Civilização e barbárie
Resumo
Nietzsche, nas considerações contidas em cinco prefácios de livros que afinal não vieram a lume, considera que a filosofia clássica procurou negar no homem seu passado e presente animais. Em meio às conquistas civilizacionais, argumenta o pensador que não existe uma separação entre as propriedades “naturais” e aquelas “humanas”. É esse o Homo sapiens que concebeu o Estado, a justiça, as ideologias e as crenças. Trata-se de um processo de aquisição propriamente cruel, esmagador, não há escolha, pois, conforme considera Nietzsche, “Com todo crescimento do homem em grandeza e elevação, cresce ele também no profundo e no terrível: não se deve querer uma dessas coisas sem a outra […]”. Na obra Em defesa da sociedade, Foucault pergunta: “Quem enxergou a guerra como filigrana da paz, quem procurou no barulho da confusão da guerra, quem procurou na lama das batalhas o princípio de inteligibilidade da ordem, do Estado, de suas instituições e de sua história?” Não se trata absolutamente de justificar a violência, ao contrário, advoga-se contra ela por meio do abandono de uma perspectiva ingênua de que as conquistas no terreno do direito possam advir de uma simples e equânime aplicação da justiça para todos. Remontando à Antiguidade, Tucídides, por quem Nietzsche nutria especial consideração, já aludia à relação intrínseca entre direito, dever e poder. Nessa tríade, os elementos precisam estar em equilíbrio como condição para que haja justiça e civilidade em certo grau. Assim, de acordo com essa visão, direitos e deveres originam-se de pactos de que participam a força das partes envolvidas. De onde a crítica que Nietzsche faz à moderna doutrina da igualdade de direitos, não porque seus fins não sejam desejáveis, mas por causa dos obstáculos que se interpõem à sua aplicação. A história humana demonstrou e continua a provar que, embora existam esforços em contrário, o direito ainda é um privilégio. Tendo Nietzsche compreendido que a relação entre direito e dever é mediada pelo conceito de poder, é preciso, paradoxalmente, prever a desigualdade nesse sistema, desigualdade esta pensada como uma das condições de existência do direito. É preciso considerar as “anormalidades” e “desvios” que fazem parte dos esquemas de dominação. Tais esquemas não podem ser escamoteados como se não existissem e como se não fizessem presentes nas relações sociais. As condições estão dadas para que se atinja, de fato, um maior equilíbrio na aplicação da justiça no Estado de direito.
Num de seus cinco prefácios para cinco livros não escritos, Nietzsche observa, a propósito de nosso tema:
Quando se fala em humanidade [Humanität], no fundo disso subjaz a representação de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas tal separação não existe na realidade [Wirklichkeit]: as propriedades ditas “naturais” e aquelas chamadas propriamente de “humanas” cresceram inseparavelmente entretecidas. Em suas forças mais elevadas e nobres, o homem é inteiramente natureza e carrega em si o inquietante duplo caráter desta. Suas temíveis [furchtbar] capacidades, tidas como não humanas, são talvez até mesmo o solo fecundo [fruchtbar] a partir do qual pode crescer toda humanidade, em impulsos, feitos e obras[1].
Essa linha de força, já presente em seus primeiros escritos, acompanha e determina todo o desenvolvimento de seu pensamento, em diferentes variantes e formulações. Humanitas é o selo da falsificação com o qual a filosofia clássica procurou justamente negar, no homem, seu passado e presente animais. Em oposição à humanitas, Nietzsche tenta um resgate do humano como menschlich, daí o título de sua obra: Humano, demasiado humano, no qual ele refuta a edulcorada versão de uma boa, digna e piedosa natureza humana, isenta de toda rudeza, desmesura, crueldade.
