tudo, tudo por em conceitos, tudo tornar transparente. Os gregos realmente souberam dedicar-se a esse exercício da transparência. Evidentemente, avançaram até certo ponto, singular em sua exemplaridade, mas que só soube executar-se de modo limitado, como limitada foi também, e nem poderia deixar de sê-lo, a sua invenção da democracia. A razão disso deve estar no fato de que apenas se iniciava o aprendizado da liberdade.
Seja como tenha sido o passado, é indubitável que o cultivo da transparência alçou-se a um nível altamente revelador no correr dos últimos séculos. Os novos tempos parecem deixar-se definir por uma vontade de transparência realmente notável. Claro que o desiderato de uma transparência absoluta seria até mesmo irrisório por inexequível, por ignorar algo como a espessura do mundo. Mas tudo o que se fez na cultura moderna, em todos os seus níveis, conduz à edificação de uma imensa biblioteca, de uma espécie de livro – le livre – definitivo, a viver de sua própria impossibilidade. Mas o feito fundamental subsiste – o do estabelecimento da transparência. É neste sentido que chamei a atenção para o conceito de utopia, ou o de bom selvagem, precisamente enquanto configuração de uma realidade outra, reversa, através da qual sou visto, torno-me de certa forma transparente em meus aconteceres. O fundamento da transparência decorre por inteiro dessa prática da alteridade, ou da experiência dos reversos, ou do cultivo das diferenças – dessas diferenças que constituem a principal razão de ser dos empenhos teoréticos de nosso tempo. E considere-se ainda estes dois pontos de que nem me ocupo no momento. O primeiro lembra que, com a utopia e o bom selvagem, estamos apenas nos afloramentos iniciais da constituição da consciência histórica, que nada mais será do que a progressiva desnudação da transparência. E em segundo lugar cabe observar que aquela prática da alteridade e o cultivo da diferença estão longe de restringir-se a um hábito ou a um privilégio especificamente preso às coisas da vida intelectual e a seus misteres. O impressionante está no fato de se poder reconhecer as práticas das diferenças até mesmo nos vestires e desvestires da vida cotidiana. Também a vida corriqueira, não apenas em seus repentes, sente o fascínio da alteridade. Pense-se aqui, por exemplo, e gostaria de poder citar muitos exemplos mais, neste que é fonte inspiradora de uma experiência tão mal pensada e que deveria ser vista em sua carga de novidade: a do turista; suas andanças, mesmo quando tão superficiais, e por causa até dessa superficialidade, nutrem-se da busca do novo, do original, do nunca visto; o que lhe interessa está normalmente naquilo que é diferente, e só causa espanto que essas diferenças ostentem a idade das pirâmides egípcias. Diria que os astronautas e os turistas constituem-se em legítimos herdeiros dos velhos navegadores, daqueles que souberam ocupar a proa de seus espaços nas inventivas gerais que alicerçam os novos tempos.
A ALTERIDADE E O MUNDO DO CORPO HUMANO
Por que, nestas quadras, falar sobre o corpo humano? Porque o referido astronauta – e em sua esteira por que não incluir também a impaciência dos turistas? – deve ser levado a sério. De fato, a era desses novos navegadores cósmicos, dentro da qual já vivemos ainda que inquietos pelo estatelamento de não sabermos lá muito bem para onde vamos, enraíza-se nessa já passada era, tão grandemente portuguesa, engendrada pelos nossos destemidos e febricitantes navegadores clássicos. Retomo o esquema de nosso itinerário, que nem de longe cogita ser completo ainda que se pretenda essencial. O tema diretivo agora está na exploração da alteridade. Tentei, em primeiro lugar, explicitar a transformação do senti do ontológico da viagem nos tempos modernos; mais do que examinar experiências que se sucedem, tratei em verdade de mostrar que se verifica uma espécie de mudança na disposição geral desses tempos relativamente ao ato de viajar. Depois examinei, mas apenas em seu ponto de partida, os modos como o imaginário passa a ocupar os espaços da alteridade; aqui também indiquei uma ampla temática que atravessa os tempos modernos em seus viajares. A imaginação cultiva aquilo que não é, mas esse não ser, nesses novos tempos, teima em transmudar-se em ser. Passo a examinar a seguir um novo lugar habitado pelas astúcias dessa busca do ser, sempre sob o signo da esfuziante alteridade: o próprio corpo humano. Esse corpo, invariavelmente visto como um menos ser, põe-se agora a descobrir as suas plenitudes.
