2017

As três utopias da modernidade

por Francis Wolff

Resumo

Na Antiguidade, os homens eram definidos por duas grandes diferenças. Acima deles, havia deuses; abaixo, animais.

O homem moderno perdeu a identidade. Nada mais de limite inferior ou superior. Na condição de produto da evolução, tal homem está perto demais dos outros animais. Por outro lado, não se acredita mais num céu habitado por deuses. Ou ele é vazio, ou nele há um Deus muito distante ou “oculto” (como escreveu Pascal).

Daí as duas grandes utopias de hoje: a naturalista e a pós-humanista. Incerto sobre sua natureza ou sobre a existência dela sequer, o homem vislumbra para si um futuro animal ou divino.

De um lado, seria preciso renunciar ao sonho de uma técnica emancipadora e conquistadora que resultou na devastação da natureza e nos desastres ecológicos. Renunciar também ao antropocentrismo criminoso e à pretensa “razão” a fim de possibilitar uma fusão com a natureza. Se assim fosse, até a ideia de “proteção do meio-ambiente” estaria a perigo, já que ainda fundamentada no homem e em sua onipotência. De valor, haveria a natureza exterior ao homem. Já ao homem restaria a interdição ao consumo de material de origem animal . Tal é a primeira forma do anti-humanismo contemporâneo, ou seja, a utopia animalista.

De outro lado, acredita-se que a técnica deve ser usada irrestritamente. A emancipação da humanidade se completará quando chegar a era da pós-humanidade, e ela está chegando. Em breve, não haverá vestígios de animalidade no homem. Mais: ele será liberado das exigências físicas ou intelectuais dos organismos vivos. Ontem, os antibióticos e as vacinas permitiram aumentar consideravelmente a expectativa de vida e sua qualidade. Hoje, aparelhagens permitem aos inválidos reaver o uso de um membro; aos surdos, ouvir; aos cegos, ver – em breve, devido à nanotecnologia, será possível implantar no corpo novas funções perceptivas ou mentais mais eficazes, emancipar-se do envelhecimento e da perda de autonomia que o acompanha. Com a transferência de dados para computadores, a mortalidade mesma está em questão. A seguir essa linha de raciocínio, o devir do homem é “o homem transformado”, a integrar uma nova espécie. Tal é a segunda forma do anti-humanismo contemporâneo: a utopia pós-humanista.

De um lado, luta-se contra a razão e a favor de um homem reduzido à animalidade; de outro, luta-se contra a animalidade e a favor de um homem reduzido à sua racionalidade. E se a verdadeira sabedoria para hoje fosse voltar ao “animal racional” dos antigos? E se a verdadeira utopia para amanhã, contra essas duas utopias anti-humanistas, fosse a utopia humanista? E se amanhã os homens , todos e igualitariamente, se tornassem “racionais”? Não seria essa a mais bela utopia?


Temos necessidade de utopias. As utopias são para as comunidades o que os sonhos são para os indivíduos. Uma utopia é um refúgio num ideal irrealizável quando o real parece insuportável. É a aspiração ao impossível. Sim, toda comunidade, toda época, toda geração tem necessidade de utopias. Como escreveu Adauto Novaes, na bela apresentação deste livro:

Durante meio milênio, esta bela palavra [utopia], que quer dizer não lugar mas também se pode traduzir por eutopia – lugar da felicidade-, [significou] promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos [e, sobretudo,] a “severa e lúcida crítica da realidade”. O fundamento da utopia é, pois, a crítica do presente. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico, como também de triste silêncio em torno do pensamento sobre a utopia.

Adauto idealizou este livro para fazer cessar esse “triste silêncio em torno do pensamento sobre a utopia”. Ao inaugurá-lo, gostaria de fazer falar o suposto silêncio de nossa atualidade sobre esse desejo utópico.

De fato, é verdade que certa concepção da utopia se tornou silenciosa. Novas utopias, por sua vez, se fazem ouvir – e, como sempre, para o melhor e para o pior. Mas, antes de tentar ouvir essas novas vozes, é preciso primeiro compreender quais utopias estão mortas hoje e de que maneira nascem novas sobre a ruína das antigas.

O que é uma utopia? Descrevamos antes de definir. Houve dezenas de utopias literárias, mas os dois exemplos mais célebres são os de Platão e de Thomas Morus. Em sua República, Platão descreve uma sociedade perfeitamente justa na qual cada um exerceria uma função de acordo com sua natureza; na qual os filósofos seriam reis ao cabo de uma longa educação física, moral, científica e metafísica, e após uma seleção severa controlada pelo Estado; na qual as mulheres seriam iguais aos homens e destinadas às mesmas tarefas, inclusive a guerra; na qual a família e a propriedade seriam abolidas; na qual as uniões seriam orientadas e vigiadas pelo Estado, graças a uma política eugenista. Thomas Morus, por sua vez, descreve sua utopia assim: 100 mil pessoas vivem numa ilha com cidadãos agrupados por famílias. Cinquenta famílias constituem um grupo que elege um chefe. Estes formam um conselho que elege um príncipe vitalício, mas que pode ser demitido caso se torne tirânico. Isso quanto à política. A economia utopiana se baseia na propriedade coletiva dos meios de produção e na ausência de trocas mercantis. Essa sociedade vive sem moeda, pois é uma sociedade de abundância: “Cada pai de família vem buscar tudo de que necessita e o leva sem pagamento, sem compensação de espécie alguma. Por que recusar alguma coisa a alguém se tudo existe em abundância e se ninguém teme que o vizinho peça mais do que precisa?”. Esses dois exemplos são suficientes para mostrar as características de toda utopia:

1)Uma utopia está fundada na crítica do presente, mas não lhe opõe nem o futuro nem o possível, e, sim, o impossível realizado, ou seja, o ideal;

2)Uma utopia não é um ideal de felicidade individual, é sempre um ideal de realização coletiva;

3)Uma utopia não é um projeto político: um projeto político se preocupa

com os meios reais de atingir um fim possível; uma utopia não analisa nem os meios reais nem os fins realizáveis, mas se contenta com imaginar o melhor;

4)Enfim, uma utopia não é uma teoria puramente abstrata; é uma descrição concreta de outra maneira de viver em comunidade.

Dessas quatro características, pode-se facilmente inferir as razões pelas quais nossa época carece de utopias.

FIM DAS UTOPIAS?

A utopia é política, mas nossa época parece ter perdido a fé na política. E isso, em primeiro lugar, porque as grandes utopias libertárias do século XIX foram esmagadas sob o muro da realidade. É o que acontece com todas as formas de comunismo imaginadas em teoria. Por exemplo, Étienne Cabet e seu comunismo cristão, sua cidade ideal de Icária e a tentativa de fundação de uma colônia icariana em Nova Orleans, em 1847. Por exemplo, Charles Fourier e sua busca de harmonia universal, seu falanstério que se forma pela livre associação e pela concordância afetuosa de seus membros. Assinalemos que houve, no Brasil, o Falanstério do Saí ou Colônia Industrial do Saí, comunidade experimental fourierista formada em 1841 por colonos franceses, na península do Saí, perto da atual cidade história de São Francisco do Sul, com o apoio do coronel local, Oliveira Camacho, e do presidente da província de Santa Catarina, Antero Ferreira de Brito.

