Deus cantor
por Lorenzo Mammi
Resumo
Entre os séculos III e VI d.C. a música no Ocidente começa a se diferenciar das músicas grega, romana, hindu ou árabe. Nasce o canto cristão, sobretudo a partir das reflexões de santo Agostinho ligadas à língua, à métrica e à música. Ele entende a melodia como forma no tempo, como tensão (intentio) que puxa cada nota em direção à seguinte. Os gregos haviam mostrado que o tempo adquire significação racional se nele encontramos regularidades periódicas (ritmos). Agostinho, que tinha necessidade, como bispo, de falar ao povo e de cantar os cantos do povo, vai perguntar qual a ordem do movimento aparentemente caótico da língua e da fala. A beleza da melodia, intermediária entre a linguagem e a matemática, o conduz à ideia do tempo como contínuo emergir e afundar na não-existência. O presente é tensão entre memória e expectativa, entre não ser ainda e já não ser (“som que começa a ressoar, e ressoa, e ainda ressoa, e já é silêncio”), mas um ato livre da vontade dá direção a esse fluxo. É assim que o transcendente surge do efêmero. Agostinho relata nas suas Confissões uma experiência. Logo após a morte de sua mãe, ele relembra mentalmente um hino de louvor a Deus e começa a chorar. O reconhecimento da fragilidade humana acompanha seu canto sem palavras, sem mover os lábios. Ele intui que a melodia é movimento da alma, que seu acento intensivo dá forma ao mundo, e que a canção do mundo cantada por Deus nos parece caótica apenas porque não a conhecemos por inteiro, só adquirindo sentido no Juízo final.
A música do Ocidente europeu pertence, como o resto de sua cultura, ao grupo indo-europeu. Num determinado momento de sua história, todavia, se destacou desse tronco e começou um processo evolutivo sempre mais acelerado que a levou à polifonia, ao compasso, à teoria harmônica. As outras tradições do mesmo bloco, da Índia ao Norte da África, passando pelos países eslavos, continuam tendo fortes vínculos de parentesco. Os nossos hábitos musicais, ao contrário, revelam apenas sombras semi-apagadas da raiz comum. No seu caráter nitidamente direcionado, na sua dupla dimensão, horizontal e vertical, na tensão interna que é sempre possível reconhecer nela, a música do Ocidente é fortemente atípica.
Cabe indagar, portanto, a origem desse descolamento, suas causas e seus significados. Onde podemos situar cronologicamente os primeiros sinais de uma diferenciação? A música grega e romana não difere ainda, na substância, das tradições indiana ou árabe. O surgimento da polifonia na Idade Gótica, ao contrário, parece ser um fenômeno demasiado recente — mais o efeito, o fruto maduro de uma mudada condição da música, do que o início de um novo rumo.
A época em que a formação do canto cristão se sobrepõe à crise da música antiga, entre os séculos III e V depois de Cristo, é, a meu ver, um ponto de partida ideal. Os teóricos dos séculos VI e VII, Isidoro, Cassiodoro e Boécio, que se tornaram referência obrigatória nas escolas medievais, tentaram uma restauração racionalista, recuperando inclusive termos e teses da Antiguidade. Acabaram escondendo ou amaciando os traços mais originais das novas práticas. Mas os escritores cristãos dos séculos imediatamente anteriores estão vivendo em plena revolução cultural, e não tentam abrandar os elementos de novidade. É nestes, ao contrário, que eles apoiam sua identidade de cristãos, contra uma cultura pagã ainda viva e ativa.
O autor que com mais profundidade e inteligência soube descrever essa revolução foi Santo Agostinho. Agostinho — que é gramático por formação, escritor por vocação, filósofo neoplatônico por entusiasmo juvenil, cristão e teólogo por escolha madura — é não apenas a melhor testemunha, mas também a expressão mais alta da crise que inaugurou nossa era. Além disso, é um autor que sempre pôs no centro da sua reflexão temas ligados à língua, à métrica e à música, não apenas enfrentando-os em seus aspectos técnicos, mas também transformando-os em instrumentos de investigação metafísica.
Em algumas cartas da maturidade do santo (eps. 138 e 146, datadas c. 410)[1] se encontra uma expressão que poderíamos traduzir aproximadamente como “Deus cantor”: Deus modulator. O termo latim modulator possui uma significação ampla. Modulatio deriva de modus, “medida” . É modulado qualquer movimento bem-proporcionado que tenha seu fim em si mesmo. Em termos modernos: qualquer movimento belo que tenha finalidade estética. Num tratado juvenil sobre a música, Agostinho exemplifica a modulatio com o trabalho do oleiro: este realiza gestos ritmados, que porém são apenas conseqüências de operações destinadas à feitura do vaso. Mas, se nos abstrairmos da finalidade de seus gestos e os observarmos apenas como movimentos belos, a arte do oleiro se tornará uma dança, portanto uma modulatio.[2]
A música é a ciência da boa modulatio (scienda bene modulandi) e inclui portanto a dança. Mas a forma mais pura de música é a do movimento sonoro, a melodia. A melodia surge sem o suporte de uma matéria preexistente (nem que seja o próprio corpo do dançarino), sem um deslocamento no espaço, sem uma causa no tempo. A melodia produz simultaneamente sua matéria e sua forma.[3] Mas onde está sua forma? Não no espaço, evidentemente, porque a melodia não ocupa espaço. Então estaria no tempo. O tempo, porém, é feito de momentos sucessivos, e cada um deles desaparece para deixar lugar ao seguinte. Se a forma é a relação das partes com o todo, que partes são essas, que se excluem mutuamente? A questão da forma da música desagua assim na questão da forma do tempo. Aliás, a questão fundamental é essa: é possível falar de uma forma no tempo, assim como se fala de uma forma no espaço?
