2007

Esquecimento da política ou desejo de outras políticas?

por Francis Wolff

Resumo

Houve uma época em que “tudo era político”. Mas isso foi antes do esquecimento. Tudo era político exceto a própria política. A política-espetáculo, a dos homens políticos, não era a verdadeira política, era uma simples ilusão destinada a fazer com que o povo esquecesse onde estava a verdadeira política.

A política era tudo e aos poucos se tornou nada.

Pode-se enumerar ao menos quatro maneiras de esquecer a política. Duas dessas maneiras esquecem o fato de que vivemos necessariamente na pólis, substituindo a pólis pelo indivíduo autônomo ou pela pólis de Deus. As duas outras esquecem o fato de que essas comunidades são governadas por uma autoridade política que providencia um sentido, um futuro, assim como valores à pólis, e preferem a crença na onipotência do saber econômico ou do know-how técnico.

Há outro esquecimento que mescla ambos os tipos. É a substituição da política pela moral. Trata-se do apagamento de qualquer critério que não seja moral para avaliar uma política nacional ou internacional. Entretanto, a conduta moral dos homens não pode constituir sozinha o critério do valor de uma política, como se fosse a única coisa que contasse. A resposta contra a corrupção não pode ser somente a condenação moral dos homens, mas sim uma resposta política.

Quando o mal (em vez do bem) é tomado como único critério para o julgamento, quando julga-se a virtude dos homens e não o valor de um projeto ou a eficácia de uma ação, encontramos outro sintoma do esquecimento da política pela moral.

Eis então os dois grandes perigos que ameaçam a política em geral. De um lado, “tudo é político”; do outro, “nada é político”. Os dois perigos têm nome: de um lado, o totalitarismo político, que enxerga tudo através dos óculos do poder e não deixa nenhuma autonomia ao resto. O totalitarismo que reduz o homem a uma só definição (por exemplo, a de que o homem é unicamente e totalmente político), ameaça a autonomia de todos esses territórios e ameaça a própria liberdade. O segundo perigo é oposto ao totalitarismo: é o completo esquecimento da política. Esse perigo não ameaça mais a liberdade humana, mas a democracia. Então, o que fazer contra esse esquecimento?


Minha única ambição aqui é mostrar as causas e consequências do esquecimento atual da política, assim como as diferentes formas que ele toma.

Vocês se lembram de quando tudo era política?

Lembrem-se do tempo da política, poderíamos dizer. Era antes do esquecimento da política. Ou melhor, falando para os mais maduros, para os da minha geração ou das gerações anteriores, eu deveria dizer: lembrem-se da época em que, como se diz, “tudo era político”. Era na década que chamamos de sixties.

Será que é possível esquecer a política? À época respondíamos: “Não, impossível. Se esquecermos a política, ela se lembrará de nós. Talvez a política só queira uma coisa: que esqueçamos dela, para podermos cuidar de nós tranquila e serenamente, enquanto cuidamos dos nossos negócios sem nos preocuparmos com ela.” Dizíamos, de fato: “A falta de interesse pelas questões políticas é política, visto que essa escolha consciente nos coloca na situação de quem tem que suportar. Tudo é politico, tudo diz respeito ao poder, à organização desse poder. Negar essa realidade é aceitar que outros se encarreguem disso em seu lugar.” Era o que dizíamos. Mas isso foi antes do esquecimento.

Sim, naquela época, tudo era político, exceto, talvez… a própria política — ou seja, a “vida política” visível, sonora, aquela que passava na mídia: as lutas internas dos partidos, as ambições pessoais, as declarações dos ministros ou dos deputados. Tudo isso era considerado então, sobretudo pela esquerda, pura aparência, simples jogo de fantoches no palco social, destinado a ocultar a verdadeira realidade, a política em si, isto é: o verdadeiro poder, as relações sociais, os interesses econômicos. Não, tudo isso, a política-espetáculo, a dos homens políticos, não era a verdadeira política, era uma simples ilusão destinada a fazer com que o povo esquecesse onde estava a verdadeira política.

E essa supostamente estava em todo lugar — e sobretudo onde menos a esperavam. O amor, por exemplo, era político: as relações homem/mulher, os sentimentos, a sexualidade eram considerados determinados pela existência social, portanto políticos. As consequências disso eram diversas, aliás, às vezes contraditórias: alguns diziam que, já que as relações homens/mulheres sempre são marcadas pela dominação secular do homem sobre a mulher, seria preciso colocar um freio nisso, bem como na paquera, na sedução, sempre assimétricas, pensadas em termos masculinos, caracterizadas pela violência simbólica, espécie de estupro legal permanente etc. Outros diziam, ao contrário: a sexualidade sempre foi reprimida pelas classes dominantes e especialmente pela burguesia, em nome da rentabilidade dos corpos para o trabalho socialmente produtivo; é preciso colocar um freio nisso tudo, fazer do sexo um instrumento de libertação, levar a cabo a revolução sexual, proibir as proibições e a censura, libertar o sexo do casal fechado, do ciúme burguês etc.

A arte também era política: a falsa arte era a arte reacionária, a música tonal, a pintura figurativa, o romance ou o cinema narrativo etc. A “verdadeira arte” era a das vanguardas, revolucionária na forma e messiânica no conteúdo. Com efeito, a forma tinha que se libertar das limitações que pesavam sobre a “representação” ou a “narração”, resíduos das classes dominantes querendo representar a si mesmas. Romper com o realismo burguês significava, dependendo dos casos, promover a libertação pelo sonho e pela escrita automática ou pela abstração, ou ainda promover materiais não-convencionais e não-acadêmicos, ou ainda a música concreta, oaction painting, em que era o gesto ativo em si e não o resultado a ser contemplado passivamente, portador de uma mensagem de ruptura da qual a forma precisava. Quanto ao conteúdo, ele era necessariamente revolucionário também, o que não deixava de ter consequências contraditórias: para alguns, ele devia ser meramente formal para ser realmente político, para outros, esse formalismo era definitivamente pequeno-burguês e tinha que ser substituído por uma arte a serviço das massas, um novo realismo portador da mensagem socialista.

A moral, por sua vez, era inteiramente política. Ou então era oca, ridícula. A verdadeira moral só podia ser política: o bem era o que servia à causa, o mal, o que a desservia ou o que servia à causa inimiga. As virtudes eram as do militante: fidelidade ao grupo, lealdade para com os verdadeiros amigos, dedicação à causa. Aqui, de novo, a moral política — como a arte política e o amor político — enfrentava uma contradição: para alguns, a verdadeira moral deveria se libertar do “moralismo” ambiente, dos preconceitos repressivos, da castidade cristã, e adotar um hedonismo materialista corretamente interpretado. Para outros, esse culto do prazer fácil ainda era uma forma de moral pequeno-burguesa: era preciso, pelo contrário, pregar os valores eternos do proletariado, o ascetismo revolucionário, a abstinência, a simplicidade, a pureza do povo etc.

A verdade, a ciência e a literatura passavam pela mesma peneira. Aparentemente, eram apolíticas. Na realidade, eram políticas também, de cabo a rabo.

