1998

Contra Maquiavel

por Maria das Graças do Nascimento

Resumo

Seja na forma do discurso grave e sistemático, como no seu Manual do soldado cristão, seja usando as armas da ironia e da sátira, como no conhecido Elogio da loucura, Erasmo de Rotterdam (1466-1536) apreende as forças que estão em jogo em seu tempo: a redescoberta do humanismo clássico, a reação contra os abusos da Igreja católica, as guerras entre as nações. Cosmopolita e pacifista, Erasmo aponta o caminho funesto do nacionalismo e da guerra, critica as instituições eclesiásticas, mas defende a união da cristandade contra o cisma protestante de Lutero e acredita que a herança clássica deve ser posta a serviço da filosofia cristã. Seu apelo maior é em favor da tolerância e da indulgência, e nisso se antecipa ao Iluminismo e a Voltaire. O devir da humanidade é concebido por ele a partir da metáfora dos “círculos concêntricos”, a perfeição aumentando à medida que se aproxima do centro que é o Cristo. Essa metáfora dos círculos recusa uma distinção radical, como a apregoada por Maquiavel, entre o domínio religioso ou moral e o domínio civil ou político. E a exigência moral na definição do bom governo implica não só uma crítica à tirania, mas à escolha mesma da águia, ave de rapina, como símbolo da monarquia. Para Erasmo, nem a ignorância nem o belicismo são virtudes. A força do príncipe não está no poder que detém e a virtude cívica não pode obscurecer a universalidade da natureza humana. É só por meio de uma revolução espiritual que o ser humano pode superar os males da sociedade.


Não é sem razão que Erasmo costuma ser comparado a Voltaire, quando se trata da influência que ambos exerceram em sua época. Referindo-se à “sua absoluta supremacia” como escritor, Pierre Mesnard afirma que “a história nos lança como um desafio a influência mais considerável que um homem de letras alguma vez tenha exercido sobre a Europa”, diante da qual a de Voltaire aparece apenas como um reflexo enfraquecido.[1] De modo semelhante, Lucien Febvre afirma que entre os anos de 1510 e 1530, Erasmo mantém sobre a Europa um verdadeiro reinado espiritual. Ele é o primeiro soberano do mundo moderno. O segundo se chamará Voltaire. A inteligência, nos dois casos, se transforma em força política.[2]

Não é contudo apenas na Europa que Erasmo se faz presente. Bataillon, em seu Erasmo e a Espanha, mostra que entre os espanhóis e portugueses que se aventuravam para terras longínquas, muitos eram erasmianos. Como o caso de Baltazar Jorge Valdez, que parte para a Índia, onde morre em 1545, e que havia levado consigo livros de Erasmo.[3] Ou o de Francisco de Sayavedra, processado no México pela Inquisição, e que, durante o interrogatório, citou o seu livro de Erasmo, provavelmente o Manual do soldado cristão, dizendo que os santos preferiam que nós imitássemos as suas obras em vez de ficar rezando padre-nossos.[4] Curiosas também são as histórias contadas por Jacques Proust em seu livro L’ Europe au prisme du Japon – XV-XVIII siècles: o período que precedeu a proibição do catolicismo no Japão foi de perseguição aos convertidos e aos seus mestres europeus. Um padre japonês, chamado Fabian Fukan, discutiu publicamente com um neoconfucionista utilizando argumentos erasmianos a favor do cristianismo. Mas o contrário também podia acontecer: um outro padre, Cristovão Ferreira, tendo abjurado o cristianismo sob tortura, serve-se de argumentos de Erasmo para, de um pretendido ponto de vista japonês, criticar a sua antiga religião. Ainda no século XVI, uma estátua de proa, esculpida em madeira, foi doada aos japoneses. Descobriu-se que era uma estátua de Erasmo, que ainda hoje está exposta no Museu Imperial de Tóquio ao lado dos outros heróis do país.[5]

