1992

Cenários

por Adauto Novaes

Diferentes noções éticas estão expostas neste livro. Elas se apresentam sob a forma daquilo a que os gregos chamavam diálogo, estrutura original do curso “Ética”, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura em abril de 1991: cada autor interroga o outro, uma reflexão remete à outra, procura-se entender as razões de cada pensamento, e mesmo sabendo que não havia nenhuma intenção prática imediata, apesar da crise moral, todos estão convencidos de que alguma coisa de novo pode surgir dessa fala comum. A primeira delas, a mais importante talvez, é a experiência traduzida neste livro: a prática da democracia dos espíritos, ponto de partida da liberdade e crepúsculo das tiranias. Na ética do pensamento, observa Valéry, a existência dos outros é sempre inquietante para o esplêndido egoísmo de um pensador: não

compreender isso equivale, pois, a pensar em se construir uma ciência dos valores da ação e uma ciência dos valores da expressão ou da criação das emoções — uma Ética e uma Estética — como se o Palácio do seu pensamento parecesse imperfeito sem essas duas alas simétricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato pudesse manter cativas a paixão, a ação, a emoção e a invenção.[1]

Estas diferenças permitem, pois, ao leitor atento aos pensadores aqui envolvidos ter uma visão mais clara das próprias teorias. A palavra ética, por exemplo, não tem o mesmo sentido para todos. Se comparamos as definições que os antigos e os modernos dão à noção de ética, percebemos que são tão radicalmente diferentes que se cria em torno delas um verdadeiro campo de contradições. Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às ideias de felicidade da vida presente e de soberano bem: ainda que os comentadores tenham mostrado uma infinidade de distinções sutis na moral antiga, é certo que o que está sempre em jogo é o desejo do homem de realizar o soberano bem, isto é, a vida feliz; ou melhor, o objetivo supremo da moral é “encontrar uma definição de soberano bem de tal maneira que o sábio se baste a si mesmo, isto é, que dependa dele mesmo para ser feliz, ou que a felicidade esteja ao alcance de todo homem racional”. Victor Brochard anota que o que todos combatem, em particular Epicuro, é a doutrina da felicidade tal como a entendiam Platão e Aristóteles, que “subordinavam o bem de certa maneira às circunstâncias exteriores ou à Fortuna”.[2] Livrar-se do fatalismo, dominar as paixões, eis os postulados dominantes. “Dizer que o homem é livre, quando é um filósofo grego que fala, equivale a reconhecer que a felicidade está ao alcance de cada um.”[3] Hoje, a felicidade não é pensada mais nos termos da moral antiga, mas em termos de eficácia técnica, de consumo. Mais ainda, ela depende cada vez mais da roda da Fortuna, das forças externas que tudo controlam e dominam, o que por si só demonstra que entre as duas concepções existe muito mais que simples diferença: há uma verdadeira ruptura, uma contradição. Este é o ponto mais crítico da moral moderna. É como se houvesse um lento enfraquecimento da noção de ética e das conquistas do espírito com o avanço da técnica. Ou melhor, a moral passa a ter uma importância quase convencional.

Este livro foi pensado, pois, a partir de uma cisão radical, a partir de dois momentos da história do pensamento: se começamos com os gregos — voltamos sempre a eles, em particular nos momentos de crise —, não é porque eles sejam uma realidade dada para todo o sempre, um modelo a ser seguido, mas porque a própria maneira de narrar a sua história e de pensar o político leva a diferentes origens e diferentes interpretações. Permite situar, também, o momento e a origem de uma perda irreparável, a ideia de felicidade, e a sua substituição pelas noções de obrigação, dever, obediência; o desaparecimento do modelo ideal de virtude, que poderia ser seguido optativamente,[4] e o surgimento das normas éticas e dos preceitos a que se deve obedecer. “As duas ideias de obrigação e preceito só teriam razão de ser em uma moral em que o bem se diferencia da felicidade”,[5] distinção que os gregos jamais fizeram. Da mesma maneira, a ideia de virtude é definida de forma inteiramente diferente: se, do ponto de vista moderno, virtude é o “hábito de obedecer a uma lei nitidamente definida e de origem suprassensível”, para o pensamento antigo é a posse de uma qualidade natural. Mas é na ideia de origem suprassensível que se situa a grande transformação.