O problema voltou a ser atual no fim do século passado, com a crise convergente da física newtoniana e da filosofia idealística de Kant. Kant tinha colocado o espaço e o tempo como formas a priori da experiência, formas que antecedem qualquer conhecimento. A partir do fim do século XIX começa-se a questionar se realmente o tempo possui um estatuto tão primordial quanto o espaço, e se nossa percepção das estruturas e formas temporais é tão imediata e intuitiva quanto nossas percepções espaciais.
Ernst Cassirer, um dos principais representantes da escola neokantiana, observou no começo do século que todas as nossas expressões relativas ao tempo são na verdade expressões espaciais empregadas por analogia: o intervalo de tempo, o tempo que se dilata na teoria da relatividade, o tempo como reta infinita etc. Nós apreendemos as estruturas temporais apenas indiretamente, mediante um análogo espacial.[4] Um autor ainda mais recente, Paul Ricoeur, também afirma que é impossível uma apreensão imediata do tempo. O que produz a série temporal é a atividade humana de construção de um enredo, que põe em relação os eventos dentro de uma narrativa.[5]
Em Cassirer encontramos um modelo espacial do tempo, em Ricoeur um modelo narrativo. Em ambos os casos é considerada impossível uma apreensão imediata das formas do tempo (uma fenomenologia pura do tempo, segundo a expressão de Ricoeur). Agostinho também parece considerar impossível uma intuição imediata do tempo. Mas sua solução não é nem geométrica (embora utilize metáforas espaciais), nem narrativa. É musical. O tempo se assemelha à música. Quando eu canto eu sei a forma da melodia, embora esta forma nunca esteja presente inteira nos sons que vou pronunciando. A forma, nesse caso, é uma espécie de tensão (inten-tio) que puxa cada nota em direção à seguinte. Só na última nota a forma se acaba, mas também acaba, se esgota, porque não há mais tensão. A melodia esvanece e se deposita na memória, como tensão potencial que pode ser revitalizada quando recomeço a cantar.[6]
Cantar é portanto dar forma ao tempo, criar uma série de momentos sucessivos unificados por uma tensão interna. Mas essas tensões locais se inscrevem numa série temporal geral, que vai da Criação até o Juízo Final, como motivos secundários numa grande melodia. Não percebemos a forma geral dela, assim como as notas de uma melodia, se tivessem consciência, não poderiam perceber a forma da melodia em que estão inscritas. O momento presente deve se extinguir para deixar lugar ao seguinte, segundo uma lógica que não podemos enxergar. Só no final dos tempos a melodia será completa e clara. Mas também se esgotará.[7]
Quem canta essa melodia é Deus. Como um músico, ele também cria sem uma matéria preexistente, sem um deslocamento no espaço, sem uma causa no tempo. Como um cantor que produz ao mesmo tempo os sons e a melodia que os sons desenham, Deus cria ao mesmo tempo os corpos e o tempo em que os corpos se inscrevem. Não há tempo antes da Criação, porque na eternidade não há tensão para o futuro, nem lembrança do passado. A eternidade é um presente imutável.[8] A questão do tempo, que para os gregos era principalmente um problema físico, se desdobra assim numa questão teológica e numa questão psicológica. O que articula os dois planos é a música enquanto ciência da modulatio, isto é: criação desinteressada de movimentos belos.
Esse é o perfil que o Agostinho maduro dá à questão. Mas é uma abordagem que se define aos poucos, graças a uma modificação gradual da terminologia e das teorias antigas, no esforço de adaptá-las à doutrina cristã e à função diferente que os novos tempos exigiam da filosofia e das artes.
Agostinho jovem é um neoplatônico, e continuará usando teses e termos neoplatônicos pelo resto da vida. Mas eles irão aos poucos mudando de significado e de perfil, até se tornarem completamente originais.
A passagem, mediante a música, da esfera humana a uma esfera superior era um elemento da ética greco-romana, mas tinha então um sentido muito diferente. Os antigos distinguiam três níveis temporais: a eternidade, imóvel e imutável; o perpétuo, isto é, todos os movimentos que se repetem ao infinito, como os movimentos celestes; e o tempo em sentido estrito, que é sucessão irregular de eventos. Há uma hierarquia entre esses três níveis: a eternidade é o modo de ser das idéias, da verdade, das essências. O perpétuo é o reflexo imediato dessa realidade superior, sua imitação mais perfeita no mundo do sensível. O tempo só adquire significação racional se encontrarmos nele regularidades periódicas que possam aproximá-lo do perpétuo.[9] Essas regularidades são os ritmos.
Ritmo é uma palavra grega que deriva de reo, “fluir”. No seu primeiro e mais amplo significado, o ritmo é portanto a maneira com que um evento flui no tempo. Não há nesse termo nenhuma referência necessária a regularidades periódicas ou a relações matemáticas entre intervalos. Todavia, o ritmo se torna mais interessante, para o pensamento grego de origem. pitagórica ou platônica, na medida em que se descobre nele uma regularidade e uma proporção que o aproxime dos movimentos perpétuos. A teoria rítmica dos gregos será portanto um esforço contínuo para a regularização e a matematização das durações.[10]
O mesmo esforço de racionalização se encontra na análise das escalas melódicas. Os gregos foram grandes teóricos musicais. Em compensação, não escreviam música, a não ser excepcionalmente. É que consideravam a composição e a improvisação musical apenas como uma manifestação efêmera de uma ordem permanente: a proporção bela dos intervalos e das durações. Era esta proporção que podia ser reconduzida a um nível superior, o dos movimentos cíclicos: a música mundana das esferas, ou a música humana do organismo vivo. A primeira garantia a relação da música com uma verdade superior; a segunda, com um ethos, isto é, com os sentimentos e as ações humanas. Há um termo significativo, em grego, que indica as operações necessárias para fazer uma boa composição: pettéia. A palavra indicava originalmente os jogos de tabuleiro. As regras para a composição, para a realização da música eram para os gregos algo parecido com as regras para jogar xadrez: o que conta é o jogo, e não cada partida.[11] É evidente o contraste desse ponto de vista com o nosso. Para nós, os sistemas musicais existem em função da obra, e não a obra em função do sistema. A obra-prima muda as regras.