Não quero referir toda a história anterior desse corpo. Baste dizer, talvez com algum exagero, que a cultura do corpo humano viu-se constantemente prejudicada pelas práticas de um ascetismo inacreditavelmente vitorioso, que persistia em marginalizar o corpo em todas as suas dimensões. Por definição, o corpo era considerado uma realidade essencialmente inferior, contraposta à sempre incontestada superioridade da alma que viria dotada até mesmo de uma suposta imortalidade. No fundo, no contexto da filosofia, esta última tese só foi levada a sério pela precária argumentação de Platão; isto não impediu, contudo, que o ascetismo conhecesse um sucesso nada menos do que avassalador. No curso dos novos séculos é que se começa a modificar tal estado de coisas. Pense-se bem no cenário medievo: a incrível falta de higiene, que nem o alto nível da invasora civilização árabe medieval soube remover; a crônica ausência de instalações sanitárias minimamente condizentes com a condição humana. E lembro também a fantástica e exterminadora presença da peste – sem ela, já antes do cristianismo, nem se consegue entender, por exemplo, as bases políticas da tragédia grega; foi por meras crendices que a peste sempre se mostrou invicta ao longo de toda a cultura ocidental, incientemente atribuída aos funéreos desígnios das misericordiosas vontades divinas. Mas bastou a minúscula descoberta de Pasteur para que esse inócuo teologismo sucumbisse perante a força menor. Pois os descobrimentos só fazem sentido enquanto forma de aceitação, de assimilação da alteridade – a começar já pela do micróbio. É por aí que o corpo humano passa a ser descoberto, não apenas enquanto materialidade viva (a descoberta, por exemplo. pelo inglês William Harvey, da circulação do sangue), mas sim por modos que passariam a mostrar-se progressivamente presentes em tudo, até mesmo, e principalmente, através da participação do corpo no inventário dos descobrimentos tecnológicos; quero dizer que o corpo, assumindo a máquina, introduz-se no próprio cerne da sequiosidade que informa os descobrimentos. Mas para lá chegar faço, a título de preâmbulo, três chamadas que me parecem de significação.
A primeira já se anuncia na invenção do próprio bom selvagem: um corpo nu integrado à natureza; via-se nele a simplicidade de um corpo que se bastava em sua suficiência – indígenas eram até transladados do Brasil para cortes europeias a fim de que fossem exibidos em procissões de festejos mundanos; e via-se neles figuras destituídas de preconceitos, alheios às convenções de toda a ordem, estranhos ao constrangimento das modas, das formalidades, dos trejeitos do artificialismo. O imaginário criado em torno do bom selvagem teve uma força realmente extraordinária, a alimentar justamente esse mesmo imaginário. Pense-se no elogio do prazer na obra de um Diderot, ou na onipresença da volúpia, verdadeira chave mestra das divagações de um Rousseau, ou ainda, mais brutalmente, na literatura de alcova de um marquês de Sade. O fato é que o corpo foi nem tão lentamente criando seus espaços, talvez a par do cada vez mais óbvio esfriamento das representações idealizadas do corpo que enchiam as galerias de arte neoclássicas. Enfim, pela arte, pela literatura, pela filosofia, os libertinos afeitos ao corpo eram também os libertários desse mesmo corpo. O que por tudo se vê está na descoberta do prazer. Aos poucos, o prazer começa a deixar de ser aquela coisa malsinada, pontual, identificável nos menores gestos, sempre culpado até mesmo em seus nascedouros mais impuníveis. Mas os caminhos terminaram por se fazer árduos, para só abrandar-se em tempos mais recentes. Contudo, já antes, vislumbrasse a recíproca pertença entre corpo e prazer, como se um desses pólos só alcançasse a inteireza de sua razão de ser por meio da presença do outro. O corpo passa, portanto, a exibir todo um modo de ser que pode ser considerado inédito na tradição ocidental. Digamos que o corpo humano começa a ser pro-duzido – no sentido latino de producere, de levar para a frente, de mostrar, de pôr em evidência. E isso tudo pertence apenas a uma proto-história do corpo: é a partir deste processo de abertura – que continuará, e de múltiplas maneiras, a inventar os seus frutos, de resto sempre mais amplos – que o corpo passa a ser explorado no sentido de uma reabilitação de seu estatuto próprio, e isso por meio de processos em tudo irretorquíveis.
O segundo ponto a ser ressaltado está nas criações basilares que inauguram a moderna medicina; pense-se no surgimento da química em fins do século XVIII e nas excepcionais repercussões disso na construção da farmacologia. Na verdade, a época inventa duas formas de medicina, a chamada alopática, respaldada na nova ciência, e uma outra, a homeopática, criada por Hahnemann. Sabe-se que ainda hoje estas duas modalidades de terapia não se dão lá muito bem; o que elas têm em comum, entretanto, está no respeito à definição mais tradicional do homem, a de animal racional. A diferença está agora em que o corpo é enfim arrancado de seu torpor milenar, e o exercício da racionalidade intromete-se então no intenso cultivo da fisiologia corpórea. Neste particular, tudo na medicina se faz cada vez mais digno de nota, chegando em nossos dias às promessas e realidades de que podemos usufruir. Toda a evolução da moderna medicina é nada menos do que extraordinária – basta lembrar, a título de simples exemplo, a transformação por que passou a gestão hospitalar. Originariamente, o hospital era um tipo de capela, no interior do qual os doentes eram dispostos de tal maneira que todos pudessem acompanhar os ofícios divinos que se desenrolavam no altar centralizador; ou seja: tudo não passava de práticas religiosas destinadas a preparar a alma do cristão para as benesses da vida espiritual eterna; tratava-se, pois, no fundo, de desfazer se do corpo. Na extremidade oposta a isso tudo, os empenhos hospitalares que vêm se desenvolvendo no correr dos dois últimos séculos buscam concertar-se em torno do prolongamento da vida; persegue-se agora, dirse-ia, a extradição do próprio conceito de morte. Assim, a morte, cada vez empurrada para limites últimos, emparelha-se sempre mais com os confins da eternidade que sempre lhe deu algum sentido. Talvez coubesse avançar que a morte agora configura o simples sem-sentido. Nem quero aqui entrar em tema tão circunspecto, mas lembro a arguta ironia do poeta T. S. Eliot sobre os anos finais de uma senhora: “[…] ela ficou tão velha, tão velha, que virou ateia”. Mas acrescentaria que a medicina parece já ter se tornado alheia às velharias que gravitam em torno das querelas sobre o ateísmo: ela pretende, isso sim, e bem pragmaticamente, prolongar a vida encolhendo cada vez mais os espaços da velhice. A questão já não está no atingimento da vida eterna do corpo, mas em restabelecer a realidade do corpo até fazê lo alcançar as suas ultimidades – talvez aquela vivência do sem sentido, pela extenuação progressiva das forças vitais. Realmente, o corpo se faz objeto de todo um processo descobridor, de descobrimentos que vêm se revelando capazes de derrubar antigas e assíduas crendices.