Ou ainda o mais realista de todos, Saint-Simon: ele descreve uma sociedade fraterna cujos membros mais competentes (industriais, cientistas, artistas, intelectuais, engenheiros) teriam por tarefa administrar a França o mais economicamente possível, a fim de fazer dela um país próspero, onde reinariam o espírito empresarial, o interesse geral e o bem comum, a liberdade, a igualdade e a paz. A sociedade seria uma grande oficina. Os industriais se associariam com seus operários em nome do interesse geral e do bem público. Sua direção fraterna se basearia na afeição, na estima e na confiança. Mas os saint-simonianos não tardaram a virar grandes capitalistas empreendedores, seja no canal de Suez ou nas estradas de ferro francesas.

Alguém dirá que os verdadeiros teóricos do comunismo no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels, não são utopistas. São teóricos da luta de classes e de um comunismo fundado numa teoria da economia política dita científica. Ao contrário da definição que demos da utopia, eles se preocupam com os meios políticos e sociais de atingir seus fins; em suma, são autores de um verdadeiro projeto político. Isso é verdade: não há nada de utópico nas teorias econômicas e sociais de Marx. No entanto, a ideia comunista de abolição de toda propriedade privada permanece em Marx no estado de esboço. Nos Manuscritos de 1844, ela é apenas uma pura especulação conceitua! em torno da “apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem”, ou “a verdadeira solução da luta entre existência e essência, entre objetivação e afirmação de si, entre liberdade e necessidade”[1]; em A ideologia alemã ela não é mais que uma simples fórmula verbal para designar “o movimento real que abole a ordem estabelecida”[2], ou ainda, em Engels, “o ensinamento das condições de libertação do proletariado”[3]. Ou seja, a ideia comunista no século XIX permanece separada de toda análise dos meios reais e como um vago ideal, apoiado sobre uma visão messiânica da história. Portanto, ela também não é senão uma utopia no sentido que dei a esse termo: uma crítica do presente que não lhe opõe nem o faturo nem o possível, mas o impossível realizado. E é por isso que, a despeito da formidável esperança de emancipação que representou para as classes exploradas, esse ideal se despedaçou no século XX ante o muro da realidade: o socialismo real, nos antípodas do comunismo sonhado ao qual devia conduzir inelutavelmente, transformou-se numa imensa máquina tirânica, burocrática e totalitária. A sociedade sem Estado esboçada por Marx no Anti-Dühring[4] virou seu contrário, uma ditadura do Estado contra a sociedade. As realidades do século XX, portanto, puseram fim a todas as utopias do século XIX: tal foi a primeira morte da utopia, o fim dos sonhos de libertação coletiva.

No último terço do século XX, porém, as esperanças de emancipação retornaram, a despeito dessas realidades, ou em parte por recusa da realidade. Mas eram diferentes: não se sonhava mais, exatamente, com a libertação política de uma classe ou de um povo, mas com uma libertação política dos indivíduos. O ideal proletário tingiu-se de uma cor libertária: foram os movimentos ditos de maio de 1968. O conceito de revolução recuava na história social, progredia nos costumes da juventude. Nesses movimentos dos países capitalistas ocidentais, acreditava-se, sustentava-se, afirmava-se, nos textos e nos discursos, que tudo, na vida de cada um, era político por natureza, para além da política mesma. O amor, por exemplo, era político: as relações homens/ mulheres, os sentimentos, a sexualidade eram vistos como determinados pela existência social – portanto, eram políticos. A arte igualmente era política: a falsa arte era a arte reacionária, a música tonal, a pintura figurativa, o romance ou o cinema narrativo etc. A verdadeira arte era a das vanguardas, revolucionária em sua forma e messiânica em seu conteúdo. Quanto à moral, ela era política de uma ponta à outra. Ou então era oca, ridícula. Assim se mostrava a nova utopia, a da libertação coletiva dos desejos individuais.

Desde o começo do século XXI, vivemos uma segunda morte da utopia política. A primeira fora um sonho de libertação social, que se chocou contra o muro da realidade totalitária e se espatifou com a queda do muro de Berlim. A segunda utopia era um sonho libertário; ele se chocou contra o fim das ilusões e o retorno do conservadorismo.

A extinção dessas utopias pareceu marcar o apagamento do político. Em outras palavras, a triste realidade da política pôs fim às esperanças do político. A política, isto é, a vida política real, retomou seus direitos contra o político, isto é, contra o sentimento de pertencer a uma coletividade. Pois a palavra política tem dois sentidos. O político são as condições do viver junto. A política é o âmbito de estratégias coletivas ou de táticas individuais, o império dos eles ou o reino dos eus. O político é a afirmação da existência num nós (nós, o povo), para além das comunidades familiar, regional, religiosa, para além das identidades de gênero ou de origem, e aquém da comunidade humana em geral. O político diz (e deve dizer): apesar de tudo que nos une, eis o que nos separa e deve nos dividir. Não há mais utopia política porque hoje a política parece ter vencido o político. O império do eu triunfou sobre os sonhos do nós. Platão, Thomas Morus, Cabet, Fourier, todas as utopias defendem, cada uma a seu modo, uma ideia comunista. Quem fala ainda de comunismo hoje?

Vivemos hoje o triunfo dos sonhos individualistas. Ser bem-sucedido! Ganhar! Se possível, sozinho. Se necessário, contra os outros. Isso é verdade no topo da escala social, pois essa escala ou escada tem cada vez mais degraus, à medida que avançam, pelo mundo todo, as desigualdades sociais. Isso é verdade também em todos os outros níveis da escala. Em toda parte reina o self help, a autoajuda. Entrem numa livraria e verão ali dezenas de títulos assim: Como ter sucesso na vida, Conhecer-se melhor para viver melhor, Como ser feliz em dez lições, A felicidade está ao alcance da mão, Guia prático para uma existência melhor etc. Mesmo os grandes movimentos de retorno à espiritualidade (por exemplo, nas igrejas evangélicas que ganham terreno no Brasil, nos Estados Unidos ou na África Oriental), contra o desencantamento do mundo, contra a perda dos valores ou a privação do sentido, não apostam mais na salvação coletiva nem mesmo na salvação no além, mas prometem um bem-estar imediato, íntimo, pessoal. Tudo isso são sinais da vitória das teorias liberais da sociedade. Outrora pensávamos que as comunidades (as culturas, as classes sociais, a sociedade política) existiam por elas mesmas, que existíamos nelas e que nos libertaríamos por elas. Para o liberalismo, as comunidades não são senão agregados de indivíduos que buscam apenas sua vantagem pessoal: apenas os indivíduos existem por eles mesmos, e eles são tanto mais livres quanto mais independem de qualquer comunidade.