Quanto ao ritmo, o sistema grego era determinado pela prosódia quantitativa da língua, baseada na alternância entre sílabas longas e breves. A relação entre as duas quantidades não era necessariamente matemática. Mas já na época de Aristóteles existia uma corrente, chamada escola dos rítmicos, que tentava medir todas as durações da prosódia com uma unidade abstrata de tempo, o chronos protos. Essa matematização do ritmo permitia quebrar a relação fixa entre longa e breve, construindo ritmos irregulares mediante o recurso a sílabas “hiperlongas” ou “hiperbreves”. Aos rítmicos, que eram sobretudo teóricos musicais, se opunham os métricos, que eram basicamente gramáticos, e que tentavam conservar a antiga prosódia. Os métricos defendiam a pronúncia exata das palavras, a única capaz de preservar o ritmo original da língua.[12]
Os latinos absorveram a teoria musical grega numa fase já avançada de matematização, tanto que cometeram um erro de tradução revelador: interpretaram a palavra ritmos não como um derivado do verbo reo, “fluir”, mas como uma deformação do substantivo arítmos, “número”, e verteram no latim numerus. A conseqüência foi uma mudança de perspectiva: para os gregos, os valores numéricos eram algo que podia e devia ser extraído do fluir dos eventos, mas não era dado de antemão; para os latinos, ao contrário, são rítmicas apenas aquelas durações que já se apresentam como quantidades regulares, numéricas. Todos os movimentos irregulares ficam com isso fora do campo do conhecimento.[13]
Essa restrição foi particularmente problemática, porque a prosódia latina tinha, ao que parece, uma vocação quantitativa muito menos definida do que a grega. Os textos latinos arcaicos denunciam a presença de um acento tônico bastante marcado. Em outras palavras, a prosódia latina tende a se organizar não apenas como sucessão de longas e breves, mas também como alternância de sílabas acentuadas e átonas, mais ou menos como a prosódia moderna. Isso introduz um elemento qualitativo no verso que dificilmente pode ser reduzido a valores numéricos. Na época clássica, houve um esforço da intelectualidade romana para moldar o latim pelo modelo grego, esforço que reduziu bastante as diferenças entre as duas línguas. Mas na era cristã, com o vir à tona dos latins populares e provinciais, essa tentativa de homogeneização vai por água abaixo.[14]
Agostinho era africano, originário da província que falava o latim mais irregular do Império. Mas também da terra que produziu os últimos grandes gramáticos da Antiguidade, defensores da pureza do latim clássico e grecizante de Cícero e Virgílio: além do próprio Agostinho, Cipriano e Mário Victorinus.[15] Filho dessa tradição, o santo encontra-se portanto numa situação difícil: de um lado, há uma ciência rítmica matematizante e rígida, que exclui qualquer construção irregular; de outro, uma língua popular que, segundo a teoria, deveria ser considerada apenas como aberração irracional.
Na medida em que Agostinho se torna cristão, e mais tarde bispo, empenhado em atividades pastorais na sua terra de origem, as duas realidades entram sempre mais em conflito. É necessário falar a língua do povo, que é a língua dos verdadeiros crentes. É necessário cantar os cantos do povo, que não respeitam a prosódia tradicional. Mas como encontrar neles um novo tipo de beleza, que possa vencer a beleza da prosódia pagã? Há dois caminhos: o primeiro é reconstruir, dentro da nova realidade, um sistema rítmico-matemático tão articulado quanto o antigo, o segundo é mudar o sentido da palavra ritmo, e com isso mudar a relação entre tempo e música. Agostinho oscila entre as duas soluções, mas se torna tanto mais inovador quanto mais tende para a segunda.
A primeira vez que Agostinho enfrenta a questão de maneira aprofundada é no diálogo De ordine, escrito quando já tinha se convertido mas ainda não tinha sido batizado. O De ordine é um livro estranho, que cria mais problemas do que soluções. Agostinho parece se preocupar em expor todas as dificuldades teóricas da teologia, mesmo que elas não tenham ainda uma resposta.
É significativo que o ponto de partida do diálogo seja uma questão ao mesmo tempo rítmica e musical. Ouvindo o ruído irregular da água corrente de um canal, mergulhado na escuridão da noite, o autor se pergunta qual é a ordem que esse movimento aparentemente caótico expressa.[16] Diferentemente dos teóricos pagãos, um cristão não pode simplesmente excluir esse barulho da ordem racional, porque isso significaria dizer que Deus não controla toda a Criação, ou que Deus não é sempre racional. Pondo essa questão, Agostinho volta instintivamente à conotação original da palavra ritmo, “fluência”, embora continue pelo resto da vida a traduzir ritmo como numerus.
A segunda epifania se dá na manhã seguinte, assistindo a uma briga de galos. Apesar da crueldade do espetáculo, a luta é bela, porque os galos se movimentam segundo gestos harmoniosos, segundo uma modulatio. Até o andar capenga do vencido, em oposição à dança de vitória de seu adversário, possui sua beleza. A questão, portanto, se complica ainda mais: a ordem não é mais posta apenas como artigo de fé, como princípio no qual é necessário acreditar apesar das aparências. Ela está aí, evidente, pelo prazer que retiro da beleza dos movimentos, embora não enxergue nada de racional neles.[17]
O De ordine não dá uma resposta definitiva a essas questões. Apenas as propõe, no decorrer da discussão, em formas filosoficamente sempre mais aceitáveis. Conclui com um programa de estudos que é a primeira manifestação daquele que será, na Idade Média, o sistema das artes liberais. Há três artes da linguagem: a gramática, que ensina como formular corretamente as proposições; a dialética, que diz respeito ao conteúdo dessas proposições; a retórica, que ensina as melhores (mais belas) formas de eloqüência. Seguem quatro artes do número: a música, a geometria, a astronomia e, superior a todas, a aritmética, que estuda os números em si.