Apenas chamo a atenção para outro tópico por ele encaixar-se perfeitamente bem nesses agitamentos que navegam nas artérias do corpo humano – o esporte. Curiosa história essa, a do esporte. Aceitemos que o esporte ostentou na Antiguidade greco-romana um esplendor todo feito de singularidades – as façanhas, por exemplo, dos heróis das maratonas olímpicas, em que se confundiam os louros da vitória e a ostentação do corpo. Mas já naqueles tempos essa cultura do corpo deixava-se inserir e com necessidade – nessa exigência maior da época, que eram os proveitos bélicos. E as coisas nem mudaram muito neste particular desde então. Com uma agravante: é que com o sucesso do ascetismo cristão o cultivo do corpo praticamente desapareceu. A que fica então relegado o esporte? O corpo entrava nos imperiosos adestramentos para a faina das guerras, os exercícios físicos associavam-se aos apetrechos guerreiros, como se via no espetáculo maior do torneio. Sem dúvida, procurando bem, a prática do esporte aparece também em outros lugares, nem tantos: penso num quadro de Bruegel, em que se vê algumas crianças em torno de uma bola. Isto é: a história dos esportes no Ocidente revela-se extremamente pobre, em que pesem os esforços dos inícios. É que tudo se deixava atrelar à própria concepção, nada lisonjeira, do que seja o corpo humano. E de fato, foi apenas na última virada do século que o panorama geral começou a mudar as suas feições – fico no símbolo da retomada, em 1900, das antigas olimpíadas gregas, mesmo que tudo se faça então como que glosado pelo signo da culpa corpórea – mas como vencer em alguns dias tantos séculos de ignomínia? Tanto faz: os esportes desobstruiriam aos poucos os seus campos, a ponto de se tornarem práticas corriqueiras até mesmo para pessoas que aparentemente nada têm a ver com o desporto. Do estádio à praia – invenções novíssimas – tudo se prende ao corpo, seja em nome do exercício, da saúde, do prazer, da simples exibição – e onde ficam os atesamentos bélicos, já que as armas se vêem substituídas pela tática dos botões?
O CORPO HUMANO E A VIAGEM TECNOLÓGICA
Mas parece que a isto chegamos: o corpo a serviço do descobrimento e o descobrimento a serviço do corpo. O lugar que permite o entendimento de toda essa verdadeira edificação do corpo humano mostra-se de modo muito privilegiado na feição moderna deste outro invento: a máquina, e por ela toda a extensão do mundo da tecnologia. Pois acontece que a maneira usual, e correta, de interpretação do que seja a máquina prende-se exatamente à realidade biológica. O berço possibilitador desse tipo de interpretação encontra-se, com toda a evidência, na Revolução Industrial; a máquina passa a constituir então o prolongamento do corpo humano, que se faz, já via com clareza Marx, centrado em dois pontos: a máquina torna o corpo humano “maior” e, ao mesmo tempo, aumenta em muito a sua capacidade de produção. Um guindaste, se me permitirem a singeleza do exemplo, prolonga, e cada vez mais, o poder da mão humana, além de multiplicar, e em muito, a sua capacidade de produção. Por aí se tem acesso à percepção da força revolucionária que impulsiona a nova tecnologia. De um lado, essa força se deixa entender a partir do conjunto dos fatores que compuseram os descobrimentos – incluída aí, e com ênfase, a nova concepção da ciência, voltada ao calculado poder de dominação; de outro lado, percebe-se que a técnica, embasada no seu poder de manipulação, passasse a ver inscrita em seu próprio destino a força transformadora das estruturas sociais. E o fato agora está em que a máquina entendida como extensão do corpo humano já nem pode mais ser dispensada: ela passa a motivar a reformulação de toda a política do trabalho e do ócio, exige que se repense o conceito de trabalho e o conceito de ócio, a defrontar-se com o impacto dessas coisas na própria condição humana.