Lemos no Livro II da Ética a Nicômaco, de Aristóteles:

[…] este estudo não é teórico como os outros (pois estudamos não para saber o que é a virtude, mas para sermos bons, já que de outra maneira não tiraríamos nenhum benefício dela). Devemos examinar o que é relativo às ações, como realizá-las, pois elas são as principais causas da formação dos diversos modos de ser.

Ao definir a natureza das ações de acordo com a virtude, Aristóteles concluiu que as ações são chamadas de justas e moderadas quando concebidas de tal maneira que um homem justo e moderado poderia realizá-las:

é justo e moderado não o que as faz, mas o que as faz como as fazem os justos e moderados. É correto, pois, dizer que realizando ações justas e moderadas faz-se, respectivamente, um justo e moderado. Sem fazê-las, ninguém poderia chegar a ser bom. Mas a maioria não faz essas coisas, a não ser que, refugiando-se na teoria, acreditam filosofar e poder, assim, ser homens virtuosos.

A virtude tem, portanto, por origem o exercício prático, a ação; e é a ação que dá sentido político à moral. O Bem é o ato próprio de cada ser, e a felicidade está na atividade, em fazer, em se construir uma ciência dos valores da ação, como disse Valéry, e não na potencialidade. Pierre Aubenque comenta uma segunda ideia contida nesta parte do Livro II da Ética a Nicômaco: o ato próprio de cada ser é aquilo que está mais de acordo com sua essência, com a parte essencial do homem, que é a alma. Ora, como existem duas partes da alma, a racional e a irracional, existirão, segundo a ética de Aristóteles, duas espécies de virtudes: as virtudes intelectuais e as virtudes éticas. As virtudes intelectuais originam-se e se desenvolvem principalmente através do ensino e, por isso, diz Aristóteles, “requerem experiência e tempo”; as virtudes éticas procedem dos costumes, e exprimem a excelência (areté) daquilo que “na parte irracional é acessível aos apelos da razão”.[6]

A virtude moral é, pois, “uma disposição adquirida da vontade, consistindo em um justo meio relativo a nós, que é determinado pela justa regra, tal como o determina o homem prudente”. Dizer que a virtude é uma disposição adquirida da vontade, isto é, um hábito, conclui Aubenque, é negar que ela seja um dom da natureza (o que suprimiria o mérito), mas negar também que ela seja uma ciência, como afirmavam os socráticos. Como Aristóteles reafirma tantas vezes, não basta conhecer o bem para fazê-lo, porque a paixão pode se misturar entre o saber do bem e sua realização: “A moralidade não está apenas na ordem do logos, mas também no páthos [paixão] e no éthos [os costumes, de onde vem a palavra ética]”. Diríamos, em termos modernos, que a educação moral deve esforçar-se para introduzir de forma duradoura a razão nos costumes, por intermédio da afetividade, graças à constituição de hábitos… A virtude, mesmo se ela deve penetrar na parte irracional da alma, é racional no seu princípio, como o atesta, na sua definição, a referência à “regra justa”.[7]

A parte racional e a parte irracional da alma estão em permanente conflito e contradição uma com a outra. Se a virtude não pertence apenas ao mundo da razão e não é, portanto, uma ciência una, invariável, absoluta, ela pode ser múltipla, mutante e até mesmo falsa. Mais ainda: se as virtudes estão relacionadas com as ações e as paixões, como afirma Aristóteles, estes movimentos e estas paixões são um dado da natureza humana. Como define Gérard Lebrun, não é em razão dos pathé que sentimos que somos julgados bons ou maus:

Isso seria um absurdo, pois eles estão inscritos em nosso aparelho psíquico, e não podemos deixar de senti-los. Ninguém se encoleriza intencionalmente. Ora, a qualificação bom/mau supõe que aquele que assim julga escolheu agir assim. Um homem não escolhe as paixões. Ele não é então responsável por elas, mas somente pelo modo como faz com que elas se submetam à sua ação. É deste modo que os outros o julgam sob o aspecto ético, isto é, apreciando seu caráter. Só pode, aliás, ser desta forma. Pois um juízo ético seria simplesmente impossível se não houvesse como regular as paixões. A excelência ética (areté) — que traduzimos muito imperfeitamente por virtude — só pode ser determinada pelo modo de reagir às paixões, e mais precisamente como o homem pode temperá-las. Sempre que eu ajo de modo a revelar meu caráter, meu comportamento emotivo entra em jogo, pois os outros não dispõem de outro critério para me julgar. Sem as paixões também não haveria uma escala de valores éticos. Sem as paixões, ou antes, sem a possibilidade que nós temos de dosá-las. Pois as paixões e as ações são movimentos, e, como tais, contínuas, isto é, grandezas que podem ser divididas sempre em partes menores e em graus menores, de tal forma que, quando ajo, me é sempre possível fixar a intensidade passional exata apropriada à situação […] o homem virtuoso não é aquele que renunciou às suas paixões (como seria possível?), nem o que conseguiu abrandá-las ao máximo. O homem virtuoso ou “bom” é o que aprimora a sua conduta de modo a medir da melhor maneira possível e em todas as circunstâncias o quanto de paixão seus atos comportam inevitavelmente.[8]