A refutação desse romantismo, encontramo-la por toda parte em Nietzsche:
Tomar a seu serviço, a modo de tentativa, um por um e passo a passo, tudo aquilo que é terrível – assim quer a tarefa da cultura. Mas até que seja forte o suficiente para isso, ela tem que combater, moderar, velar, em certas circunstâncias, maldizer e destruir. Por toda parte onde uma cultura coloca seu mal, ela expressa com isso uma relação de temor: sua fraqueza se denuncia. Em si, todo bem é um mal de outrora tomado em serviço […]. O domínio sobre as paixões, não seu enfraquecimento ou extirpação! Quanto maior é a força dominadora de nossa vontade, tanto mais liberdade pode ser dada às paixões. O grande homem é grande pelo espaço de liberdade de suas paixões: mas ele é suficientemente forte para fazer desses monstros seus animais domésticos […][2].
A essa ideia Nietzsche relaciona a tarefa maior de uma educação (Erziehung) não castradora, que conduz à saúde tanto do indivíduo quanto da cultura. Uma possível antropotécnica nietzschiana não poderia se esgotar num código de operações biopolíticas; ela se inscreveria antes como proposta crítico-disruptiva de renaturalização (Vernatürlichung) do homem – transvaloração dos valores no nível da economia dos impulsos. O mesmo pensamento encontra-se na base das reflexões de Nietzsche sobre a gênese do processo civilizatório:
No tocante à crueldade, é preciso reconsiderar e abrir os olhos; é preciso finalmente aprender a impaciência, para que deixem de circular, virtuosa e insolentemente, erros gordos e imodestos como, por exemplo, aqueles nutridos por filósofos antigos e novos a respeito da tragédia. Quase tudo o que chamamos “cultura superior” é baseado na espiritualização e no aprofundamento da crueldade – eis a minha tese; “esse animal selvagem” não foi abatido absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas – se divinizou[3].
Todo o processo de hominização tem por fonte e pressuposto a transfiguração da força telúrica das pulsões em sublimes florações culturais, como a arte, a ciência, a religião, a moralidade, a política. A própria filosofia, a forma mais espiritual da vontade de poder (para Nietzsche, filosofia é, propriamente, a arte da transfiguração), tem de ser uma reconstituição da pré-história desses processos de sublimação do animal homem em zoon politikon, ou seja, da divinização da violência. É nesse mesmo horizonte, então, que Nietzsche considera também a gênese do Estado.
O mais antigo “Estado” apareceu como uma terrível tirania, uma máquina esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma. Utilizei a palavra “Estado”: está claro a que me refiro – algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com forças para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Desse modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”[4].
Ao contrário do que pensam muitos de seus comentadores, Nietzsche não faz a apologia da força bruta, senão aponta na direção de sua inevitabilidade e da necessidade da sublimação de sua potência – aliás, esse é, inevitavelmente, segundo ele, o caminho da civilização. Sublimação é uma ideia cardinal na filosofia de Nietzsche, cujo desenvolvimento pode ser apreendido no conceito de autossupressão (Selbstauf hebung). De acordo com esse conceito, justiça, direito e Estado não são senão o resultado de uma longa e penosa espiritualização da potência – uma conquista humana possível, cuja consequência extrema seria, paradoxalmente, a abolição da perspectiva da culpa e da necessidade de punição.
Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes seus ofensores: “Que me importam meus parasitas?”, diria ela. “Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso!” […]. A justiça, que iniciou com “tudo é resgatável, tudo tem que ser pago”, termina por fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes[5].
