1998

Cristãos-novos, judeus portugueses e o pensamento moderno

por António Borges Coelho

Resumo

A ruptura do passado de coexistência religiosa, no final do século XV, ocorre num momento em que a riqueza do Estado português cresce com as fortunas individuais. Judeus são forçados a se converter ou a se refugiar em países como a Holanda que, durante os conflitos religiosos na Europa, abre suas portas ao estrangeiro. Enquanto lá se estimulam o comércio e o saber, em Portugal se impõe o poder eclesial-aristocrático da Inquisição. Mas os próprios inquisidores admitem ser impossível a expulsão universal dos judeus, porque “os cristãos-novos incorporam-se em todas as famílias deste reino”, diz um documento. Nos séculos XVI e XVII, homens de negócios continuam sendo importantes para financiar as armadas e o Estado. Além disso, cresce o número de escritores favoráveis à tolerância e aparecem traços de uma meditação de fundo místico judaico no Livro das Saudades,de Bernardim Ribeiro, ou nos Diálogos de amorde Leão Hebreu. No conhecido poema “Sôbolos rios que vão”, de Camões, há estrofes que visam veladamente a Inquisição. Se a Universidade permanece um bastião neoescolástico dos clérigos, o pensamento literário e científico percebe que nada se aprende senão pela experiência. A liberdade de filosofar não só é compatível com a piedade, dirá Espinosa (filósofo de origem portuguesa nascido na Holanda),como também “não pode ser abolida sem se abolir ao mesmo tempo a paz do Estado e a própria piedade.” Mas em Portugal o religioso continuaria a se sobrepor teórica e politicamente ao político.


JUDEUS E CRISTÃOS-NOVOS E MARRANOS

Na senda dos séculos XVI e XVII

A ruptura em 1496 com o passado de coexistência religiosa, embora com uma religião dominante, ocorre no momento em que os portugueses abriam a Rota do Cabo e davam os primeiros passos na exploração da terra brasileira. Vasco da Gama partia do Restelo no mesmo ano em que os judeus eram arrastados pelos cabelos até a pia da água benta. No rasto do navegador e capitão seguiriam na aventura dos mares os mais incomodados e mais ávidos de fortuna. Portugal mantinha o seu pequeno corpo europeu mas estendia uma cauda impressionante de cidades, feitorias, fortalezas e navios pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico. As receitas do Estado multiplicavam-se muitas vezes cabendo ao império cerca de 60% do total. Cresciam as fortunas individuais. Abriam-se novas possibilidades de fuga ao controle ideológico e social.

Os continentes não tinham a moldura humana que hoje apresentam. Na viragem para o século XVII, a América teria 8 a 13 milhões de habitantes para 100 milhões da Europa e também da África e os 250 a 330 milhões da Ásia.

Para chegar à Europa, os portugueses ou se faziam ao Oceano, ao mar do Norte, ao estreito de Gibraltar, ou teriam de atravessar toda a Espanha para alcançar a França e daí os outros países europeus. Esta situação periférica retirava Portugal das zonas mais quentes das guerras religiosas europeias e pela hegemonia política mas atirava-o para a primeira linha das guerras marítimas de comércio que passaram a incendiar diferentes oceanos.

No século XVII, o Brasil foi o grande destino dos portugueses, mas no XVI era a Ásia. Camões e Fernão Mendes Pinto foram acompanhados na peregrinação pelos três grandes oceanos por mais de três centenas de milhares de portugueses contra uns escassos milhares que se voltaram para a Europa sem deixar de olhar e tecer laços com o Oriente. A diáspora portuguesa para a Ásia quase se pode medir. Em 130 anos partiram de Lisboa 768 naus e navios. Multiplicando cada unidade pelo índice razoável de trezentos passageiros obtemos um total de 390 mil almas. Somemos os que chegaram pela Ásia Menor. Mesmo que retiremos ao cômputo muitos milhares, obtemos números fantásticos para um país que contava pouco mais de 1 milhão de habitantes.

Além da Ásia, a diáspora seguia para as ilhas atlânticas, o golfo da Guiné, o Brasil, a América Espanhola, a Europa do Norte e o Mediterrâneo. Esta hemorragia aliviava a pressão interna mas implicava também uma mobilidade social tremenda. O mais avançado de Portugal estava em Lisboa, nas naus e nas cidades oceânicas. Em todos os poros da diáspora portuguesa se encontravam cristãos-novos.

Em Portugal, no século XV, as contradições internas explodiram por vezes de forma muito violenta, mas depois do massacre dos cristãos-novos em 1506 corroem a fogo lento o corpo social, até que vêm à tona no final da década de 80 e a partir da segunda década do século XVII. Durante anos, à superfície, como que se sublimam as contradições quando a Coroa, a gente da governança dos concelhos, o clero e a nobreza, a de espada na mão ou a sentada nas fraldas da alfândega e nos livros del-rei, se envolveram num projeto político nacional, não escrito, mas realizado a par e passo durante cinco séculos, o projeto que dia a dia se desdobrava mobilizando os mais audazes e inconformados, o projeto da expansão marítima e colonial.

Os cristãos-novos participaram entusiasticamente neste projeto. Apesar da proibição régia, chegaram ao Oriente, pela Rota do Cabo e por terra, pelo velho caminho dos Balcãs e da Ásia Me nor.[1] Os cristãos-novos estiveram na primeira linha da colonização do Brasil. Estabeleceram-se em Luanda, S. Tomé, Cabo Verde e rios de Guiné. Nos meados do século XVI, segundo Duarte Gomes Solis, o Conselho de Estado discutiu mesmo um projecto que abria amplamente as portas do Brasil aos cristãos-novos que viessem povoar o território sob a direcção do infante D. Luís.[2]

Integraram largamente a expansão ibérica, da América Espanhola a Manila.

Entretanto, na matriz europeia, as guerras religiosas alastravam por toda a Europa Central e do Norte enquanto a França, entalada pelo Império hispano-alemão de Carlos V, se opunha aos seus sonhos de império universal. Em 1527, as tropas cristianíssimas entravam em Roma, prendiam o papa e os cardeais, pilhavam as igrejas, jogavam bispos aos dados e roubavam o rico pontifical que D. Manuel enviara ao papa na célebre embaixada de 1514.

As guerras de religião ensanguentaram a Europa durante todo o século e explodiram no conflito maior da Guerra dos Trinta Anos. Quarenta por cento da população dos campos e 30% dos habitantes das cidades teriam perecido nas batalhas, nos matagais, nas praças ou nas forcas. E, desde 1567, estalara nos Países Baixos uma larga convulsão religiosa e social que culminaria na criação da República das Províncias Unidas.