O que pode restar das utopias coletivas na era do indivíduo? Vivemos então o fim da utopia? Sim, num sentido, se só houver utopia comunista e anti-individualista, se só houver utopia na e pela adesão a um nós contra o eu. Mas, em realidade, não, de modo nenhum! Porque assistimos, desde a virada do século, ao nascimento de novos nós. Mas são nós apolíticos. Nós que se buscam. Nós problemáticos.

EM BUSCA DE NOSSA IDENTIDADE E DE NOVAS UTOPIAS

Quem somos nós, afinal? No auge do triunfo do político e de suas utopias coletivistas, teríamos respondido: somos, conforme o caso, intelectuais ou proletários; operários ou burgueses; colonizadores ou colonizados; exploradores ou explorados etc. Ou ainda, mulheres ou homens. Mas hoje não acreditamos mais que nossa identidade se reduza a uma identidade de classe ou mesmo de gênero. Nas grandes épocas porta­ doras de utopias humanistas, no Renascimento ou nas Luzes, à questão “quem somos nós?” teríamos respondido: somos todos seres humanos, livres e iguais. Mas será que hoje podemos crer que somos somente seres humanos?

Esse é o problema. Nossas utopias contemporâneas buscam um nós.

Elas deixam transparecer uma dúvida. Não podemos mais nos definir por nossas comunidades de pertencimento; nem por uma identidade de raças, que não existem; nem por identidades de culturas, que são porosas; nem por identidades de classes, que se tornaram insuficientes. Então quem somos nós? Seres humanos? É em torno dessa questão e dessa dúvida que se construíram as duas principais utopias contemporâneas.

Na Antiguidade, em Aristóteles particularmente, os homens eram definidos por duas grandes oposições. Acima deles havia deuses; abaixo deles, animais. O que os homens compartilhavam com aqueles os opu­ nha a estes; e o que os distinguia daqueles os ligava a estes. Os homens tinham em comum com os deuses o fato de serem racionais – o que os opunha aos animais, que não podem argumentar ou raciocinar. Mas os homens tinham em comum com os animais o fato de serem viventes mortais, o que os opunha aos deuses, que são viventes imortais. Havia, portanto, três espécies de viventes (zoa), três faunas, por assim dizer: os viventes imortais racionais, os viventes mortais sem razão, e o homem, entre seus dois outros: nem irracional como os bichos, nem imortal como os deuses. Eis aí o que garantia a natureza humana: estar entre duas naturezas. O homem está no centro do mundo não no sentido de que seria sua espécie mais alta, mas no sentido de que sua própria natureza, por imperfeita que seja, está contida, e como que a meio caminho, entre duas outras naturezas perfeitas, o animal e o deus[5]. Sabíamos o que tínhamos de fazer, porque sabíamos quem somos. Mas, porque sabíamos que não somos nem animais nem deuses, sabíamos também o que não podemos fazer. Querer se elevar até o céu dos deuses era, como diziam os gregos, pecar por húbris, por desmedida de quem quer ultrapassar seus limites naturais. Inversamente, rebaixar-se até o nível dos animais, abandonar sua faculdade racional, era cair na bestialidade vergonhosa. Mas como hoje não sabemos mais quem somos, nós, homens, nos identificamos ora a animais, ora a deuses. Tais são as duas utopias da nossa modernidade. Não uma utopia no sentido de imaginar estar num outro lugar. Mas uma utopia no sentido de imaginar ser um outro.

Não podemos mais pensar o que somos, seres humanos. Perdemos as duas referências que nos definiam, nossos limites superior e inferior. De fato, as teorias evolucionistas nos ensinaram, e nos confirmam diariamente, que somos, como os outros animais, o fruto da evolução natural, e que o que nos diferencia dos animais não é nem uma diferença absoluta nem uma oposição de natureza. Sabemos hoje que há consciência na maior parte dos animais superiores; que há modos de comunicação em numerosas espécies sociais; que há inteligência entre os primatas; que há inclusive modos de transmissão de aquisições culturais entre algumas espécies de chimpanzés etc. Por outro lado, não acreditamos mais que o Céu seja habitado por deuses imortais. Para uma boa parte da modernidade, o Céu é vazio – é o que chamam a secularização do mundo; e, para outra parte da modernidade, Deus, por ser infinito, inconcebível, incompreensível ou oculto, como diria Pascal, é tão elevado e está tão longe de nós que não podemos mais nos definir em relação a ele. Portanto, nenhuma distinção nos separa dos animais, ao mesmo tempo em que uma distância infinita nos separa do Além.

Daí as duas grandes utopias opostas que dividem hoje o horizonte humano: a utopia antiespecista e a utopia pós-humanista. Incertos quanto à nossa natureza, e duvidando mesmo ter uma, sonhamos para o homem um futuro animal ou divino.

A UTOPIA BIOSFÉRICA

A primeira utopia que nasce sob nossos olhos, vemo-la surgir em alguns novos movimentos que se desenvolvem na juventude das grandes cidades ocidentais: os movimentos de libertação animal, os movimentos em favor da vida vegana, os movimentos antiespecistas.

Esses movimentos radicais são o sintoma do desaparecimento do horizonte revolucionário mesmo, do apagamento das crenças numa salvação comum, da emergência de uma desconfiança ante todo ideal de libertação política ou social ou de uma perda de confiança nos projetos coletivos de libertação. Os conceitos políticos, forjados, não faz muito tempo, para pensar a subjugação dos homens, tomaram outro rumo: fala-se de libertação animal como se falava ontem de libertação de certos povos ou de certas classes (embora continue havendo tantos homens no mundo que vivem realmente subjugados!). Fala-se da exploração dos animais como se falava ontem da exploração do homem pelo homem (a qual, no entanto, realmente não diminuiu). Qualifica-se mesmo de genocídio animal certas formas de abate. Aos olhos desses combatentes da causa animal, é como se os animais fossem os novos proletários do capitalismo produtivista, os últimos mártires, as únicas incontestáveis vítimas.

É verdade que o produtivismo contemporâneo ocasionou uma degradação das condições de criação de certos animais destinados ao consumo humano (especialmente porcos, bezerros e frangos), reduzindo-os à condição de mercadorias. A tomada de consciência desse fenômeno acabou por sensibilizar legitimamente as populações que, aliás, mal avaliam o preço que teriam de pagar por um eventual retorno a uma criação mais extensiva ou mais respeitosa das condições de vida dos animais. Lutar pelo bem-estar animal, contra a mercantilização do ser vivo, contra a coisificação dos animais, faz parte do combate das Luzes. Mas não é esse, de modo algum, o combate na nova utopia antiespecista.

