2007

Capitalismo e política: um paradoxo letal

por Francisco de Oliveira

Resumo

Na medida que a centralidade do trabalho como estruturante da sociedade perdeu importância pela combinação de uma reestruturação produtiva (progresso técnico) com o neoliberalismo, todo o edifício da transformação de carências e direitos vem desabando.

A política surgiu na Grécia para corrigir assimetrias de poder na sociedade. A impossibilidade da política em resolver conflitos trazidos pela acumulação de riqueza e luta de classes deu lugar à grandes revoluções que foram também uma nova invenção da política pela política.

O processo de concentração e acumulação do capital aniquilou a construção de um processo civilizatório do capital, ou seja, a capacidade da classe trabalhadora de vetar os processos de sua exploração através da disputa política do excedente social. A assimetria voltou, então, num espaço que anula a política, anula a redistribuição do poder na sociedade capitalista. Trata-se da anulação da política, da colonização da política pela economia em todos os terrenos e em âmbito mundial.

Se, pela política já não é mais possível corrigir as assimetrias do poder, o que resta é um estado policial, o de exceção, no qual se inscrevem políticas (ou ausência delas) que se conformam ao status quo sob pretexto de erradicar diferenças e desigualdades mas que, na verdade, reforçam os mecanismos de submissão, retirando o dano da política e mantendo intocada a sociedade divida entre os que têm todas as partes e os que não têm nenhuma.


Começo pelo paradoxo: a política nunca foi tão importante e tão urgente e nunca foi tão irrelevante, tão impotente. Se, nos termos de Ranciere[1], a política é a reivindicação da parte dos que não têm parte, então no capitalismo contemporâneo esse todo de que a política reivindica uma parte para os que não têm direitos cresce desmesuradamente até tornar inútil a reivindicação; até tornar irrelevante a parte que se reivindica. Nos termos frequentemente utilizados por Laymert Garcia dos Santos, o capital adianta-se sempre à reivindicação, funcionaliza-a pro domo suo e, portanto, a anula. Mais: o capital controla agora o virtual, ou radicalizando, ele é o virtual, e, portanto, ao reivindicar o real, a parte dos que não têm parte evapora-se, torna-se sem objetividade. Esse é o fundo do problema contemporâneo da irrelevância da política.

O fenômeno de fundo é a desigualdade que atravessa desde o estatuto das nações e vai até os indivíduos, que já não o são – tornaram-se mônadas -, tendo no centro a anulação da potência política do trabalho. Tornaram-se sujeitos monetários na expressão de Robert Kurz[2] com dinheiro e sem dinheiro. Tomemos inicialmente o exemplo brasileiro, ao qual voltaremos incessantemente: os trabalhadores, através dos fundos de pensão, tornaram-se sócios do capitalismo brasileiro, torcem pelo seu êxito, aplicam seus vastos recursos nas empresas. Retifico: não são os trabalhadores, mas seus ersatz na forma das quotas dos fundos que estão em seus nomes; esse é o caráter da mônada. Administradores impessoais cuidam desses fundos, que se destinam automaticamente a financiar o capital. Indo mais fundo, sem proposito de personalizar: o presidente Lula declarou seus ganhos ao Tribunal Superior Eleitoral ao inscrever-se como candidato à reeleição. Seu patrimônio duplicou desde 2002, e metade dele são aplicações financeiras – e apesar disso continua modesto, nem de longe se parecendo com o escândalo do patrimônio de Orestes Quércia, ex-governador do estado de São Paulo. Tais aplicações fazem parte de “pacotes” vendidos pelos bancos, principalmente para quem tem pouco dinheiro e não pode viver de olho nas cotações. Tais pacotes lastreiam-se, em sua maior parte, em títulos da dívida pública do Estado brasileiro; o paradoxo aqui é o seguinte: o presidente aumenta seu patrimônio graças ao endividamento do Estado brasileiro, do qual é presidente. Talvez não haja exemplo mais cruel do caráter de mônada mesmo em se tratando de personalidade tão importante. E isso explica, ainda que residualmente, também por que ele adere, objetivamente, à própria política econômica de seu governo, que consiste em sustentar-se nas forças dos que “têm todas as partes” (Rancière).