Na visão de Agostinho essas artes preparam para o conhecimento filosófico e teológico, segundo uma progressão: a gramática é ciência da comunicação; a dialética é já uma ciência do conhecimento racional; a retórica tem um conteúdo estético, que a coloca num nível um pouco superior. A música, nesse esquema, tem uma posição central. Ela extrai da linguagem os elementos puros da beleza: os ritmos e os acentos, isto é, o sistema de alturas. Com isso, passa do campo dos signos ao campo dos números.[18]
Há dois pontos interessantes nesse programa cristão de estudos: o primeiro é a função de destaque dada à beleza. Nos extremos da hierarquia estão a gramática, ciência utilitária e social, e a aritmética, ciência dos conhecimentos racionais abstratos. O que permite a passagem gradual de um nível ao outro, da experiência à razão, é a beleza, enquanto ordem imanente aos sentidos que remete a uma ordem superior do intelecto.
Fala-se muito da função repressora do cristianismo em relação à arte antiga (destruição de estátuas, abolição dos espetáculos teatrais etc.). Esse aspecto sem dúvida é real, mas há um outro, complementar e oposto: o cristianismo, e Santo Agostinho em particular, confere à arte um valor transcendente, uma capacidade de revelação que os antigos talvez não conhecessem. Certamente, o sagrado era um elemento importante da arte antiga. Mas a arte, e sobretudo a música, tinha uma função catártica, de purificação. Punha em equilíbrio o corpo, acertava os ponteiros com a ordem cósmica, preparava o espaço para a aparição do divino. Não era, porém, essa aparição. Em Agostinho, ao contrário, a experiência estética proporciona a passagem do plano da experiência ao plano das idéias, porque é uma atividade ao mesmo tempo contemplativa (portanto intelectual) e sensível (portanto mundana). Justamente por ser uma postura desinteressada em relação ao mundo, revela no mundo uma ordem que nossas atividades cotidianas, dirigidas ao útil, escondem.[19]
O segundo ponto importante no programa do De ordine é a posição que nele ocupa a música. No pensamento antigo e medieval, ela é normalmente considerada uma ciência exata. Agostinho, ao contrário, lhe confere uma posição intermediária, entre a matemática e a linguagem. Ela surge da fala e não, como na tradição pitagórica, do estudo de fenômenos físicos (as vibrações) ou de cálculos matemáticos.[20] Essa posição de Agostinho será pouco aproveitada na Idade Média: o pitagorismo prevalecerá, sobretudo graças a Boécio. Mas a contraposição entre música-ciência e música-linguagem voltará à tona ciclicamente, na Renascença, no Ilumi-nismo, no Romantismo, e se tornará um dos traços fundamentais de nosso pensamento musical.
Após o De ordine, Agostinho se põe a realizar o programa e a resolver as questões postas nesse tratado. Escreve em primeiro lugar um De libero arbitrio, para discutir a questão mais grave aflorada no diálogo anterior: a da origem do mal. Se o mal é estranho à ordem divina, há um princípio do mal exterior a Deus, e Deus não é o princípio de todas as coisas. Se, ao contrário, o mal faz parte da ordem divina, como o homem pode ser punido pelo mal que comete? A resposta a essa questão é complexa, e não pode ser abordada aqui. Um único aspecto nos interessa: a distinção agostiniana entre ação necessária, típica dos corpos inanimados, e ação voluntária, típica dos seres animados. A ação necessária tem sempre uma causa fora de Si; a ação voluntária, ao contrário, tem sua causa em si, isto é: não é possível remontar além dela na cadeia causal. Posto em outros termos: os eventos mundanos estão organizados segundo cadeias causais (a ordem à qual Agostinho se refere aqui é sempre uma ordem causal); na origem de cada uma dessas cadeias está um ato de vontade, divina ou humana; aqui a cadeia se interrompe, porque esse ato é livre, portanto não tem outra causa a não ser a própria vontade que nele se manifesta. Toda série de eventos se caracteriza assim como uma cadeia de causas e efeitos originada por um ato de vontade. É a vontade que confere um sentido, uma direção aos eventos. Está aqui, a meu ver, o embrião da interpretação agostiniana da forma do tempo, como tensão interior, ou intenção (intentio) que unifica uma série de eventos.[21]
Simultaneamente ao De libero arbitrio, Agostinho começa a trabalhar uma série de tratados sobre as artes liberais, que deveriam ter uma ordem progressiva, conduzindo aos poucos da experiência sensível à verdade transcendente, segundo o modelo esboçado no De ordine. Mas é chamado de volta à África e é nomeado bispo. Consegue acabar apenas um livro sobre a gramática e seis livros sobre a rítmica, que deveriam fazer parte de um tratado musical mais amplo e que hoje são conhecidos com o nome de De musica.[22]
O De musica, diálogo entre um mestre e um discípulo, apresenta uma forma assimétrica. Os primeiros cinco livros são um tratado de métrica, baseado nas teorias da escola matematizante dos rítmicos. É a última tentativa séria de salvar a estrutura quantitativa da métrica antiga, apesar do caráter sempre mais acentuativo da língua falada. Segundo Agostinho os ritmos quantitativos possuem um valor racional que os torna inatacáveis pela crise da língua. Eles mantêm sua beleza mesmo que as palavras que os compõem estejam todas erradas.[23] Os ritmos são belos não porque expressam a beleza da língua, mas porque através da língua manifestam a beleza de proporções inalteráveis. Tratando do verso heróico, o da Ilíada e da Eneida, chega a teorizar que sua superioridade sobre os demais tipos de versos é devida ao fato de que a soma dos quadrados de seus membros menores (calculada em unidades de tempo) é igual ao quadrado do membro maior. Em outras palavras, o verso heróico seria uma espécie de triângulo retângulo temporal. É evidente que, levada até esse ponto, a racionalização rítmica mantém uma relação muito frágil com a percepção concreta. Essa postura de Agostinho reflete ainda o círculo restrito de intelectuais que compunha seu ambiente na Itália.