Por estas razões chega-se a melhor perceber as essenciais vinculações da máquina com o corpo humano. E detenho-me, por um instante, na peculiar anatomia de tais vinculações. Tanto quanto se vê, a máquina atravessa dois momentos em seu processo de transformação interna e que devem ser bem aquilatados. O primeiro prende-se à realidade do corpo humano enquanto sistema de articulações; a máquina dilata o fato de que os membros humanos são articulados, e procura à sua maneira desenvolver precisamente essas articulações fisiológicas; a tecnologia usual em nossa sociedade vincula-se precisamente a esse estatuto. Já o segundo momento, bem mais recente, opera uma transmutação simplesmente notável nesse processo de prolongamento das estruturas biológicas, e isso por abandonar o modelo das articulações para adotar o das complexas estruturas do cérebro humano: um computador consegue estender esse cérebro quase ao infinito, e pelo que se observa estamos apenas inaugurando uma imensa evolução ao nível da informática. Estes dois momentos, que são grandemente distintos, pertencem em verdade às transformações por que vem passando o corpo humano enquanto paradigma revolucionário a afetar o comportamento humano e as estruturas sociais. Tudo se concentra neste feito: a instituição do corpo em ponto de partida para uma certa reestruturação do mundo, ou melhor: das relações entre o homem e a sua realidade circundante. Portanto: o que essa espécie de homogeneidade da visão biológica da máquina esconde – e nisso deverá estar a própria chave para o entendimento do mundo tecnológico – deriva justamente do descobrimento das potencialidades do corpo humano. Não é por acaso que Da Vinci soube imaginar o módulo do cálculo exato das proporções do corpo humano – esse mesmo artista Da Vinci que soube projetar, ao menos no papel, coisas, como os arquétipos que viriam compor certos trunfos da revolução tecnológica.
O que está em causa são formas de descobrimento, todas agregadas ao evento maior que é o surgimento do Novo Mundo. Repare-se entretanto que, no que concerne à máquina e a sua extensão tecnológica, estamos ainda hoje envolvidos num processo que não diz mais respeito simplesmente à evolução da tecnologia e da indústria, porquanto tal processo atinge sim, e de cheio, muito do que se pode agora entender por pedagogia da realidade humana. Sem dúvida importantíssimas são neste momento da história geral dos descobrimentos estas relações entre o homem e a máquina. Aconteceu, entrementes, que tais relações acabaram por mostrar-se extremamente intricadas, e isso precisamente no correr do nosso século. O tema merece um pouco de nossa atenção. Marx já viu na máquina, tal como utilizada na indústria capitalista, o fautor do autômato em que é transformado o trabalhador.[10] É que no capitalismo, explica nosso autor, “a maquinaria é mal empregada [missbraucht]”,[11] e já em tenra idade se transforma o trabalhador em parte ou pedaço da máquina fazedora de partes ou pedaços (Teil einer Teilmaschine). Marx soube mostrar, sem dúvida, a virulência da máquina em relação ao trabalho humano, e tudo termina se resumindo para ele no fato de que a forma capitalista de produção promove o processo de alienação, porém com o adendo agora de que a maquinaria leva tal alienação a uma contradição extremada, ou àquilo que ele chama de “contraposição perfeita”.[12] A miniatura da indicação feita sobre o pensamento de Marx já é suficiente para que possamos levar adiante nossas considerações. Observe-se, antes de tudo, que Marx está longe de pronunciar-se contra a máquina em si mesma, mas tão-só contra o seu emprego pelo capitalismo.[13] Mas ele a defende: sem o advento da máquina jamais se poderia entender que “a própria Terra é um meio de trabalho”.[14] Portanto, neste particular fundamental o que acabamos encontrando em Marx é nada menos do que um vigoroso elogio da máquina.
Mas pertence à natureza do processo histórico ir debulhando, nos passos que lhe forem permissíveis, a agudeza das aporias em que o próprio evoluir se intromete. Já no início do século XX começa-se a perceber, por exemplo, que a presença da alta maquinaria não se reflete apenas nos efeitos da alienação, com toda a sua possível carga desumanizadora decorrente dos meios de produção dentro dos desequilíbrios sabidos; é que começa a verificar-se um outro tipo de entrave, por meio de um deslocamento a que logo se apelidaria de robotização: nela, a tônica já não estaria tanto nos processos geradores de fome e de miséria, mas no fabrico de todo um tipo de comportamento pautado por uma espécie de contagiante neutralização – algo como uma outra forma de desumanização. Lembro que Marx já entreviu o problema: ele diz sobre o jovem trabalhador que “aprende a adaptar o seu próprio movimento à contínua uniformidade do movimento de um autômato”.