Deixemos de lado, por ora, o caso brasileiro e o presidente. Voltaremos. A desproporção entre os “que têm partes” e os que não as têm, e as reivindicam, não pára de crescer. É do próprio processo de acumulação de capital, que é sempre ampliado. Até aí, nenhuma novidade teórica, nem prática. Empresas são, por definição, entes jurídicos, enquanto o trabalhador é um ente individual; a política, justamente ela, inventou os sindicatos, para enfrentar como ente jurídico as empresas. A política inventou os partidos, para disputar o poder, e reinventou-se para fazer frente à desproporção de forças jurídica, econômica e social. A assimetria de forças podia ser corrigida pela política, como a experiência do Estado de Bem-Estar mostrou: durante os “trinta anos gloriosos” – o pós-Segunda Guerra Mundial até circa 1980 -, a desigualdade recuou nos principais países matrizes do capitalismo, e até mesmo na sua periferia. No Brasil, a distribuição funcional da renda entre salários e lucros chegou a ser meio a meio, tendo recuado hoje para uma relação de 36 a 54%. Estudos recentemente divulgados do Ipea, sob a responsabilidade de Guilherme Delgado, ainda mostram que é a política que opera a tênue redistribuição da renda no Brasil: é a Previdência Social com seus benefícios o responsável pela redistribuição. E é bom que se mude o termo: não se trata de benefícios, mas de direitos.

O crescente poder dos trabalhadores na disputa pelo controle do excedente, que se expressa na proporção de receitas/gastos públicos sobre o PIB – nos países escandinavos tais rubricas compõem mais de 50% do PIB -, não significou uma apropriação direta das empresas e dos bens de produção, como o modelo socialista clássico pensou e prometeu, mas sim a capacidade de pautar o comportamento de capitalistas e empresas em escala nacional. Os socialistas, embora sempre estivessem à frente das reivindicações sociais – de novo Rancière -, não teorizaram tal processo, que ficou circunscrito à teorização keynesiana das medidas anticíclicas e antidepressão.

A reação capitalista veio por várias formas e vias. Em primeiro lugar, pelo próprio processo de transformação da produção, ou, nos velhos termos, pela via do progresso técnico, que modificava constantemente os modos de produzir até a informatização, que ressignificou a maior parte dos processos de trabalho, deslocou ou mesmo extinguiu categorias inteiras de trabalhadores e afetou suas representações. Banalizou o trabalho, em termos mais radicais, elevando-lhe a produtividade a um nível tal que a qualificação do próprio trabalhador passou a ser inteiramente secundária. O “progresso técnico” está no coração da tendência ao monopólio, à concentração de capitais, que evidentemente volta a desequilibrar a relação trabalhador versus empresa, justamente quando os processos de centralização tornaram urgente a capacidade sindical de centrais capazes de se oporem a ela. Mas, nesse momento, a desqualificação operada pela banalização do trabalho – elevada à enésima potência pelo espantoso aumento da produtividade do trabalho – desfaz poderosamente as identidades longamente elaboradas no interior dos velhos processos, inclusive os fordistas. Desfaz os processos de making da classe, para usar os termos de Thompson, e portanto as formas da política.

Sobra uma sociedade sem classes, não pela superação do sistema capitalista, mas pela sua exasperação. A sociedade norte-americana foi a primeira a experimentar muito precocemente esse processo e chegar a esse estatuto “sem classe”. Não à toa, o sistema partidário norte-americano é uma espécie de “espelho” dessa sociedade não-política: o tão alabado sistema bipartidarista, que todos tomam tolamente como modelo, denuncia a irrelevância da política, a falta de escolha, de opção, pois mais parecido com o Partido Republicano só o Partido Democrata. A alternativa de um partido dos consumidores de Ralph Nader, além de propor a equalização entre economia e política, não cola: ela já existe nos dois principais partidos.