Apesar da barbárie de sua pré-história, a genealogia do sentimento de justiça pode apontar, como resultado tardio, para a gestação de uma boa vontade, de um espírito muito bom, como predicados e virtudes do homem justo. São essas virtudes que animam a reconstituição de mais um percurso de autossuperação, que se desdobra a partir dessas virtudes, e que culminam na superação da justiça pela graça. Penso que essa figura corresponde à dissolução e à superação do vínculo mítico ancestral entre direito, justiça e violência, a partir de uma intensificação do sentimento de poder, que o altera substancialmente, transfigurando-o por sublimação. Antes, porém, é necessário reconhecer que o homem é tanto o animal quanto o além do animal, de modo que as duas coisas se interpenetram e exigem-se mutuamente: “Com todo crescimento do homem em grandeza e elevação, cresce ele também no profundo e no terrível: não se deve querer uma dessas coisas sem a outra – ou, o que é muito mais, quanto mais fundamentalmente se quer uma delas, tanto mais fundamentalmente se alcança justamente a outra”[6].
Como observou com toda a propriedade Michel Foucault, nos subterrâneos da ordem instituída permanece um combate ininterrupto a perturbar surdamente a paz, pois no fundo, na essência, nos mecanismos básicos de todo ordenamento social, jurídico e político, encontra-se sempre a ordem das batalhas, as relações de força e dominação: “Quem enxergou a guerra como filigrana da paz, quem procurou no barulho da confusão da guerra, quem procurou na lama das batalhas o princípio de inteligibi-e de sua história?”[7]. Um daqueles que o fez foi, com toda certeza, Friedrich Nietzsche.
Por causa disso, em tempos de extensão global do parlamentar-capitalismo, quando a força do império institui-se como única potência dominante, convém revisitar os arquivos da filosofia de Nietzsche, inclusive, e talvez hoje, sobretudo, em termos de sua inédita contribuição para uma visão alargada do direito internacional público. “Assim nascem os direitos: graus de poder reconhecidos e assegurados. Se as relações de poder mudam substancialmente, direitos desaparecem e surgem outros – é o que mostra o direito dos povos em seu constante desaparecer e surgir.[8]”
Nietzsche reconheceu sem reservas que as relações de direito não são apenas expressões ideológicas de uma falsa consciência, mas a transcrição institucional de relações de força e poder, de domínio e sujeição, recolocando em novos termos a equação entre direito e força. Nesse particular, as noções de cálculo e equilíbrio desempenham um papel fundamental na instituição e no reconhecimento de direitos e obrigações, e a noção de justiça como equilíbrio adquire o status de princípio filosófico:
Equilíbrio é, pois, um conceito muito importante para a mais antiga doutrina do direito e da moral; equilíbrio é a base da justiça. Quando esta diz, em tempos mais rudes, “olho por olho, dente por dente”, ela pressupõe assim o equilíbrio alcançado e quer mantê-lo em virtude dessa retribuição: de maneira que, quando agora um atenta contra o outro, este não tira mais a vingança do cego amargor. Porém, em virtude do jus talionis, a perturbada relação de poder é restabelecida: pois um olho, um braço a mais em tais circunstâncias primevas é uma parte de poder, de peso a mais[9].
Ponderação de valores, estimativas de pesos, mensuração, fixação de equivalências e retribuições – todo um regime de quantificação e compensação com vistas a manter ou restabelecer o equilíbrio entre os dois pratos da balança da justiça.
Nossos deveres – são direitos de outros sobre nós. De que modo eles os adquiriram? Considerando-nos capazes de fazer contrato e de dar retribuição, tomando-nos por iguais e similares a eles, e assim nos confiando algo, nos educando, repreendendo, apoiando. Nós cumprimos nosso dever – isto é: justificamos a ideia de nosso poder que nos valeu tudo o que nos foi dado, devolvemos na medida em que nos concederam[10].
A relação entre direito e dever é, assim, mediada pelo conceito de poder, pois a necessária reciprocidade entre direitos e deveres só pode se referir ao que se encontra respectivamente em poder de cada um dos partícipes da relação. O mais interessante e realista nessa análise é que a equivalência entre poder e direito, poder e dever não se funda em qualquer elemento natural ou objetivo, mas em crença, representação, reconhecimento, naquilo que se acredita estar em poder de alguém:
Os direitos dos outros podem se referir apenas ao que está em nosso poder. Colocado de modo mais preciso: apenas ao que eles acreditam estar em nosso poder, pressupondo que acreditamos que seja o mesmo que esteja em nosso poder. O mesmo erro bem poderia se achar em ambos os lados: o sentimento do dever depende de partilharmos, nós e os outros, a mesma crença quanto à extensão de nosso poder[11].