[15] Mas o que se observa aos poucos é que esse ser autômato põe-se a viver com uma forma de auto-suficiência, independentemente dos meios de produção dessa ou daquela natureza: a máquina em si mesma, a indústria em si mesma seriam produtoras desses mecanismos. E Marx não se ocupou do tema das diferenças entre essas duas modalidades de desumanização: o autômato e o desequilíbrio na distribuição da riqueza não seriam reversíveis. A questão se agrava mediante uma segunda observação: é que Marx fala sempre e somente do trabalhador, e já no início do século começa a tornar-se claro que a situação se alastra para a inteireza da sociedade humana. Ou seja: o processo de robotização, como se diz, põe-se a redimensionar a própria condição humana em sua tessitura atual. Isso explica que certos autores passem a fustigar essa forma de apassivação da conduta humana pela máquina, mas justifica também que um Chaplin faça dessa mecanização do homem um tema até privilegiado de seus filmes, submetendo-o, contudo, a uma ironia altamente crítica – essa crítica pela comédia deveria ser muito bem meditada; acrescento, a título de curiosidade, que Chaplin parece ter construído até mesmo o estilo de seu principal personagem, Carlitos, a partir desses procedimentos de mecanização – o que está longe de significar submissão passiva por parte de nosso artista, e sim o exercício de uma extemporânea e mordaz crítica. Outro exemplo que já vem sendo há muito debatido: a televisão não atingiria apenas, como se pensava, o comportamento do operário que fabrica o aparelho, visto que concomitantemente inventa um outro tipo de mecanização que se instala no modo de ser geral da sociedade. Claro que Marx nem poderia ter imaginado isso tudo. É que os desígnios da tecnologia se fazem múltiplos, diversificam-se, renovam-se e acabam surpreendendo; de um lado a tão falada robotização, mas de outro um certo desmonte de preconceitos: a insignificância do advento de um expediente como o controle remoto pode significar um avanço imponderável, qual seja o exercício de uma certa crítica presa ao primarismo da comparação, mas talvez nem tão primária quanto possa parecer. ou·então a presença em lojas especializadas dessa outra novidade maior, em tudo estimulante e mesmo sediciosa, que é o vídeo e toda a variação de seus sucedâneos; nessa imensa videoteca à disposição de todos em todas as esquinas de tudo se encontra, da mais requintada pornografia ao melhor Shakespeare, à mais sublime das versões operísticas: onde estamos agora com a uniformização mecânica? A técnica é contra o homem ou prolonga o seu corpo, aumentando-lhe as dimensões de humanidade? E não esqueçamos que tudo apenas começa; de certo modo, a viagem tecnológica já nasce como que amortecida, ela configura por definição o ultrapassável.
A seiva que a nutre está na criação inesgotável da alteridade, e o avanço das perguntas já nasce anacrônico: onde a tela de maior amplidão? Onde a terceira dimensão? Por onde andarão os espaços e os tempos, o passado e o futuro?
O que estou querendo afirmar, e mais uma vez, é que vem se constatando um conflituada história das relações do homem com a máquina, e que o seu sentido se deixa concertar em algo como uma pedagogia do homem pela máquina. É perfeitamente compreensível que haja em tantos uma alérgica aversão pela simples presença da máquina e da revolução tecnológica. Reconheça-se que essa revolução está alcançando extensões que conseguem desenrolar-se para além até mesmo do imaginável, desmontando literalmente os modos tradicionais de ser. Entre tantas: mais essa forma de insegurança, de desestabilização a introduzir-se já de início, e principalmente, rio mais insuspeito e íntimo do recesso de nossos lares. Tais argumentos, contudo, logo se mostram falazes, até inúteis: a própria casa de moradia vem sendo concebida como uma máquina, sem falar de toda a parafernália mecânica e eletrônica que a decora de ponta a ponta. A ardilosa situação parece montada. E ela é saudavelmente desmontada pela argúcia de qualquer criança: é que se teima em considerar a máquina como o outro, o grande intruso, o alienígena que tudo veio desarrumar. Mas o conforto dessas crianças já sabe ponderar as coisas desde o fundo de seus desavisas. O espanto chega a desconcertar: como pode um computador ser nocivo, se combina o prazer lúdico com um acervo de multiplicações e de informações que destina as nossas queridas bibliotecas livrescas à museologia? Digamos, sim, que o homem deve atrelar-se ao espírito crítico em relação a tudo, mas a tudo mesmo – tal é o seu estatuto de maioridade. E o exercício da crítica torna evidente, entre tantas coisas, o seguinte: é que a máquina, longe de ser o contrário do homem, mostra-se como produto do trabalho humano – não do trabalho escravo, e sim do trabalho criador; a máquina, diz já uma bela tradição acima referida, estende o corpo do homem, de certo modo a máquina é esse corpo. A questão toda está em que esse produto do cérebro humano soube tomar tal vulto que surpreendeu e mesmo assustou o seu criador. A controversa e copiosa história das relações entre o homem e a máquina – chegou-se a falar em homem unidimensional – terminou evidenciando, em que pese a incógnita dos imprevisíveis tempos que virão, que as máquinas deverão ser sempre o que elas foram em seu berço de nascença: pertenças do próprio homem.
Estou tentando discutir aqui ao menos as premissas de uma temática imensa – a dos descobrimentos, porquanto eles se fizeram plurais, e quiçá seja impossível por ora aquilatar toda a largueza dessa pluralidade.
Mas limito-me a esse constrangimento mínimo, ponto de partida: a relação entre a máquina e o corpo humano. Para isso, reinventemos a invenção: na origem de tudo está o cálculo – das navegações, das ciências e da filosofia, das artes; falo do cálculo originário que produziu o conceito de descobrimento em suas mais amplas feições. O cálculo inventou certa forma de olhar, que levou à ciência, que levou à máquina, que propicia as transformações sociais, que refaz a mente e o corpo do homem. Para concluir teço mais algumas considerações sobre o relacionamento do homem com a máquina.