Sobram indivíduos, consigna de Mrs. Thatcher que sentenciou não haver sociedade, senão indivíduos. Mônadas,[3] portanto. Sobra uma sociedade biopolítica,[4] e aqui entre nós miseravelmente o Estatuto da Igualdade Racial, cujo propósito é o de combater a discriminação racial, chega, pelo caminho oposto, à biopolítica, classificando as pessoas, seus acessos aos bens públicos, pela porcentagem de sangue, branco, negro, amarelo, indígena etc. As cotas e as chamadas ações afirmativas são a biopolítica como política. Destroem a política, de novo nos termos de Rancière, pois a classificação “racial” já não instaura o dano, nem a reclamação da “parte dos que não têm parte”. Não há conflito, nem dano, pois a vaga na escola, mesmo para a universidade, o exame médico, o ingresso para o espetáculo, dependerão e estarão predeterminados pela “raça”.

Em segundo lugar, veio pela via da redução dos “benefícios” do Estado de Bem-Estar, na esteira de Hayek, que identificou o keynesianismo como o principal inimigo do capital. Então, a política que havia se oposto ao mercado, este como classificador “racial” das diferenças de classe, foi anulada – persistem apenas nos grupos de trabalhadores mais organizados nos países centrais e em algumas poucas periferias -, e os “benefícios” dependem agora do próprio mercado, isto é, das diferenças que ele criou, que são consideradas estaticamente e, portanto, insuperáveis; indiretamente benefícios que dependem do orçamento ficam na dependência do mercado, isto é, se o ciclo dos negócios prospera ou entra em recessão. A política transformou-se aqui em “polícia” (Rancière) e toma, necessariamente, a forma de favores clientelísticos, em que a classe foi substituída pela pobreza. É tipicamente a forma das políticas assistencialistas do Estado brasileiro, unificadas agora no Bolsa-Família. Já não há direitos, apenas carências. Outra vez, a biopolítica: zebras também têm carências, e os zoológicos (onde elas não correm riscos como nas savanas africanas) não lhes deixam faltar a boa alimentação; não há dano possível para as zebras, nem ganho para os leões.

Na medida em que a centralidade do trabalho como estruturante da sociedade perdeu importância – e Ricardo Antunes trabalha o tema com maestria no novo livro de que é organizador[5] – pela combinação de uma poderosa reestruturação produtiva (o progresso técnico) com um ataque semântico inigualável desde o século XIX (o neoliberalismo), todo o edifício da transformação de carências em direitos – do zoológico aos tribunais – vem desabando implacavelmente. A política anticíclica (Keynes), que se tornou estrutural à reprodução do capital, deixou de ser anticíclica e voltou ao registro do assistencialismo.

A política surgiu como uma extraordinária invenção (grega)[6] para corrigir as assimetrias de poder na sociedade, derivadas, mormente no Ocidente moderno, da propriedade do capital – em outras culturas, talvez as formas da política, que as há, não tenham esse objetivo. A assembleia grega, com a exclusão das mulheres e dos escravos, produzia pelo voto a correção da concentração de poderes. O capitalismo moveu-se dentro desse universo: as sucessivas invenções, os trabalhos de Sísifo das classes dominadas,[7] buscaram sempre resolver a contradição instalada por um sistema que elevou à enésima potência a assimetria de poderes pela nova forma de propriedade e de produção da riqueza. Os conflitos de classe direcionaram-se crescentemente para as formas da política, desde a criação dos sindicatos até a dos partidos políticos. No limite, a impossibilidade da política deu lugar às grandes revoluções, que foram também uma nova invenção política da política. Tudo isso, de certa forma, é uma história do passado, uma espécie de arqueologia em suas várias camadas, desde o trânsito da violência sem disfarces, cujo melhor romancista foi desde sempre Dickens, ao insuperável Engels da Situação da classe trabalhadora na Inglaterra, até os tempos do capitalismo regulado keynesianamente. O formidável processo de concentração e centralização do capital – com seu espatoso aumento da produtividade do trabalho e suas empresas em redes multinacionais, desde a Microsoft como novo padrão técnico da divisão social do trabalho até a Nike – tornou pó a construção de um processo civilizatório do capital, a capacidade da classe trabalhadora de vetar os processos de sua exploração através da disputa política do excedente social (cuja expressão são as receitas/gastos públicos). A assimetria voltou numa escala que anula a política, isto é, a possibilidade de, escapando à lógica da acumulação de capital, redistribuir o poder na sociedade capitalista de nosso tempo. Trata-se, agora, da anulação da política, de sua irrelevância, da colonização da política pela economia.