Naturalmente, essa crença se desdobra no reconhecimento do respectivo grau de poder dos implicados na relação, em sua capacidade de mútua retribuição. Por sua vez, isso torna possível a conclusão de um contrato, com o devido cálculo de benefícios a auferir e prejuízos a evitar.
Esse pacto institui um equilíbrio e
uma espécie de paridade, com base na qual pode-se [sic] estabelecer direitos. O direito vai originalmente até onde um parece ao outro valioso, essencial, indispensável, invencível e assim por diante. Nisso o mais fraco também tem direitos, mas menores. Daí o famoso unusquisque tantum juris habet, quantum potentia vale (cada um tem tanta justiça quanto vale seu poder) (ou, mais precisamente, quantum potentia valere creditur) (quanto acredita valer seu poder)[12].
Assim, direitos e deveres se originam dos pactos, de tal maneira que, onde não existem os últimos, também inexistem os primeiros. Por outro lado, onde direitos e deveres são mantidos e predominam, isso ocorre com base no reconhecimento da manutenção dos graus de poder em que se funda a relação, rechaçando-se a hipótese de seu incremento ou diminuição. “Assim nascem os direitos: graus de poder reconhecidos e assegurados. Se as relações de poder mudam substancialmente, direitos desaparecem e surgem outros – é o que mostra o direito dos povos em seu constante desaparecer e surgir.[13]”
Por essa razão, escreve Nietzsche, o homem justo requer, permanentemente, “a fina sensibilidade de uma balança: para os graus de poder e direito que, dada a natureza transitória das coisas humanas, sempre ficarão em equilíbrio apenas por um instante, geralmente subindo ou descendo: – portanto, ser justo é difícil e exige muita prática e boa vontade, e muito espírito bom”[14].
Tendo em vista as linhas gerais dessa filosofia do direito, compreende-se melhor a acerba crítica nietzschiana da moderna doutrina da igualdade de direitos. Se a própria noção de direito implica a pretensão a prerrogativas especiais de ação no espaço social, pretensão fundada no reconhecimento diferencial de graus de poder consolidados e mantidos, então, do ponto de vista de Nietzsche, a desigualdade tem que ser pensada como uma das condições para que haja direitos, na medida em que não se poderia pressupor razoavelmente a condição ideal de uma sociedade em universal e constante paridade de forças, se o mundo é constituído por relações de poder e dominação. É nesse contexto que adquire sentido a tese de Nietzsche de acordo com a qual “a desigualdade de direitos é a condição para que haja direitos. – Um direito é um privilégio. Cada um tem, em sua espécie de ser, também seu privilégio”[15]. Tese essa que decorre diretamente daquela já sustentada em Aurora, de que a condição para que se possa conferir direitos é que se tenha poder[16].
A esse respeito, Nietzsche tem em elevada consideração o que denomina realismo de Tucídides em coisas de direito e política, que contrasta ao extremo com o que ele considera o mendaz idealismo de Platão. Uma ilustração cabal desse realismo pode ser encontrada na História da guerra do Peloponeso, no célebre diálogo entre os embaixadores atenienses e os medos:
89 – Atenienses: Pois bem; não faremos uma exposição extensa e pouco convincente, recorrendo a uma fraseologia decorativa, tal como a de que é justo que tenhamos um império, por ter destruído o império medo; ou que vos atacamos agora por termos sido vítimas de vossos agravos. Aspiramos também a que não creiais convencer-nos alegando que não lutastes do nosso lado por ser colônia dos lacedemônios; ou que não nos tendes feito agravo nenhum; nós aspiramos a que se negocie o que seja possível, tendo por base aquilo que realmente pensamos cada um de nós: porque vós conheceis, e nós sabemos, que, de acordo com o modo de pensar dos homens, a justiça é concedida quando os condicionamentos são iguais, enquanto que o possível o realizam os fortes e os débeis o consentem[17].