Na opinião de Huizinga, Erasmo se tornou uma espécie de “cérebro, coração e consciência de seu tempo”.[6] Num período conturbado, em que as questões religiosas e políticas estavam inegavelmente intrincadas, sua vasta e diversificada obra aparece como manifestação de um pensamento que se debruça sobre as questões de sua própria época, captando-lhe os conflitos, assinalando as hesitações e indicando os equívocos das soluções encontradas por alguns de seus contemporâneos, seja na forma de um discurso grave e sistemático, como no caso, por exemplo, do Manual do soldado cristão, seja tomando as armas da ironia e da sátira, como nos Adágios, nos Colóquios, ou no Elogio da loucura. Este caráter de intervenção da obra de Erasmo é um dos traços que permitiram a Rouanet situar o pensamento do monge holandês no interior de uma perspectiva “iluminista”.[7]

Erasmo, como dissemos, apreende as forças que estão em jogo em seu tempo. O que é a Europa do século XVI? Como mostra Delumeau, “as divisórias políticas do continente aparecem, se não firmes, pelo menos clarificadas e consolidadas nas suas grandes linhas”.[8] Em resumo, continua Delumeau, “a época do Renascimento, este grande período de muta­ção […] é aquela em que a Europa se define politicamente, descobrindo […] a regra de ouro do equilíbrio entre potências. O ideal da unidade europeia, realizada sob a autoridade do imperador, foi substituído por uma relação de forças”.[9] Contudo, se de um lado o fortalecimento das nacionalidades significa a tomada de consciência de si e dos outros por parte dos povos, é uma diferenciação por vezes dramática que de outro lado se associa ao contínuo desfile de tropas militares. A guerra é assunto corriqueiro. Ao mesmo tempo, o Humanismo, esta espécie de tempestade fertilizadora vinda da Itália, transforma os espíritos. Finalmente, ainda segundo Delumeau, o século XVI viu a Igreja cristã “quebrar-se e mostrar à luz do dia o escandaloso espetáculo do ódio entre seus filhos”.[10]Esse quadro de crise mas ao mesmo tempo, por assim dizer, carregado de esperanças, é o pano de fundo sobre o qual se inscreve o pensamento de Erasmo. Cosmopolita e pacifista, aponta para os caminhos funestos do nacionalismo e da guerra. Crítico ferino da pesada instituição eclesiástica, defende contudo a união da cristandade e recusa o cisma. Humanista, como seus confrades italianos, crê entretanto que a herança clássica deva ser posta a serviço da reflexão sobre a filosofia cristã. A esse respeito, Quentin Skinner, em seu livro sobre as fundações do pensamento político moderno, afirma que os humanistas do Norte da Europa “dependeram de forma crucial do conjunto de conceitos que haviam sido explorados pelos humanistas italianos do Quatrocentos”,[11] embora julgue necessário reconhecer que quando a cultura da Renascença italiana começa a ter impacto sobre o resto da Europa, na maior parte das vezes os humanistas do Norte se mostraram receptivos àquelas ideias que lhes soavam mais familiares, passíveis de serem assimiladas às suas próprias experiências, diversas das dos italianos.[12]

Estas observações contudo são apenas a reconstituição de alguns elementos da tradição crítica sobre a Renascença, tradição diversificada, assentada e internacionalmente reconhecida, à qual, na verdade, quase nada podemos acrescentar. O que proponho aqui é simplesmente a análise de alguns textos, que longe de pretender apresentar algo de novo sobre o pensamento de Erasmo, apenas ilustram ou confirmam aspectos de uma longa tradição interpretativa.