O que os novos utopistas declaram não é que devemos condições de existência decentes aos animais que vivem sob a dominação humana, mas, sim, que nós somos animais como os outros: desse modo, devemos respeitar os outros animais, todos os outros animais, quaisquer que se­ jam, sem fazer diferença entre eles. Para a nova utopia, nada diferencia moralmente os homens dos outros animais, e devemos a todos os animais os mesmos direitos e os mesmos deveres que devemos aos outros homens. Assim, o processo de domesticação pelo qual o homem, desde o Neolítico, aprendeu a produzir, manter, cuidar, adestrar certas espécies, a criar novas raças e variedades, não seria senão um gigantesco empreendimento de escravização. Segundo esses novos movimentos liberacionistas, formamos uma única comunidade com os bichos: por isso, os homens deveriam abandonar a selvageria na qual se lançaram desde 11 mil anos atrás, quando inventaram a criação de animais. A civilização foi em realidade uma barbárie da qual nós mesmos devemos nos libertar ao libertar nossos irmãos animais. Não teremos mais, portanto, animais de companhia, simples fetiches que servem apenas ao nosso egoísmo, que vivem sob nossa dependência, quando deveriam viver sem dono. Evidentemente não comeremos mais carne, nem peixes nem crustáceos. Seremos vegetarianos. Mas não teremos tampouco uma terra prometida, essa terra “onde corre o leite e o mel”, como diz a Bíblia, já que o leite e o mel também procedem da exploração dos animais. Seremos estritamente vegetarianos. Mas com isso não teremos também peles de animais, pulôveres de lã, calçados de couro, plumas de avestruz, não usaremos matéria alguma que provenha da comunidade animal. Seremos então veganos.

O princípio fundador desses movimentos antiespecistas foi formulado pelo filósofo Peter Singer em seu best-seller Libertação animal: “Afirmo que não pode haver razão alguma – a não ser o desejo egoísta de preservar os privilégios do grupo explorador – de recusar estender o princípio fundamental de igualdade de consideração dos interesses aos membros das outras espécies”[6].

A nova utopia antiespecista afirma, portanto: não devemos diferenciar os animais em função de sua espécie – isso é especismo -, exatamente como não devemos diferenciar os homens em função de sua raça, o que é racismo; ou de seu sexo, o que é sexismo. De fato, dizem, já que não há diferença essencial entre o homem e os outros animais, não há razão para tratar diferentemente, no plano moral, os animais e os homens: seria praticar especismo, isto é, discriminação dos seres em função de sua espécie.

Comparemos essa utopia com as precedentes. Nas utopias do século XIX, não se devia dizer a humanidade – não era essa a verdadeira comunidade. Assim não era preciso ser humanista, porque as comunidades essenciais estavam aquém do humano: eram as dos proletários, dos colonizados, das mulheres, dos aborígenes, dos judeus etc. Não vejo o homem, repetia-se depois de Marx, vejo apenas operários, burgueses, intelectuais. O homem não era a medida de todas as coisas; era preciso buscar um padrão de medida inferior. Hoje, para a nova utopia antiespecista, ocorre o inverso: não se deve dizer a humanidade- não é essa uma verdadeira comunidade. Não se deve ser humanista, porque a comunidade essencial está além do humano, o Homo sapiens sendo apenas uma espécie entre outras. Não vejo o homem, pode-se dizer, vejo apenas animais que não se diferenciam senão pela espécie. O homem, de agora em diante, não é mais a medida de todas as coisas; deve-se buscar um padrão de medida superior, o animal em geral. Disso a nova utopia tira uma consequência moral: porque somos hoje animais como os outros e porque uma sensibilidade comum, dizem, nos une aos animais, devemos tratar os outros animais como devemos nos tratar uns aos outros: com proteção e solicitude.

Vê-se o que aproxima essa nova utopia das precedentes, as dos séculos XIX e XX. Ela se funda, como todas as utopias, na ideia de que devemos formar uma nova comunidade, a comunidade verdadeira, legítima. Não é mais a família, a cidade, o Estado, a comunidade dos crentes, a Igreja, o falanstério; não é mais sequer a comunidade humana; é a comunidade animal. Como em toda utopia, os membros dessa comunidade são livres e iguais. Livres de não depender dos outros (é preciso, pois, libertar os animais domésticos de seus donos); e iguais: todos os indivíduos de todas as espécies são iguais. Belo programa!

Mas programa absurdo, evidentemente. Quem não percebe que, nessa nova utopia de um outro nós, a liberdade e a igualdade se tornaram, em realidade, loucas? Que sentido há em libertar os cães de seus donos, sem os quais eles não poderiam viver? Que igualdade há entre o gato e o rato, entre o lobo e o cordeiro, entre a raposa e a galinha, entre o cachorro e suas pulgas? Quem não percebe os perigos gravíssimos dessa utopia? Por trás dos ‘bons sentimentos”, liberdade dos animais e igualdade de todos os animais, esconde-se uma terrível negação da especificidade da comunidade moral que formamos entre seres humanos.

Sim, é imoral maltratar seu cão. E por isso não é imoral maltratar as pulgas do seu cão – prova de que não formamos uma comunidade moral com todos os animais. É imoral maltratar seu cão, mas é igualmente imoral tratá-lo como uma pessoa. Pois, a partir do momento em que trato um cão como uma pessoa, não tenho razão alguma para não tratar uma pessoa como um cão – prova de que devemos subordinar nossos deveres para com os animais àqueles que devemos às pessoas. A igualdade das espécies, portanto, sob aparências simpáticas, é uma tolice e conduziria em realidade à pior das barbáries. Não é porque, num sentido do termo animal, os homens são animais que o conjunto dos animais forma uma única comunidade: que comunidade moral os camponeses africanos podem formar com os gafanhotos que dizimam suas colheitas ou com os mosquitos que propagam a malária? Que comunidade podem formar entre si o lobo e o cordeiro, mesmo na mais otimista das utopias? Do mesmo modo, não formamos uma única comunidade moral com o conjunto dos seres vivos do planeta, a comunidade biosférica. É verdade que o futuro da biosfera é ameaçado pelo aquecimento climático e, portanto, pela utilização indiscriminada dos gases de efeito estufa e das energias fósseis pelas grandes potências. A biosfera está nas mãos da humanidade. Mas não é por isso que o conjunto dos seres vivos forma uma única comunidade. E é de fato porque o futuro da humanidade é ameaçado pelo aquecimento climático que devemos, primeiro e antes de tudo, apelar à comunidade humana, não à pretensa comunidade biosférica.

É verdade que, a essa utopia naturalista, antiespecista, a esse devir animal, opõe-se outra utopia em nossa modernidade, igualmente perigosa e perfeitamente simétrica. A utopia pós-humanista.

A UTOPIA TRANS-HUMANISTA

Se tivéssemos que resumir a utopia trans-humanista por uma ideia, seria a ideia absolutamente oposta à da utopia antiespecista. O futuro do homem não é seu devir animal; ao contrário, é seu devir máquina. Segundo os pensadores do trans-humanismo, os progressos das ciências e das técnicas permitirão em breve desenvolver indefinidamente as capacidades físicas, mentais, psicológicas ou morais dos seres humanos. O super-homem é para amanhã. A utopia trans-humanista afirma, portanto: um dia o homem não será mais um mamífero, nem mesmo um animal. Ele se libertará do seu corpo, será igual ao computador e, graças à inteligência artificial, terá acesso à imortalidade.