O sexto livro do De musica foi escrito já na África. Vários elementos de forma e conteúdo apontam para uma redação, ou pelo menos uma revisão mais tardia.[24] Agostinho deixa de lado as questões métricas e se ocupa, mais em geral, da forma com que a razão passa dos dados da experiência ao conhecimento das verdades últimas. Há aqui uma teoria da sensação muito desenvolvida, fundamental para o pensamento posterior do santo. Há também uma visão cosmológica que retoma o modelo platônico e rea-proveita, ainda uma vez, a distinção grega entre temporal, perpétuo e eterno. A novidade está na forma com que o tempo se produz a partir da eternidade.
A tradição neoplatônica pretendia que o tempo, como o universo, fosse gerado por emanação do princípio único e eterno. A explicação agostiniana, ao contrário, introduz um elemento psicológico: o tempo é produzido pelo movimento da alma, a quem Deus deu a liberdade de se dirigir para Ele ou para o Mundo. É na passagem de um ao outro que há a primeira mudança, portanto a primeira sensação temporal. Assim, Agostinho leva mais adiante a idéia apresentada no De libero arbitrio. Ali, está escrito que cada série causal tinha na sua origem um ato de vontade. Aqui se amplia o conceito: cada série temporal é uma cadeia de conseqüências de um movimento da alma, de uma escolha.
O tempo existe porque existe o pecado. Se a alma tivesse ficado com Deus e não tivesse sido atraída pelo mundo, permaneceríamos pairando na eternidade. Uma vez gerado, porém, o tempo não pode ser abolido com um simples ato de vontade contrário. A volta a Deus é também um percurso, uma tensão-intenção para algo, portanto um movimento no tempo. A idéia da forma do tempo como tensão interna, vontade embutida nos eventos, está quase completamente articulada. Falta o último passo, o mais dolorido: a renúncia ao valor matemático das sensações temporais. Esse último obstáculo é derrubado no texto mais original de Agostinho, as Confissões, e na parte provavelmente mais instigante desse texto, o Livro XI. Aqui o bispo expõe sua famosa tese sobre o tempo, que até hoje intriga os filósofos. O ponto de partida é, ainda uma vez, a experiência auditiva. Parece-me necessário citar por extenso o trecho em que Agostinho põe a questão, porque nenhum resumo poderia reproduzir a densidade e a pregnância estilística do texto original:
Eis, por exemplo, um som material que começa a ressoar, e ressoa, e ainda ressoa, e acaba de ressoar, e já é silêncio, o som passou: não é mais. Era um som futuro, antes de soar; não podia ser medido, porque ainda não existia; e agora também não pode, porque não é mais. Poderia, então, enquanto ressoava, porque ali tinha algo a ser medido. Mas não era estável, ia passando. Mas por isso não seria ainda mais mensurável? De fato, ao passar se estende por um certo espaço de tempo, que poderia ser medido, porque o presente não tem extensão. Se is-so pode ser medido, eis, digamos, um outro som que começa, e continua soando, com tom homogêneo e sem distinções; medimo-lo, então, enquanto ressoa.
Está bem, medimo-lo, e digamos sua quantidade. Mas ainda ressoa, e não pode ser medido senão de seu início, quando começou a soar, até o fim, quando parou. Com efeito, medimos um intervalo de seu início até seu fim. Portanto, um som que ainda não acabou não pode ser medido, para se dizer se foi longo ou breve. Nem poderia se dizer se é igual ou está em proporção simples ou dupla ou uma outra qualquer em relação a alguma coisa. Mas quando acabar, já não será mais. Como então poderia ser medido? E todavia medimos o tempo, não aquele que ainda não é, nem aquele que já não é mais, nem aquele que não tem extensão nenhuma, nem aquele que ainda não terminou . Nem o futuro, nem o passado, nem o presente, nem aquele que vai passando. E todavia medimos o tempo.[25]
Não há mais nada, aqui, que possa lembrar a numerologia do De musica. O tempo não pode ser medido, é inapreensível, porque é impossível medir algo que vive desaparecendo. O que caracteriza o tempo é c) contínuo emergir e afundar na não-existência. O presente não tem extensão, é apenas uma tensão entre não ser ainda e já não ser. No entanto, em algum lugar da nossa alma, o tempo deve se transformar numa extensão espacial, caso contrário não poderia ser medido. De onde podemos calcular a extensão do tempo, e enxergar formas no tempo? Onde encontra repouso a linha melódica, que na realidade física é apenas um contínuo desmanchar-se de sons sucessivos? Deve existir um lugar da alma onde o tempo se cristaliza na extensão de um eterno presente. Nesse lugar, o passado, presente na memória, pode ser medido com o presente da atenção atual e com o futuro da expectativa. Eis que o tempo se transforma na contemporaneidade de três atitudes espirituais: lembrar, prestar atenção, esperar. Fazemos isso em cada momento e cada momento contém, portanto, as três articulações temporais. Cada momento é ao mesmo tempo passado, presente e futuro.
Isso, porém, ainda não é suficiente. Resta definir o que põe em movimento esse eterno presente, o que o torna uma sucessão. A resposta estava esboçada desde o De libero arbitrio: é o ato de vontade que confere aos eventos uma direção, porque confere a eles uma intenção. Quando começo a cantar eu pretendo chegar ao fim da melodia, e por isso começo a tragar a melodia do futuro, onde a expectativa a coloca, para o passado, onde encontra repouso na memória. O ato da atenção presente se torna assim, ainda uma vez, um ato intencional, portanto um ato direcionado. A forma do tempo é, antes de mais nada, direção.[26]
Na teoria antiga, e ainda nos diálogos juvenis de Agostinho, encontramos uma ascensão gradual da experiência do tempo à percepção da eternidade, por meio de proporções numéricas sempre mais estáveis. Nessa nova fase do pensamento do santo há uma polarização entre extremos: é justamente o caráter transitório do tempo, seu esvanecer, que obriga o pensamento a imaginar um presente eterno em que sua forma possa ser apreendida. O transcendente se revela não naquilo que há de mais estável na condição humana, mas justamente naquilo que há de mais inseguro, efêmero. Há um episódio nas Confissões particularmente significativo, não apenas pela sua força dramática, mas também pela sua função estrutural: é a descrição da noite seguinte à morte de Mônica, a mãe do santo, descrição que conclui a parte autobiográfica do livro e precede imediatamente os últimos capítulos, de caráter teórico.