Dizíamos então que, na época de Erasmo, as questões religiosas estão intimamente ligadas às questões políticas. Tomemos, em primeiro lugar, a questão da Igreja. Lucien Febvre havia mostrado, numa conferência pronunciada no Rio de Janeiro em 1949,[13]

que, do ponto de vista religioso, a religião “sonhada” por Erasmo deveria ser “muito livre, muito aberta, muito pura”.[14] No centro da vida religiosa, o Cristo, um homem que ensina, cura, consola. Nada de intermediários entre Ele e os homens. A Virgem Maria e os santos são personagens secundários. Erasmo, segundo Febvre, tenta atenuar os efeitos do pecado original, e devolver ao homem a confiança em si mesmo.[15]

No Elogio da loucura, de 1509, a Maria apresenta, entre os que vivem segundo suas leis, aqueles que se divertem ouvindo e contando milagres e histórias que ouviram da boca de monarcas e pregadores, os ridículos e supersticiosos que se sentem protegidos por uma estátua de madeira, pela luz de lamparinas, ou por rezas inventadas por algum impostor, os que se consideram salvos pelos perdões e indulgências, e medem sem receio os séculos de purgatório, e os que crêem que com dinheiro podem-se redimir “tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassinatos, tantas imposturas, perfídias e traições”.[16] Estas práticas, sustentadas pelos próprios professores de teologia como meio de “tirar proveito da crendice popular”, causam vergonha à própria Loucura.

A denúncia das práticas supersticiosas dos cristãos reaparece num dos Colóquios, intitulado “O naufrágio”: trata-se de um diálogo no qual se conta que numa travessia perigosa durante uma tempestade, na iminência de serem jogados no mar, tripulantes e passageiros entregam-se aos mais diversos rituais para pedir a Deus e aos santos que lhes poupem a vida. O espetáculo é descrito como algo lamentável:

Os marinheiros, cantando a Salve Regina, imploravam à Virgem Maria, chamando-a de Estrela do Mar, Rainha do céu, Soberana do mundo, Porto de Salvação, e de um grande número de títulos de bajulação que não lhe são atribuídos por nenhum texto da Escritura […] Alguns passageiros adoravam o mar, jogando óleo sobre as ondas e dirigindo-se ao mar com as mesmas palavras que se usam para um soberano enfurecido… Outros faziam promessas…[17]

Enquanto o povo mergulha na superstição, os teólogos, como mostra a Loucura, “cercados de uma série de definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o que compõe a malícia da escola sacra” interpretam como querem os mistérios da salvação, são argutos, frívolos. Acrescenta-se a isso sua moral estranha e contraditória. Os monges ou religiosos, por sua vez, diz Erasmo pela voz da Loucura, “são de tal forma odiados, que, quando por acaso são vistos, costuma se tomá-los por aves de mau agouro… Sua principal devoção consiste em não fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem se dar ao trabalho de entender os salmos, já se julgam demasiado doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com sua asnática melodia”. Reproduz-se, com eles, o que ocorre com o vulgo, ou seja, entregam-se a cerimônias sem sentido: ” […] os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade ou largura, o hábito de tal forma ou tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro”. E então a Loucura se pergunta: Por que tudo isso? Imitar o Cristo? É o último de seus pensamentos. Com os pregadores, é preciso ter cuidado: são “cães da Igreja, e podem morder”. Por último, o que dizer do papa? “Aquelas imensas riquezas, aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo patrimônio […] os impostos que recebem […] o fruto de todos aqueles favores e indulgências, com as quais vão traficando vantajosamente…”[18] são absolutamente incompatíveis com os ensinamentos cristãos. Segundo a Loucura, “nunca houve alguém que mais vivesse no ócio e na moleza do que um papa”.[19] Mas o pior é quando, para defender suas terras, cidades, domínios, lançam-se na guerra, desfraldam a bandeira de Marte e se tornam um flagelo.