Na sua luta contra o governo dos Habsburgos, os holandeses abriram as portas aos estrangeiros, permitiram a liberdade de consciência e, segundo Duarte Gomes Solis, puseram em ciência o comércio, a navegação e a guerra e tornaram-se senhores do crédito. Era uma lástima, escreve, ver os reinos de Portugal e Castela ficarem “os mais pobres que há no mundo”, não oprimidos por grandes impérios mas “por um vassalo seu e da ilha mais pequena e de frutos menos substanciais”, a Holanda, pois “pelas armas e pelo trato, nos têm ganho em poucos anos”.[3]

As naus portuguesas contactavam com os grandes impérios da Ásia, o do xeque Ismael na Pérsia, o do Grão Mongol, os potentados indianos e a Insulíndia, o grande império da China e a misteriosa “Pestana do Mundo”, o Japão. As armas portuguesas faziam frente na Ásia e nos mares ocidentais ao poderio dos turcos que avançavam na Europa Oriental, no Mediterrâneo e abriam as portas aos judeus fugitivos.

Se nos ativermos ao movimento profundo, o determinante era a abertura progressiva para a economia-mundo. Durante o século XVI, as naus e galeões portugueses e espanhóis foram os grandes recoveiros e vigias dos oceanos, mas no século XVII esse papel é progressivamente assumido pelos navios holandeses, ingleses e de outros países do Norte europeu.

Nessa economia-mundo, o Estado era o principal empresário e simultaneamente um cliente importantíssimo para os homens do comércio. Como empresário principal, o Estado era igualmente o maior empregador, logo seguido pelo peso omnipresente da Igreja.

Esta economia-mundo processava-se com uma Europa predominantemente rural, entremeada de pequenas e médias cidades. Os caminhos terrestres eram lentos e difíceis ante a explosão das vias fluviais e marítimas. “A maior grandeza de um Estado consiste nas Armadas e forças marítimas”, escreveu em 1641 o cristão-novo Manuel Fernandes Vila Real. Elas são as que adquirem as riquezas e conservam a reputação, quer pelas conquistas, quer pelo comércio. Quem há que ignore os admiráveis e quase incríveis progressos das armadas portuguesas até ao mais remoto do orbe fazendo da insigne Lisboa um empório e abreviação de toda a grandeza humana?[4]

As guerras de religião e a imposição de uma religião obrigatória desenvolviam toda uma sabedoria da ocultação. Nos países ibéricos manifestava-se por fora o grande espectáculo da fé, típico da época maneirista e barroca, multiplicavam-se os amuletos, as cruzes, os retábulos, as relíquias. O rosto ficava oculto nas vastas cabeleiras e nas máscaras adaptáveis a todas as circunstâncias. Mas, nos meados do século XVII, fazem-se ouvir distintamente as vozes que atribuíam ao poder laico não só o papel de guardião e intérprete do direito civil mas também do direito sagrado.[5]

Judeus e cristãos-novos e marranos

Todos julgamos saber, e a nosso modo sabemos, o significado de judeu, cristão-novo, mundo moderno. A própria palavra advento pode sugerir que num dado momento se abriu a porta e entraram no futuro, que agora é passado, os avatares do Mundo Moderno.

Fixemo-nos apenas nos dois primeiros vocábulos. Muitas vezes são usados como sinónimos e, no entanto, mantendo embora relações estreitas, o segundo não se esgota no primeiro.

O conceito judeus portugueses parece de conteúdo claro reunindo no seu todo, ontem como hoje, os homens e mulheres de religião judaica nascidos em Portugal ou que, pela origem e vida, se sentem e encontram vinculados a este país.

A conversão forçada de 1497 rompeu dramaticamente a prática de um longo passado. Nos finais do século XV, espalhadas por todo o território, havia cerca de 136 comunas judaicas que poderiam somar uns 30 mil judeus. Em Lisboa viviam junto à Ribeira num bairro fechado, encostado às ricas freguesias da Madalena, de S. Julião e de S. Nicolau. Dispunham de sinagogas, um Estudo, banhos, biblioteca, cemitério.[6]

Com a entrada dos judeus expulsos de Espanha esse número aumentou para o dobro. Sem referir os cálculos avançados pelos vários autores, o total dos judeus pode ter atingido cifras entre 60 mil e 100 mil, ou seja, entre 6% e 10% da população portuguesa. A hemorragia da fuga e a integração progressiva irão baixar largamente estes números. Por razões políticas, entre elas o programa de centralização e de unidade interna, D. Manuel abria, com a conversão forçada, um conflito subterrâneo que corroeria a sociedade portuguesa até ao último quartel do século XVIII.

Na boca dos inquisidores e não só, a imensa maioria dos cristãos­ novos, condenados ou não, eram judeus. Por outro lado, quando eram condenados em Espanha por judaísmo, mesmo nascidos em território espanhol, eram designados como judeus portugueses. Lembro o mercador mártir Pedro Álvares, executado em Évora no auto-de-fé de 1543. Prestes a padecer, exclamou, segundo o registo dos inquisidores: “[…] se morresse e com sua morte fenecesse a tribulação do Regno e da Nação que tal morte seria bem-aventurada”.[7] Pedro Álvares não se esquecia do reino. Também muitas famílias cristãs-novas, fugidas de Portugal e de Espanha, ao assumirem lá fora o seu judaísmo secreto ou reencontrado, mantinham a ideia de uma identidade portuguesa, visível em alguns nomes das comu­ nidades que integraram: Portugal, Évora, Lisboa.[8]

Ao longo deste texto, reservaremos a designação de judeu português apenas para aqueles que assumiram publicamente a religião judaica, oriundos de Portugal ou de famílias que dele fugiram ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Mesmo sabendo que nalguns cristãos-novos ainda se acendia a espaços uma pequenina luz judaica, a verdade é que as vestes ideológicas que assumiram na sociedade não eram judias. Socialmente integraram-se no campo da cristandade.

Vejamos agora o vocábulo cristão-novo. Foi criado por aqueles que, nos finais do século XV e primeiros anos dó século XVI, após a conversão forçada de judeus e mouros, os designaram como cristãos-novos reservando para si a qualidade de cristãos-velhos. Os dirigentes políticos obrigavam cristãos e mouros a integrarem a comunidade cristã mas também esta comunidade resistia à integração, batizando e isolando os novos conversos com o nome de cristãos-novos.

Novamente tudo parece claro mas o vocábulo esconde uma longa história. Primeiramente, judeus houve que como tais não foram identificados e, num terreno hostil, adaptaram exteriormente as práticas cristãs e acabaram por ingressar e se perder no seio dos cristãos-velhos. Outros, poderosos pelo seu dinheiro, alguns deles convertidos já no tempo de D. João II, entraram, para lá dos motejos, pagando com dinheiro ou com serviços, na comunidade dos cristãos-velhos, O tesoureiro-mor Fernão Álvares de Andrade, que em 1535 investiu com João de Barros na primeira grande armada privada que se destinava a colonizar a capitania do Maranhão, assumia-se como cristão-velho e conseguiu casar a filha Violante numa das mais poderosas casas fidalgas aparentadas ao rei, a dos condes de Linhares. Por outro lado, Diogo de Castro, sócio do contratador de escravos Manuel Caldeira, conseguiu, mediante serviços e dinheiro, obter o estatuto simultâneo de fidalgo e de cristão-velho, tudo preto no branco, e fundar uma casa titular.