 

Ora, o que se quer dizer, em última análise, é que a alma não é um ser que subsista por si mesmo. Isto está dito no primeiro capítulo do Livro I do tratado Sobre a alma, quando Aristóteles responde de maneira negativa à própria pergunta: “A alma tem atributos próprios?”. Como a substância não é apenas alma, mas o composto de corpo e alma, o ser por inteiro — corpo e alma — é afetado pelas paixões (ira, medo, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, desejo, ciúmes e, em geral, tudo o que vem acompanhado de prazer e dor). É por isso que Aristóteles afirma na Ética a Nicômaco que as paixões são a matéria da virtude, isto é, o uso mesurado das paixões torna o homem virtuoso. É por isso também que ele diz que a ética não é ciência, e, portanto, não pode ser ensinada: não pode haver um sistema moral. É o que ele afirma no Livro II da Ética:

Se as virtudes estão relacionadas com as ações e as paixões, e o prazer e a dor acompanham toda paixão, por esta razão a virtude estará relacionada com os prazeres e as dores […] todo modo de ser da alma tem uma natureza que está implicada e ligada às coisas pelas quais se faz naturalmente pior ou melhor; e os homens tornam-se maus por causa dos prazeres e dores, por procurá-los ou evitá-los […] é por isso que alguns definem também a virtude como um estado de impossibilidade e serenidade; mas não a definem bem, porque se fala de um modo absoluto.[9]

Resta, portanto, o problema do conhecimento. Ou melhor, sem um sistema moral, um “modo absoluto”, como pensar em um aprimoramento ético, uma vez que as paixões podem ser obstáculo ao conhecimento intelectual? Não se diz, comumente, que as paixões cegam? Mais precisamente: o apaixonado agita-se em torno apenas de um pensamento — amor, ódio, ciúme etc. — e obscurece todos os outros objetos que se oferecem aos seus sentidos; não é comum também dizer que a paixão opõe-se à razão e, portanto, torna-se ignorância de si, porque não se vê como paixão, e ignorância de nós mesmos? Distração para o espírito, ela põe o homem fora do estado de sonhar com outro bem. Perde-se a faculdade de julgar. Mas, é preciso reconhecer, as paixões seduzem e, por seduzirem, imprimem na alma uma incerteza e a necessidade de uma escolha que Léon Brunschvicg aponta como decisiva, talvez sem volta, para nosso destino moral: entregar-se por inteiro às paixões vulgares e

arriscar-se a perder a felicidade suprema que pode estar em outro lugar, ou deixar escapar essas vantagens, talvez as únicas que o homem possa ter, para consagrar a vida à busca de um bem do qual não se pode afirmar com certeza não apenas que ele pode ser alcançado, mas até mesmo que ele exista.[10]

Levada às últimas consequências, uma paixão acaba por “esquecer” a própria origem: dessa maneira, uma cólera ou um ódio “embriagam-se” a si mesmos com o som da própria voz ou com o espetáculo de uma mímica dos quais eles são, apesar de tudo, a causa: exaltam-se ao se escutarem falar ou se verem fazer e, finalmente, não se sabe mais, nessa emulação infernal de causa e efeito, se a cólera se irrita porque gesticula ou gesticula porque se irrita; os dois juntos, sem dúvida, são verdadeiros.