Um último exemplo, o esporte. Lembrem-se! Nada era mais político do que o esporte. O ano de 1968 viu os jogos olímpicos da Cidade do México, em plena revolução estudantil. O que a gente falava do COI, desse comitê de caciques cooptados, cúmplices das ditaduras, cuja ideologia e prática buscavam suas origens na ideologia e na prática de um fundador, Pierre de Coubertin, muito à direita politicamente. Foi nesse ano que os velocistas americanos abaixaram a cabeça na hora dos hinos, levantando um punho negro enluvado contra a segregação e a guerra imperialista. Tudo bem, alguns diziam: não se deve misturar esporte e política. Mas esses eram de direita, como por acaso! Pois a direita tinha como política dizer que tudo que não era política não era político. Mas essa, era a política dela, da direita, pois, como dizia a esquerda, era exatamente para que a verdadeira política fosse esquecida. De fato, a esquerda, toda ela, tinha como política mostrar que tudo o que parecia apolítico era na verdade político, mais do que tudo. E também o esporte. Lembrem-se ainda: os Jogos Olímpicos de 1972, o atentado de Munique, os mortos e os debates violentos entre os que defendiam o boicote aos Jogos Olímpicos daí em diante e os que pensavam que os jogos deveriam ser preservados. E a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, sob o regime sangrento dos militares. E a vitória da seleção alviceleste explorada pela ditadura…

Uma lembrança do esquecimento da política.

Eis o que dizíamos nos anos 1960 e 1970. Mas tudo não era tão simples, nem àquela época. E eu queria evocar uma lembrança de esquecimento da política naquela época inesquecível, quando tudo era político e a política era inesquecível. Na verdade, não vivi diretamente esse episódio, que amigos brasileiros me contaram várias vezes.

Aconteceu no Brasil, com efeito, no ano de 1970.

Lembrem-se desta época: 1970, a pior fase da ditadura militar no Brasil, é a época do governo Médici — purgas políticas, cortes drásticos na economia, e a censura. O Ato Institucional número 5. Uma verdadeira revolução dentro da revolução ou, se quiserem, uma contra-revolução dentro da contra-revolução, um golpe no golpe. Em dezembro de 1968, a edição do AI-5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 1967. Voltaram as cassações e o fechamento político. O auge foi depois do AI-5, nos anos de 1969 e 70.

Mas 1970 também é o ano da Copa do Mundo de futebol no México. A maioria dos intelectuais brasileiros, conscientes da situação política insuportável no Brasil depois do AI-5, dizia, repetia, clamava: acima de tudo, o Brasil não pode ganhar, sendo a ditadura militar vai explorar a vitória brasileira em proveito próprio, isso vai ajudá-la a reprimir a oposição com ainda mais violência, aproveitando a alegria popular de uma eventual vitória. De fato, nunca a ideia de que o futebol é o ópio do povo e serve para embriagá-lo, para entorpecê-lo, para fazer com que a política seja esquecida, foi tão verdadeira. Os intelectuais brasileiros diziam: o futebol não deve fazer com que nos esqueçamos da política.

Chega a final, no dia 21 de junho de 1970: Brasil x Itália. Lembrem-se do que viveram ou do que leram: vitória do Brasil, 4 a 1. Gols de Pelé (17′), (Itália, Boninsegna 37′), Gerson (66′), Jairzinho (71′), Carlos Alberto (97′). Pode-se dizer que depois do primeiro gol do Pelé a política foi esquecida! Só restava o futebol: a paixão pela partida e a alegria pela vitória depois!

Vão dizer: sim, a paixão pelo futebol tinha ganhado da paixão pela política. Não acho, nem um pouco. Mas, ao mesmo tempo, será que essa alegria pela vitória do Brasil também não terá sido uma paixão política? Porque a paixão pelo futebol não explica tudo. Se fosse somente paixão pelo futebol, pelo jogo em si, ninguém teria se preocupado em saber quem ia ganhar, o Brasil ou a Itália. O que teria contado seria a qualidade do jogo, a beleza da partida. Não, havia também a paixão pela seleção brasileira, pelo Brasil, pela nação, pela identidade coletiva. Não se festejava o futebol, mas o time, a bandeira. O orgulho era nacional. E essa paixão, pelo menos, era coletiva, ultrapassava as fronteiras da comunidade familiar ou regional.

Então, será que realmente houve esquecimento da política? Absolutamente. Poderíamos dizer que esse aparente esquecimento do político já era uma redescoberta da política, de uma outra política, de um outro sentido da política: a vida comum, a paixão de se sentir juntos, o calor da coletividade, da pólis etc. E que, inversamente, a outra política (a do governo Médici) era uma falsa política, uma usurpação da vida política, a extinção de qualquer vida pública etc. Por um lado, o poder político não era verdadeiramente político, já que tinha apagado qualquer vida política ou quase, proibindo os partidos, o direito de expressão; por outro lado, as manifestações as mais apolíticas, como a alegria patriótica pela vitória do Brasil por 4 a 1, eram uma espécie de manifestação da comunidade política.

Onde está o esquecimento do político? Quem tinha esquecido a política? O governo da ditadura ou a multidão dos fãs?

Vê-se que o esquecimento da política possui dois sentidos, porque a palavra política tem dois sentidos.

Com efeito, o que é a política? É a união dos contrários.

Os dois constituintes da política

O que é a política? Para responder a essa pergunta, é preciso realizar uma ou talvez duas experiências mentais. Convém imaginar o que aconteceria à nossa ideia de humanidade sem a política. Vamos imaginar, portanto, num outro planeta, parecido com o nosso, uma espécie de animais humanos em tudo parecidos com os homo sapiens que vivem na Terra, com uma única diferença: eles vivem sem política. O que isso pode significar?

Em primeiro lugar, pode significar que essa espécie de homens viveria como a maioria dos animais, num estado de isolamento ou em casais ou em pequenos grupos familiares mais ou menos estáveis. Não é o caso na Terra, os verdadeiros homens não vivem assim. Em tudo quanto é lugar, desde sempre, desde o surgimento do homo sapiensos homens sempre viveram em comunidades. Isso quer dizer que, além dos indivíduos, dos casais, dos grupos de consanguíneos ou de aliados familiares, sempre existe uma comunidade mais larga que os contém e ultrapassa essas comunidades naturais: a comunidade política, ou seja, a pólis. É por isso que Aristóteles podia afirmar, logo nas primeiras páginas da Política: “O homem é um animal naturalmente político.” Segundo ele, a pólis é a mais extensa das comunidades que se formaram naturalmente e a única realmente autônoma: com efeito, as comunidades inferiores que ela contém — o casal, formado para a reprodução, o lar, formado para a subsistência; ou o vilarejo, formado para as trocas cotidianas — não possuem nem autonomia econômica nem soberania moral.

Dizer que o homem vive politicamente equivale a dizer que o homem não poderia viver isolado, como a maioria dos animais, satisfazendo-se com relações iguais com todos os indivíduos de sua espécie; e ele tampouco poderia viver em simples comunidades familiares ligadas por laços biológicos (os ascendentes, descendentes e colaterais). A pólis — isto é, a comunidade propriamente política — é uma entidade que tende de fato a conservar sua identidade e sua unidade mantendo-se como está no espaço, além das linhagens, dos grupos familiares, e também a continuar existindo no tempo através das sucessivas gerações. Dizer que ela se mantém no espaço não significa necessariamente num território fixo e determinado, pois não é sempre o caso (existem comunidades nômades). Significa que ela é um espaço de troca permanente, ou de bens reais — as mercadorias — ou de bens simbólicos — as palavras: é por isso que um dos laços da comunidade política é a unidade linguística. A pólis é uma associação de homens permitindo um mercado de coisas e de ideias. Mas a pólis não tem uma unidade somente no espaço, como um lugar de trocas possíveis no presente. Ela também possui uma identidade no tempo, ela é uma memória e um projeto, é o lar de uma experiência histórica idêntica, passada e vindoura, real ou imaginária. Uma tribo, uma pólis antiga, uma nação moderna, um império, uma federação: são comunidades políticas; os que pertencem a elas acreditam ter uma memória comum e são ligados por um sentimento de pertencimento que faz a distinção entre o lado de dentro (nós) e o lado de fora (eles), o próximo e o longínquo, o próprio e o estranho, e muitas vezes entre o amigo e o inimigo até, mais radicalmente. A paz e a ordem necessárias no lado de dentro, a desordem e a guerra sempre possíveis do lado de fora. Logo, a vida política é a existência da própria pólis concebida assim, com seus imprevistos e suas vicissitudes: é o que faz com que ela seja e continue sendo uma comunidade, além de todos os riscos internos (desordens, dissensões, desequilíbrios sociais variados) ou das ameaças externas (conflitos fronteiriços, agressões, guerras). Assim, ser francês ou ser brasileiro é sentir que você pertence a essa comunidade política. Essa relação com a comunidade, esse sentimento de pertencer a ela, é o que faz com que os exilados, mesmo os voluntários, quase sempre sejam infelizes, sentindo a falta de uma parte de si mesmos. Por mais que a gente ache que esqueceu, esse pertencimento político volta à memória disfarçado de nostalgia quando somos privados dele.