Essa colonização se dá em todos os terrenos. Em primeiro e importantíssimo lugar, a colonização da própria teoria política ou teoria da política. As teorias da “escolha racional” e “escolha pública” e suas aparentadas são, todas, teorias econômicas transplantadas para a política. O programa de Jevons de uma teoria econômica não contaminada por valores[8] transportou-se, também, para a teoria da política, aparentemente em suas formulações quantitativas e, substancialmente, por transformar a teoria da política numa contabilidade das mônadas, por retirar o conflito do centro da política. Em termos de Ranciêre, retira-se o dano da política.[9]

Desde seus inícios, o capitalismo tornou a empresa um dos sujeitos por excelência da sociedade e, portanto, da política também. A burguesia como classe nunca esteve ausente da política, e pelo poder da classe a economia é mais do que central no capitalismo. A novidade não é a transformação da empresa em ator/sujeito da política: a novidade é a anulação da política, não apenas pela transferência da teoria econômica para a teoria da política, mas pela anulação dos sujeitos não-econômicos, ou, melhor dizendo, dos sujeitos não-proprietários que foram centrais na política. A empresa toma o lugar dos sujeitos não-proprietários de várias formas. Em primeiro lugar, pela presença das ONGs, que são uma forma de organização privada da política. É inegável que o surgimento das ONGs se dá precisamente quando a política perde sua capacidade de impor/vetar escolhas, no momento em que a economia a colonizou. Então, um vazio político foi preenchido por organizações que deram um cariz economicista às reivindicações sociais: esse cariz economicista não é, paradoxalmente, da ideologia das ONGs, mas é o centro de seu “método político”. Isto é, parcializar as reivindicações – com o que se retira o dano da política -, introduzir­ lhes uma contabilidade de resultados, isto é, das mônadas; trata-se de uma privatização da política.

A empresa econômica, que já era o centro da concentração/centralização do capital, assume cada vez mais o centro da política. Sempre houve financiamento de campanhas e corrupção de políticos pelas empresas; a novidade agora é que tais “doações” devem ser declaradas; ingenuamente, pensa-se que essas declarações tornam o processo mais transparente. Essas declarações legitimam as pressões das empresas sobre os políticos, e não diminuem em nada o famoso caixa-dois, isto é, os financiamentos por fora e além dos limites permitidos pela legislação. As empresas e suas associações verticais e setoriais, desde as clássicas federações da legislação varguista até as novas associações de direito civil, são as verdadeiras formuladoras das políticas econômicas gerais e setoriais que os governos adotam. Estudos que vêm sendo realizados por Ary Minella[10] sobre os bancos brasileiros e estrangeiros que aqui atuam mostram como eles estão presentes nos lugares onde não apenas se decide a política econômica, mas como ampliaram seu raio de ação para incluir “institutos” que cuidam da agenda cultural, formam outros institutos para cuidarem da ética dos negócios e de sua relação com a política. O Ethos, em São Paulo, é emblemático a esse respeito. As duas maiores redes de cinema em São Paulo pertencem a dois bancos, e não são apenas negócios, mas a presença da empresa na agenda cultural; não se está dizendo que os programas cinematográficos dessas redes estão direcionados para promover os bancos, mas sem dúvida Gramsci pensaria que se trata de uma operação no sentido de ocupar a “direção moral” da sociedade.