Em segundo lugar, com o embarque consentido da maioria dos mouros para o Norte de África, o vocábulo cristão-novo ficou a designar os judeus convertidos ou conversos. Com o andamento do século, a palavra começa a identificar-se, na boca dos inquisidores e dos adversários dos mercadores portugueses profissionais, corri os homens da nação ou simplesmente homens de negócio. Evidentemente, nesta identificação não cabem todos os cristãos-novos nem todos os homens de negócio mas isola o núcleo duro dos contratadores e do capital financeiro.

Em suma, o vocábulo, inicialmente usado para resistir à integração e identificar os novos conversos, entrava abertamente no território econômico, social e político, sem perder a matriz religiosa que isolava e tornava suspeitos alguns dos elementos mais dinâmicos da sociedade portuguesa.

E o que se passava, do ponto de vista religioso, no coração e na mente destes conversos ou cristãos-novos? Através da conversão forçada, os cristãos-novos tornavam-se automaticamente cristãos? Nem o rei D. Manuel acreditava em tal coisa porquanto proibia durante vinte anos qualquer devassa sobre as crenças dos novos conversos.

Nos primeiros anos, alguns dos cristãos-novos assumiram militantemente as crenças e os ritos cristãos, não hesitando mesmo em denunciar antigos correligionários, mas a imensa maioria praticava exteriormente alguns ritos e no coração e no segredo da casa mantinha as velhas crenças. Durante mais de três dezenas de anos, certos núcleos de cristãos­novos continuavam a guardar livros hebraicos e a praticar cerimônias.

Com a introdução da Inquisição portuguesa, porém, a prática dos ritos, mesmo no segredo do lar, quase desapareceu. Duvidando das sentenças do Santo Ofício, o padre António Vieira interrogava-se como seria possível alguém judaizar durante longos anos sem ser apanhado em flagrante, particularmente em terras tão pequenas “donde não se abre uma porta, nem se diz uma palavra que o não saiba toda a terra”. E acrescentava: “Em Portugal não há apartamentos separados, senão em casas de senhores grandes, e tudo se reduz a duas ou três instâncias, aonde não pode haver cheiro bom nem mau que não se sinta em toda a casa”.[9] Por outro lado, como experimentou o heterodoxo Gabriel da Costa, a religião cristã, praticada desde o berço pelos cristãos-novos, deixava marcas muito profundas.

Mesmo assim, ao longo deste tempo, não faltaram marranos, isto é, homens e mulheres que nos sinais exteriores e nas obras se mostravam cristãos devotos mas cujo coração continuava judeu. Mas a repressão mergulhoutão profundamente que muitos país, que no coração ainda se consideravam judeus, passaram a vida toda ocultando a crença secreta aos filhos. A fazer fé nalguns processos das inquisições, só na hora da morte, no momento de abençoar os filhos que ficavam, se abriam finalmente: a lei boa, a lei da salvação era a Lei Velha.[10]

A crença judaica ou mais rigorosamente a recusa à integração e a consciência da diferença assumiam por vezes práticas extravagantes; denunciadas às inquisições: colocar uma cruz no sapato para a calcar todos os dias; açoutar o crucifixo com uma vara molhada em vinho; rezar padre-nossos a Moisés.

Não faltaram fugitivos, não faltaram famílias de cristãos-novos em trânsito por esse mundo de Cristo, e também de Maomé e outros profetas e sem profetas, cumprindo o mito do judeu errante. Uma massa considerável dos que saíram perderam-se nos vastos mundos que como ibéricos colonizaram. Na Flandres e outras partes voltaram em grande número à religião dos antepassados que reaprendiam. Mas numerosos cristãos­ novos fugitivos, condenados embora como judaizantes pelo autoproclamado Santo Ofício, ao alcançarem a Europa e outras partes onde se praticava a liberdade de culto, mantiveram-se publicamente como cristãos até à hora da morte. Escreve o padre António Vieira que, desta gente, “depois que estou em Roma conheci dois bispos, três arcebispos, um senador e títulos e domínios seculares”. Com o dinheiro dos cristãos-novos se reconstruiu no século XVII o Hospital e a Igreja dos Portugueses em Roma que alguns destes benfeitores escolheram para sepultura.[11]

Os inquisidores tudo faziam para que se não perdesse a lembrança da origem religiosa e social diferente. Todos os anos na pregação do Édito da Fé e nos autos-de-fé, celebrados nas praças grandes de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa, os cristãos-novos eram tratados como judeus ou hebreus. O poder eclesial-aristocrático necessitava de um inimigo interno e de um território de caça.

Por outro lado, muitos cristãos-novos também ofereciam resistência a casar as filhas com cristãos-velhos, mas o movimento principal dos mais poderosos corria no sentido de favorecer esses casamentos para uma fusão completa entre os cristãos-novos e os cristãos-velhos. Este movimento era apoiado em Lisboa e Madrid por altos quadros da Companhia de Jesus[12] mas tinha a oposição feroz dos inquisidores e do partido ultra­ montano que, além das leis de limpeza de sangue, obtiveram uma determinação régia filipina, sempre violada, que mandava riscar do livro dos fidalgos todos aqueles que casassem com cristãs-novas.

Em síntese, houve cristãos-novos que foram cristãos, por dentro e por fora, alguns bem mais militantes do que os cristãos-velhos; houve cristãos­ novos judeus no coração, os marranos; houve cristãos-novos que se tornaram novamente judeus públicos. Não é, pois, legítimo nem verdadeiro usar os dois vocábulos, cristão-novo e judeu, como se de sinônimos se tratasse. Ao longo do tempo, boa parte dos historiadores portugueses usaram esta identidade para segregar os cristãos-novos, como judeus, da comunidade portuguesa. Segregação absurda quer como judeus quer como cristãos-novos. Também autores judaicos usam muitas vezes estes dois vocábulos como sinônimos para trazer ilegitimamente todos os cristãos-novos para a sua crença. Podem reivindicar um tronco comum, só que um dos ramos ficou em boa parte submerso no corpo dos católicos apostólicos portugueses, muitos dos quais não professam hoje qualquer das religiões.

A partir da segunda metade do século XVI, integrarei na comunidade cristã, segregados embora, os cristãos-novos que não sejam provadamente identificados como marranos. E os judaizantes que morreram como católicos? A face pública é quase sempre a face martirizada do absurdo.