Um dos textos mais duros contra os papas guerreiros, que não foi assinado por Erasmo mas que a tradição lhe atribui, intitula-se Julius Exclusus e conta a história da chegada do papa Júlio II ao céu. São Pedro não o reconhece, e impede sua entrada. Ele mostra suas insígnias: P. M., de Pontifex Maximus. O guardião da porta do céu interpreta: Pestis Maxima. Júlio resolve então contar suas façanhas: foi ele quem anexou a Bolonha, venceu Veneza, assaltou Ferrara, expulsou os franceses, construiu edifícios suntuosos, palácios. Mas Pedro não o deixa entrar. Ele vai embora resmungando, prometendo formar um exército para derrubar as portas do céu.[20]

Na verdade, o tema dos “abusos da Igreja” é comum na literatura do século, e embora não se possa dizer que esses abusos, por si sós, tenham sido a causa da Reforma, é fato que o discurso dos reformadores criticava com veemência os comportamentos dos bispos, papas e dos cristãos como incompatíveis com os ideais do Evangelho. Há portanto um consenso entre Erasmo e os reformadores de que a Igreja precisava passar por uma transformação que significasse purificação, volta às origens, retomada da inspiração evangélica.

Como se sabe, Erasmo, malgrado a dureza de suas críticas à Igreja e apesar da esperança de Lutero em trazê-lo para suas hostes, recusou a via da ruptura. Do seu ponto de vista, o acirramento das opiniões divergentes deve ser evitado. É esta a posição que ele expressa no texto Concórdia da Igreja, escrito exatamente como resposta a um interlocutor que lhe pedira para exortar a Igreja a dar um fim nos conflitos da época. O apelo de Erasmo é pela tolerância e pela indulgência, pois,

lá onde reinam a ambição, o frenesi pelo dinheiro, a obstinação, os aplausos cegos ou o ódio mais cego ainda, ao ponto que se procure defender teimosamente o que acabamos de dizer ou de escrever, lá, onde o interesse de partido nos leva a aprovar o que sabemos ser condenável, onde condenamos mesmo, por ódio pessoal, opiniões piedosas, em suma, quando cada um só pensa em si mesmo e se estica a corda dos conflitos, é impossível obter a concórdia.[21]

Julga Erasmo que a principal causa de discórdia está no fato de que percebemos os vícios de nossos vizinhos e fechamos os olhos para os nossos. “De que modo”, continua Erasmo, “a concórdia subsistiria no conjunto da Igreja, se cada um, míope para as virtudes do outro, considera os seus vícios com olhos que se parecem com espelhos deformantes, que enfeiam a imagem alongando-a ?”.[22] Se é verdade que há monges tão pouco religiosos, padres que não vivem castamente, e bispos que mais parecem sátrapas, há também na Igreja os que são sábios, sóbrios, virtuosos. Com efeito, Erasmo, neste texto, parece querer relativizar a gravidade dos conflitos. A doença da Igreja não lhe parece incurável: “[…] o incêndio ainda pode”, na sua opinião, “ser apagado, desde que não se alimente mais o fogo”.[23]

O que o texto da Concórdia sugere é que a única via para a cura dos males do cristianismo é uma via interior, aquela que será indicada no Manual do soldado cristão. De inspiração claramente platônica, o Enchiridion (no qual Erasmo se refere explicitamente ao Timeu) apresenta ao leitor uma regra de vida. O homem é um animal prodigioso, composto de duas partes absolutamente distintas: o corpo, que tende para os prazeres e se deleita com as coisas visíveis, a alma, que aspira ao etéreo e imortal. “É por isso”, diz Erasmo, “que se pode comparar o coração do homem a uma república em revolta, que, composta de diferentes classes e homens, encontra-se em colisão consigo mesma, dada a discórdia das tendências.”[24] Assim, é preciso que, nesta república, o mais sábio governe. Deste modo a virtude é o domínio do melhor sobre o inferior, ou seja, da alma sobre o corpo, ou da razão sobre as afecções. É esse, segundo Erasmo, o caminho da beatitude: “Em primeiro lugar, que tu te conheças; em seguida, que ajas sempre conforme ao juízo da razão, e não conforme as paixões. Mas que a razão mesma seja sã e sábia, ou seja, que só considere o que é honesto”.[25] Ora, essa regra de vida, prescrita ao cristão, é perfeitamente universal, independentemente da fé religiosa. Aliás, para Erasmo, é exatamente esta doutrina a ensinada por Paulo, que, na Epístola aos Gálatas, exorta os discípulos da seguinte maneira: “Andai sobre a condução do espírito, e não dareis satisfação aos apetites da carne. Pois a carne luta contra o espírito, e o espírito contra a carne”.[26]