Mas voltemos ao nosso outro planeta. E vamos realizar uma segunda experiência mental. Em vez de imaginar esses homens dispersos, solitários, vagando em pequenos bandos, imaginemos agora esses homens vivendo livre e serenamente, harmoniosamente, em comunidades políticas assim definidas. Será que podemos dizer que eles conhecem o que chamamos de política? Absolutamente. Porque falta algo essencial que chamamos de política stricto sensu. Faltam aí um chefe, um cacique, um patriarca, um rei ou ainda um governo, uma polícia, leis, proibições, castigos, em suma, uma instância política, supostamente encarregada de assegurar a sobrevivência da comunidade, ao mesmo tempo contra si mesma e contra as ameaças externas. Contra o lado de dentro, essas desordens, dissensões, desequilíbrios sociais diversos, e contra o lado de fora: conflitos, agressões, guerras. Enfim, é preciso que haja um poder. Pois o espaço comunitário (a coletividade, a sociedade, a nação) não basta para definir a política. Em todos os lugares e desde sempre os homens, todos os homens, vivem de maneira política, mas isso não quer dizer que seja sem restrições. Eis o paradoxo constitutivo da política: os homens não podem viver sozinhos, mas relutam em viver juntos. Vivem em comunidades políticas por necessidade, portanto, mas não podem fazê-lo sem serem forçados, isto é: justamente pela política. É como se a natureza obrigasse os homens a viver contra a natureza deles. E essa dupla natureza partida é, justamente, a política. A natureza dos homens é tal que eles não conseguem viver por si mesmos sem comunidade, e no entanto não conseguem viver deles mesmos nessa comunidade. São sociáveis por essência, mas é preciso forçá-los a entrar em sociedade e a se acomodarem uns aos outros. É o que Kant, numa fórmula famosa, chamava de “insociável sociabilidade”.[1] Essa natureza contraditória do homem traduz a dupla essência da política: a vida de todos na comunidade, a restrição de um poder sobre cada pessoa que vive nessa comunidade.

Dissemos que a relação com a comunidade política dificilmente se esquece. Volta à memória mesmo quando queremos esquecê-la. Mas o mesmo não ocorre na relação com o poder, com a política no segundo sentido do termo: essa política é fácil de esquecer, porém ela nunca nos esquece.

Dá para entender a situação no Brasil no momento da Copa do Mundo de 1970. Quando dizemos que o futebol fez com que a política fosse esquecida, não queremos dizer que a pólis ou o sentimento de pertencer a uma mesma comunidade nacional foram esquecidos. Queremos dizer que o futebol, ou melhor, o sentimento identitário que apegava o povo à sua seleção, que identificava a nação aos seus jogadores, que ligava a história desse esporte à história deste país, em outras palavras, o sentimento de pertencer à comunidade política — a política no primeiro sentido do termo —, esse futebol tinha, por um tempo, feito com que se esquecesse a política no segundo sentido, isto é, as questões de poder, de tomada do poder, de oposição ao poder, de luta pelo poder, de arbitrariedade do poder etc. Esse é um fato que precisamos guardar e que nos servirá de fio condutor: quando achamos que mandamos a política embora, ela volta pela janela sob outra forma.

Logo, a política tem uma dupla face: a comunidade e uma instância de poder. Esse poder é geralmente controlado por parte da comunidade (certos indivíduos, certa casta hereditária, certa classe social, certo partido), mas de qualquer jeito ele supostamente representa a identidade de toda a comunidade e assegura, geralmente pela força, a continuidade da existência da comunidade como um todo. Evidentemente, podemos tentar imaginar um sem o outro: a política sem a política. Podemos querer esquecer uma e ficar com a outra. Mas é pura imaginação. São duas formas de utopia. Forjou-se frequentemente a quimera de uma comunidade sem poder ou pelo menos dotada de um poder não-coercitivo, por exemplo, sem exército nem polícia. É o mito “anarquista” (o que significa sem arché, sem poder) de uma sociedade moderna sem Estado, uma comunidade política que poderia se perpetuar sem os laços do poder.[2] Ou ainda o sonho “comunista”: após a fase de socialismo e a socialização pelo Estado de todos os meios de produção e de troca, acontecerá o empobrecimento do Estado, a sociedade se governando sozinha, sem Estado. Mas também é possível forjar uma utopia inversa: a de um poder que seria exercido com perfeição, sem intermediário, sobre todos os homens como tais, quaisquer que sejam, e sem a mediação de uma comunidade política de pertencimento. Uma espécie de governo mundial administrado diretamente pelos cidadãos do mundo, que cessariam de ser cidadãos de qualquer comunidade nacional. É o sonho que alimenta certos mitos altermundialistas contemporâneos. Ao sonho dos anos 1960 e 1970 de uma sociedade sem Estado seguiu-se o sonho dos anos 1990 e 2000, de um Estado sem sociedade, de um poder político sem fronteiras. Dois sonhos que também constituem duas formas de esquecimento das realidades políticas.

É preciso, de fato, distinguir entre os tipos de problemas colocados por essas duas faces da política. No primeiro sentido, a política cria problemas de força, especialmente de força de unidade e de identidade: qual o grau de coesão real dos membros da coletividade, qual a força do seu sentimento de pertencimento? No segundo sentido, a politica apresenta problemas de violência (o que é totalmente diferente da força), sobretudo de violência por parte do poder: qual o grau de violência, real ou simbólica, que o poder usa para se impor? Mas o essencial ainda não está ai. O problema essencial da política pode ser assim resumido: como conceber as relações entre ambas as faces da política? As relações, ou seja, as relações nos dois sentidos: do poder para a coletividade por um lado, da coletividade para o poder por outro lado. No caso do poder para a sociedade, as questões políticas são as seguintes: será que o poder é exercido em proveito da comunidade ou não (por exemplo, em proveito de determinados indivíduos, de um grupo de interesses, de uma casta fechada, de uma classe social)? E, sobretudo, como ele é exercido, qual o seu grau de violência? Qual é o modo de coerção pelo qual o poder é exercido: repressão pura, arbitrária, ou legislação? E com a ajuda de que poder simbólico: mitos, crenças religiosas, ideologia? E que ideologia? Biológica, nacionalista, comunista? E, inversamente, ou seja, da sociedade para o poder, as questões políticas são as seguintes: será que o poder emana da comunidade ou não? É o poder de um só: monarquia? De um grupo: aristocracia? De todos: democracia? E como ele emana (por sorteio, por eleição, por nascença, de um golpe de Estado, de uma guerra civil etc.)? De um lado, é a questão da relação entre liberdade e coerção, do outro, é a questão da relação entre legitimidade e violência. De certa maneira, Aristóteles fazia mais ou menos a mesma distinção (no livro III da Política), separando a questão quem? da questão para quem? Quem governa: um só? Alguns? Todos? Para quem: para aquele que governa ou para a sociedade como um todo? Daí seis possibilidades de regimes: três são realmente políticos e exercem o poder em proveito da comunidade no seu conjunto; três são corruptos e exercem o poder no único proveito dos que o detêm.