Homens da nação

Mas não eram só os inquisidores que identificavam os cristãos-novos como o núcleo mais duro dos homens de negócio. Também eles se consideravam e atuavam como grupo organizado e de pressão junto da Coroa portuguesa e da Coroa filipina, procurando influenciar por cima os rumos da economia e da política. Mercadores da “mercadoria superior”, ligados por laços de família, de atividade mercantil e laços culturais, fariam gala da sua cristianidade dotando igrejas e misericórdias, participando na direção de confrarias, disputando hábitos de Cristo e simultaneamente defendendo um programa econômico, social e político que só triunfará no tempo do marquês de Pombal. Em síntese, o programa pretendia a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, o acesso pleno às honras dos mercadores profissionais e a valorização do comércio.

Alexandre Herculano, na História da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal, descreveu longamente a atuação dos procuradores dos cristãos-novos em Roma e da sua luta contra o estabelecimento e, depois, contra os estilos da Inquisição portuguesa. Foi um longo combate, em que se usaram as mais variadas armas, incluídas a corrupção e a traição. O suporte econômico e social desse combate político-religioso era assegurado pelo dinheiro recolhido em Portugal pelos cristãos-novos.

Depois, já nas vésperas de Alcácer Quibir, através dos seus procuradores e mediante o pagamento de 250 mil cruzados, os cristãos-novos obtiveram a promessa da isenção do confisco dos bens por dez anos e ainda licença para abandonar o reino e vender a fazenda. Foi sol de pouca dura. Depois da batalha marroquina, o novo rei, o inquisidor geral cardea D. Henrique, não devolverá o dinheiro recolhido e revogará, no essencial, o contrato estabelecido com D. Sebastião.

Em 1600,Jorge Rodrigues Solis, “que entrou na Corte com 300 mil cruzados”, e Rodrigo de Andrade, reconhecidos pela Coroa como procuradores da gente de negócio do reino de Portugal, negociam em Madrid perdão geral, mediante o pagamento dde 1 700 000 cruzados. Outros homens de negócio estiveram envolvidos na matéria: Heitor Mendes de Brito, o Rico, Diogo Duarte Ximenez, Manuel Gomes de Elvas, Tomás Ximenez. [13] Todos eles tinham acesso direto ao monarca e seus colaboradores mais próximos. Pelo seu lado, a Igreja portuguesa, intimamente unida à Inquisição, tudo fez para impedir o perdão geral, enviando à Corte uma delegação presidida pelo arcebispo de Lisboa e em que participava o poderoso jesuíta e inquisidor do Conselho Geral, Martim Gonçalves da Câmara. Contra o perdão, avançava, também ela, com a ideia de adiantar dinheiro à Coroa. Derrotada, não será alheia aos motins que ocorrem em Lisboa e Coimbra.

No Memorial que a gente da nação apresentou a Filipe IV em 1629, os procuradores mostram um conhecimento largo dos processos e das vítimas da Inquisição, de norte a sul do país, o que inculca um grau mínimo de informação e organização. A luta principal era agora contra os estilos da Inquisição, defendendo a necessidade de “abertas e publicadas”, isto é, de conhecimento por parte do réu não só dos seus acusadores como do crime de que era acusado.[14]

Em 1643 o padre António Vieira identifica a gente de nação portuguesa com um poderoso grupo de mercadores e financeiros que traziam em suas mãos a maior parte do comércio e das riquezas do mundo. Para lá da hipérbole, é inquestionável que os homens da nação que atuavam nas praças de Lisboa, Porto, Viana, Algarve, Elvas, Brasil, Índia mantinham ligações comerciais abertas e clandestinas com os seus familiares residentes na Europa do Norte, em Itália, no Mediterrâneo, no Brasil, em Angola, na Índia. O banqueiro da Restauração Duarte da Silva representa de modo significativo esta gente da nação detentora de crédito e de capitais.

Todavia o Poder estabelecido não permitia a organização específica dos mercadores. Duarte Gomes Solis queixava-se que era mais fácil a Coroa atribuir o hábito de Cristo a um piloto que trazia a bom porto a nau que lhe sustentava a vida, do que a um .mercador da mercadoria superior que financiava toda uma armada. Ainda entre 1592 e 1598, Filipe II reconheceu aos grandes mercadores de Lisboa a direção do Consulado que então funcionou como um tribunal dos feitos entre mercadores, como organizador das armadas para a Índia e outras partes e como administrador da bolsa de 3% cobrada de todas as cargas. Mas, em 1598, a Inquisição promoveu uma devassa ao Consulado. Não encontrou qualquer irregularidade, mas Filipe II decidiu retirar da direção os homens de negócio, retirando ao Consulado o papel de instrumento organizativo de classe.[15] Nada mais lhes restava que tentar influenciar o governo municipal e encostarem-se aos ministros mais poderosos.

Mais tarde, num escrito de 1629 sobre a expulsão ou não dos cristãos­novos, escrevem os inquisidores: é impossível fazer-se a expulsão universal porque os cristãos-novos estão

incorporados em todas as famílias deste reino, e alguns postos em lugares de muita importância, com casas e morgados alevantados, muitos clérigos, beneficiados, e religiosos e seculares, liados na correspondência da fazenda com toda a gente do trato.[16]

Em Portugal travava-se um terrível combate social e político cujo rastro se perde em milhares de documentos por classificar e analisar. Deste combate ressentiu-se fortemente a economia portuguesa. A fazer fé nas palavras do padre António Vieira, quando D. Sebastião organizava a Jornada de África, o “orçamento” da fazenda dos cristãos-novos de Lisboa foi calculado em 50 milhões de cruzados-em 1646, não chegaria a 2 milhões todo o cabedal que se manejava no reino.[17]

Os cristãos-novos, em particular o núcleo poderoso dos homens de negócio, não foi um setor fraco e acovardado. Travou alguns dos combates políticos mais importantes durante os séculos XVI e XVII e os seus capitais desempenharam um papel não inteiramente conhecido, primeiro no financiamento das armadas, mais tarde na recuperação da segurança na navegação atlântica, no financiamento e no combate da restauração portuguesa. E se muitos cristãos-novos, tornados judeus, investiram antes no inimigo modelo, a República dos Países Baixos, é que em Portugal os mercadores profissionais continuavam marginalizados. Uma espada de segregação social barrava-lhes o acesso às honras, só lhes deixava entreaberta uma pequenina porta de favor para o poder político.

Os setores clericais dirigentes designavam os mercadores profissionais como cristãos-novos e chegaram mesmo a pedir ao rei que lhes proibisse o acesso à atividade mercantil. Esta política dos que dominavam a máquina do Estado, que jogava na fé espetáculo e cujas receitas principais provinham das alfândegas espalhadas pelos vários continentes, foi uma política de desastre. E enquanto se impedia a organização própria e se expropriavam os mercadores nacionais, o Poder favorecia os mercadores ingleses, franceses e outros estrangeiros, que desalojavam os mercadores portugueses de bases estratégicas fundamentais, enquanto os seus navios substituíam progressivamente os nossos nas rotas europeias e nas próprias rotas atlânticas.