O tamanho das megacorporações e suas estruturas em rede superam qualquer outra forma de organização na sociedade. Bastaria indicar o tamanho da Microsoft, que batalha judicialmente contra o próprio governo norte-americano. Mas não precisamos ir muito longe: entre nós o exemplo da Petrobras é ao mesmo tempo vexaminoso e revelador da anulação da política pela economia. Nossa (nossa de quem, cara-pálida?) empresa de petróleo e gás, e também de energia elétrica, que administra heranças de desastres da privatização do setor por Fernando Henrique Cardoso, detém hoje cerca de 15% do PIB boliviano – proporções iguais apenas nos países petrolíferos do Oriente Médio e na Venezuela, e neste a empresa de petróleo é estatal -, e a nacionalização desses recursos recentemente pelo presidente Evo Morales provocou do presidente da Petrobras uma declaração que em outros tempos seria tomada como uma declaração de guerra; foi preciso que o próprio presidente Lula tomasse a palavra para amaciar a fala do presidente da Petrobras. Aliás, no episódio quem era mais presidente? Lula ou José Sergio Gabrielli? A própria elevação de Gabrielli à presidência da poderosa empresa é um sinal da colonização da política: ele era o diretor financeiro da empresa na gestão anterior, de José Eduardo Dutra. Muito longe de ser um especialista na área, sua nomeação – além dos intrincados jogos políticos comuns no caso – expressa a dominância financeira nas principais empresas, tal como Chesnais propõe para o próprio sistema capitalista contemporâneo.

Algumas instituições do capitalismo contemporâneo explicitam e assumem, descaradamente, a anulação da política pela economia. Entre estas, nenhuma se equipara aos bancos centrais, operador da ferramenta central do Estado moderno, a moeda fiduciária. A chamada “moeda de banco central” é o coração da economia do capitalismo contemporâneo, de dominância financeira, para repetir Chesnais. Nos termos dos regulacionistas franceses, a moeda é o vetor da violência privada, ou, em termos mais psicanalíticos, o superego da sociedade: esse poder é privatizado no capitalismo financeirizado. Tomemos o Banco Central brasileiro, formalmente dependente do Ministério da Fazenda e, por linha direta, do Presidente da República. Sua direção é indicada pelo presidente e aprovada pelo Senado da República – quando deveria sê-lo pela Câmara dos Deputados, representação do povo. Tenho repetido, para introduzir um grão de mostarda irônico neste debate pretensiosamente sério, que a sabatina a que são submetidos os diretores indicados pelo presidente, inclusive para o próprio cargo de presidente do Banco Central, é mais fácil que aquela que Sílvio Santos faz aos participantes do seu programa Show do Milhão; talvez se pudesse pedir a Senor Abravanel que se encarregasse da sabatina, terminando de vez com a política.

O Banco Central praticamente não presta contas a ninguém, a nenhuma instância da representação popular ou federativa; está, na prática, autonomizado, pois o próprio Ministro da Fazenda comparece ao Copom – que é a instância que decide sobre a taxa de juros básica – em igualdade de condições com os demais membros. Opera o Banco Central por meio de consultas com experts do mercado financeiro, principalmente altos executivos dos grandes bancos, e desse círculo estreito estão excluídos quaisquer outros cidadãos, individualmente ou em representação de classes. Há uma débil – na verdade um simulacro – representação de classe na constituição do Copom, mas as decisões são embasadas em estudos do próprio Banco Central, com os quais os ditos representantes de classe não podem rivalizar. Seus próprios dirigentes, na atual administração, são todos recrutados em instituições financeiras privadas. Isto é, o vetor das violências privadas, na concepção regulacionista, é administrado de forma privada. E a alabada – é a segunda vez que uso esse qualificativo – independência do Banco Central é a promessa de que ele não será contaminado por nenhum outro valor societário, principalmente pela política. Isto é, a instituição que decide cotidianamente sobre a vida de cada cidadão brasileiro deve estar imunizada contra a política. É a vitória de Jevons, outra vez. E assim é em todos os outros bancos centrais do mundo, mesmo que existam variações como a representada pelo Fed norte­ americano, que introduz um vetor regional em suas avaliações de política monetária e cambial.[11]