Por isso, se nosso poder se debilita, extinguem-se nossos direitos e, se nos tornamos superpoderosos, os outros deixam de ter direito sobre nós, tal como reconhecíamos nós mesmos a eles tais direitos. Desse modo, a esfera normativa do direito não suprime o conflito efetivo ou latente nem a violência real ou virtual presente nas relações de dominação. Pelo contrário, ela as pressupõe, estabelece seus limites, como seu plano de regramento.
A existência de direitos depende, pois, do equilíbrio reconhecido entre múltiplas e variadas formas de correlação de forças. Ele não se efetiva na e pela representação de uma validade objetiva da lei ou da natureza cogente das disposições normativas, menos ainda por um pretenso consenso isento de coação – pactos são rituais que põem fim temporariamente a um conflito que permanece latente. Com base nisso, pode-se afirmar que, para Nietzsche, justiça é uma virtude que se funda numa perspectiva acurada para a detecção de graus de poder, assim como num senso cultivado para medir equivalências. Pois é justamente no equilíbrio de forças que se encontra, para ele, o pressuposto da justiça.
Com base no que foi desenvolvido até agora, penso poder afirmar que a principal estratégia de Nietzsche consiste em realizar um diagnóstico do presente por meio de um distanciamento crítico, de um afastamento reflexivo que viabiliza uma posição de extemporaneidade e autorreflexão. Paradoxalmente, ela permite aproximar Nietzsche, de maneira surpreendentemente fecunda, do importante debate atual sobre temas de filosofia política e de filosofia do direito, como aquele do estatuto e função dos direitos e garantias fundamentais do homem e do cidadão. Pois também a compreensão atual dos direitos humanos como medula ética do direito e ideia reguladora da política, bem como dispositivo histórico de consolidação do Estado democrático de direito, deve ser submetida ao escrutínio da crítica genealógica, que sempre se coloca na pista da gênese dos valores e do valor da gênese, de modo a detectar a pudenda origo, as inconfessáveis pretensões de domínio, cujas camuflagens ideológicas são colocadas a nu por uma verdadeira análise histórica das proveniências. Como bem reconheceu Michel Foucault, na esteira de Nietzsche:
O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Logo, a questão, para mim, é curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania e fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição[18].
Podemos extrair dessas considerações um desdobramento metodológico interessante, de enorme utilidade. Com análises dessa natureza, centradas nas relações de domínio e sujeição, podemos perceber com clareza que nenhuma relação de poder pode estabelecer-se e consolidar-se sem o desenvolvimento complementar da produção de discursos de verdade, isto é, sem instâncias simbólicas de legitimação. Por causa disso, em vez de insistir no problema das relações entre legitimidade e legalidade, de identificar direito, poder e Estado, mais produtivo seria investigar a cumplicidade sempre latente entre regimes de verdade e relações de domínio.
O que significa que o discurso sobre o direito deve ser examinado no contexto mais amplo dos dispositivos e operadores de dominação, isto é, daquelas instâncias sociais de produção das anormalidades e desvios, vinculando-se à história dos aparelhos sociopolíticos de produção sistemática de exclusões. Sobretudo em sociedades como as nossas, em que a produção da exclusão faz parte do funcionamento normal do subsistema econômico. Portanto, Nietzsche nos convida a pensar que o paradigma contratual do direito e da política – tal como podemos encontrá-lo em diferentes formulações, de Grotius a Rousseau e Locke, mas sobretudo em Hobbes – pode ser produtivamente substituído por uma genealogia crítica das categorias cardinais do direito e da política modernos.