Como se pode ver, estas passagens do Enchiridion indicam que, para Erasmo, embora o pecado original seja uma realidade (foi ele que semeou a discórdia entre o espírito e o corpo), esta marca originária não corrompeu inteiramente a natureza humana: a razão ainda pode ser sadia e reta, e conduzir o homem em direção à beatitude. (Aliás, este é, dentre outros, um dos pontos que separam Erasmo de Lutero, para quem a ideia do pecado assumiu um peso esmagador.) Esse apelo ao que se poderia chamar de conteúdo universal da espiritualidade cristã (conteúdo que a Igreja institucionalizada deformou e degradou) é que permite a Erasmo conceber o “dever ser” da humanidade a partir da metáfora dos círculos concêntricos, no qual a perfeição aumenta à medida que se aproxima do centro, que é o Cristo.[27] A partir deste centro irradiador de força situam-se, por ordem de virtude, os que seguem mais de perto os ensinamentos cristãos, seguidos pelo círculo dos príncipes das nações, após os quais se encontra a esfera do povo comum. O centro, em direção ao qual cada esfera se orienta, é como um fogo, que atrai a todos e os transforma em sua própria natureza. Para além do terceiro círculo, está o que é abominável: a ambição, o desejo das riquezas, a luxúria, a cólera, o espírito de vingança, a inveja, a calúnia.

Presença constante no imaginário renascentista,[28] a figura do círculo tal como aparece no texto de Erasmo é penetrada por dois movimentos: de dilatação, do centro em direção à circunferência, na medida em que o centro, que é o Cristo, irradia a força que se difunde progressivamente até os derradeiros limites; de concentração, já que tudo deve tender para participar da perfeição que habita o lugar central. É necessário assinalar que embora se trate, num primeiro plano, de uma imagem da cristandade, não há nenhuma referência a uma distinção entre cristãos e não-cristãos, infiéis ou hereges. Sabe-se que Erasmo tem uma posição muito particular em relação à questão da heresia. Ele tende a minimizar a gravidade do erro em relação ao dogma e valorizar a conformidade da conduta em relação à virtude. Deste modo, a pior espécie de heresia é a dos próprios cristãos quando por seu comportamento atingem mais diretamente o cristianismo do que o faria uma disputa sobre um dogma. E mesmo em relação aos turcos muçulmanos, objeto de ódio e medo dos europeus na época, Erasmo frequentemente usa o argumento de que, finalmente, são homens semi­cristãos, e “talvez até mesmo mais próximos do verdadeiro cristianismo do que a maioria dentre nós”.[29] Quanto ao paganismo, é conhecida a admiração de Erasmo, assim como dos humanistas em geral, pela virtude dos pagãos, de tal modo que, no Banquete religioso, ele chega a afirmar que encontra nas coisas ditas pelos antigos um caráter tão puro e tão divino que isso o leva a pensar que são inspirados por um bom gênio e talvez mesmo até pelo próprio Cristo. É esta supremacia da virtude que determina portanto o lugar de cada um nos círculos concêntricos de que fala a carta a Paul Voltz.