Mas há mais. O “modelo banco central” está se espraiando, para abarcar toda a regulação dos principais setores da economia através das Agências Reguladoras. Fernando Henrique Cardoso inaugurou a prática no Brasil, e, para ficar de acordo com o figurino patrimonialista brasileiro, o primeiro diretor da poderosa Agência Nacional do Petróleo – Anape foi ninguém menos que o então genro do presidente. As agências se multiplicaram, desde então. Já as há para a energia elétrica, para as telecomunicações, para a aviação civil, para a vigilância sanitária, para as águas, para o cinema, e por aí vai, numa lista sem fim. O objetivo é exatamente o mesmo: descontaminar a administração pública da política! Os ministérios das áreas e setores respectivos serão apenas executores das regulações emanadas das agências, e, em tese, permanecem traçando as respectivas políticas. Mas já não fiscalizam. Pense-se então no seguinte: quem faz a política da Petrobras? Nunca foi sequer o próprio Ministério de Minas e Energia, e muito menos agora com a Agência Nacional de Petróleo. Esta vem levando a leilão setores de exploração que somente foram descobertos graças aos pesados investimentos da Petrobras.

As agências são uma decorrência direta das privatizações das empresas estatais, levadas a cabo maciçamente por Fernando Henrique Cardoso. Em si mesmas, as privatizações já são uma privatização da política” e, pois, sua anulação. A onda neoliberal encontrou aí uma mina material para reforço do poder das grandes burguesias nas estruturas econômicas e, pelo seu porte e importância dos setores e empresas privatizadas, para dominar a própria estrutura política. Cálculos realizados à época por Aloysio Biondi estimaram as privatizações em uns 10 a 15% do PIB brasileiro. E quase todas as empresas privatizadas, inclusive nos âmbitos estaduais, eram ou um claro monopólio ou formavam duopólios importantíssimos: é o caso, por exemplo, da antiga Cesp, de São Paulo, que foi esquartejada entre uma empresa produtora de energia e outra encarregada da distribuição. É o caso da Vale do Rio Doce, hoje a maior mineradora de ferro do mundo; é o caso da Embraer, na produção de aviões de médio porte no Brasil. O monopólio ou os oligopólios transferiram-se, por inteiro, para o setor privado: e as agências são um simulacro de regulamentação e controle.

Agora, vamos lançar mão de um elemento da própria política para ver sua colonização pelo mercado, pelos seus critérios, pelos seus valores – ou falta de: o Brasil introduziu os programas gratuitos de rádio e televisão para a propaganda política dos partidos, durante todo o ano e mais intensamente nos três meses anteriores às eleições. O acesso dos partidos aos tempos de rádio e televisão é dado pela porcentagem de deputados e senadores que têm nas duas Casas da representação popular e federativa. Ora, uma medida democratizante, que o é efetivamente, é regulada por um princípio de mercado, ignorando e até impedindo que outras propostas sejam conhecidas do grande público. É o pensar a política que está se transformando: cientistas políticos já utilizam, a mancheias, o conceito de “mercado político”.