Ter-se ia de investigar – mas faltam-me recursos para isso, e nem seria este o lugar para fazê-lo – o extraordinário relacionamento que os descobrimentos passam a desenvolver em torno do verbo ter, ou com a ação de ter. As navegações emprestam à posse, ao ter, uma amplidão que parece realmente excepcional. Evidentemente, não se quer aqui diminuir a óbvia constatação de que o ter sempre foi constitutivo dos horizontes humanos – o trabalho, todas as.formas de apropriação, a começar pelo esmero dos empreendimentos bélicos, encontraram o seu escopo por assim dizer definitivo nas possanças da ação de ter, essa ação inventa o próprio sentido incoercivelmente plurifacetado de todos os avanços do ter. Entretanto, neste ponto também, os navegadores tomam a dianteira ao menos por duas razões. A primeira está em que, como que de repente, essa ambição que investe no verbo ter passa a ostentar dimensões cada vez mais planetárias; a devassa da boa esperança encontra a sua medida na dominação de continentes inteiros. É como se a Terra e tudo o que a compõe estivesse oferta às insaciáveis cobiças do ter. São coisas que se manifestam no abarrotamento dos portos, numa fartura que transforma o gosto e o comércio das ruas, estipula um prazer inédito para as coisas do conforto, além de, claro, só pode ser, redobrar os apegos mais recônditos da própria cobiça. Entende-se o que ocorre por isto que nisto tudo percebem-se as primícias do próprio nascimento do capitalismo. O segundo ponto refere-se aos novos usos ligados ao cálculo. Digamos que o cálculo se faz de moda. Nem entro no tema já por ter sido anteriormente aventado: é a físico-matemática, a exploração dos compassos na música e do compasso no equilíbrio das naves, ou ainda as coisas que começam a acontecer na arquitetura e nas artes em geral em nome, por exemplo, da progressiva intromissão da perspectiva. Mas o cálculo também começa a tomar conta de outras atividades, a principiar nas geradas pelo comércio: é que entra a desenvolver-se a contabilidade, o acúmulo das posses organiza-se abstratamente na escrita em termos de débito e crédito, e passa-se a recriar os fundamentos das ciências econômicas. O verbo ter consegue alçar-se à altura de um perfil novo. E por aí se explica que o cálculo demarque agora a necessária introdução de certos conceitos numa acepção nova, como o de eficácia, de sucesso, de proveito, e até o de poder – e o poder do cálculo insere-se então no próprio cerne da ciência.
Invisto um pouco mais no tema com duas outras observações. A Revolução Industrial pode ser considerada desta maneira: como uma grande introdução geral à cultura do ter. Afinal, toda a ciência e toda a tecnologia modernas apostam no conforto para o homem, e o conforto significa antes de tudo o estabelecimento do homem neste mundo. O cometimento passa forçosamente pelo ter – por suas artes e seus sabores. Duas palavrinhas destacam-se aos poucos pela força que adquirem na composição dos novos aconteceres sociais e econômicos: são elas o consumo, e o seu antônimo que é a produção; são os conceitos que agora como que fecham o ciclo do próprio sentido dessa nova sociabilidade: consumir e produzir pressupõem-se com o rigor das leis do mercado, sempre a exigir a adaptação de toda a sociedade “válida” a esse círculo que é todo o oposto de um inferno. O indivíduo que não produz e não consome simplesmente perde a sua razão de ser, e condena-se à marginalidade inadmissível da esmola, ou da caridade. E nem é preciso ainda mais esclarecer que a emulação de base a alimentar toda essa dialética entre produzir e consumir decorre em todos os seus mistérios do pequeno verbo ter. A outra observação refugia-se em território mais teorético, e já começa a introduzir-nos em outro temário. Lembro aqui, ligeiramente, a dialética hegeliana do mestre e do escravo. O futuro está no escravo, ele cria aquilo que o mestre deve ser. Digamos que essa passagem prende-se à contraposição de dois verbos, ser e ter. Derrotado, e pela angústia, o escravo como que perde o seu ser, e então, falto de qualquer estabilidade, resta-lhe apenas o referencial negativo de seu senhor. O que mantém de pé essa figura da consciência deriva apenas da vigorosa disciplina do serviço. Mas também de uma nova criação, advinda do trabalho. Pelo trabalho o escravo passa a transformar as coisas, e a emprestar-lhes o que lhe vai pela cabeça – digamos que pelo trabalho o escravo põe-se a descobrir os caminhos da liberdade. Acontece que isso se faz por intermédio dos percalços da dominação garantida pelo trabalho, isto é, o processo de libertação deixa-se construir, todas as contas feitas, por meio do ter: o ter, o dominar liberta o escravo e transmuda-o em senhor. Senhor de duas coisas: daquilo que ele passa a possuir, ou ter, e da progressiva conquista de sua liberdade. E ainda: o ter e a liberdade se pertencem. Espero que a. despretensiosa interpretação feita seja suficiente para o entendimento do sucesso que logo viria exibir a distinção entre ser e ter.