Nessa noite, Agostinho, recém-batizado, se força a não chorar. Julga que um cristão não possa se apegar à vida terrena ao ponto de chorar a morte de um ser querido, que morreu em graça de Deus. Cumpre os clássicos atos purificadores da tradição grega: canta, escuta música, conversa sobre assuntos filosóficos, toma banho. Vai dormir cedo. Deitado na cama, um hino ambrosiano, ouvido em Milão na época da sua conversão, lhe vem à mente. É um hino que louva o Senhor por ter criado o dia e a noite, o dia para viver, a noite para dar descanso aos sofrimentos do dia.[27] Cantando mentalmente esse hino, Agostinho começa a chorar. A passagem que segue é uma das mais intensas da literatura latina. É a crise completa, histórica, de um conceito de virtude como ataraxia, afastamento gradual das paixões mundanas, e a fundação de um conceito de virtude baseado no reconhecimento da fragilidade da condição humana.[28]
Não por acaso essa crise decisiva é provocada por um canto, aliás, um canto que fala de Deus, do sofrimento e do tempo. Não por acaso, esse canto é pronunciado mentalmente, sem articular os lábios. Na Antiguidade não se lia em silêncio, tampouco se cantava. O uso de ler Sall pronunciar as palavras é resultado das práticas de meditação sobre os livros sagrados dos cristãos. Agostinho, nas Confissões, lembra de ter surpreendido santo Ambrósio, seu mentor espiritual em Milão, lendo sem pronunciar as palavras, e ter se perguntado a razão de um comportamento tão estranho. Borges escreveu uma belíssima página sobre essa passagem.[29] Quanto à prática de cantar em silêncio, ela está implícita na exortação de são Paulo: “Entoem cantos e salmos ao Senhor em vossos corações”.[30] Esses hábitos, mais ainda do que os dialetos provinciais, aceleram a morte da métrica tradicional. Que duração pode ter uma palavra ou uma melodia apenas pensada?
A melodia sem palavras, o jubilus, de origem judaica e oriental, era um outro elemento de dissolução da antiga métrica. O jubilus tinha uma conotação mística particular: era o canto com que a assembléia se dirigia diretamente a Deus. As palavras são signos que o homem emprega para dominar o mundo. Ao falar com Deus elas são inúteis. Vários escritores desse período repetem: ao cantar o jubilus não cante com as palavras, cante com a alma (ou com a inteligência). Nos Comentários aos Salmos, leituras que Santo Agostinho ministrava publicamente em Hipona, há várias referências a esses cantos. As mais interessantes são aquelas em que explica o sentido do jubilus a partir do canto de lavoura, onde o próprio ritmo do trabalho se transforma em música. O canto renuncia às palavras, ou, segundo a expressão agostiniana, se afasta das palavras para entregar-se à melodia.[31] Esse abandono, esse jogar-se na melodia além de qualquer mediação racional, também é um fato novo, que representará uma constante estética da música ocidental.
Finalmente, a passagem da poesia quantitativa clássica à poesia acentuativa medieval também interessou Agostinho. É dele o primeiro texto poético ocidental baseado na nova métrica: o Psalmus contra parte Donati, um texto de propaganda religiosa destinado ao canto da assembléia. Nele se reconhecem todas as caraterísticas da versificação moderna: isossilabismo, regularidade dos acentos, rima.[32] O acento intensivo passa a dominar a prosódia literária.
Nos gramáticos da época de Agostinho, esse acento é chamado intentio, palavra que no latim clássico possui vários sentidos: pode significar “tensão” e, portanto, afinação de um instrumento, tom da fala, ou “grau de uma escala musical’;[33] na linguagem jurídica, é o ato de acusação,[34] em lógica, é a premissa maior de um silogismo;[35] significa também a atenção do espírito concentrado em seu objeto.[36] Em todos esses casos, é algo que põe, ou está prestes a desencadear um processo. Agostinho utiliza o termo como uma palavra-chave nas Confissões, quando, ao tratar do tempo, distingue entre extensio animi, que indica a presença simultânea das três medidas temporais na alma; attentio animi, que é a atenção genérica, ato de consciência que corresponde ao sentimento do presente, contraposta à memoría (sentimento do passado) e à expectatio (sentimento do futuro); intentio animi, que é o ato com que a alma se põe em movimento (por exemplo: começando a cantar uma melodia) e com isso cria uma série temporal.[37]
A meu ver, o uso da palavra intentio foi sugerido a Agostinho pela teoria gramatical da sua época. O surgimento da prosódia qualitativa obriga os gramáticos a uma reorganização terminológica. Para eles, intentio não indica mais o acento melódico ou o tom musical, e sim o acento tônico-intensivo moderno. Cledônius, que é professor de latim em Constantinopla mais ou menos na época de Agostinho, distingue três características do acento, que correspondem a três termos utilizados habitualmente como sinônimos: tonus, pelo som (timbre?); accentus, pela agudez (o acento melódico); tenor, pela intentio (o acento intensivo).[38] Outros autores repetem, como um lugar-comum da gramática, que “o acento é a alma da pa‑
lavra”. Pompeu, um gramático africano do fim do século v, desenvolve a imagem: como a alma domina o corpo, assim a sílaba acentuada domina a palavra. A exposição seguinte deixa claro que se está falando, aqui, do acento intensivo.[39]
Duração, acento melódico, intensidade: dos três elementos que caracterizam a prosódia da sílaba latina, este ultimo é sem dúvida o mais difícil de quantificar. No momento em que se reconhece nele a faculdade de dar vida, direção e unidade à palavra, seja ela falada ou cantada, a redução da música a uma ciência pitagórica se torna impossível.