No fundo, se formos resumir tudo isso, podemos dizer que a questão política se reduz a isto: será que é possível a comunidade e o poder coincidirem, isto é, que o poder emane da comunidade no seu conjunto e ao mesmo tempo que ele seja exercido para o bem da própria comunidade? Seria a verdadeira e completa democracia, tanto formalmente quanto materialmente. E se for, como? Ainda não encontramos a receita…

O fim do “tudo é político”

Voltemos à crença de que “tudo é político”. Essa crença está ligada a certa ideia da definição do homem e da definição da política. Significa que tudo no homem é politico, ou seja, não somente que o homem não poder viver fora das comunidades políticas (o que todo mundo pode admitir), mas que, além do mais, tudo o que for humano é político no sentido em que é permeado por relações de poder. O poder está em todos os lugares, mesmo onde não estiver visível, sobretudo onde não é esperado. Podemos encontrar essa ideia em alguns autores antigos, como Platão; nos anos 1960 e 1970, ela era ligada a determinada interpretação do marxismo.

O que aconteceu nos últimos trinta anos? O mundo mudou, evidentemente. Na América Latina, os países que viviam sob ditaduras militares (como o Brasil ou a Argentina) se tornaram países democráticos, o que solucionou os problemas das liberdades individuais e coletivas sem, no entanto, virar de cabeça para baixo as estruturas econômicas e sociais. Na Europa, após a vitória da democracia no Sul da Europa, onde ainda reinavam ditaduras (Grécia, Portugal, Espanha), a Europa se consolidou aos poucos como realidade política. Mas há, sobretudo, o fracasso geral dos regimes socialistas, que desabaram bruscamente em quase todos os países no fim dos anos 1980, ou que se transformaram progressivamente em regimes de capitalismo selvagem de Estado com ditadura do partido (como na China): esse colapso dos regimes chamados de socialistas provocou por um lado explosões nacionalistas sangrentas nos pequenos países outrora sob dominação soviética (como na Iugoslávia) e por outro lado, nos países desenvolvidos, a queda do marxismo nos programas dos partidos políticos de esquerda e como ideologia intelectual dominante na Universidade, na cultura, na filosofia e nas ciências humanas e sociais. Na escala internacional, foi o fim do mundo bipolar, em proveito de um mundo unipolar dominado por uma hiperpotência, os Estados Unidos, o desenvolvimento considerável de um islamismo político radical, primeiro xiita, no Irã, depois global (do Magrebe ao Masrebe e até na Africa e na Ásia), que se tornou um dos principais motores de mobilização das massas no mundo etc.

Não vou prolongar esse quadro, que todos têm em mente. Se tivéssemos que resumir, diríamos que dois fenômenos dominaram os últimos trinta anos e explicam o refluxo da política, ou pelo menos da ideia de que “tudo é politico”: por um lado, o fim dos sonhos de libertação completa pela política ou de determinado messianismo revolucionário; por outro lado, o progresso da democracia numa boa parte do mundo, ao menos no sentido estreito e moderno do termo “democracia”, de governo que emana da comunidade (não estou dizendo que ele seja necessariamente exercido para a comunidade e para o seu bem) pelo intermediário de representantes eleitos. Esses dois fenômenos conjugados provocaram pouco a pouco o esquecimento da política. A política era tudo e aos poucos se tornou nada. Por um lado, deixaram de colocar todas as esperanças e todos os sonhos na política para colocá-los em outros lugares: é o fim das ideologias, como se diz, é a parte da desilusão ou do realismo, como quiser. Por outro lado, a democracia “representativa” provoca uma ilusão constitutiva, absolutamente inversa àquela do “tudo é político”: que toda a política se esgote no ato de escolher de vez em quando representantes, cujo trabalho profissional consiste em governar — em outras palavras, em decidir no nosso lugar, o que permite a todos os outros esquecer a política. Eis a dupla causa do esquecimento: o fim dos sonhos, de um lado, o começo do sono, do outro. A política é esquecida quando se pára de sonhar para começar a dormir.

Porém, se existem duas causas que, conjugadas, provocaram o esquecimento da política, esse esquecimento assume duas formas diferentes, já que vimos que a política possui uma dupla face: a face comunitária e a do poder. Podemos esquecer que vivemos essencialmente em e por comunidades políticas (era antigamente a parte do sonho, hoje é a parte da desilusão); podemos esquecer também que a política é essencialmente uma questão de poder, de projetos, de decisões e de ação voluntária (era antigamente a parte do ativismo, hoje é a do sono).

Comecemos pelo esquecimento da pólis, esquecimento do fato de que vivemos necessariamente numa comunidade política. Obviamente, não há esquecimento sem que outra coisa venha substituir a lembrança e tomar o lugar do sonho.

O território de si

A primeira forma de esquecimento da pólis é a da coisa pública em proveito do particular. É o fechamento sobre si ou, antes, sobre “si próprio”. Deixamos de acreditar que a política pudesse trazer a felicidade. Essa é procurada, mal ou bem, na vida particular, no sucesso (ou na fuga) individual, no casal, na família, ou às vezes nessas identidades ambíguas que são o “gênero”, o solo, a nação.

Quando militantes da causa pública se recolhem, abandonam a frente de batalha e desistem da luta, cansados, decepcionados; quando o povo deixa de acreditar que a felicidade pode advir da coisa pública; quando, por desilusão do coletivo, só se procura a felicidade no sucesso individual: quando não é mais a comunidade política que pode oferecer segurança, mas a comunidade familiar, então a política é esquecida. A política é, doravante, deixada aos politicos profissionais, eleitos e pagos para isso (é o trabalho dele, não o nosso) e os cidadãos se tornam indivíduos dispersos, deixados por conta própria. Nas mentalidades, é uma espécie de volta a um estado pré-político. O território de si constitui um refúgio, um retiro, um recolhimento da pólis. Uma admissão do fracasso da política. Não se trata de um novo ideal, e sim de uma forma de realismo sem ideal, sem esperança, sem desespero, aliás; em todo caso, sem visão do futuro. Uma defesa da felicidade individual, sem ideologia, sem convicção. É esse estado de espírito, um dos males quase inevitáveis da democracia, que Tocqueville já denunciava: “O individualismo é um sentimento pensado e sossegado que leva cada cidadão a se isolar da massa dos seus semelhantes e a se retirar à parte com sua família e seus amigos; de tal maneira que, depois de se ter criado assim uma pequena sociedade de uso próprio, ela abandona de bom grado a grande sociedade à própria sorte.”[3]

A imagem que temos da política nesse individualismo desabusado é a de um teatro, uma espécie de comédia com personagens que vemos na TV, longe das preocupações reais das pessoas, da vida cotidiana de todos. Não sentimos uma real hostilidade para com “a” política — antes, sentimos um tipo de indiferença misturada com desconfiança.