De fato, a distinção entre ser e ter, e por razões que sempre acabam se tornando óbvias, está presente um pouco por tudo – ela faz parte nada menos do que do cotidiano das pessoas. Lembro, sem delongas, a excepcional análise – crítica em relação ao ter – elaborada por Marx em seus Manuscritos, ou, a partir de pressupostos completamente outros, a interpretação – também ela negativa – feita pelo existencialista católico Gabriel Marcel, em seu livro intitulado justamente Être et avoir. Ou ainda a do antropólogo Arnold Gehlen, que estabelece uma interessante ligação de ser e ter com a realidade do corpo humano. Mas tento esquecer isso tudo, e elaborar alguns comentários que possam servir de encerramento para este ensaio, precisamente por meio de uma indicação sobre o modo como estes dois verbos e as interpretações que souberam suscitar se relacionam com a máquina e a tecnologia.
A questão toda está em uma ambiguidade que afeta as relações do homem com o seu corpo. Se digo: o homem é seu corpo – está estabelecida uma certa dualidade: o homem fala sobre o seu próprio corpo, estabelecendo-se por consequência um certo intervalo entre aquele que fala e seu corpo. E aí radica a ambiguidade entre ser e ter. É fácil entender o seguinte: cada um é o seu “corpo próprio” (para usar a expressão cunhada por Merleau-Ponty). E isso não apenas por uma razão de ordem negativa: o fato é que eu não posso mudar de corpo. Mas para além disso, cada um é efetivamente o seu corpo; este corpo determinado pertence ontologicamente à condição concreta de cada um, tanto que a recusa ao próprio corpo – ao ser o corpo – gera todo um catálogo de patologias. Acrescente-se a isso o fato altamente significativo de que em toda a tradição metafísica o corpo sempre era interpretado como o negativo, o inferior, a sombra que deveria ser superada. Em oposição a tudo isso o pensamento contemporâneo, e não sem razões, soube entregar-se a uma verdadeira reabilitação do corpo – e sabe-se do desempenho todo especial nesse sentido da obra de Merleau-Ponty. Nesta perspectiva o corpo revelou-se a temática de uma dupla conquista: o seu resgate daquela condição de negatividade; o corpo deixa então de ser um menos-ser. Aceitemos que esse processo comece por causa das teses de Nietzsche, e hoje pode-se afirmar que todo jovem, independentemente de se saber se ele leu e conhece o autor de Zaratustra, é nietzschiano. Isso significa que o corpo humano, além de sobrepor-se à sua suposta negatividade, passa a conquistar a sua dimensão ontológica. Assim, o ser-corpo do homem chega a ocupar um espaço novo, fundamentalmente desconhecido no pensamento tradicional. O curioso está no fato de que, exatamente a partir do momento em que o corpo começa a assumir o seu estatuto ontológico, manifesta-se aquela ambiguidade: se o indivíduo é seu corpo próprio, isso se faz no espaço de uma certa distância, e uma distância que se sabe enquanto comércio de certo cultivo dessa distância. Ou seja: se o homem é seu corpo, por outro lado ele tem o seu corpo e considera-o enquanto objeto próprio. Pela primeira vez na história surge toda uma literatura e uma arte que exploram com requintes até mesmo patológicos a experiência de o homem ter e poder dispor de seu corpo à maneira de um objeto. Isso explica o drama daquela ambiguidade fundamental: o ser o próprio corpo permanece acoplado ao fato de o ter. Acrescento a essa análise um dado que me parece em tudo essencial: é que o ter, suplantados os preconceitos tradicionais, parece não constituir uma dimensão negativa dos modos de ser do corpo; o ser o corpo pode ser até mais negativo do que o ter o corpo. Quero dizer que entre ser e ter não existe uma hierarquia que autorizasse o estabelecimento do superior e do inferior. Essa hierarquia está sem dúvida presente, e com preconceituosa facilidade, em muitas interpretações e muitas vivências, mas ela se prende no fundo a uma tradição metafísica que deve ser superada em todas as suas implicações. Ser e ter pertencem à própria condição humana, são dimensões muito profundamente ligadas ao estatuto ontológico da realidade corpórea do homem. Digamos, com uma fórmula que em nada pretende ser facilitadora, nem quer ignorar todo o peculiar drama em que se encontra intrincada a dialética entre ser e ter – digamos que pelo ser o homem chega a ter, e pelo ter ele chega a ser.