O neuma, o traço sinuoso e enigmático que carateriza a antiga escrita musical cristã, nasce da notação dos acentos. É ao mesmo tempo célula melódica e unidade rítmica. Substitui com um único sinal as alturas, anteriormente marcadas por cifras, e as durações, que os antigos sinalizavam com pequenos traços. Não é uma duração calculada matematicamente, nem uma proporção entre durações. Não é intervalo nem nota. É um grupo de dois ou mais sons produzidos por uma única emissão da voz e unificados por um único acento, uma única intentio.
Agostinho não chegou a conhecer essa forma de escrita musical, mas certamente conhecia a notação dos acentos que a gerou, desenvolvida por gramáticos alexandrinos da Antiguidade tardia. O que interessa, porém, é sua extraordinária capacidade de unificar todos os elementos da nova sensibilidade temporal numa síntese filosófica, que é também uma imagem literária de evidência imediata. Algo que, como um neuma, parece surgir de uma única emissão de voz.
É a descrição da criação nos últimos dois livros das Confissões. Aqui se manifesta a intentio divina, não apenas porque Deus criou com um ato de vontade livre, mas também porque esse ato continua dando forma (isto é: tensão e direção) ao mundo. A história do mundo é a canção cantada por Deus. Sua forma melódica nos parece caótica porque não a conhecemos por inteiro. A música de Deus, como a música humana, só adquire sentido após a última nota, quando será encerrada pelo Juízo Final, como por uma cadência, e ingressaremos realmente no sétimo dia, o dia do descanso.
Notas
[1] Eps. 138 e 146, Migne, Patrologia latina, XXXIII, cols. 525-37 e 720-33 (em particular, cols. 527 e 726); cf. também eps. 137, ibidem, cols. 515-25, e o comentário de H.-I. Marrou, L’ambivalence du temps de l’histoire chez saint Augustin, Montréal; Paris, Institute d’Études médiévales; Librairie J. Vrin, 1950, pp. 82-3.
[2] De musica, I, ii, 2-3.
[3] Confissões, XII, XXIX.
[4] Cassirer, Filosofia delle forme simboliche, 3 vols., Florença, La nuova Italia, 1987, I, pp. 200-16; tit. or.: Philosophic der symbolischen Formen, 1923-9.
[5] Ricoeur, Temps et récit, 3 vols., Paris, Seuil, 1983, III.
[6] Confissões, XII, XXIX.
[7] De ordine, II, IV, 11-2; De musica, VI, XI, 30; cf. Marrou, L’ambivalence…, cap. V (pp. 76-83).
[8] Confissões, XII, XXIX.
[9] Cf. Plotino, Enéadas, in, 7.
[10] L. Laloy, Aristaxènes de Tarante disciple d’Aristote et la musique de l’Antiquité, Genebra, Minkoff Reprint, 1973 (1904); R. Waltz, “Pu0µ6 e numerus–, Revue d’études latines, XXVI (1948), pp. 109-20; E. Moutsopoulos, La musique dans l’oeuvre de Platon, Paris, PUF, 1959, pp. 77-80.
[11] A pettéia musical é assim definida por Aristides Quintiliano: “Pettéia é aquela graças à qual sabemos quais sons devem ser evitados, quais utilizados, e quantas vezes; corn qual é necessário começar e com qual terminar. Indica também o caráter musical” (De musica, I, XII, Leipzig, ed. R. P. Winnington-Ingram, 1963, p. 29; citado em L. Zanoncelli, La manualistica musicale greca, Milão, Guerini, 1990, p. 131). Cleonides lhe atribui uma função mais limitada: regra que governa a repetição das notas (Introdução à harmónica, cap. 14; em Zanoncelli, p. 107).
[12] Cf. o resumo da polêmica em Mário Victorinus, Ars grammatica, I, 4; em H. Keil, Grammatici latini, Leipzig, Treubner, 1857-, vol. VI, pp. 39-40; Agostinho a retoma em termos semelhantes no De musica (I, I, 1, e II, 1-2)
[13] Waltz, art. cit., pp. 115-7.
[14] Uma série de estudos publicados pela Revue d’études latines entre as décadas de 20 e de 30 ilustra bem os termos da questão: R. G. Kent, “L’accentuation latine: problèmes et solutions”, III (1925), pp. 204-14; M. G. Nicolau, “L’origine du ‘cursus’ rythmique et les débuts de l’accent d’intensité en latin”, VI (1928), pp. 319-29, e VII (1929), pp. 47-64, “Quelques considérations sur l’ictus et sur ses rapports avec l’accent, VII (1929), pp. 148-69; J. Marouzeau, “A propos de l’accent latin: deux témoignages à réviser”, IX (1926), pp. 41-4, e “Structure rythmique de la phrase et du vers latin”, XI (1931), pp. 325-43; J. Cousin, “Encore l’accent latin”, IX (1931).
[15] Victorinus é o responsável pelas versões latinas dos principais textos neoplatônicos (Isagoge de Porfírio e Enéadas de Plotino), graças às quais Agostinho se iniciou no neoplatonismo. É também autor de uma Ars grammatica que Agostinho utilizou extensivamente no De musica. Sua conversão ao cristianismo é narrada em detalhe nas Confissões, VIII, II. Cipriano, que foi bispo de Cartago no século III, é frequentemente apontado, junto corn Santo Agostinho, como um dos iniciadores da prosódia rítmica medieval, em oposição à prosódia métrica dos clássicos (cf. Nicolau, L’origine du “cursus”, parte II (1929), pp. 58-61).
[16] De ordine, 1, III, 6-7.
[17] Ibidem, I, VIII, 25-6.