Como a utopia antiespecista, a trans-humanista começa por uma constatação. Mas a constatação é inversa. Os antiespecistas partiam do fato de que, desde o século XIX, o progresso científico e técnico contribuiu para deteriorar o estado do meio ambiente natural e as condições de vida animal. Isso é verdade. Os trans-humanistas partem do fato de que, desde o século XIX, o progresso científico e técnico, especialmente biomédico, contribuiu para prolongar a existência e melhorar as condições de vida humana. Isso também é verdade. A lista das invenções a creditar ao século passado é imensa: anestesia, vacinação, medicina por imagem, radioterapia, sulfamidas, aspirina, penicilina, antibióticos, pílulas, quimioterapia, implantes etc. A morte prematura de crianças, que por muito tempo foi o flagelo ordinário das vidas humanas, recuou consideravelmente ao longo do século. Hoje, mesmo as crianças dos territórios mais deserdados da África Subsaariana têm uma chance maior de sobreviver a seus cinco primeiros anos do que um jovem inglês em 1918[7].

Dessa constatação, os trans-humanistas extraem seu slogan hedonista que, em si mesmo, nada tem de utopista: “Living longer, healthier, smarter and happier”: viver por mais tempo, com melhor saúde, com um intelecto melhorado, com emoções enriquecidas. O programa, portanto, é de melhoramento ou aumento (enhancement) do homem. Por que não?, dirão. Quem não gostaria de viver mais e sobretudo melhor? É um desejo universal; isso ainda não é o trans-humanismo. Pois esse programa pode também ser visto como a continuação do programa das Luzes. Em vez de melhorar a condição humana pela educação ou pela cultura, trata-se de ampliar seus limites pela genética e pela informática.

Mas a utopia afirma que esse homem aumentado, à força de ser aumentado, deixará de ser homem. Na Califórnia, no Silicon Valley, bastião da contracultura libertária dos anos 1960 e dos começos da informática, os que se consideram “novos senhores do mundo” preveem que o avanço da inteligência artificial, combinado a uma política hostil às regulamentações ditadas pelos Estados, permitirá ultrapassar a animalidade humana. Os trans-humanistas não sonham com uma salvação comum. É o próprio indivíduo que eles sonham transformar.

Em realidade, podem-se distinguir duas tendências nessa utopia da fusão homem-máquina. De um lado, é preciso maquinizar o humano. De outro, é preciso humanizar a máquina.

Humanizar a máquina quer dizer desenvolver, multiplicar as capacidades de inteligência artificial. Para sustentar suas crenças, os trans-humanistas se apoiam na aceleração contínua da velocidade de cálculo dos semicondutores – o que geralmente se chama a conjectura de Moore, o fundador da Intel. Essa evolução conduzirá a um momento em que a máquina tomará a dianteira sobre o homem. De fato, por extrapolação a partir das pesquisas e invenções no domínio da robótica, da biologia de síntese e das formas de vida artificial, afirma-se que os robôs conhecerão em breve uma evolução autônoma que os fará ser cada vez mais independentes, estranhos ao homem e até mesmo capazes de substituí-lo. É a chamada singularidade, prevista para 2045. Ray Kurzweil, considerado o papa do trans-humanismo, autor de numerosas invenções no domínio do reconhecimento óptico (scanner) e vocal (leitura em voz alta para cegos), e agora diretor de engenharia no Google, popularizou esse conceito de singularidade para designar o momento em que a máquina será capaz de se reprogramar, ela própria, para aumentar ao infinito suas capacidades. O homem, com seus roo bilhões de neurônios, não será mais que um pequeno escolar diante do computador, comparável ao que é a medusa dos mares (oitocentos neurônios) ante o cérebro humano atual.

Mas o desenvolvimento das capacidades das máquinas para além do humano não é senão um aspecto do programa trans-humanista. O outro aspecto é a transformação do humano pela máquina.

Os trans-humanistas querem abolir as limitações da condição humana e reivindicam o direito aos implantes de órgãos artificiais, às modificações genéticas. Eles creem na liberdade moifológica, o direito absoluto de dispor de seu corpo. Afirmam que em breve os microrrobôs irão detectar as células cancerosas no interior dos órgãos. Segundo Aubrey de Grey, que dirige a Fundação Methuselah, um instituto de gerontologia de Mountain View (Califórnia), o corpo humano é como um carro cujas peças bastará substituir para conservá-lo indefinidamente: a expressão morte natural em breve não terá mais sentido algum. A vida é apenas uma questão de manutenção. Por trás do humano, desponta já o trans-humano para chegar amanhã ao pós-humano.

Com efeito, um pós-humano será uma espécie de humano no qual nenhuma das funções vitais, sensoriais, intelectuais será assegurada por simples e rudimentares órgãos naturais, mas sim por próteses que, conforme o caso, suprirão a falência dos precedentes, aumentarão suas capacidades, farão crescer seu rendimento e até mesmo permitirão adquirir novas aptidões – estendendo assim o campo da liberdade de ação individual sem as limitações naturais que são o envelhecimento, a curta duração de vida, o pequeno número dos sentidos e seu reduzido poder, os limites da memória e da inteligência etc. Isso não é apenas matéria de devaneios utopistas, mas de programas de pesquisa, como o prova a chamada convergência NBIC (sigla para nanociências, biotecnologias, informática e ciências cognitivas)[8]. O homem não terá mais necessidade de assegurar nenhuma das funções animais. O nascimento? Será o fim do nascimento, graças às perspectivas abertas pela clonagem e a ectogênese. A doença? Será o fim da doença, graças às biotecnologias e à nanomedicina. A morte? Fim da morte, graças às técnicas ditas de uploading, isto é, de transporte da consciência para materiais inalteráveis dos quais os chips de silício são apenas a prefiguração. Os “tecnoprofetas” libertários da utopia trans-humanista anunciam a revolução hiperindividualista que permitirá aos homens libertar-se dos limites naturais da animalidade.

Levantemos, em primeiro lugar, algumas dúvidas. Quanto ao primeiro aspecto da profecia, deve-se crer no momento em que as máquinas assumirão o controle do homem? Os trans-humanistas desejam isso, ou­ tros temem, como o astrofísico Stephen Hawking que, numa entrevista concedida à BBC em dezembro de 2014[9], se alarmava com os riscos que a inteligência artificial poderia trazer à humanidade.

No entanto há várias razões filosóficas para duvidar de que o homem perderá um dia o controle das máquinas. Três, pelo menos.