RASTRO CRISTÃO-NOVO JUDAICO NO UNIVERSO DA ESCRITA

A polêmica religiosa

Aparentemente quase não há polêmica religiosa. Em muitos escritos fala-se com escárnio dos judeus e aponta-se o dedo acusador aos cristãos­ novos. O pensamento dominante na Corte portuguesa de D. João III é muito bem sintetizado por Gil Vicente: “crer na Igreja assim junta/ com paredes e telhados/ alicerces e furados/ e não curar de pergunta/ e dar ó demo os pecados”. Também na Barca do purgatório não tinham salvamento tafuis e renovadores.

Nada de perguntas, nada de renovadores. O caminho era abafar as dúvidas na prática dos ritos. No entanto, inicialmente e mesmo depois, o judaísmo secreto marcava algumas franjas dos cristãos-velhos. A primeira bula que estabelece a Inquisição em Portugal, Cum ad Nihil Magis, de 17 de Dezembro de 1531, invoca como razão o fato de

alguns convertidos da infidelidade hebraica à fé cristã, chamados cristãos­novos, voltando ao rito judaico que haviam abandonado, e outros que nunca professaram a seita hebraica, mas nasceram de pais cristãos, observando aqueles ritos judaicos, bem como outros seguindo a Luterana ou outras heresias e erros condenados e feitiçarias …[18]

Os que nunca professaram a seita hebraica são já os filhos conversos de 1497 mas também alguns cristãos-velhos como o desembargador Gil Vaz Bugalho ou os cristãos-velhos da chamada “conjuração de Beja”.

Enquanto a Europa se dividia entre católicos e reformados, em Portugal, com excepção de alguns intelectuais que conviveram na Europa com reformados, a pressão ideológica e até algumas ideias da Reforma apareciam envolvidas questão judaica. Assim, a primeira tradução de alguns livros do Velho Testamento para linguagem portuguesa deve-se não a luteranos mas ao judaizante cristão-velho Gil Vaz Bugalho. A tradução foi feita a partir de textos latinos e hebraicos e contou com a participação de mestres judeus. O texto foi provavelmente queimado com o corpo do seu autor no auto-de-fé, realizado em Évora em 1551.[19]

Por outro lado, o judaísmo saduceu inoculava aqui e ali no universo mental ideias que subvertiam o sistema social: a de que os castigos bíblicos não saíam da esfera terrena, a de que uma mesma alma era a dos homens e a dos brutos, a de que Deus era o deus único do sol, das estrelas e das areias.

Antes do século XVI, a literatura apologética antijudaica reunia em Portugal quatro obras: Tratado teológico em que se prova a verdade da religião de Jesus Cristo, a falsidade da Lei dos judeus e a vinda do Messias, escrito no tempo do rei D. Dinis; o Speculum Hebraeorum de frei João de Alcobaça, do tempo de Afonso IV; o Livro da Corte Imperial na viragem para o século XV; e a Ajuda da fé, escrito pelo doutor mestre António, judeu converso, físico e cirurgião-mor de D. João II. Das quatro a mais notável, no pensamento e na expressão literária, é o Livro da Corte Imperial. Polemiza não só contra os judeus mas contra cristãos orientais, contra os mouros, os pagãos e contra os que não têm religião alguma.

Depois da conversão forçada, o primeiro texto onde aflora a problemática judaica é a Ropica Pnefma de João de Barros, publicada em 1532. Neste diálogo filosófico, a Vontade castiga com sarcasmo a atividade econômica dos judeus e a sua prevalência de riqueza, riqueza que os tornava aborrecidos aos cristãos mas enaltece também a força da sua organização e da sua Lei. Desta Lei têm cristãos e muçulmanos o seu fundamento e a maior parte. O sacerdócio hebraico observa com mais rigor os preceitos e estão menos sujeitos à simonia dos benefícios. Todos esperam “rei novo, a que chamam Messias”.

Em 1541, Clenardo, então incompatibilizado com o cardeal D. Henrique, advogava a conversão dos judeus pela palavra e não pela repressão pública. “Se em Espanha tanto se despendesse em conservar os cristãos­novos como em exterminá-los, cuido não se refugiariam aqui tantos, todos os dias”.[20]

Nesta linha de conversão pacífica se inscrevem duas outras obras: o Espelho de cristãos-novos e convertidos do monge alcobacence Francisco Machado, começada em Agosto de 1541 e o Diálogo evangélico de João de Barros. O primeiro detém-se no problema central da vinda ou não vinda do Messias e defende a obrigatoriedade por lei do casamento entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

O segundo, Diálogo evangélico sobre os artigos da fé contra o Talmud dos judeus, escrito pouco depois de 1542, também se insere na ideia de que a conversão deverá ser pela via pacífica e não pela repressão. Segundo Révah, o diálogo assume um conflito de crenças e não de pessoas ou raças e é “o livro de um cristão, sinceramente preocupado com a fuga em massa de cristãos-novos portugueses, de um cristão que quer ainda acreditar na superioridade dos argumentos espirituais”. O cardeal D. Henrique, a quem a obra é dedicada, não deu luz verde para a sua edição.

Para podermos sentir pulsar o riacho da polémica teremos de nos envolver nos documentos conservados pelo Conselho Geral da Inquisição portuguesa. Boa parte dos escritos insistem na crença secreta e sobretudo na riqueza e poder dos cristãos-novos. Num documento de 1605, publicado por Lúcio de Azevedo, os inquisidores queixam-se não do judaísmo dos cristãos-novos mas de possuírem casas de 100 mil cruzados nas melhores ruas de Lisboa, de ostentarem os melhores cavalos e liteiras com cortinados de damasco, de arrendarem a alfândega, o contrato dos negros da Guiné e os contratos régios. O nível chegou a tal ponto que o doutor João de Quiñones escrevia em 1632 ao inquisidor geral de Espanha, frei António de Sotomayor: por terem perseguido o verdadeiro Messias, muitos judeus padeciam todos os meses de fluxo de sangue como as mulheres.[21]

Nalguns processos inquisitoriais, há judeus, principalmente entre os que regressam do estrangeiro, que assumem a defesa das crenças e das cerimónias judaicas. É o caso do jovem Isaac de Castro que, com o falso nome de Isaac de Lis, entrou clandestinamente no Brasil, vindo de Holanda. Declarava que na Lei de Moisés não achava “cousa repugnante à razão e verdade natural”. Deus não o podia condenar por crer na Lei Velha porquanto, para haver pecado, isto na hipótese, que não aceitava, da Lei de Moisés estar revogada, tinha que ter perfeito conhecimento do erro que cometia. E mesmo que acreditasse que o Messias era Cristo, nenhuma razão nem lei o obrigavam a crer que era Deus, que é um só e indivisível. Mas Cristo não era o Messias porque, quando veio ao Mundo, não estavam cumpridas todas as profecias. Por outro lado, o Salmo 107 mostrava que o pacto celebrado por Deus com Abraão, Isaac e Jacob “havia de ser eterno”. Com as perseguições o povo de Israel multiplicava-se. E não era a Lei de Moisés a mesma em que Cristo viveu e morreu? Isaac de Castro foi queimado vivo na Lisboa restaurada no auto-de-fé de 1647.[22]

Babel e as saudades de Sião

Alguns escritores portugueses dos séculos XVI e XVII são cristãos­ novos: Fernão Álvares do Oriente, Gaspar Frutuoso, Jorge de Montemor, Tomé de Jesus, Tomé Pinheiro da Veiga, Francisco Rodrigues Lobo.