Em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado, para o âmbito das ideologias que o acompanham, creio que se deve orientar a análise do poder para o âmbito da dominação (e não da soberania), para o âmbito dos operadores materiais, para o âmbito das formas de sujeição, para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais de assujeitamento e para o âmbito, enfim, dos dispositivos de saber[19].
Na origem do direito está, para Nietzsche, a barbárie. Transfigurá-la em formações que estabilizem o humano, transitar da animalidade à humanidade é a tarefa de autoconstituição do humano na história, o que o filósofo denominou processo de internalização e espiritualização da crueldade. Nesse horizonte, o direito integra uma constelação cultural arcaica, na qual a sacralidade é mobilizada para tornar possível conter e dar forma social à violência. Nessas coordenadas, o elemento jurídico, assim como as formas rituais, cultuais, sobretudo sacrificiais, faz parte do conjunto dos media inventados para manter sob controle a violência ínsita ao animal homem.
Como direito divino, ele é também o meio de assegurar a separação (violenta) entre as esferas do religioso e do profano:
Em numerosos rituais, o sacrifício apresenta-se de duas maneiras opostas: ou como “algo muito sagrado”, do qual não seria possível abster-se sem negligência grave, ou, ao contrário, como uma espécie de crime, impossível de ser cometido sem expor-se a riscos igualmente graves. É criminoso matar a vítima, pois ela é sagrada […]. Mas a vítima não seria sagrada se não fosse morta. Existe aqui um círculo que receberá um pouco mais tarde, conservando-o até hoje, o sonoro nome de ambivalência[20].
Emancipado de seu enquadramento religioso, o direito torna-se meio violento para a realização da justiça, para o estabelecimento da paz, para delimitar e promover a organização institucional da sociedade política, pela via da constituição ( jurídica).
No final das contas, o sistema judiciário e o sacrifício têm a mesma função, mas o sistema judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à libertação. É sob este aspecto que ele se mostra aos primitivos que, neste ponto, têm sem dúvida um olhar bem mais objetivo que o nosso. Por mais imponente que seja, o aparelho que dissimula a identidade real entre a violência ilegal e a violência legal sempre acaba por perder seu verniz, por se fender e finalmente por desmoronar. A verdade subjacente aflora e a reciprocidade das represálias ressurge, não apenas de forma teórica, como uma verdade simplesmente intelectual que se mostraria aos eruditos, mas como uma realidade sinistra, um círculo vicioso do qual se pensava ter escapado, e que reafirma seu poder[21].
O sacrifício de seres humanos ou animais constitui o cimento da sociabilidade primitiva, assim como um poderoso fator determinante da evolução humana, que conserva os traços mais remotos de seu enraizamento biológico. Isso implica que, de certo modo, os primórdios da hominização se enraízam profundamente na violência sacrificial.
Os procedimentos que permitem aos homens moderar sua violência são todos análogos: nenhum deles é estranho à violência. Poder-se-ia pensar que todos eles se encontram enraizados no religioso. Já vimos que o religioso propriamente dito identifica-se com os diversos modos de prevenção: mesmo os procedimentos curativos estão impregnados de religioso, tanto em sua forma rudimentar, que quase sempre é acompanhada de ritos sacrificiais, quanto na forma judiciária. Num sentido amplo, o religioso coincide certamente com essa obscuridade que envolve em definitivo todos os recursos do homem contra sua própria violência, sejam eles preventivos ou curativos, com o obscurecimento que ganha o sistema judiciário quando este substitui o sacrifício. Esta obscuridade não é senão a transcendência efetiva da violência santa, legal, legítima, face à imanência da violência culpada e ilegal[22].