A primeira razão é que essa crença se baseia na ideia de que o funcionamento do espírito humano se explicaria como o de um computador, por um conjunto de algoritmos. Ele poderia assim ser replicado sob forma informática. Mas não é o que acontece. Esses teóricos concebem o corpo e o pensamento como totalmente separáveis. Mas há um fosso entre o homem e a máquina que se deve justamente à sua animalidade. Descartes já dizia: a alma não está no seu corpo como um piloto em seu navio. Não tenho um corpo como se tem um carro; meu espírito forma um único todo com ele. Quando meu corpo sofre uma lesão, não me contento em constatar isso como se constata uma pane de carro. Sofro. Sou eu que sofre, não um corpo estranho como um carro.

O segundo argumento vem do filósofo americano John Searle e de sua experiência de pensamento intitulada Chinese roam (quarto chinês). Ele mostra que a compreensão por um computador não é uma verdadeira compreensão, tomando como exemplo a linguagem. No quarto chinês, uma pessoa aplica regras de sintaxe para responder a uma frase numa língua que não conhece. Ela pode conversar nessa língua aplicando essas regras, mas nem por isso compreende o sentido das palavras que emprega. É como uma criança que ri de uma piada de adultos para imitá-los, nada mais. Quem vê de fora fica assombrado, porque se tem a impressão de que o computador compreende o que lhe é dito. Mas em realidade ele não compreende nada. Apenas aplica mecanicamente regras que são suficientes para jogar xadrez, mas não para falar verdadeiramente[10].

A terceira razão é que um robô provavelmente jamais terá consciência. Caso se admitisse que um robô pode ter uma consciência, teria que se admitir também que a consciência pode existir em qualquer matéria inanimada. É uma crença que nada tem de racional e que é chamada panpsi­ quismo. Somos feitos de carne e osso, e os processos cognitivos como a criação, o pensamento, a consciência estão encarnados num corpo vivo que interage com um ambiente social. A consciência é o fruto da evolução natural e não se reduz às suas funções. De fato, pode-se conceber uma matéria que efetuasse perfeitamente todas as funções que atribuímos à consciência (a atenção, a percepção, a memória, o autocontrole etc.) sem ter estados mentais. Seria como um zumbi para quem nada importa. O que chamamos de consciência fenomênica (em inglês, consciousness) é o que permite a um organismo experimentar, em primeira pessoa, seus pró­ prios estados. Ora, todas as funções atribuídas à consciência poderiam ser efetuadas por um robô que não tivesse experiência fenomênica alguma, isto é, que não experimentasse nenhum desses estados qualitativos, nem o prazer e a dor, nem o gosto da cereja ou o som do violino. Em outras palavras, a consciência animal, portanto propriamente humana, se caracteriza não pelo que ela faz, como uma máquina, mas pelo que ela sente, em primeira pessoa, que diz e pensa eu.

Isto quanto às dúvidas sobre a capacidade das máquinas de se humanizarem. No que se refere à capacidade dos homens de se mecanizarem, já não são mais dúvidas, são críticas que podemos emitir. É verdade que os progressos das próteses são extraordinários: elas permitem agora a alguns surdos ouvir, a alguns cegos ver, a alguns paralíticos andar. Essas invenções são, no fundo, a continuação natural dos óculos com lentes corretivas, que datam da Veneza do século XIII, ou das cornetas acústicas, que datam do século XVII francês, ou das imemoriais bengalas. O problema começa quando se quer melhorar as funções naturais normais em vez de corrigir as disfunções devidas à idade ou à deficiência. Até onde ir? E quem se beneficiará disso? Somente alguns abonados, e o fosso entre humanos que têm acesso a todo supérfluo e os que não têm acesso ao necessário não cessará de aumentar. Pois essa utopia está nos antípodas das clássicas utopias comunistas. Ela não se preocupa nem com a comunidade política, nem com a comunidade moral dos humanos, nem com qualquer comunidade que seja. Interessa-se apenas pelos poderosos e sonha para eles um futuro de super-homens.

Essa crítica moral é fácil, admito. Mas, supondo que você faça parte desses poderosos, será que desejaria para você mesmo essa famosa longa vida que seria seu privilégio? Imagine: você veria desaparecer aos poucos todos os que o rodeiam, morrer todos aqueles que conheceu e que não tiveram os meios de se oferecer essa cura de juventude, perderia sucessivamente seus amigos, filhos, netos etc. É essa a vida que deseja? Certamente não. Mas vamos mais longe ainda. Cheguemos até a imortalidade. E suponhamos mesmo que você possa compartilhar essa imortalidade com seus próximos. Não é esse o sonho absoluto da humanidade? Ser imortal como os deuses?

Não acredito. Em primeiro lugar porque… a eternidade é longa! Sobretudo no fim!

Mas existem razões mais sérias.

Nenhum de nós deseja morrer. Consideramos a morte, isto é, o fim da vida, como o pior mal que possa nos acontecer. E se eu morresse amanhã? Mas não quero morrer amanhã, ainda me restam tantas coisas a fazer, tantos bons momentos a viver, tantos amigos ou pessoas próximas a amar. Depois de amanhã? Também é muito cedo. É sempre muito cedo. Não desejamos morrer, nunca, porque temos o sentimento de que, ainda e sempre, temos algo a viver. Tal é a estrutura do desejo humano. E é o desejo que nos faz viver, que nos retém em vida. O desejo não cessa de se regenerar. Por isso temos medo de morrer. Temos medo de morrer antes de ter acabado de viver – sem vermos que morrer não é outra coisa senão ter acabado de viver. Mas a vida, ela, alimenta-se desse desejo indefinido. Desejamos sempre viver porque vivemos desse desejo mesmo.

Logicamente, desejar sempre viver é o equivalente estrito a desejar viver sempre. No entanto, não é bem assim: os dois não são equivalentes para o nosso desejo; pois desejamos sempre viver, mas não desejamos viver sempre. Logicamente, não desejar morrer é o equivalente estrito a desejar não morrer. Mas também não é bem assim: os dois não são equivalentes para o nosso desejo; pois não desejamos morrer, mas tampouco desejamos não morrer.

Nosso desejo humano é contraditório. Espontaneamente acreditamos que a imortalidade signifique simplesmente evitar a morte. Ou melhor, poder adiar a morte: mais tarde! Sempre mais tarde! E é justamente disso que gostaríamos: que a morte viesse mais tarde, quando tivéssemos realmente acabado de viver. Mas mais tarde não significa nunca. Pois se a vida continuasse sem nunca ter fim ela deixaria de ter um sentido. O que teríamos a temer se nunca houvesse morte? E o que teríamos a desejar se o tempo não nos fosse contado? Saberíamos de antemão que, na eternidade, tudo nos aconteceria um dia, necessariamente. Para que desejá-lo então? Jamais teríamos necessidade alguma, já que o corpo seria eterno e jamais ameaçado. Nada nos faltaria. Não teríamos nada a desejar. Então para que viver? Estaríamos sempre satisfeitos, seríamos completos, autárquicos, cheios de nós mesmos, sem necessidade de nada nem de ninguém, sem amigos, sem razão de viver. Tudo, portanto, nos seria indiferente. Decididamente, a vida dos deuses não é invejável. E a utopia trans-humanista que parece concretizar o velho sonho da condição humana é talvez, em realidade, um pesadelo.