De outro lado, a perfeição progressiva dos círculos não remete exclusivamente a grupos de pessoas ou a determinadas condições. É certo que o primeiro círculo seria uma espécie de lugar natural dos religiosos, o segundo o dos monarcas e o último o do povo. Contudo, diz Erasmo, os vícios se introduzem nos círculos superiores, quando, por exemplo, “exercemos nossa tirania sob o pretexto da justiça e do direito, quando a religião nos serve de ocasião para pensar só no ganho, quando, sob a etiqueta de defesa da Igreja estamos na verdade desejando o poder…”.[30] A perfeição consiste, pois, na disposição da alma, não num gênero de vida, reside nos corações, e não nas coisas exteriores. Assim, há, em meio ao povo, pessoas que merecem o primeiro círculo e, entre os monges, alguns que não poderiam nem estar no último. Desse modo, quem estiver longe demais do arquétipo, deve ser estimulado a progredir; quem estiver perto, a se aproximar ainda mais.

É de notar também que a metáfora dos círculos concêntricos recusa uma distinção radical entre o domínio religioso, ou moral, e o domínio civil ou político. Erasmo dirá no Enchiridion que “não há um mestre diferente para os bispos, um mestre diferente para os magistrados civis”.[31] Isso quer dizer não apenas que a pergunta sobre o bom governante deve ser colocada, mas que o critério que permite identificar a virtude do governante é de natureza moral. É o príncipe que organiza a vida civil para que haja a tranquilidade necessária ao aperfeiçoamento dos homens. Mas, mais do que isso, o príncipe virtuoso é, ao seu modo e na sua função, o reflexo do fogo que irradia a partir do centro em torno do qual se situam os círculos. E faz muita diferença, como diz Erasmo, se a justiça divina se refletir sobre uma placa de ferro ou sobre um espelho de vidro.[32]

A introdução de exigências morais na definição do bom governo implica a crítica da tirania. A denúncia dos efeitos nefastos do governo tirânico, tema caro aos humanistas políticos, e que tem talvez a sua mais bela manifestação no Discurso sobre a servidão voluntária de La Boétie, assume, no caso de Erasmo, alguns traços específicos. O tirano, para ele, não é apenas aquele que exerce um poder ilegítimo, mas o governante destemperado e voraz, o monarca rapace, cuja ação devastadora é a antítese do governo do príncipe cristão. É assim que Erasmo, num famoso adágio, afirma que “não foi sem sérias razões que, dentre tantas espécies de pássaros e tantas tribos voadoras, a águia tenha lhes parecido o candidato mais qualificado para ser escolhido como monarca, não somente por seus confrades pássaros, como também pelo senado e pelo povo dos poetas”. Trata-se do adágio intitulado O escaravelho que persegue a águia, sátira política mordaz, na qual Erasmo, segundo a tradição da fábula antiga, descreve a águia e tira conclusões sobre os reis. Neste animal, o bico afiado, as garras, o olho turvo, a cor fúnebre, tudo isso faz logo compreender que é carnívoro, inimigo da paz, nascido para os combates, para as rapinas e devastações. É por esta razão que, diante de seu grito terrível, conclui Erasmo: “O povo inteiro é tomado de pavor, o senado se dobra sobre si mesmo, a nobreza abaixa a cabeça, os magistrados tornam-se obsequiosos, os teólogos silenciosos, os juristas proclamam seu acordo, as leis cedem, nada mais se mantém…”.[33] Mas talvez a comparação não seja adequada, e a analogia não seja tão perfeita. Diz-se que a águia expulsa cedo os filhotes do ninho, para que aprendam a caçar com as próprias garras. É o contrário do que acontece com os reis: vivem rodeados de bajuladores, ministros corrompidos, confidentes estúpidos, para quem a infelicidade do público é motivo de prazer. Sem falar das pompas, do luxo, da luxúria, da tolice. O que se poderia esperar da mistura de todos esses ingredientes? Além disso, as águias, embora necessitem de vastas áreas para suas rapinas, não se atrevem a caçar no terreno de suas vizinhas, igualmente violentas. Mas nada costuma deter a ambição dos reis: seu desejo de dominação parece infinito.