A culminância de todo esse processo de colonização da política pela economia se dá no âmbito mundial. São conhecidas as instituições “policiais” da economia mundial, FMI, OMC e, em menor medida, Banco Mundial; inclui-se aqui o Fed norte-americano, que, de certa forma, dá a diretriz geral para as políticas de juros em todo o mundo. Elas impõem constrangimentos aos governos nacionais, pautam as políticas econômicas – na verdade, a ausência delas -, obrigam a concorrências desleais e assimétricas – o caso Bombardier versus Embraer é um bom exemplo, em que a simples ação da empresa do governo canadense junto à OMC impediu a Embraer de utilizar sua capacidade competitiva para ganhar contratos em todo o mundo; impedem os governos de estimular setores econômicos; estabelecem rankings, de risco, e, com isso, na verdade, pautam as opções dos investidores privados; impedem os governos de utilizar políticas fiscais diferenciadas; estabelecem limites para certos gastos, sobretudo gastos de pessoal; classificam gastos correntes como investimentos e vice-versa para obterem eficiência em suas restrições; e uma infinidade de intervenções nas políticas dos Estados nacionais que são uma verdadeira anulação das soberanias.

Tais instituições “policiais” monitoram, obstruem, condenam, ditam as regras para as economias nacionais e, sobretudo, para os países menos desenvolvidos. A OMC, por exemplo, impede os países de praticarem políticas fiscais que estimulem seus próprios produtores, e pune com retaliações as empresas consideradas infratoras das regras do “livre mercado” e da concorrência. O Fundo Monetário Internacional impõe regras de fiscalidade que impedem os países menos desenvolvidos de conduzirem políticas de pessoal, de modo a melhor remunerar os quadros do Estado. E tal como Foucault advertiu, os “prisioneiros” monitoram estritamente suas próprias prisões: o Estado brasileiro automonitorou-se, e também às entidades estaduais e municipais, ao impor regras com limites de gastos com pessoal e para endividamento, pela Lei de Responsabilidade Fiscal. As entidades federativas que desobedecem podem ser punidas com a suspensão das transferências de recursos, de resto constitucionais, da União para os Estados e Municípios. E não é apenas uma espécie de espada de Dâmocles: de fato, o governo FHC suspendeu as remessas de transferências constitucionais para o Estado de Minas Gerais, quando o governava Itamar Franco, por conflitos no processo de privatização da Cemig, que Itamar se negou a realizar. Minas reagiu mandando tropas da sua polícia militar para guardar as propriedades da Cemig. Houve, então, uma Batalha de Itararé entre a polícia militar mineira e o Exército, que, como é regra no Brasil, terminou em paz, bebericando­se cachaças mineiras, tidas como as melhores.

A financeirização da economia mundial impõe regras estritas para os países, sobretudo para os menos desenvolvidos, e muitos abriram indiscriminadamente suas contas de capital, através das quais o movimento especulativo entra e sai, quando quer, das bolsas nacionais. O movimento amplo e sincronizado da financeirização e da reestruturação produtiva transformou, na prática, a grande maioria dos países menos desenvolvidos em meras instâncias dos setores produtivos dos mais desenvolvidos, e suas finanças em dependências do Tesouro norte-americano. O Fed, ao ditar a taxa de juros da economia norte-americana, na verdade estipula a regra monetária de praticamente todas as economias nacionais. Desse modo, a soberania dos países menos desenvolvidos sobre sua própria política econômica foi severamente reduzida, e a rigor é a soberania política que está em questão. A globalização, ou mundialização, completa o trabalho da colonização da política. Todas as relações internas são, agora, mediadas externamente. Da taxa de juros aos reajustes salariais, todos os conflitos internos requerem árbitros externos, as instituições “policiais” da globalização e as empresas multinacionais em rede. Essa extroversão é a pá de cal final na soberania.