A historiografia contou com homens da nação, alguns vestidos já de cristãos-velhos, como é o caso do cronista de D. João III, Francisco de Andrade. Diogo do Couto tinha falha no seu nascimento. Duarte Nunes de Leão era cristão-novo.

Na matemática e na astronomia notabilizaram-se Pedro Nunes e ainda António Luís e André do Avelar; na medicina Amato Lusitano; na botânica e medicina Garcia da Orta; na economia Duarte Gomes Solis; no ensaio político-filosófico o jesuíta padre Henrique Henriques, Gabriel da Costa e o filho de cristãos-novos portugueses Bento de Espinosa.

Não é minha intenção estabelecer um catálogo de autores, dividir o que na criação aparece unido. Mas não será despiciendo identificar qualquer matriz, uma maneira de ver e sentir atribuível à fonte judaica cujas águas se misturam no rio cristão. Nas palavras que se seguem pretende-se tão só abrir uma pequeníssima janela.

O rastro de queixume das Tribulações do povo de Israel de Samuel Usque percorre a obra de Bernardim Ribeiro, a quem com boas razões se atribui a qualidade de cristão-novo. Nas éclogas e na Menina e moça ou Livro das saudades, encontra António José Saraiva uma meditação mística, pessimista e panteísta, que envolve o amor humano e a portuguesa saudade, meditação aprofundada nos Diálogos de amor do lisboeta fugitivo Leão Hebreu, livro que fará parte da biblioteca do panteísta Bento de Espinosa. Também ao longo do texto da Peregrinação, onde aventureiros e mercadores peregrinam pelos mares orientais, ouvimos choros e lamentações contra as perseguições da ventura.

Na lírica, é frequente o tema de Babel e Sião ou, no verso camoniano, a comparação de “Babilônia ao mal presente/ Sião ao tempo passado”. Não se trata de fazer Camões cristão-novo. Mas há um rasto de matriz judaica nos Sôbolos rios que vão, inspirados no Salmo 136, extremamente popular entre os marranos, acusados de o rezarem sem o Gloria Patri inicial. Aliás, na minha leitura, duas estrofes há que visam veladamente a própria Inquisição:

No grão dia singular Que na lira o douto som Jerusalém celebrar Lembrai-vos de castigar Os ruins filhos de Edon

Aqueles que tintos vão

No pobre sangue inocente Soberbos co poder vão Arrasai-os igualmente Conheçam que humanos são.

A popularidade da astrologia, da cabala e principalmente a ideia de Quinto Império, enunciado por Manuel Bocarro Francês e tão popular na Restauração, em particular nos escritos do padre António Vieira, constitui um traço vincado do rasto judaico-cristão na cultura portuguesa de Seiscentos.

Os problemas de ruptura mental, que na Europa ficam conhecidos como movimentos da Reforma, estão em Portugal profundamente ligados às crenças judaicas e à sua influência sobre os cristãos-velhos.

“E o que vos parece destes homens errarem?”

A Universidade lia os livros que eram de ler e de crer e entretinha-se a adornar o Palácio da Memória. Era uma universidade de clérigos em que 75% dos alunos cursaram direito canónico. Dali saíram os pilares da Igreja e da administração. Crentes, clérigos, familiares, auto-acusadores denunciavam regularmente ao Santo Ofício proposições que consideravam suspeitas de heresia. Este submetia-as aos qualificadores, doutores em teologia e em direito canónico.

Pedro Nunes era professor universitário mas os seus pares queixavam-se ao rei que não dava aulas e residia o mais tempo em Lisboa. Os mercadores do Porto opunham-se ao estabelecimento de um colégio de jesuítas na cidade porque entendiam que, se Coimbra queria ser a lusa Atenas, o Porto queria ser Tiro de Portugal. Por isso ensinava aos filhos os Livros de Aritmética e os Livros de Razão e não, nas palavras de Duarte Gomes Solis, a geringonça e as loas que a Universidade ensinava.

É verdade que os jesuítas influenciaram profundamente o desenvolvimento de conhecimentos que hoje agrupamos sob a designação de linguística, de história das línguas, de antropologia. Alguns deles, como autores e professores universitários, casos de Pedro da Fonseca, Francisco Suarez e o Soares Lusitano, marcaram com os seus livros, traduzidos nas línguas europeias em dezenas de edições, o pensamento da Nova Escolástica europeia.

Mas o novo irrompia fora do sistema. Crescia nos passos da vida, na viagem, na economia, na guerra. A crescente matematização do real respondia à pressão das necessidades da navegação marítima e do desenvolvimento da atividade mercantil e militar.

O discurso literário, epistemológico e científico manifestava uma consciência aguda da mudança. “Continuamente vemos novidades.” Mas essas novidades e mudanças inscreviam-se numa ordem. “Toma as regras universais da Natureza e verás a verdade que deves seguir”, escrevia João de Barros na Ropica Pnefma. Segue a “desordenada ordem da Natureza”. As leis naturais deram ao homem a posse dos frutos comuns mas a força e o poder reservaram esses frutos para alguns poucos. Só o Sol escapou porque estava alto demais para o poderem alcançar.

Nesta linha das leis naturais, identificáveis pela Razão, se inscreve o pensamento do cristão-novo Gabriel da Costa. “Existiu desde sempre e sempre há-de exisitir” uma lei primitiva, “comum a todos os homens e neles inata pelo próprio facto de serem homens”. É a lei natural ou Lei da Natureza. Esta lei é a “mestra da moral, estabelece a distinção do justo e do injusto, do feio e do belo. Tudo quanto há-de excelente na lei de Moisés ou em qualquer outra, a lei natural encerra-o em si integralmente na per­ feição”. A lei natural apreende-se com a reta razão que nos ensina a nortear os nossos atos e vida na conformidade com a Natureza.

Noutra direção, João de Barros, cuja aprendizagem se fizera no Paço de D. Manuel junto de mestres, alguns deles cristãos-novos, valoriza o conhecimento sensível, em particular o ver e o ouvir. Para ele o saber é uma construção coletiva, longa e trabalhosa: “todo o marítimo que os nossos viram”. Noutro passo: sabemos por nossas navegações que a Insulíndia é mar e terra retalhada em muitas mil ilhas.