Há, pois, um drama entre o ser e o ter em relação ao corpo humano. E trata-se sem dúvida de um drama novo. Mas passo a acentuar esse outro drama, complementarmente relacionado a essa carga ontológica de ser e ter, que deriva da presença da máquina – e que por extensão define toda a tecnologia. O problema deixa-se equacionar com facilidade: o homem dispõe da máquina à maneira de quem dispõe de um objeto: ele tem a máquina a seu dispor. Mas ele também é a máquina? Em que sentido poderia o homem ser a máquina? Se a máquina deve ser interpretada como um prolongamento do corpo humano, aquela dialética entre ser e ter não se estenderia também para os modos de ser e ter o corpo em relação com a máquina? Para que a pergunta comece a fazer sentido faz-se indispensável que o pensamento deixe de lado todas as ilusões substancialistas: por aí haveria uma substância-homem e uma substância-máquina. Contra isso, a tônica deveria acentuar uma certa dialeticidade na relação entre homem e máquina. E dá para entender a situação atual do homem sem tal dialeticidade? Admita-se a tese que afirma ser o homem essencialmente um ser técnico, isto é, transformador: a própria gênese do comportamento humano decorre então de sua distinção técnica. E o corolário dessa tese vê-se na constatação de que a partir da técnica – da práxis especificamente humana – é que surgem o objeto e, posteriormente, o sujeito. Ou por outra: a capacidade transformadora situa-se antes da separação entre ser e ter, e ao mesmo tempo inaugura a própria possibilidade de opor o ser e o ter. Nossa tese enraíza-se precisamente neste ponto: é que com o advento da tecnologia, ou como inusitado da extraordinária presença da máquina em nossos dias, todo o esquema da oposição entre sujeito e objeto, ou entre ser e ter, está a exigir uma revisão. O corpo tem a máquina ou é a máquina? O ter a máquina já não pode ser entendido de um modo meramente exterior. De certa forma, o homem é a máquina – o que não significa que o homem possa ser transformado em máquina, em ser-máquina. (Mas vai além do simples exotismo a insistência de tanta literatura em transformar o homem em robô – talvez por a fantasia apegar-se a conceitos que se travam em seus próprios limites.) O homem não pode assimilar a máquina assim como o corpo assimila a água: a água assimilada passa do ter ao ser. Pois parece-me que, no caso da máquina, essa assimilação requer ser substituída pelo que estou chamando de dialeticidade. O mínimo que deve ser reconhecido está em que a ambiguidade ontológica do corpo entre ser e ter transfere-se agora também para a máquina: a máquina estende-se até alcançar o corpo em sua ambiguidade. O homem tem a máquina, ele a compra e dispõe dela; mas por outro lado ele é a máquina, e o prolongamento humano já nem pode ser entendido sem esse seu prolongamento biológico que é a máquina. A relação entre ser e ter passa em nosso tempo por esse alargamento radical. Quero dizer que o contexto em que vive o homem acontece na dialeticidade do espaço de pertencimento entre homem e máquina – pertencimento que se confunde com o desejo, o conforto, o trabalho, a criatividade e tantas coisas mais. E em tudo isso, é sempre a dialética entre ser e ter que funciona.
Concluo: tudo o que disse atravessa a ideia de descobrimento em dois níveis. Uma coisa é o descobrimento aberto aos horizontes exteriores; tais itinerários encontram a sua razão de ser- da apropriação ao devaneio – no reconhecimento da alteridade. E é precisamente o reconhecimento do outro que leva, através de tantos percalços históricos, ao segundo nível do descobrimento; e é que alteridade se torna interior ao próprio homem, como que a tropeçar no desconhecido de seu corpo. A descoberta da alteridade, em seus dois níveis, é necessária – se não o for o próprio descobrimento não tem sentido algum. Esta necessidade – apoiada na crescente hegemonia de categorias como sujeito e objeto, espaço e tempo, ser e ter – é que conduz dos espaços exteriores à espacialidade do corpo próprio; níveis e categorias que constituem-se em esteios de toda conquista. A necessidade da nova máquina, que reinventa aquelas categorias. decorre por inteiro de sua natureza mediadora entre os dois níveis de descobrimento.
Termino com duas citações que poderiam ter servido de epígrafe para este ensaio; apenas as transcrevo, pois imagino que elas resumam o que tentei desenvolver. A primeira vem de Montaigne: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem”. E a segunda está em Sartre: “Estamos assistindo ao nascimento do mundo”.
NOTAS
- “Um prefácio sobre Shakespeare”, em Páginas de filosofia da arte, Rio de Janeiro, Uapê, 1998. ↑
- Ver R. EISLER, Kant Lexikon, Berlim, Georg Olms (ed.), 1964, p. 184. ↑
- Karl MARX, “Die deutsche Ideologie”, em Die Frueschríften, Stuttgart, Alfred Kroener (ed.), 1953, p. 346. ↑
- Padre Manuel BERNARDES, Obras completas, São Paulo, Editora das Américas, 1959, vol.,1 p. 163. ↑
- Idem, ibidem, vol. 11, p. 53. ↑
- G. W. F. HEGEL, Enzyklopaedie der philosophIschen Wissenschaften, Frankfurt, Suhrkamp, 1981, vol. 1, p. 365. ↑
- Veja-se, de nossa autoria, o ensaio “Sobre o estatuto da razão”‘ em A crise da razão, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 97-110. ↑
- Ver “O bom selvagem como phIlosophe e a invenção do mundo sensível”, em Libertinos libertários, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. ↑
- Como indiquei no meu ensaio acima referido, o conceito de utopia exibe uma rica história: primeiro, o fabulário utópico de que aqui nos ocupamos; depois, a política que informa os diversos modos de realização do socialismo; e, enfim, a dissolução da utopia, presente já em toda uma literatura empenhada em ver o avesso negativo da utopia (Huxley, Orwell etc.). Mas seria necessário acrescentar a essa evolução o surto da ficção científica e examinar a sua índole cósmica em relação à natureza histórica da utopia. ↑
- Karl MARX, Das Kapital, Berlim, Dietz, 1975, vol. 1, pp. 443 e 446. ↑
- Idem, ibidem, p. 445. ↑
- Idem, ibidem, p. 445. ↑
- Idem, ibidem, pp. 464-5. ↑
- Idem, ibidem, p. 194. ↑
- Idem, ibidem, p. 443. ↑