Portanto, se temos dificuldade em perceber a transcendência e a teologia subterrânea que vincula antropologicamente o princípio da vingança e o princípio da justiça, a verdade dos deuses e a verdade dos sistemas judiciários; se permanecemos ignorantes da violência fundadora que se transfigura religiosamente no sagrado e evolui para as formas mais desenvolvidas e racionais dos modernos sistemas de prestação da justiça, isso não ocorre porque nos situemos hoje longe disso, no exterior do religioso e das formas sacrificiais, mas por permanecermos no interior delas, “ao menos no que se refere ao essencial”[23].
Assim, nos sistemas judiciais permanece o resíduo ancestral da violência sagrada e persiste a necessidade da vítima expiatória, como possibilitação da paz e unidade social; se a ciência mais avançada ainda conserva a essência metafísica da persecução, ela também não pode prescindir da violência sacrificial, de modo que persiste aqui também o emprego da violência alegadamente para fins não violentos, ou mesmo de eliminação da violência: violência santa (ou santificada) contra violência a ser proscrita, expiada.
Tudo se passa, portanto, no reino animal do Homo sapiens, como se o problema fundamental ainda fosse aquele de como lidar com a própria ferocidade, com a violência ancestral que, tendo liquidado o plano em que se situavam as antigas divindades, pôs-se no encalço de outra indispensável vítima sacrificial. De modo que nossa principal tarefa, no plano do pensamento filosófico, talvez consista em cauterizar os atavismos inconscientes da violência sangrenta em todas as formas contemporâneas. Formas que são modalidades variadas de nostalgia do absoluto, cuja extrema variante talvez seja a sacralização ético-jurídica da vida, como valor universal. Em todas essas figuras, sobrevivem os ritos sacrificiais, permanecendo ativa, embora latente, a operatividade que entretece causalidade e culpa. Podemos dizer, com Girard, que
os debates grandiloquentes sobre a morte de Deus e do homem nada têm de radical; continuam sendo teológicos, e consequentemente, num sentido amplo, sacrificiais. Eles dissimulam a questão da vingança, desta vez complemente concreta, e em absoluto filosófica, pois, como já vimos, é a vingança interminável que ameaça retombar entre os homens após o assassinato da divindade[24].
Não havendo mais transcendência – religiosa, humanista ou qualquer outra – que defina uma violência legítima, a legitimidade e ilegitimidade da violência encontram-se definitivamente à mercê da opinião de cada um, condenadas a uma vertiginosa oscilação e ao desaparecimento.
Há a partir de então tantas violências legítimas quanto violentas, ou seja, elas deixam completamente de existir. Somente uma transcendência qualquer, que faça acreditar numa diferença entre o sacrifício e a vingança, ou entre o sistema judiciário e a vingança, pode enganar duravelmente a violência[25].
Retomo, em conclusão, meu ponto de partida:
Quando se fala em humanidade [Humanität], no fundo disso subjaz a representação de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas tal separação não existe na realidade [Wirklichkeit]: as propriedades ditas “naturais” e aquelas chamadas propriamente de “humanas” cresceram inseparavelmente entretecidas. Em suas forças mais elevadas e nobres, o homem é inteiramente natureza e carrega em si o inquietante duplo caráter desta. Suas temíveis [furchtbar] capacidades, tidas como não humanas, são talvez até mesmo o solo fecundo [fruchtbar] a partir do qual pode crescer toda humanidade, em impulsos, feitos e obras[26].
Com base nele, tentei esclarecer a relevância e a atualidade da filosofia de Nietzsche para o tratamento do problema com o qual nos defrontamos. A partir do cruzamento que promovi com as contribuições de Michel Foucault, de René Girard e de outros interlocutores explícitos ou implícitos, tentei lançar luz sobre a imensa produtividade das perspectivas paradoxais encontradas na crítica nietzschiana da cultura.