Existem duas variantes opostas desse mesmo esquecimento. O individualismo que acabamos de evocar é sua forma mais aparente, e ele próprio possui numerosas variantes: há, por exemplo, o conforto tranquilo do “lar”, a casa, o cocooning, a família, o “familialismo” até, que é a proclamação assumida do valor da família (antigamente, na época em que tudo era político, gritava-se ainda às vezes a frase de Gide: “família, te odeio”, o pai era a imagem da autoridade castradora, a mãe, a da protetora introvertida); é a volta do culto à criança e a crença na sua pureza (contra o freudismo dos anos 1960-70, que via muitas vezes a criança como um “perverso polimorfo”). O individualismo também possui outras caras: sob sua forma comercial, é o consumismo desenfreado; existe ainda uma variante “culto do corpo”: (academias, musculação, dietética, “mantenha-se jovem”), assim como variantes midiáticas: veja o desenvolvimento considerável dos reality showsdedicados aos indivíduos que têm como particularidade ser resolutamente como todo mundo ou, numa variante sentimental, o desenvolvimento da imprensa e da TV de celebridades, dedicados às pessoas famosas… porque elas estão na imprensa e na TV de celebridades e lá se encontram justamente porque lá estão. Em todas as direções, é o triunfo do indivíduo comum, a vitória da ética do “cada um por si”.

Opõe-se frequentemente esse individualismo chamado de “liberal” ao “comunitarismo”, que é a tendência a se identificar a seu grupo de pares, à sua comunidade de nascença ou de vida, à sua etnia, à sua raça, sua paróquia, às vezes seu bairro ou até mesmo seu gueto. Contudo, parece-me que o “comunitarismo” não é o contrário do individualismo, mas sua simples variante ideologizada, por vezes fanatizada, uma maneira idêntica de esquecer a política em proveito do território de si. Em ambos os casos, a comunidade política, a res publicainexiste; tudo o que não for eu, minha família, minha raça, me é estranho, não me sinto associado ou solidário a todos os cidadãos como tais, mas somente àqueles que estão próximos de mim, que são como eu, aqueles que são de casa. Nos dois casos, individualismo ou comunitarismo, não se acredita mais na salvação pela pólis, mas por seus elementos: o indivíduo, a família e todas as identidades intermediárias, de maneira que a comunidade política não é mais uma reunião de todos os cidadãos sob a bandeira comum do Estado, de um regime ou de um ideal. Nos dois casos, individualismo ou comunitarismo, temos a afirmação de si: o que me definia não é somente quem eu sou como indivíduo isolado, é também o que eu sou pelos meus laços identitários e não políticos: minha etnia, minha raça, minha origem, minha igreja. A oposição entre o próprio e o estranho, a distinção entre o “nós” e o “eles” não passa mais entre a polis e seu lado de fora, mas dentro da própria polis. Esse sentimento “comunitarista” está se desenvolvendo nos países democráticos: nas periferias francesas, por exemplo, onde as revoltas ou, melhor dizendo, os tumultos — são cada vez menos políticas e de qualquer jeito totalmente fora do controle dos partidos e dos sindicatos, e cada vez mais comunitaristas. É também o que se constata em todos os lugares do mundo, ou quase, com o surgimento dessas “identidades ambíguas”: vejam, por exemplo, na Europa, a mudança radical do nacionalismo basco desde os anos 1960 e 1970, a passagem da luta política antifranquista para a afirmação identitária progressivamente mais étnica, muitas vezes à beira do racismo ou da xenofobia. Em todos os lugares, observamos a afirmação cada vez mais agressiva do valor do que somos, do que a natureza fez de nós, em detrimento do que a política pode fazer partindo disso. É a reivindicação do vínculo necessário que liga cada um ao que ele já é, ao que o define (mulher, negro, árabe, basco, sérvio etc.), em detrimento da liberdade de transformar o que ele é na pólis, que define a política.

Não se trata de negar a importância da vida privada ou das formas infrapolíticas da identidade. Convém simplesmente notar que elas às vezes contribuem para o esquecimento da política. Pois essa é a primeira forma desse esquecimento: a preocupação consigo próprio contra a preocupação com a pólis.

O reino de Deus

Podemos “esquecer” a comunidade política por nos recolhermos no que está aquém: o indivíduo isolado, o eu, o casal, a família, a tribo — tudo o que para Aristóteles constituía comunidades infrapolíticas. Inversamente, porém, é possível esquecê-la para o que está além da comunidade política, a grande “comunidade dos crentes”. O segundo tipo de esquecimento da política atual, que de fato vimos observando há uns trinta anos, é a substituição nos espíritos, nas almas, nos desejos e nas esperanças da pólis dos homens pela pólis de Deus: afinal, a substituição de uma justiça e de uma felicidade imanentes pela esperança do socorro de uma justiça e de uma felicidade transcendentes a este mundo. Com efeito, a religião em muitos casos ocupou o lugar da política. Tomemos alguns exemplos. Há, para começar, todos os casos em que governos são abertamente teocráticos: Arábia Saudita e agora há o domínio sempre crescente das posições religiosas radicais nas políticas dos governos, mesmo democráticos, como os Estados Unidos. Mas tudo isso não constitui realmente um esquecimento da política. Esse esquecimento se nota antes, por exemplo, nas atitudes das massas árabe-muçulmanas, que cessaram de se mobilizar por ideais propriamente políticos (pan-arabismo e socialismo à la Nasser, por exemplo), para cada vez mais abertamente atuarem em favor da aplicação a mais estrita dos preceitos corânicos na pólis. Em todos os países onde foram organizadas eleições livres desde o início dos anos 1990, foram os partidos extremistas religiosos (“partidos de Deus”), fundamentalistas, populistas, e às vezes ligados a certas formas de terrorismo, que triunfaram contra os partidos democráticos, seja na Argélia, no Irã, ou na Palestina, onde a luta contra Israel se faz doravante não mais com objetivos políticos, mas em nome de palavras de ordem religiosas fundamentalistas (cruzada, libertação dos lugares santos, luta contra os infiéis, aplicação da Shariahetc.).

Vemos isso também na Europa — notadamente, na França —, nas dificuldades cada vez maiores para se manter as tradições de laicidade da Escola republicana. Acho que é visível no Brasil também, na perda considerável de influência política da Igreja católica, da Teologia da Libertação ou das comunidades eclesiais de base, preocupadas com o envolvimento na pólis e com a luta por justiça social, em proveito dessas novas igrejas evangélicas todo-poderosas, que pregam, pelo contrário, o não-envolvimento político, a defesa do reino de Deus e só dele, a adoração mística e a salvação individual pela fé, pela oração, pela penitência e pela mortificação. Não estamos na Terra para nos libertarmos de nossas correntes, mas para sofrer pacientemente, com dignidade e confiança, na espera resignada da ressurreição prometida.

A salvação eterna contra a pólis. Eis a segunda forma de esquecimento da política. Não se trata de negar a importância da fé ou da comunidade religiosa. Convém simplesmente relevar que, às vezes, também elas contribuem para o esquecimento da política.

São dois modos opostos de esquecimento da comunidade política. De um lado, essa é grande demais para oferecer uma esperança aos indivíduos, de outro, ela é pequena demais para atender às expectativas dos fiéis. De um lado, para o individualismo, a política é demasiadamente lenta, incerta; ela exige muitos sacrifícios imediatos do indivíduo que quer tudo, e logo: felicidade para consumo imediato, não para viagem. Do outro lado, para a religião, a política é ao contrário demasiadamente imediatista, materialista, ela não sacia a sede de absoluto e de ideal do fiel, que aspira a uma felicidade que pode esperar o além, contanto que seja a felicidade perfeita. Mas, em ambos os casos, a pólis não está à medida das aspirações dos homens.