Façamos um balanço de nossas duas utopias contemporâneas. Tudo opõe a utopia antiespecista de certos movimentos militantes ecologistas radicais e a utopia trans-humanista de certos cientistas e engenheiros californianos. De um lado e de outro da sabedoria antiga, que queria que nós, homens, não fôssemos nem animais nem deuses, uma quer que sejamos apenas animais, a outra quer fazer de nós deuses. Uma quer a nossa fusão numa natureza original, a outra quer nos projetar num destino técnico. Uma quer voltar a um passado mítico da humanidade, quando ela coincidia com sua própria animalidade; a outra deseja para ela um futuro quimérico no qual estaria livre de sua própria animalidade. Uma imagina uma comunidade finalmente liberta das necessidades da espécie; a outra não imagina comunidade alguma, mas um simples grupo de indivíduos finalmente libertados de toda comunidade. Uma quer fundar um novo nós, muito aquém da espécie humana, formado por indivíduos livres e iguais como antes do dilúvio; a outra sonha, para alguns super-homens superiores à humanidade, um futuro sem limite técnico.

Em ambos os casos, porém, quer-se ultrapassar fronteiras naturais. Do lado antiespecista, quer-se ultrapassar a fronteira homem/ animal e, de maneira mais geral, barreiras que separam as espécies; todas as espécies se equivalem e todas deveriam comungar na harmonia do primeiro dia. Do lado trans-humanista, quer-se ultrapassar a fronteira homem/ máquina e, de maneira mais geral, barreiras que separam o natural do artificial. Nesses dois casos, quer-se ultrapassar as comunidades políticas que foram o germe de todas as utopias passadas e, por conseguinte, as noções que as alimentaram: o Estado, a justiça, a igualdade dos cidadãos. Mas nos dois casos, sobretudo, quer-se ultrapassar a comunidade humana e o humanismo do qual ela é portadora. Esse é o ponto comum mais evidente dessas duas tendências radicais opostas. Para o antiespecismo, a comunidade moral está além da humanidade e o homem deve ser substituído pelo animal. Para o trans-humanismo, não há simplesmente comunidade moral e o homem deve ser substituído pela máquina.

Eis por que, ante o desmoronamento das utopias políticas, ante o perigo das novas utopias, quero propor, para terminar, o que deveria ser a verdadeira utopia de nosso tempo que reataria com a sabedoria dos antigos. O homem não é deus nem bicho. O homem é certamente um animal, mas é também racional, portanto, capaz de técnica. O homem é certamente racional, mas o é porque sua racionalidade é inseparável de sua animalidade. E, por ser primeiramente animal e não máquina, ele é capaz de consciência, e mesmo de certo grau de saber reflexivo que chamamos de ciência. Chamamos de ciência um saber que recorre a procedimentos universalizáveis de justificação. A ideia de ciência, nascida na Grécia no século V a.C., passada pelos árabes à Idade Média e depois à Europa no século XVII, supõe que os procedimentos de justificação sejam objetivos, no sentido de que são públicos, abertos, transmissíveis e sempre passíveis de um novo questionamento pelo confronto das justificações ou pelas novas contribuições da experiência. A exigência de abertura exclui, portanto, os procedimentos – por mais “racionais” que possam parecer – baseados na autoridade absoluta dos textos, no respeito à palavra dos mestres ou na consideração devida aos julgamentos aceitos.

O homem é racional; e, porque sua racionalidade é inseparável de sua animalidade, ele é capaz de certo grau de consciência reflexiva que chamamos justamente de humanidade. A humanidade é a comunidade de todos os que podem se falar e que são iguais enquanto falantes. Reconhecer a humanidade em cada um, reconhecer-se a si mesmo como uma pessoa e reconhecer cada um como outra pessoa, isto é, como um interlocutor possível, e considerar a possibilidade mesma dessa interlocução como o fundamento de todo valor.

Isso não é novidade. E esse universalismo moral não é de modo algum privilégio do Ocidente. Encontramo-lo em toda parte no mundo e na história, em todas as civilizações, como o lembra constantemente o grande economista humanista Amartya Sen[11]. E certamente isso tem a ver com um desejo piedoso, quando se observa a maneira como os homens se comportam, mas não constitui ainda uma utopia no sentido estrito. Por isso vou lhes propor a seguinte utopia humanista.

Todas as utopias políticas do passado tiveram por quadro um Estado, uma cidade, uma república etc. mais ou menos autárquica, e tentaram aplicar a ela as relações que ligam entre si os membros de uma família. Tal era a utopia: pensar a comunidade política como uma grande família na qual os indivíduos estão ligados por relações fraternas, portanto, pelo sustento, pela ajuda mútua e a solidariedade. Mas pode-se fazer a ela uma crítica inversa: essas comunidades utópicas não só eram grandes demais para serem pensadas como uma família, como eram pequenas demais para fazer a felicidade de todos. Em outras palavras, um Estado, mesmo ideal, uma república, mesmo fraterna, uma cidade, mesmo perfeitamente justa, estão sempre encerrados dentro de fronteiras. Baseiam-se sempre na distinção do interior e do exterior, do próprio e do estrangeiro, do território de dentro que é o nosso e da terra de fora que é outra. Na utopia que proponho a vocês, não há distinção entre o interior e o exterior. Segundo as utopias do passado, mesmo supondo uma comunidade política perfeitamente justa e uma comunidade humana perfeitamente moral, restaria sempre a distância, o fosso, entre política e moral. A política para nós, a moral para eles. Teríamos entre nós, membros da comunidade política, a mais justa partilha dos bens; e teríamos com eles, os outros, membros da comunidade moral, trocas as mais hospitaleiras possíveis. Dupla utopia, dirão vocês? No entanto isso evita uma questão essencial: Quem é cidadão e tem acesso à nossa justa partilha? Quem é estrangeiro e não tem direito a ela? Certamente reconhecemos que esses estrangeiros são humanos como nós e temos com eles relações morais. Somos acolhedores, os recebemos em nossa casa. Mas é em nossa casa! Portanto, eles não podem ter acesso ao nosso Estado e à nossa justa partilha, uma vez que não são cidadãos. Na utopia que proponho a vocês, não há hospitalidade, pois hospitalidade é acolher estrangeiros[12]. Ora, em minha utopia não há estrangeiros. “No século XIX, era mais fácil atravessar o Atlântico do que é hoje atravessar o Mediterrâneo[…]. Em 1903, porexemplo, mais de 12 mil migrantes podiam chegar numa única jornada ao porto de Ellis Island, em Nova York.” A introdução do regime dos passaportes obrigatórios data da Primeira Guerra Mundial. Mas, em 1919, o Tratado de Versalhes anuncia a criação da Sociedade das Nações e menciona, no artigo 23, o restabelecimento da liberdade de trânsito anterior à guerra. Em 1920, a Conferência de Paris discute a criação de um passaporte uniforme, idêntico para todos os países, a fim de facilitar a liberdade de trânsito para os trabalhadores. Em 1948, os signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem se comprometem a garantir o direito de “toda pessoa[…] deixar qualquer país, inclusive o seu”[13]. Hoje, esses compromissos são tão pouco respeitados que as autoridades de todos os países, particularmente europeus, consideram, publicamente e sem reserva, com o maior cinismo, destruir os barcos daqueles que se dispõe a exercer seus direitos. Hoje, milhões de migrantes tentam fugir de seu país, em consequência das guerras e das perseguições políticas, étnicas, raciais, religiosas, culturais de que são vítimas. No pior dos casos, fecham-se totalmente as fronteiras e eles são mandados de volta ao mar. No melhor dos casos, raros, são acolhidos sem má vontade: é o direito de asilo. No caso ideal, seriam acolhidos com benevolência.