A questão da guerra: a respeito do pacifismo erasmiano, Jean-Claude Margolin escreve que “mais que uma ideia, mais do que um tema de meditação a paz entre as nações da Europa e sobretudo entre os cristãos, a paz do homem consigo mesmo e com seus semelhantes, a paz do homem com Deus […] são para Erasmo evidências vitais, por não dizer uma obsessão maior, que o acompanha antes, durante e depois dos momentos em que escreveu suas mensagens de paz em circunstâncias históricas precisas ou oportunidades pessoais”.[34] Entende-se: se, na vida dos homens, o espírito de fraternidade inspirado no Evangelho deve determinar as relações na sociedade, na Igreja e entre as nações, e se a questão moral é tal que diante dela a política é uma questão derivada, então não há como não considerar toda guerra um fratricídio inaceitável. Ela é, propriamente, a irrupção da irracionalidade no ser que, paradoxalmente, entre todas as criaturas da terra, é o único dotado de razão. É este o raciocínio da Paz, que, vendo-se rechaçada pelos homens, queixa-se da seguinte maneira:

Se os animais ferozes me odiassem desta maneira, eu suportaria com resignação e deixaria a injúria por conta da natureza, que lhes impôs um caráter violento; se eu fosse odiada por animais sem razão, atribuiria seu ódio à sua ignorância, dizendo a mim mesma que eles são por demais desprovidos de inteligência para medir as vantagens que lhes ofereço. Mas, ai de mim! Ó infelicidade indigna e monstruosa! A natureza criou um só animal, o homem, que é dotado de razão, o único que é capaz de conceber a ideia de Deus. Ela o tornou o único que é sensível à benevolência e à concórdia, e, apesar disso, eu encontro abrigo mais facilmente entre os animais ferozes do que entre os homens.[35]

Neste seu lamento, a Paz relembra aos homens que a natureza nos ensina a concórdia, fazendo os homens de tal modo constituídos que eles não podem viver sem o auxílio uns dos outros. Foi esta necessidade que criou as sociedades. O gênero humano teria logo perecido se os homens não se associassem uns aos outros. Os preceitos do Cristo só ensinam a paz e o amor recíproco. A própria alma humana, este espírito ardente, significa amor. “Arrancai”, diz Erasmo, “a alma do corpo, logo se dissolve a unidade dos membros, que ela mantinha reunidos; do mesmo modo, tirai a paz de uma sociedade: ela será dissolvida, e perecerá com ela a vida cristã”.[36] Toda guerra é, para Erasmo, insensata, cruel, iníqua.

Enfim, Erasmo faz um duro diagnóstico de seu tempo: “Quem não vê”, escreve na carta a Paul Voltz, “que este século é, de longe, o mais corrompido de todos? Quando a tirania, a avareza, reinaram mais amplamente e mais impunemente do que agora? Quando se deu mais peso às cerimônias? Em que época a iniquidade passou dos limites com mais liberdade? Em que tempo a caridade se esfriou tanto?”.[37]” Quando, no século XVIII, Voltaire concebe um diálogo imaginário entre Erasmo, Rabelais e Luciano de Samosata, ele certamente tem em vista o caráter e o alcance crítico do pensamento de Erasmo em relação ao que ele, Voltaire, denominará “a infame”.[38] Mas Erasmo não fez apenas a sátira de seu tempo. Ao lhe apontar os males, ao mesmo tempo indica os equívocos que poderiam passar por soluções destes mesmos males: o cisma não é o remédio para a decadência da Igreja; o belicismo não é virtude; a força do príncipe não está no poder que detém; a ignorância não pode ser o remédio para o orgulho, a virtude cívica nacional não pode obscurecer a universalidade da natureza humana. Guardadas as distâncias (sobretudo porque Erasmo é um cristão católico mesmo que seja um pouco rebelde), num ponto têm razão os que vêem em Erasmo um iluminista: é por meio de uma espécie de revolução espiritual que ele crê que o homem pode superar os males da sociedade.