São duas maneiras de esquecer a comunidade política. Mas será que não há esquecimentos simétricos, não mais do lado do que a vida comum, isto éa pólis, pode oferecer, mas do lado do poder politico que supostamente a dirige? Podemos esquecer que somos cidadãos de uma pólis, mas também podemos esquecer que essa pólis não pode ser dirigida sem um poder politico. Acontece que nós também experimentamos, há uns trinta anos, duas formas de esquecimento do poder politico facilmente dedutíveis dos dois esquecimentos anteriores.

Se estimarmos, numa perspectiva individualista, que a pólis nada mais tem a oferecer, pelo menos não a felicidade sonhada, o que resta esperar do poder político? Será que vamos esperar dele uma razão de viver, um sentido para a existência, um ideal? Queremos, no máximo, que o poder faça com que o esqueçamos, mas o mínimo que esperamos é que ele ofereça ao indivíduo os meios para sua subsistência, para que ele possa viver, e se possível, no melhor dos casos, para que satisfaça suas necessidades, mas também suas vontades, seus desejos e até sua sede de consumo. Em suma, a política é esquecida e a economia preterida. Podemos talvez afirmar que o crescimento do individualismo está ligado a um crescimento do economismo, a uma redução da politica à economia.

Por outro lado, no entanto, se estimarmos, numa perspectiva religiosa, que a pólis nada tem a oferecer, ou, em todo caso, não a salvação desejada, nem o ideal almejado, nem o absoluto esperado, o que esperar do poder político? Justamente não uma política, mas ou a simples aplicação dos mandamentos religiosos por todos os meios, no caso de um Estado teocrático, ou, nos outros casos, não o governo dos homens, mas a simples administração das coisas desse mundo, para resumir: o gerenciamento das contingências. De maneira mais geral, podemos afirmar que um poder religioso ou de vocação messiânica está muitas vezes ligado a uma burocracia, a uma redução da política à técnica, à simples aplicação, entregue aos peritos, dos melhores meios de resolver questões concretas. Há, portanto, duas tentações simétricas: a de apagar a política com a técnica, como diz meu colega e amigo Jean-Pierre Dupuy, e a de apagar a política com a economia.

Vejamos rapidamente essas duas formas de esquecimento do poder político.

O econômico e o técnico

O que permite à economia fazer com que se esqueça a política é a ideia segundo a qual a economia seria uma ciência, não somente capaz de explicar o que acontece — como qualquer outra ciência humana — mas também capaz de prever o que obrigatoriamente vai acontecer — como a astronomia — sem possibilidade de escolha ou de decisão. Em outras palavras, a afirmação de que existe uma ciência econômica e de que não existe, portanto, a possibilidade de uma política econômica ou, melhor dito, que só há uma política econômica possível, conforme as leis da ciência. Quando a economia é, ou deveria ser, um instrumento nas mãos da política, proclamam que é o inverso: que a política depende da economia, de suas leis: na Europa, são as restrições dos critérios da união monetária europeia; na América Latina, são as restrições do Mercosul ou a administração da dívida; e em todos os lugares é a “globalização”, o FMI, o Banco Mundial, a OMC etc. Claro, não se trata de negar a importância dessas realidades, e seria completamente demagógico proclamar, como fazem alguns, que tudo é politicamente possível, que basta querer, que essas restrições econômicas nacionais ou internacionais não são reais, que é só pegar o dinheiro dos ricos para dar aos pobres e tudo estará resolvido etc. Porém, é preciso manter distância tanto dessa ideia de que tudo é economicamente possível (o que é demagógico) quanto da ideia de que nada é economicamente possível (que é o esquecimento da política). Porque a política é justamente a arte do possível. E a maior dificuldade consiste em avaliar o que é possível e o que não o é. O que conta aqui, como nos casos anteriores, é a maneira como a economia serve de argumento contra a política. Dizem que os politicos não teriam nenhuma margem de manobra: à direita ou à esquerda, tanto faz, já que, de qualquer jeito, a mesma realidade econômica se impõe a todos. A consequência é que a política se reduziria a um jogo verbal de sedução, a uma pura retórica eleitoral destinada a conquistar o poder, a grandes declarações ocas, a promessas não-cumpridas, ao passo que, atrás desse teatro de sombras que chamam de “política”, a verdadeira realidade econômica se estaria desenrolando, necessariamente e inelutavelmente.

É o mesmo mecanismo em relação à técnica, mas em outro sentido. Não é mais a política que decide, é a técnica. E “técnico” aqui entendido em dois sentidos complementares: de um lado, os aparelhos, as máquinas, a tecnologia, que supostamente resolvem todos os problemas. O argumento é o seguinte: de qualquer jeito, o progresso técnico é inelutável, não há nada a fazer nem a favor nem contra, ele traz consigo seu lote de benesses necessárias (desenvolvimento da medicina, da higiene, do conforto) e seus malefícios inevitáveis (riscos para a saúde, perigos para a ecologia, destruição do meio ambiente etc.), quando tudo depende, mais uma vez, não da técnica em si, mas das políticas de saúde, energéticas, das escolhas tecnológicas, dos programas de desenvolvimento etc.

Mas “técnico” também pode ser entendido em outro sentido. Não mais no sentido de progresso tecnológico, mas no sentido de adaptação racional dos meios para um fim determinado, no sentido em que se fala em solução técnica para problemas humanos: é geralmente a solução a mais simples, e consequentemente a mais administrativa, burocrática. Por exemplo: onde deve passar a auto-estrada? Numa reta é a distância mais curta entre dois pontos, diz a solução técnica. Onde será melhor implantar o hospital e a escola? No centro da cidade: é mais racional, diz a solução técnica. Quando deve circular o ônibus? Nunca de noite: não há usuários suficientes, diz a solução técnica. A técnica falou e a política não tem mais nada a dizer: nem que existem vilarejos atravessados pelo traçado da auto-estrada que vão sofrer por causa disso, nem que há tanta necessidade de hospitais e de escolas na periferia quanto no centro, nem que os serviços públicos devem funcionar mesmo quando não são rentáveis.

A técnica compartilha com a economia os mesmos dois riscos. A “cientifização” da economia e a fetichização da técnica têm as mesmas duplas consequências. A primeira é a seguinte: um dos grandes perigos que ameaçam a democracia é a tecnocracia. O poder dos peritos. A democracia é baseada na ideia — já demonstrada pelos gregos — de que existem dois momentos em qualquer ação pública: há primeiro o momento da análise objetiva das situações e das propostas racionais — é o papel dos conhecimentos e da técnica, é o papel dos peritos em determinada área específica, dos que sabem. E há o momento das escolhas entre essas propostas racionais, o momento das decisões. E elas não dependem mais somente das realidades objetivas, mas de valores: justiça, equidade, equilíbrios sociais, regionais, unidade nacional etc. E aí os peritos não têm mais nada a dizer: é o papel dos políticos, isto é, dos que não possuem nenhum saber especifico, mas que representam — ou deveriam representar — os interesses gerais da comunidade. O esquecimento da política em proveito da técnica e da economia é o esquecimento dos valores propriamente políticos.