Para Luís de Camões, o ver dos olhos não é igual pois fala em “olhos cristãos”. Em versos muito célebres de Os Lusíadas anuncia Descartes com o ver claramente visto e contrapõe o conhecimento sensível e empírico dos rudes marinheiros ao conhecimento dos que julgam por puro engenho e por ciência. Sem negar o segundo, inclina-se para a maior validade do primeiro porque foi alicerçado na experiência. Em versos dirigidos ao rei D. Sebastião clarifica melhor o seu pensamento: “Não se aprende, Senhor, na fantasia,/ Sonhando, imaginando ou estudando,/ mas vendo, tratando e pelejando”. Ver, comerciar, pelejar. Mas não despreza o estudo nem o engenho: “Não me falta na vida honesto estudo/ Com longa experiência misturado/ Nem engenho que aqui vereis presente/ cousas que juntas se acham raramente”.

Garcia da Orta está no mesmo caminho. “E o que vos parece destes homens errarem?”, pergunta Ruano. “Parece-me que o trato e navegação não era tão usado por onde haviam as informações falsas e curtas”. Saber exige o trato e a navegação que permite o ver-verificar. O saber implica, pois, um imenso trabalho coletivo.

Saber é dizer o que é, ou dito de outra maneira: “Todos estes erraram? Sim, se chamais errar a dizer o que é”. Por outro lado, o saber constitui a herança das gerações, acumulada nos silos das diferentes línguas, herança que dia a dia aumenta: “O que hoje não sabemos amanhã saberemos”. Para usufruir do saber verdadeiro, temos, primeiramente, de conhecer a língua original e verificar e corrigir as diferentes traduções do texto, pois muitos erros provêm de traduções incorretas. Acresce que as línguas não são fixas nem imutáveis. No discurso científico escolhe o português por ser a língua mais geral.

Mas há diferentes modos de saber: “Como sabeis?”, pergunta Ruano, “por livro ou por vo-lo dizerem algumas pessoas?” Temos assim um modo indireto de saber com duas alternativas, uma o do testemunho dos livros, a outra por ouvir dizer, o ex auditu de Espinosa no Tratado sobre a emenda do entendimento. Mas sempre que possível, os dois modos indiretos devem ser corrigidos pelo ver: “Não duvido pois já o vejo com os olhos”.

Ao definir o saber como dizer o que é, Garcia da Orta aponta caminhos que Bento de Espinosa trilhará largamente um século mais tarde: uma coisa é Pedro, outra a nossa ideia de Pedro. O ser não se esgota no conhecer. Por outro lado, ao consciencializar a necessidade de dominar a língua em que os textos são escritos e confrontar as diferentes traduções, Garcia da Orta abre caminho para a análise do discurso que Espinosa abordará magistralmente no Tratado teológico-político.

Na sua linguagem cerrada e pitoresca, também Duarte Gomes Solis se pronuncia sobre esta matéria: “Podemos dizer que sabemos enquanto conhecemos pela experiência o efeito das causas”.

Há um movimento profundo no sentido das construção teórica dos fundamentos epistemológicos da ciência moderna. Neste movimento vamos encontrar alguns dos vultos maiores dos cristãos-novos.

A ciência da mercadoria

Em 1615, Antoine de Montchréstien publicava em Paris o Tratado de economia política, batizando assim a nova ciência do econômico. A vida social tinha um fim, o fim econômico da riqueza, só alcançável por meios econômicos. Fora do percurso das universidades ligadas aos homens de negócio, triunfavam as ideias a que hoje chamamos mercantilistas.

Duarte Gomes Solis, cristão-novo, homem da mercadoria superior, genro de Heitor Mendes de Brito, o Rico, correspondente na Índia dos contratadores da pimenta, revela-se nos Discursos sobre los comercios de las dos Indias e na Alegacion en favor de la Compania de la India Oriental, revela-se um alto representante do novo pensamento europeu.

“O dinheiro é o rei de todas as coisas.” Se houvesse minas de prata às portas do inferno, aí a iriam os homens buscar. Mas na monarquia ibérica, embora senhora da prata, as finanças e a economia iam de mal a pior por falta de um bom governo político. Numa nação mercantil como era a portuguesa, o governo da economia devia ser entregue à experiência dos mercadores, que são “os olhos da república”, e não a gente que se pretendia “limpa”. O rei podia e fazia nobres titulares com uma simples assinatura mas não podia dar experiência em matérias de que nada sabia. Era lástima ver que Portugal nunca tivera um ministro que soubesse os pontos da mercadoria.

“Todas as ciências e artes liberais têm suas teorias e práticas, mas esta da mercadoria quem mais pensa que sabe dela menos tem alcançado e sabido.” Fazia falta na Corte uma universidade de mercadores, não a universidade em sentido clássico, mas um Estudo e organização específica de mercadores da mercadoria superior.

Sem bolsa de mercadores, no sentido de local físico de encontro onde se trocavam as notícias e se estabeleciam os contratos, onde se julgavam os litígios dos mercadores; sem feiras francas; sem bancos, cujas dívidas fossem cobradas como se cobram as dívidas do Estado, não era possível sair da grave ruína.

A China era o centro da prata do mundo e não tinha minas de prata. Atraía-a como um íman com os seus lavores e artes mecânicas. A Holanda, além de pôr em ciência a navegação, o comércio e a guerra, fizera-se senhora do crédito, o que constituía o golpe mais demolidor assestado sobre a monarquia dos Filipe?,

As leis políticas têm que ter em conta a força das leis econômicas e não prevalecem contra elas. Os Filipes proibiram o comércio com a Holanda mas este prosseguia debaixo da capa com a agravante de não pagar direitos. Afinal o ouro e a prata eram mercadorias. Os preços subiam e desciam segundo a quantidade das coisas.

Primado do político

Nas ruas, nas igrejas e nas praças decorre permanentemente o teatro da fé. “Umas por casar e outras por lhes Deus trazer os maridos, de cuja vinda elas fogem, nunca lhes escapam as quartas-feiras em Santa Bárbara, as sextas em Nossa Senhora do Monte, os sábados em Nossa Senhora da Graça, dias do Espírito Santo”, escrevia Camões na “Carta III de Lisboa a um amigo”. Sucediam-se as missas, rezadas e cantadas, as novenas, os passos, as procissões, os sermões com lançamento reservado da alcatifa, os autos-de-fé.

Tempo de denúncia, tempo de “não me meta em escrúpulos”, tempo de auto-acusações que o pecado estava em toda a parte e revelava-se por pensamentos, palavras e obras.

“Tudo era mercadoria”, escrevera João de Barros. Mas o mundo da mercadoria estava minado pelo pecado. O jesuíta Fernão Rebelo, no seu “Tratado do câmbio”, considerava que, em si mesma, a profissão de mercador e banqueiro “encerra uma certa indignidade e é de facto ordinariamente desonrosa”. E que “nada se receba, por pouco que seja, à conta de empréstimo ou demora em pagar, pois implica usura”.[23] Os empréstimos a juros eram a realidade de todos os dias. No entanto, o caminho de licitude do crédito era tão estreito que o lançava permanentemente no pecado, pecado que reforçava a força dos que tinham nas suas mãos o infinito poder de perdoar e absolver.