As novas tecnologias estão pondo em xeque as formas da sociabilidade, e até o próprio indivíduo, tal como Laymert Garcia dos Santos tem assinalado reiteradamente; as novas tecnologias digital­moleculares acolhem, formam e reforçam as mônadas, eliminando o conflito, impedindo o dano, invisibilizando os sujeitos da ação; numa palavra, evaporando a esfera pública, como já nos advertiu Habermas. As formas da política, que ancoram nas formas da sociabilidade, entram em colapso, sobretudo a relação entre classe e representação. É verdade que estão em ação as tentativas de criação de uma nova esfera pública, através do uso inovador da Internet. Manifestos, subscrições, denúncias, correm hoje pelo sem-fio eletrônico, mas seu efeito ainda é limitado, sobretudo pela invisibilidade ou pela anulação da fala. De novo, voltamos ao reino da mônada: seguir a pista das novas relações, formar novas representações é quase uma tarefa de Sísifo: num mundo em que começa a predominar o chamado “trabalho informal”, qual é a relação que pode haver entre seus habitantes (do mercado informal) e as instituições da política? O favor ou o clientelismo insinua-se outra vez como a única forma plástica o suficiente para dar conta do que não tem forma. E a política torna-se, por conseguinte, o lugar da prática clientelística, antiuniversal, segmentada – sem dano nos termos de Rancière, ou uma biopolítica, para recuperar Foucault e Agamben.

Todas as políticas são ditadas pela excepcionalidade, com o perdão da utilização de um conceito plasmado por Schmitt. O Bolsa­Família é a exceção do salário, insuficiente, que não pode ser melhorado pelo monitoramento das instituições da “polícia” mundial; o mutirão é a exceção da moradia, que não pode ser mercadoria vendida porque o salário é insuficiente; o Prouni é a exceção da universidade pública, substituída por um simulacro de universidade privada para os pobres, com subsídio federal; o PCC em São Paulo e o TCC no Rio são as exceções, gângsteres, como não podia deixar de ser, da segurança pública e do desmantelamento do poder repressivo do Estado brasileiro. A lista seria longa e enfadonha. Trata-se de um Estado de Exceção. E quem é o soberano que decide o Estado de exceção? O mercado.

Schmitt pensou um Estado de exceção excepcional, isto é, temporário e transitório, como uma suspensão da política. Agamben já radicalizou: o Estado de exceção é permanente. A periferia capitalista, e o Brasil em particular, afirma a permanência da excepcionalidade. As consequências para sociedades pobres são devastadoras. Se, pela política já não é possível reformar as assimetrias de poder, corrigi-las, o que resta é um Estado policial, o de exceção, no qual se inscrevem políticas, – a ausência delas, na verdade – que se conformam ao status quo sob pretexto de erradicar as diferenças e desigualdades, mas que na verdade reforçam os mecanismos de submissão, retirando o dano da política e mantendo intocada a sociedade dividida entre os que têm todas as partes e os que não têm nenhuma, agora impedidos de reivindicar.

Notas

  1. Jacques Rancière, La Mésentente. 
  2. Robert Kurz, O colapso da modernização. 
  3. Tanto para Freud quanto para Adorno, a mônada não é apenas alienação social, mas pode ser também resistência ao igualitarismo repressivo. Ver de José Leon Crochik, “Notas sobre o texto ‘A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista’ de Theodor W. Adorno”, in Margem Esquerda, nº 7, São Paulo, Boitempo Editorial 2006. 
  4. Michel Foucault. 
  5. Ricardo Antunes, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo, Boitempo Editorial, 2006. 
  6. Pierre Vidal-Naquet, Os gregos, os historiadores e a democracia. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo, Companhia das Letras, 2002. 
  7. Ver, do autor, “Os trabalhos de Sísifo”. 
  8. Leda Paulani. 
  9. Jacques Ranciêre, op. cit. 
  10. Ver Ary César Minella. Banqueiros, organização e poder político no Brasil. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, São Paulo, Anpocs, 1988. 
  11. Escandalizei-me ao ler num jornal colombiano, El Tiempo, de Bogotá, há uns três anos, o processo de escolha de um novo presidente da instituição central colombiana: ele é escolhido dentro do próprio diretório do Banco, em circuito fechado. Quando há qualquer defecção no diretório e, pois, necessidade de admitir um novo membro, será sempre, estatutariamente, do mundo financeiro, e não é nomeado pelo presidente da República, nem submetido a nenhuma instância da representação popular. É uma nomeação do próprio diretório. 

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