A segunda consequência da crença na onipotência da economia é a ideia de que a política é inútil. Outro perigo ameaça a democracia: não mais a tecnocracia, mas, por assim dizer, a “doxofobia”. A ideia segundo a qual o saber pode tudo e as opiniões são vãs. Essa já era a posição de Platão, o maior adversário antigo da democracia. Acontece que está aí a segunda grande característica da democracia: ser democrata significa não somente acreditar que há dois momentos em toda ação política — análise e escolha —, mas significa também acreditar que o segundo momento precisa mais da confrontação entre opiniões contraditórias do que de saber. Significa acreditar que a decisão mais esclarecida nasce do debate, da discussão argumentada, da oposição entre prós e contras, da confrontação dos projetos, da oposição dos programas. Vemos em que consiste esse esquecimento da política: discutir é vão, dialogar atrapalha a eficácia das decisões; consultar as populações é uma perda de tempo, elas não conhecem nada; explicar as decisões é chato, as populações não entendem nada. Deixemos, portanto, a política aos profissionais. Mas, assim que deixamos a política aos profissionais, esquecemos a política, que antes de tudo diz respeito a todos nós.

O “tudo é moral”

Haveria então quatro maneiras de esquecer a política. Duas dessas maneiras esquecem o fato de que vivemos necessariamente na pólis, substituindo a pólis pelo indivíduo autônomo ou pela pólis de Deus; as duas outras esquecem o fato de que essas comunidades são governadas por uma autoridade política que providencia um sentido, um futuro, assim como valores à pólis, e preferem a crença na onipotência do saber econômico ou do know-how técnico. Mas ainda há outro esquecimento, que mescla ambos os tipos. Essa outra substituição da política, que vem se desenvolvendo no mundo nos últimos trinta anos, é a da moral. De um lado, a moral substitui a comunidade dos cidadãos por outra comunidade mais vasta, a comunidade humana em geral; de outro lado, ela substitui as funções e os deveres da política por outras funções e outros deveres, os dos homens como tais. Esse esquecimento da política em favor moral assume três formas.

Primeira, o apagamento de qualquer critério que não seja moral para avaliar uma política nacional ou internacional.

Não se trata aqui de dizer que não pode haver critério moral para avaliar uma política; nem que a política é independente da moral, de forma mais generalizada; nem que é permitido fazer tudo em nome da razão de Estado ou de uma causa justa (libertação nacional, insurreição de um povo oprimido); nem que uma boa política justificaria todos os meios empregados para ser bem-sucedida (mentira, logro, tortura, sacrifício de inocentes etc.). Não: trata-se somente de dizer que também existem critérios puramente políticos para avaliar uma política com justeza. Pois vimos que um poder político tem, por definição, como fim, a preservação e o bem da comunidade política como um todo. O critério de avaliação de uma política pode, consequentemente, ser a salvação da sociedade, que é para a política um absoluto; ou então a preservação do grupo, a manutenção de sua coesão, de sua unidade ou de seu equilíbrio; ou ainda a salvação do povo, o interesse geral, a pátria em perigo ou a grandeza da nação, a defesa do espaço vital, a união nacional, a justiça social etc. O apagamento dos valores políticos em proveito dos morais é muito simples de ser caracterizado, pois há um abismo entre esses dois tipos de valores quando estes se aplicam à ação coletiva: os valores políticos são positivos, eles mobilizam para um fim; os valores morais são negativos, eles impedem em nome de uma proibição. Em suma, a política visa a um bem, a moral desvia do mal. Logo, são compatíveis: é provavelmente possível conduzir uma política justa evitando condutas condenáveis. Porém, fica óbvio com essas definições que o critério moral não pode ser o único, porque a moral nos diz o que não fazer, jamais o que fazer. E é justamente nisso que reside o esquecimento da política. O esquecimento da política em proveito da moral ocorre porque não se espera da política que ela realize boas ações, politicamente falando, somente que ela não cometa más ações, moralmente falando. Espera-se que ela faça o menos possível, sobretudo em política internacional.

Vamos tomar alguns exemplos: em política internacional, justamente, o humanitário se tornou a prioridade absoluta, em detrimento do que se chamava, ainda há pouco, “resistência à opressão” ou “luta pela libertação”. Como ninguém sabe mais o que realmente é justo politicamente, limitamo-nos a condenar o que é moralmente mau. A meta da política internacional é “não fazer guerra” ou, a rigor, de “fazer guerra com zero morto”. É, com certeza, idealmente desejável, embora em nada realista. O inimigo internacional não são mais as ditaduras intoleráveis, as políticas imperialistas, a servidão de um ou outro povo, pois só existe um inimigo: o “terrorismo”, conceito-ônibus e indistinto, em todo caso claramente um puro conceito moral, que mistura ações políticas heterogêneas, cujo único ponto comum é o “sacrifício” de inocentes..

Na política nacional também constatamos essa mesma invasão do critério moral: julga-se a política de um Estado ou de um governo não pelos seus sucessos ou fracassos políticos, mas pela moral individual de seus dirigentes. Em vez de julgar a justiça social de uma política, julga-se a honestidade dos políticos. Em vez de proclamar que é preciso lutar por causas políticas, mobiliza-se contra a corrupção dos costumes dos dirigentes, contra os vícios dos políticos, como, por exemplo, a corrupção. É verdade que é intolerável que políticos enriqueçam pessoalmente em detrimento da coletividade. Mas observemos duas coisas: por um lado, a conduta moral dos homens não pode constituir sozinha o critério do valor de uma política, como se fosse a única coisa que contasse. É precisamente o que sempre tentaram fazer acreditar as campanhas de opinião fascistas, ou pelo menos populistas: “Moralizemos a vida pública!”, “São todos podres!”, “São todos vendidos!”. Por outro lado, a resposta contra a corrupção não pode ser somente a condenação moral dos homens, mas sim uma resposta política.

Enfim, existe um terceiro sintoma da maneira como a moral faz com que se esqueça a política. O único critério para julgar é o mal (em vez do bem), julga-se a virtude dos homens e não o valor de um projeto ou a eficácia de uma ação — mas me parece também, como se não bastasse, que reina nas sociedades democráticas cada vez mais uma ideologia do “tudo é moral”, que substituiu o “tudo é político” dos anos 1960.

Por exemplo, o amor não é mais político, tornou-se moral ou imoral: a censura em matéria de costumes coloca a máscara da proteção das mulheres ou das crianças. O esporte deixou de ser político, tornou-se moral ou imoral. A única questão é: será que o vencedor roubou? Será que está “dopado”? Que substâncias proibidas ele tomou? Fumar ou não fumar não é somente uma questão de higiene ou de modo de vida, tornou-se uma atitude moral: não é que se proíba cada vez mais o fato de fumar, é que se condenam cada vez mais os próprios fumantes. Daqui a pouco, vão proibi-los de postular empregos (já começou na Europa): não porque fumam, mas porque são fumantes. A luta política contra as discriminações deu lugar a uma espécie de censura moral da linguagem sobre a maneira de falar das minorias. A linguagem era inteiramente política, ela se tornou moral ou imoral: o politicamente correto se transformou no moralmente correto. Em vez de se mobilizar em favor da igualdade política ou social, as lutas feministas às vezes levantam a bandeira da luta moralista contra a sedução ou a sexualidade. No lugar de uma luta pela libertação dos oprimidos, pratica-se uma defesa moral das vitimas. Não há mais relações sociais, há vítimas individuais de condutas imorais. Essa onda moralizadora oriunda dos Estados Unidos atravessou o Atlântico e vem se espalhando pela Europa há alguns anos. Essa forma de esquecimento da política talvez ainda não tenha atingido o Brasil…

O território do “eu”, a religião, a economia, a perícia, a moral: eis cinco formas de esquecimento da política. Porém, esses “esquecimentos” não são somente recolhimentos fora da política, também constituem cinco maneiras de pensar a política. Pois cada esquecimento pretende, à sua maneira, substituir a política. No fundo, são cinco maneiras de querer refundar a política: basear a política nos interesses particulares, significa dizer que tudo o que o homem representa já está no indivíduo, que cada indivíduo já é uma humanidade acabada que nada deve à sociedade, e que ele não possui nenhum interesse que não seja particular. É realmente a teoria do ultraliberalismo e ela está ligada à teoria que reduz a política à economia, isto é, à lógica da produção, das trocas e do mercado. Fundamentar a política na religião equivale a dizer que o homem nada mais é do que o sujeito de um Deus todo-poderoso e que ele só está na Terra para obedecer cegamente à sua vontade: é a teoria teológico-política, e ela está ligada a uma visão que reduz a ação política à aplicação racional e burocrática dos mandamentos divinos, cega a qualquer outra consideração. Notemos, com efeito, que nada serve melhor à tecnocracia que o fanatismo, que raramente recomenda a livre discussão e o debate de opiniões. Basear a política na moral significa reduzir a humanidade real a uma humanidade ideal que poderia viver fora de qualquer comunidade e sem identidade coletiva; é querer uma política sem comunidade política separando o dentro do fora; é querer uma política apolítica. Esses cinco esquecimentos da política também são cinco riscos para a democracia.