Mas, para os que saltavam fora do círculo fechado, restava um tempo de clandestinidade e de risco, um tempo de máscaras e de ocultação. A popularidade do teatro profano e religioso expressa singularmente este viver partido ao meio. Anunciado pelas crenças dos saduceus de que a alma morria com o corpo e pela proposição, condenada nos Éditos da Fé, de que não havia mais que nascer e morrer, os teólogos faziam frente no século XVII ao ateísmo que ligavam à seita dos epicúreos.

O cristão-novo Manuel Fernandes Vila Real esconde-se mas trai o seu pensamento mais profundo quando escreve:

A variedade de Religião, quando é oculta (se acaso há quem, pelas comodidades da vida que pode buscar em outra parte com mais liberdade, quer arriscar as da Alma) não deve castigar-se com tanto rigor nem com meios tão extraordinariamente cruéis. Não é do poder do Príncipe o esquadrinhar os segredos da Alma; basta que o vassalo obedeça às suas leis, observe os seus preceitos sem introduzir o seu império no mais oculto dos pensamentos, no mais íntimo do coração.

E acrescentava:

O coração do homem está nas suas mãos, isto é, nas suas obras, se não quereis despenhar-vos em temeridades, excedendo os limites de vossa jurisdição, julgai por elas, pelo exterior, não segundo a vossa ignorância, ou por melhor dizer, a vossa malícia.[24]

Mais tarde, na Holanda, Bento de Espinosa escreverá:

Se o direito estatal fosse de modo a que os fatos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes, semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar qualquer espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em sedições.

E no rosto do Tratado teológico-político desfraldava a bandeira moderna da liberdade:

A liberdade de filosofar não só é compatível com a preservação da piedade e da paz, como, inclusivamente, não pode ser abolida sem se abolir ao mesmo tempo a paz do Estado e a própria piedade.

Desde o século XVI que na Europa se percorria um caminho no sentido de subordinar o poder religioso ao poder político. O jesuíta português cristão-novo padre Henrique Henriques, encarregado do ensino de filosofia e depois de teologia em Córdova e em Salamanca, publicou nesta última cidade em 1593 o tratado De Pontificis Romani Clave. O núncio apostólico considerou injuriosas para a Igreja as suas teses sobre as imunidades eclesiásticas que subordinava ao poder político. A obra foi condenada pelo Índex e seguidamente queimada em 7 de Agosto de 1603.[25]

Mas enquanto o Tratado de Westfália de 1648 assinalava na Europa o primado do político no Portugal restaurado a Igreja recuperava o seu poder. No acórdão de condenação de Manuel Fernandes Vila Real os inquisidores acusavam: pretendia ele que o político de uma república se conservasse vivendo na religião que quisesse, tinha por escandaloso não se admitir nos ofícios públicos os de religião diferente, e tirava ao papa totalmente o poder em direito sobre os príncipes circa temporalia, mesmo que o príncipe fosse herético e cismático.

D. João IV, ao publicar em 1649 o alvará que isentava o capital dos cristãos-novos do confisco inquisitorial, ousara sobrepor o político ao religioso mas foi sol de pouca dura. Após a sua morte, o Conselho Geral do Santo Ofício mandou afixar à porta das igrejas do reino um édito em que se declarava: não cabia do

domínio do poder real a faculdade de isentar os hereges da pena de confis­ cação dos sagrados cânones, a cuja disposição não podiam contravir os prín­ cipes temporais direita ou indireitamente por suas leis ou estatutos, por cair aquela pena sobre matéria espiritual e ser punitiva de pecado mortal.

E declaravam Authoritate Apostolica que todos aqueles que aconselharam, persuadiram, ajudaram ou moveram ou de qualquer modo concorreram na disposição do alvará tinham incorrido na pena de excomunhão maior.[26]

A rainha não resistiu à pressão do chamado Santo Ofício e revogou o alvará de 1649. Em Portugal, o religioso continuaria a sobrepor-se teórica e politicamente ao político.

Notas

  1. Ana Cannas da CUNHA, A Inquisição no Estado da Índia. Origens (1539-1560), Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1995.
  2. Duarte Gomes SOLIS, Alegacion en favor de la Compañia de la India Oriental, Lisboa, 1955, p. 203.
  3. Idem, ibidem, p. 80.
  4. Manuel Fernandes VILA REAL, Epítome genealógico do eminentíssimo cardeal duque de Richelieu e discursos políticos sobre algumas acções da sua vida, Pamplona, 1641, p. 126.
  5. Bento de ESPINOSA, Tratado teológico-político, trad. portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, Prefácio.
  6. Maria José Ferro TAVARES, Os judeus em Portugal no século XV, Lisboa, Universidade Nova, 1982, vol. I p. 256.
  7. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Évora, Processo nº 8628.
  8. I. S. RÉVAH, Études portugaises, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, p. 226.
  9. António Borges COELHO, Inquisição de Évora, Lisboa, Editorial Caminho, 1987. vol. II, p. 238.
  10. Idem, ibidem, vol. I, p. 423.
  11. Idem, ibidem, vol. II p. 248.
  12. Idem, ibidem, p. 134.
  13. Idem, ibidem, p. 203.
  14. Idem, ibidem, p. 161.
  15. D. G. SOLIS, Alegacion en favor de la Compañia de la India Oriental, p. 68.
  16. A. B. COELHO, Inquisição de Évora, vol. n, p. 67.
  17. Pe. António VIEIRA, Obras escolhidas, Lisboa, Sá da Costa, 1951, vol. IV, p. 29.
  18. A. B. COELHO, Inquisição de Évora, vol. I, p. 200.
  19. I. S. RÉVAH, Études portugaises, p. 53.
  20. Manuel Gonçalves CEREJEIRA, O Renascimento em Portugal. Clenardo e a sociedade portuguesa. Coimbra, Coimbra Editora, 1974, vol. I, p. 326.
  21. Lúcio de AZEVEDO, História dos cristãos-novos portugueses. Lisboa, Clássica, 1921, p. 454.
  22. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo nº 11 550.
  23. Fernão REBELO, “Tratado do câmbio’·, em Virgínia RAU, Estudos sobre história econômica e social do Antigo Regime, Lisboa, Editorial Presença, 1984, p. 119.
  24. M. VILA REAL, Epítome genealógico, p. 105.
  25. . S. REVAH, “Les origines juives de quelques jésuites hispano-portugais du XVIe sié­cle”, IV Congres des Hispanistes Français, Paris, PUF,1968, p. 87.
  26. A. B. COELHO, Inquisição de Évora, vol. II, p. 258.

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