[18] Ibidem, II, XII, 35-51; Henri-Irenée Marrou foi quem mais estudou essa questão nas obras de Santo Agostinho: ver “Saint Augustin et l’encyclopédisme philosophique”, Revue d’études latines, XII (1934), pp. 280-3; Saint Augustin et la fin de la culture antique, Paris, Boccard, 1938, parte II; “Les arts libéraux dans l’antiquité classique”, em Arts libéraux et philosophie au Moyen Age, Actes du IVème Congrès International de Philosophic Médiévale, Paris, Vrin, 1969; cf. também T. Gregory, “La Reductio artium da Cassiodoro a S. Bonaventura”, em B. Nardi (ed.), I classici della pedagogia italiana: il Medio Evo, Città de Castello, Giuntini; Sansoni, 1956, pp. 279-301; P. H. Baker, “Liberal arts as philosophical liberation: St. Augustine’s De magístro” , em Arts líbéraux…, pp. 469-79; G.-H. Allard, “Arts libéraux et langage chez St. Augustin”, ibidem, pp. 481-92.
[19] Plotino, baseando-se numa passagem de Platão (Fedro, 248 d), confere ao amante das artes uma posição intermédia entre o homem sensual e o filósofo (En. 1, III). Para ele também, o belo era um dos caminhos para o conhecimento. Mas o objetivo da ascensão da alma era para os platônicos a sapiência e não, como para os cristãos, o amor de Deus. A sensação estética, assim como qualquer tipo de emoção, se tornava desnecessária nos níveis mais altos. Uma alma verdadeiramente filosófica, aliás, podia muito bem dispensá-la, alcançando a verdade apenas pela via da virtude. Para Agostinho, ao contrário, a redenção é um ato de vontade ditado pelo amor de Deus e constantemente renovado (Bona voluntas; cf. Lib. ar, I, XII, 25; ver também H. Arendt, Le concept d’amour chez Augustin. Essai d’une interprétation philosophique, Paris, Deuxtemps Tierce, 1991). A função estética não se dissolve no movimento ascensional, mas se sublima na contemplação de Deus.
[20] Sobre a posição da música no sistema antigo das artes, ver, além das obras já citadas na n. 18: E. A. Lippman, “The place of music in the system of the liberal arts”, em J. La Rue (ed.), Aspects of Medieval and Renaissance music. A birthday offering to Gustav Reese, Nova York, Norton, 1966; E. J. Dehnert, “Music as liberal art in Augustine and Boe-thius”, ibidem, pp. 987-91.
[21] A argumentação do De libero arbitrio será retomada sob um outro ponto de vista no De Civitate Dei, v, ix; cf. W. L. Craig, The problem of divine foreknowledge and future contingents from Aristotle to Suarez, Leiden; Nova York; Copenhague; Colônia, Brill, 1988, cap. II
[22] Cf. Retractationes, I , VI, Migne, XXXXII, col. 591; Ep. 101, Memorio episcopo, Migne, XXXIIII, col. 367-9.
[23] Mus., II, ii, 2.
[24] Marrou, Saint Augustin, apêndice D.
[25] Confissões, XI, XXVII, 1-2. Além de sua importância conceitual, esse passo é relevante do ponto de vista estilístico. Para expressar uma nova sensibilidade temporal, Agostinho revoluciona a prosa latina. A sintaxe bem articulada, baseada numa rede complexa e sapiente de proposições variamente coordenadas, cede o lugar a uma sucessão de expressões curtas, quase instantâneas, enfileiradas uma atrás da outra de forma meramente paratá-tica. Sobre o estilo de Agostinho, cf. E. Auerbach, Mimesis, São Paulo, Perspectiva, 1987, pp. 56-65.
[26] Conf, , XI, XIV-XXXI. Cf. a análise de Ricoeur, Temps et récit, i, pp. 19-54.
[27] Deus creator omnium/ Polique rector, vestiens/ Diem decoro lumine,/ Noctem soporis gratia:// Artus solutus ut quies/ reddat laboris usui;/ Mentesque fessas allevet,/ Luc-tusque solvat anxios. [Deus criador de tudo,/ Senhor do céu, que revestes/ o dia com o ornamento da luz,/ a noite com a dádiva do sono:// Para devolver a paz/ ao corpo prostrado pelo trabalho;/ aliviar as mentes cansadas/ e dissolver os tristes sofrimentos.]
[28] Conf, , IX, XII.
[29] Ibidem, VI, i, 3; J. L. Borges, “Del culto de los livros”, em Prosa completa, Barcelona, Bruguera, ii, p. 231.
[30] Efes., 5, 19; é um passo muito comentado pelos autores patrísticos. Entre outros, Jerônimo (In Epistula ad Ephesios, 5), João Crisóstomo (In Ps. 41,1) e o próprio Agostinho (In Ps. 64, 3).
[31] In Ps. 94, 4; In Ps. 32, II, 3,
[32] Migne, XLIII, cols. 15-122; sobre esse poema, ver os comentários de H. Vroom, “Le psaume abécédaire de Saint Augustin et la poésie latine rythmique, Latinitas Cbristia-norum Primaeva, fasc. Iv, Nijmegen, Dekken & van der Vegt, 1933 (cf. também a resenha fortemente crítica de M.-G. Nicolau, Revue d’études latines, xi’ (1934), pp. 457-8); E. Tré-horel, “Le psaume abécédaire de Saint Augustin”, Revue d’études latines, xvii (1939), pp. 219-61; H. Spitzmuller, Poésie latine cbrétienne du Moyen Age, Bruges, Desclée de Brouwer, 1971.
[33] Cícero, Orator, xvm, 59; Tusculanae disputationes, I, 19; Quintiliano, Institutiones oratoriae, XI, III, 40.
[34] Quintiliano, In. o., III, IX, 1.
[35] Idem, ibidem, V, XIV, 6.
[36] Idem, ibidem, VI, III, 1.
[37] Conf, XI, XXVIII, 1.
[38] Ars Cledonii romani senatoris Constantinopolitani grammatici, Keil, Grammatici latini, v, p. 32; Sergii explanationum in arte Donati liber I, ibidem, IV, pp. 525-6. A comparação desses dois textos deixa supor que talvez Cleônius entenda, por tonus, a aspiração da sílaba.
[39] Pompeii commentum artis Donati, Keil, V, p. 126; Diomedis artis grammaticae libri III, Keil, 1p. 430.