NOTAS

  1. Pierre MESNARD, L’essor de la philosophie politique au XVIéme siècle, Paris, Vrin, 1977, p. 87.
  2. Lucien FEBYRE. Erasmo, la contrarreforma y el espíritu moderno, Barcelona, Martinez Roca, 1970, pp. 91-2.
  3. Marcel BATAILLON, Erasmo y España, México, Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 807.
  4. Idem, ibidem, p. 811.
  5. O livro de Jacques Proust sobre a Europa e o Japão foi recentemente publicado por Albin Michel, Paris. As histórias foram narradas por Jean-Marie Goulemot, em sua resenha do livro de Proust, publicada pelo Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 13/9/1997. Huizinga, em seu Erasmo, também faz referência a esta estátua, que possivelmente ornara a proa de um navio holandês. Ver J HUIZINGA, Erasmo, Torino, Einaldi, 1941, p. 289.
  6. Idem, ibidem, p. 149.
  7. Sergio Paulo ROUANET, “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do Iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 278.
  8. Jean DELUMEAU, A civilização do Renascimento, Lisboa, Estampa, 1984, vol. 1, p. 37.
  9. Idem, ibidem.
  10. Idem, ibidem, p. 121.
  11. Quentin SKINNER, As fundações do pensamento político moderno, São Paulo, Companhia das Letras. 1996, p. 217.
  12. Idem, ibidem. p. 219.
  13. A conferência intitulada “Erasmo e sua época” foi publicada, juntamente com outros artigos, pela École Pratique des Hautes Études de Paris, em 1957. Utilizo aqui a edição espanhola já citada (Barcelona, 1970) de Erasmo, la contrarreforma y el espíritu moderno.
  14. Idem, ibidem, p. 93.
  15. Idem, ibidem, p. 94.
  16. ERASMO, Elogio da loucura, São Paulo, Abril, 1972, p. 73 (Col. Os Pensadores).
  17. ERASMO, Colloques, Paris, Lafont, 1992, pp. 297-8.
  18. ERASMO, Elogio da loucura, p. 126.
  19. Idem, ibidem, p. 127.
  20. ERASMO, Julius Exclusus, em E. CHOMARAT, Oeuvres choisies.
  21. ERASMO, De l’aimable concorde de l’église, em D. MÉNAGER et alii, Oeuvres, Paris, Lafont, 1992, p. 833.
  22. Idem, ibidem.
  23. Idem, ibidem, p. 815.
  24. ERASMO, Enchiridion Militis Christiani, Paris, Vrin, 1971, p. 110.
  25. Idem, ibidem, p. 115.
  26. São Paulo aos Gálatas, 5, 16-17.
  27. ERASMO, ”Lettre à Paul Voltz”, em Enchiridion Militis Christiani, pp. 78-80.
  28. Ver Georges POULET, Les metamorphoses du cercle, Paris, Champs-Flammarion, 1961, capítulo sobre a Renascenca.
  29. Ver Dulce, BELLUM, “Inexperts”, em ERASMO, Caverna et paix, introd. e notas J. C. MARGOLIN, Paris, Aubier-Montaigne, 1973, p. 142.
  30. ERASMO, “Lettre à Paul Voltz”, op. cit., p. 80.
  31. ERASMO, Enchiridion Militis Christiani, p. 182.
  32. Idem, ibidem, p. 127.
  33. ERASMO, Le scarabée au pourchas de l’aigle; em D. MÉNAGER et alii, Oeuvres, Paris, Lafont, 1992, p. 166.
  34. ERASMO, Le scarabée au pourchas de l’aigle; em D. MÉNAGER et alii, Oeuvres, Paris, Lafont, 1992, p. 9.
  35. ERASMO, “La complainte de la paix”, em Guerre et paix, p. 206.
  36. Idem, ibidem, p. 127.
  37. ERASMO, “Lettre à Paul Voltz”, op. cit., p. 75.
  38. Voltaire, Conversation de Lucien, Érasme et Rabelais dans les Champs Élysées, in Mélanges, Plêiade, p. 737.

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  • pacifismo
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  • superstições cristãs e abusos da Igreja
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