Mas na utopia que proponho a vocês isso não é suficiente.

Pois nessa utopia não há benevolência, há um direito de cidadania para todos. O humanismo deve ser cosmopolita, caso contrário é letra morta. Nessa utopia não há justiça para nós, há uma justiça para todos. Nessa utopia a fronteira que separa a comunidade política e a comunidade moral se apaga, porque não há fronteiras entre Estados. Nessa utopia não há distinção entre pessoa e cidadão, isto é, entre moral e justiça.

As utopias do passado foram comunitárias, mas a comunidade política se encerrava dentro de suas fronteiras: o Estado, a nação. Elas não eram, portanto, humanistas. As utopias que dividem nossa modernidade são anti-humanistas: querem abolir fronteiras (entre o homem e o animal, ou entre o homem e a máquina), mas não aboliram as fronteiras entre moral e política, as verdadeiras fronteiras que, hoje mais do que nunca na história, delimitam as nações e separam os homens dos homens. É tempo de defender a mais razoável e a mais louca das utopias, a utopia humanista.

  1. “O comunismo. abolição positiva da propriedade privada (ela mesma alienação humana de si) e, portanto, apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem; logo, retorno total do homem para si enquanto homem social, isto é, humano, retorno consciente e que se operou ao conservar toda a riqueza do desenvolvimento anterior. Esse comunismo, enquanto naturalismo acabado = humanismo, enquanto humanismo acabado = naturalismo, é a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução da luta entre existência e essência, entre objetivação e afirmação de si, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero.” Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo, 2004.
  2. “O comunismo, para nós, não é um estado que seja preciso criar, nem um ideal para o qual a realidade deve se orientar. Chamamos comunismo o movimento real que abole a ordem estabelecida.” Karl Marx; Friedrich Engels, A ideologia alemã, São Paulo: Boitempo, 2007.
  3. “O que é o comunismo? O comunismo é o ensinamento das condições de libertação do proletariado.” Friedrich Engels, “Princípios básicos do comunismo”, 1847. Disponível em: <http:/ /www.simerj.org. br/arqs/materia/86_a.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2016.
  4. “O proletariado se apodera do poder do Estado e transforma os meios de produção primeiro em propriedade do Estado. Mas com isso ele se suprime a si mesmo enquanto proletariado, suprime todas as diferenças de classes e oposições de classes, e igualmente enquanto Estado. A sociedade anterior, que evoluía em oposições de classes, tinha necessidade do Estado, isto é, em cada caso, de uma organização da classe exploradora para manter suas condições de produção exteriores, portanto, sobretudo, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão dadas pelo modo de produção existente (escravidão, servidão, salariado). […] A partir do momento em que não há mais classe social a manter na opressão […], a intervenção de um poder de Estado em relações sociais torna-se supérflua num domínio após outro, e então naturalmente adormece. O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direção das operações de produção. O Estado não é “abolido’, ele se extingue.” Karl Marx, Anti-Dühring, São Paulo: Boitempo, 2015.
  5. Cf. Francis Wolff, ”L’animal et le dieu: deux modeles pour l’homme”, em: L’être, l’homme, le disciple,

    Paris: PUF, 2000, pp. 113-SS.

  6. Peter Singer, Libertação animal, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. O termo antiespecista data do início dos poderosíssimos movimentos de libertação animal dos quais, em meados dos anos 1970, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer foi o mais célebre promotor e divulgador. O impacto direto ou indireto dessa ideologia antiespecista é considerável e não cessa de crescer; ela é infinitamente mais influente, em todo caso, que o movimento antiespecista francês, sobre o qual se poderá ler o estudo sociológico de Catherine-Marie Dubreuil “L’antispécisme, un mouvement de libération animal”, Ethnologie française -Les animaux de la discorde, vol. 39, 2009/1, Paris: PUF, 2009.
  7. Angus Deaton, The Great Escape Health, Wealth, and the Origins of Inequality, Princeton: Princeton University Press, 2013.
  8. Ver o pré-relatório publicado em junho de 2002 nos Estados Unidos pela National Science Foundation e pelo Department of Commerce, que apresenta um panorama completo dessas quatro tecnologias científicas para o futuro da humanidade. Disponível em: <http:/ /www.wtec.org/ConvergingTechnologies/Report/NBIC_report.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2016.
  9. ‘As formas primitivas de inteligência artificial que já temos se mostraram muito úteis. Mas eu penso que o desenvolvimento de uma inteligência artificial completa poderia pôr fim à humanidade. Assim que os homens tiverem desenvolvido a inteligência artificial, esta decolaria sozinha e se redefiniria cada vez mais depressa. […] Os humanos, limitados pela lentidão de sua evolução biológica, não poderiam rivalizar e seriam ultrapassados.” Ver a entrevista completa em: <http:/ /www.bbc.com/news/tech­ nology-30299992>. Acesso em: 21 jan. 2016.
  10. Nesses domínios. os computadores revelam às vezes um desempenho melhor que o do homem. Em 2011, por exemplo, o programa Watson, concebido pela IBM, ganhou no Jeopardy!, um jogo no qual os participantes devem formular a pergunta certa a partir de índices fornecidos nas respostas.
  11. Amartya Sen, “Droits de l’Homme”. Disponível em: <hnp:/ /www.republique-des-lettres.fr/10738- droits-homme.php>. Acesso em: 22 jan. 2016. Ver também, do mesmo autor, La Démocratie des autres: pourquoi la liberté n’est pas une invention de l’Occident, Paris: Payot, 2005.
  12. Pode-se ler uma critica política muito judiciosa do vocabulário da hospitalidade para pensar as questões da imigração em Magali Bessone, “Le Vocabulaire de l’hospitalité est-il républicain?”, Éthique Publique, Québec: 2015, vol. 17, n. 1. Disponível em: <http://ethiquepublique.revues.org/1745>. Acesso em: 22 jan. 2016.
  13. Idil Aral; Speranta Dumitru, “Pourquoi penser l’ouverture des frontieres”, Éthique Publique, Quebec: 2015, vol. 17, n. 1. Disponível em: <http://ethiquepublique,revues.org/r727>. Acesso em: 22 jan. 2016.

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