Como passar de uma relação da imanência — a virtude ligada às sensações do corpo e da alma — a uma relação de transcendência, relação intelectual? As indicações dessa passagem são dadas por Aristóteles em uma frase enigmática e, por isso mesmo, como afirma Pierre Aubenque, “ponto de partida de uma longa tradição de exegese”: “O que existe em potência só passa ao ato pela ação de algo que já é ato”. É o que, em outras palavras, diz Epicuro: nada se aprende nem se compreende a partir do nada. É o que afirma também a teoria bergsoniana da intelecção, para a qual “compreender” pressupõe um mínimo de saber, uma “gnose infinitesimal”. Jankélévitch, no seu livro clássico As virtudes e o amor, sintetiza de forma precisa o problema da passagem:

De fato, o círculo “vicioso” era um círculo virtuoso, circulus sanus. Este círculo de nenhuma maneira exclui o progresso. Como tornar-se o que se é, uma vez que já se             o era? É que, na realidade, era-se sem ser. O homem era e não era justo, sincero ou         fiel. Ele será, pois, intensamente, o que era um pouco, seria em ato o que era em           potência. É isso, Fieri ou vir-a-ser: não vir-a-ser qualquer coisa quando não se é           nada, mas ir de um Esse a um Esse, de um ser a outro ser, e do virtual ao consciente, mas sempre de totalidade em totalidade! Pela mesma razão, pode-se continuar a procurar aquilo que já foi encontrado, mas que tinha sido encontrado vagamente, que apenas se pressentia… Como o saber passa não da ignorância ao saber, da nescidade à ciência, do vazio ao cheio, mas da ciência confusa à ciência lúcida e precisa, assim a virtude, segundo Aristóteles, vai da ação à ação mediante as regras éticas: a virtude confirmada pelos atos vai a outros atos cada vez mais numerosos e assegurados.[11]

Essa concepção moral do “vazio-cheio”, carregada, portanto, de negatividade e positividade, traz nela toda a confusão do mundo: ela é a expressão da ruína; basta interrogar a experiência, consultar a memória da sociedade. Mas é também expressão de novos valores: de totalidade em totalidade, ela realiza o desejo do Fausto de Goethe: “no teu nada, espero encontrar o Todo”. Essa moral dos seres que vão do virtual (no duplo sentido do termo) ao consciente é a crítica mais radical que se pode fazer à versão da moral teológica: o cristianismo, por exemplo, observa Montaigne,

apresenta o homem nu e vazio, reconhecendo sua fragilidade natural, pronto para receber do alto alguma força estranha, desprovido de toda humana ciência, e cada vez mais apto a louvar em si a ciência divina, anulando seu julgamento para dar mais lugar à fé […] É um mapa em branco preparado para assumir, segundo a mão de Deus, formas que agradem a Ele.[12]

Esse vazio é, pois, a fonte de ilusões, quimeras e superstições, momento preliminar no qual se abre espaço para a imaginação. Mais ainda, esse vazio é ocupado por dois absolutos: um, divino, na versão religiosa, outro, terreno, na versão da lei e da ordem. Ora, uma moral pensada e constituída a partir da ideia do “vazio-vazio”, isto é, uma moral que abole a experiência, a história presente e a antecipação, e que leva em conta apenas uma consciência formada de nadas cotidianos, de mil lacunas e intervalos desconhecíveis e desconhecidos, é o ponto de partida para o artifício e as aparências. Essa moral constrói, pois, um outro mundo, artifício do pensamento dominante. Dá-se à ideia de realidade uma virtude muito própria e peculiar, ligada às concepções daqueles que criam essa realidade. Como diz Valéry, aquele que faz da ideia de realidade um ídolo, comunica-lhe sua própria excitação. Assim, somos convidados a assistir ao espetáculo do mundo e a participar dele sem o desejarmos: temos, portanto, pouca coisa ou quase nada de real no que vemos, em particular em um mundo dominado por imagens e espetáculos incoerentes dos novos meios de comunicação — qualquer coisa é mostrada ou dita, aparece e desaparece por força de uma vontade estranha a nós. Se lidamos apenas com a noção de realidade dada, ficamos diante de um problema insolúvel, uma vez que

os dados jamais serão inteiramente dados e pode-se sempre dizer que há dados ocultos… A tarefa da inteligência é tornar relativo aquilo que o sentido e o corpo apresentam como absoluto. Ela deve, pois, descobrir ou imaginar as operações (mudanças de pontos de vista etc.) que tornam as coisas/fenômenos partes de alguma relação — que deve anular-se.[13]

A realidade é, portanto, aquilo que é dado pela nossa ação, ou o que é pressentido como estando em nossa potência realizar: pensado dessa maneira, visto dessa maneira pelo olho humano, o mundo da aparência, das utopias, das fantasias, que se contrapõem ao “real dado”, é o próprio mundo real.