Trouxe à tona o aberto e probo reconhecimento, por Nietzsche, dos obscuros começos de todas as grandes coisas que existiram sobre a Terra, mas também de sua potência telúrica e abissal. Duas das principais dessas grandes coisas, talvez das mais belas e sublimes, sejam justamente a justiça e o direito. Mas, como em todas elas, “no começo era o ato, e o ato sangrento”. No entanto, se a justiça se iniciou com a exigência de que tudo tem seu equivalente, tudo deve ser pago, ela pode culminar numa forma sublime de autossupressão por realização integral, ao longo de um lento e penoso processo de transformação, de sublimação. Já na Lei das Doze Tábuas, cortar um pouco mais, um pouco menos do corpo do devedor, para quitação da obrigação contraída, era considerado um ato de magnanimidade do credor.
Justamente no capítulo intitulado “Dos sublimes” de Assim falou Zaratustra, Nietzsche pinta em cores suaves o resultado final da transfiguração da brutalidade e da violência em beleza e graça, do épico, heroico processo de construção das formas elementares da justiça na misericordiosa presença radiante da graça: “Quando o poder torna-se misericordioso (gnädig) e vem cá para baixo, para o visível, esse vir-cá-para baixo, eu o denomino beleza. Esse é o segredo da alma; só quando a abandonou o herói, é que se aproxima, como em sonhos, o além-do-herói”[27].
Notas
- Friedrich Nietzsche, “Fünf Vorreden für fünf ungeschrieben Bücher. Homers Wettkampf ” (Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Competição de Homero), em: Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Friedrich Nietzsche: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (Edição histórico-crítico-filológica dos escritos completos de Nietzsche, doravante KSA), vol. 1, Berlim/Nova York/Munique: de Gruyter/DTV, 1980, p. 783. Não havendo indicações em contrário, as traduções são de minha autoria. ↑
- Idem, “Nachgelassenes fragmen” (Fragmento póstumo), n. 16 [6 e 7], primavera-verão de 1888, op. cit., vol. 13, pp. 484-ss. ↑
- Idem, Além do bem e do mal, aforismo 229, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 121. ↑
- Idem, Genealogia da moral, Dissertação II, n. 17, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 74-ss. ↑
- . Ibidem, n. 10, p. 62. ↑
- Idem, “Nachgelassenes fragment” (Fragmento póstumo), n. 9 [154], outono de 1887, em: Giorgio Colli e Mazzino Montinari, KSA, op. cit., vol. 12, pp. 426-ss. ↑
- Michel Foucault, Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 54. ↑
- Friedrich Nietzsche, Aurora, aforismo 112, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 82-ss. ↑
- Idem, “Menschliches allzuMenschliches”, (Humano, demasiado humano II: o andarilho e sua sombra), aforismo 22, em: Giorgio Colli e Mazzino Montinari, KSA, op. cit., vol. 2, pp. 555-ss. ↑
- Idem, Aurora, op. cit., p. 82. ↑
- Ibidem. ↑
- Ibidem, aforismo 93, p. 71. ↑
- Ibidem, aforismo 112, p. 83. ↑
- Ibidem. ↑
- Idem, O anticristo, aforismo 57, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 72. ↑
- Idem, Aurora, aforismo 437, op. cit. pp. 228-ss. ↑
- Tucídides, História da guerra do Peloponeso, livro v, São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 84-116. ↑
- Michel Foucault, Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 32. ↑
- Ibidem, p. 37. ↑
- René Girard, A violência e o sagrado, São Paulo: Editora Unesp, 1990, p. 13. ↑
- Ibidem, p. 37. ↑
- Ibidem, pp. 37-ss. ↑
- Ibidem, p. 38. ↑
- Ibidem. ↑
- Ibidem. ↑
- Friedrich Nietzsche, “Fünf Vorreden für fünf ungeschrieben Bücher. Homers Wettkampf ”, em: KSA,
op. cit. p. 783. ↑
- Idem, “Dos Sublimes”, Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra), KSA, v. 4, p. 150s. Edição brasileira: Assim falou Zaratrusta, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ↑