Mas a moral moderna fascina exatamente pelo artifício, pela aparência, e pelas respostas que ela promete. No livro clássico Montaigne en mouvement, Jean Starobinski adverte que a denúncia das aparências não passa de um lugar-comum da mais antiga retórica moral. Mas é impossível fugir dela: por que Montaigne fala em “malefício do parecer”? Por que, para Rousseau, aparência e mal são quase sinônimos?:[14] “O mundo inteiro encena a comédia, o mundo inteiro é um teatro”; “A aparência nos engana”, escreve Montaigne. Ora, o que Valéry expõe nos Cahiers, o que Nietzsche deixa nos textos póstumos, e Starobinski analisa em Rousseau e Montaigne, é o que se pode chamar de dialética da máscara ou da aparência. Há uma contradição efetiva no interior da própria aparência (o contrário da aparência não é o real): o não da negação volta-se contra si mesmo, e funda a contradição fundando a própria superação. “Contradição operante”, diz Merleau-Ponty,[15] negação que não se esgota ou se limita a excluir o positivo, mas que “o reconstrói além das suas limitações”: é o que Valéry atesta ao dizer que uma obra do espírito é importante quando sua existência determina, chama, suprime outras obras já feitas ou não. O comentário de Bento Prado à questão da aparência no livro de Starobinski sobre Rousseau é preciso:

[…] o tema trivial da diferença entre a essência e a aparência é alimentado em Rousseau por uma experiência viva que jamais se apagaria (a descoberta do mundo infernal da invisibilidade e da culpabilidade da acusação, no episódio infantil do pente quebrado… descoberta infantil da injustiça e da violência, ou a trágica descoberta da impotência persuasiva da consciência inocente). E o esquema dessa experiência servirá de modelo à reflexão teórica: esse véu que se infiltra entre as almas (e que impede, também, o acesso à Natureza, que começa a aparecer “deserta e sombria […] coberta de um véu que lhe escondia as belezas”), é esse mesmo véu que será invocado no nível da teoria, para dar conta da passagem da boa natureza à essencial perversidade da vida social… Para quem foi acusado injustamente, não resta outro recurso senão o de esconder-se. Se só as aparências têm peso, é preciso criar a aparência necessária, fugindo ao campo da presença imediata.[16]

Na relação com a aparência, não há apenas o engodo, a máscara, o vazio ou a ausência que a realidade vai revelar posteriormente. O que há é uma resposta à interrogação da própria aparência, e, portanto, sempre um começo, e sempre uma experiência do pensamento. Como experiência, a dialética não pertence, pois, à ordem fixa e sólida dos conceitos. Lemos nos textos póstumos de Nietzsche: “Sou o mais dissimulado de todos os dissimulados”; “Tudo o que é profundo gosta da máscara”. Esse postulado, observa Eugen Fink, revela que a verdadeira realidade para Nietzsche é o vir-a-ser e não o ser.

Teatro do mundo para Montaigne, dissimulação e máscara em Nietzsche, experiência do mundo em Merleau-Ponty, artifício, admiração, encenação, ilusões e fantasias para os contemporâneos, esses são os fundamentos da ética da aparência que não cessa de desafiar o humano. Do ponto de vista negativo, do ponto de vista do poder, os homens manipulam e representam os valores, “descobrem posições axiológicas e orientam os outros homens, as massas, a título de legisladores — legisladores não por meio de alguns Mandamentos ou de algo no gênero, mas despertando atitudes afetivas em relação à vida, orientações axiológicas. Tratam os homens como joguetes”.[17] Mas o que é surpreendente para Fink, no seu comentário à ética da aparência em Nietzsche, é que esses senhores têm certa inocência do vir-a-ser, precisamente na medida em que representam: “eles não são tiranos, nem Napoleões ou Hitlers etc., mas representam com aquilo que os homens têm na mais alta estima: as religiões, as morais, a arte, com todas as dimensões tradicionais da civilização”.[18] E o que caracteriza o civilizado, como observa Alain, é a aceitação de certa ordem de potências e deveres que faz nascer em cada um costumes, opiniões, julgamentos.

Mas vemos também a contrapartida da ética da aparência: os homens não são apenas joguetes, escolhem por razões, têm a capacidade de agir intencionalmente, especulam sobre o mundo e sobre o conhecimento, mudam o curso das coisas, em síntese, têm a capacidade de iniciativa,[19] o que torna muitas vezes impossível o comércio com os inventores de morais. Nas aparências não há apenas ruínas; há também a recusa de se inclinar diante da potência, e isso é o próprio domínio da liberdade; cindir os valores em dois, permitir que nasçam e renasçam os pensamentos e os valores: é o retorno refletido às aparências e aos artifícios. É isso o real: agir para que as aparências realizem aquilo que prometem. Não quer dizer que se aceitem as aparências tais como elas se apresentam: em dois ensaios fundamentais, Exil, satire, tyrannie e Montaigne en mouvement, Starobinski demonstra que o retorno às aparências não é, de nenhuma maneira, o resultado de uma atitude convencional nem “quietista” em relação ao poder — Montaigne, como o Montesquieu de Starobinski, dá às aparências um sentido inteiramente diferente:

recomendando o uso das máscaras em circulação, Montaigne entende antes de tudo preservar o espaço individual de cada um, e, portanto, sua liberdade. Dessa maneira, a máscara não é senão a garantia que se dá ao social, atrás da qual pode exercer-se a inteira liberdade individual: em síntese, o respeito das aparências políticas institui uma nova divisão entre o domínio social e o domínio privado, a fim de preservar este último de todas as intromissões dos poderes.[20]

É o “remédio no mal”, como reafirma Starobinski em título de um dos mais oportunos livros, dedicado, entre outros temas, à moral moderna. Abolir a ilusão não consiste em optar por uma “realidade” já dada, mas em tornar-se de fato e pela ação aquilo que se simulava ser. Se reconhecemos que a aparência é o outro lado de uma realidade e não o seu contrário, e se nos tornamos aquilo que, de início, apenas representávamos, abrimos caminho para a autenticidade: a moral deixa de ser apenas objeto de teoria, como criticou Aristóteles, ou um simples projeto. O artifício da aparência provoca a entrada em cena “do natural que nem mesmo se esperava ver surgir”.[21] A aparência, levada ao extremo, tende, pois, à contradição: torna-se natural para aqueles que praticam a autenticidade e a consciência.

Assim, o imaginário toma corpo, isto é, passa a ter a “aparência necessária”: a dissimulação readquire o sentido original de, literalmente, simulação que se perde, para se reencontrar em novos signos, desta vez desejados.

[1] Valéry, Paul, “Varieté”, em Oeuvres I, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, p. 1238.

[2] Brochard, Victor, “La morale de Platon”, em Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Bibliothèque d’histoire de la philosophie, Vrin, 1974.

[3] Brochard, Victor, “La morale ancienne et la morale moderne”, em Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Bibliothèque d’histoire de la philosophie, Vrin, 1974.

[4] Idem, ibid., vol. I, p. 492.

[5] Idem, ibid., vol. ii, p. 493.

[6] Aubenque, Pierre, “Aristote et le Lycée”, em Histoire de la philosophie I, Encyclopédie de la Pléiade, p. 674.

[7] Idem, ibid., p. 674.

[8] Lebrun, Gérard, “O conceito de paixão”, em Os sentidos da paixão, Companhia das Letras, pp. 19, 20.

[9] Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro II, Editorial Gredos.

[10] Brunschvicg, Léon, Spinoza, Félix Alcan, 1894.

[11] Jankélévitch, Vladimir, Les vertus et l’amour, Flamarion, pp. 52-3.

[12] Citado em J. Starobinski, “Vide et création”, Magazine littéraire, setembro de 1990, p. 42.

[13] Valéry, Paul, Cahiers II.

[14] Starobinski, Jean, La transparence et l’obstacle, Gallimard.

[15] Merleau-Ponty, Résumés de cours (Collège de France, 1952/1960), Gallimard.

[16] Bento Prado Jr., “Starobinski penetra no silêncio de Rousseau”, Folha de S.Paulo, 11/1/1992, caderno “Letras”, p. 3.

[17] Fink, Eugen, “Nouvelle expérience du monde chez Nietzsche”, em Nietzsche aujourd’hui?, 10/18.

[18] Idem, ibid., p. 369.

[19]  Ricoeur, Paul, “Étique et morale”, em Lectures 1, Autour du politique, Seuil, p. 257.

[20] Bollon, Patrice, “Une éthique de l’apparence”, Magazine littéraire, septembre 1990, p. 57.

[21] Valéry, Paul, Cahiers II.