Vimos então os dois grandes perigos que ameaçam a política em geral, e eles são opostos. De um lado, “tudo é político”; do outro, “nada é político”, ou melhor, de um lado, a política é tudo o que é humano; do outro, nada do que é humano é político, porque tudo na vida é vida particular ou religião ou economia ou técnica ou moral. Os dois perigos têm nome: de um lado, o totalitarismo político, que enxerga tudo através dos óculos do poder e não deixa nenhuma autonomia ao resto, especialmente à vida privada, às identidades intermediárias, nem às crenças e práticas religiosas, nem à economia ou à técnica ou ainda à moral. Pois todos esses territórios têm seu lugar no homem, que não se reduz a nenhuma definição unívoca. O totalitarismo que reduz o homem a uma só definição (por exemplo, a de que o homem é unicamente e totalmente político) ameaça a autonomia de todos esses territórios, por conseguinte, ameaça a própria liberdade. O segundo perigo, que já estudamos, é oposto ao totalitarismo: é o completo esquecimento da política. Esse perigo não ameaça mais a liberdade humana, mas a democracia. São cinco perigos diferentes, porém convergentes na sua ameaça à democracia. Pois nada é mais perigoso para a democracia do que o refúgio dos cidadãos nos seus territórios particulares ou nas suas comunidades étnicas; ou, ainda, do que a perda de qualquer confiança na pólis terrestre, com o refúgio na pólis celeste; ou do que a crença ou a ilusão tecnocrática de que os peritos da economia e os profissionais sabem tudo ou pelo menos podem tudo; ou, ainda, do que os politicos só sabem mentir nas campanhas eleitorais e enriquecer depois. O maior perigo para a democracia é a crença de que a política não nos diz respeito e que ela não pode nada para nós. O maior perigo para a democracia é o esquecimento pelo povo de que a política depende dele, que ela depende de todos nós.

Então, o que fazer contra esse esquecimento?

Contra o esquecimento, a memória não basta. Mas existem remédios, espécies de receitas mnemotécnicas para reaprendermos a nos reapropriar a política. Remédios contra o esquecimento.

Podemos propor alguns exercícios práticos. Por exemplo, o primeiro perigo para a democracia é a crença de que a política é um negócio de profissionais. Contra isso, dois remédios possíveis: primeiro, o ativismo e a militância, mas também, mais modestamente, o exercício cotidiano da profissão de cidadão, não somente pelo voto episódico, mas sobretudo pela informação, dia após dia, por diferentes canais (por exemplo, pelos jornais e não unicamente pela TV). O segundo perigo que ameaça a democracia é a crença de que a política distingue e opõe governantes e governados, quando o que define a democracia, diziam os gregos, é todo mundo ser, a seu momento, governante e governado. Então, aceitemos assumir responsabilidades, cada um em seu nível, administrando negócios ou governando homens, e cada um verá que mandar não é fácil; consultar uns aos outros, decidir o momento oportuno para agir, tomar decisões que sejam ao mesmo tempo entendidas por todos e justas para todos, menos ainda. E se não tivermos os meios ou a oportunidade de fazê-lo na realidade, tentemos pelo menos governar em pensamento. Dizer a nós mesmos, diante de cada decisão, diante de cada ato de um político, esteja ele no governo ou na oposição: o que eu teria feito, o que era para ser feito e como?

Vimos que o terceiro tipo de perigo numa democracia consiste em opor “eles” (os politicos) a “nós”, as pessoas comuns; e especialmente em opor os costumes e os vícios dos políticos a honestidade das pessoas comuns como eu e você.

Contra esse perigo, assim como contra o esquecimento da política em proveito da moral que estávamos evocando agora há pouco, proponho-lhes uma pequena experiência mental, que vou introduzir lembrando um trecho do livro II da República de Platão. Nele, Sócrates conta um mito, o de um anel mágico. Era uma vez um homem, um pastor, o melhor, o homem mais doce e mais honesto da face da terra.

Chamava- se Giges. Um dia, Giges encontra por acaso um anel que ele coloca no dedo. Ele se dá logo conta de que, se girar o anel ligeiramente, este possui um estranho poder: o de torná-lo invisível. Num primeiro momento, Giges acha esse poder engraçado, nada mais. Mas percebe rapidamente a vantagem que pode auferir do anel. Um dia, com fome e sem pão, ele gira o anel, o que lhe permite roubar um pão no padeiro sem ser visto. Pouco a pouco, ele entende que o poder do anel é tamanho, que ele pode cometer todos os atos com impunidade total, já que, se não podem vê-lo, não podem pegá-lo. E o que é que vocês acham que acaba acontecendo? O bom, o doce, o honesto Giges acaba cometendo os maiores crimes e estupros, dorme com a rainha e assassina o rei para tomar o poder.

Alguns politicos claramente acham que, quando instituições políticas falham, o poder é uma espécie de anel de Giges que os torna invisíveis. Que basta então exercer o poder para estar acima das regras da moral comum, já que não existe poder acima deles para vê-los e pegá-los. Mas não é aí que quero chegar. Só quero chegar a isto: suponhamos que seja você que tenha o anel de Giges! O que você faz? O que não faz? Um pedaço de pão: por que não? E um celular roubado no supermercado: por que não? E depois, o quê? Você tem certeza de que resistiria a todas essas tentações? E a outras bem maiores e bem menos confessáveis? Se você tivesse certeza, absoluta certeza da impunidade absoluta; se você tivesse certeza de que ninguém, nunca, seja ele homem ou deus, viesse a saber (graças ao anel ou a algo parecido) que foi você que cometeu aquele ato mau. Admita: você não tem certeza de continuar sendo mais virtuoso do que Giges, o qual era, no entanto, antes do anel, o melhor dos homens.

Aonde quero chegar com essa experiência mental? Simplesmente ao seguinte: a boa política não depende da moral dos homens. Seguramente, nenhum homem numa democracia é desonesto o suficiente para desejar o poder unicamente pelas vantagens que esse oferece. Inversamente, seguramente, nenhum homem é honesto o suficiente numa democracia para não ser tentado a se aproveitar dessa situação. Então, a solução não é moral (condenar os homens, que são como eu e você), mas política: financiar os partidos políticos, visto que sua existência e seu funcionamento são necessários ao pluralismo democrático; votar leis que estejam acima dos homens e cujo funcionamento independa dos indivíduos; tornar transparentes as despesas públicas por um duplo sistema de corregedores e de publicação de contas; exigir — como em Atenas — que os políticos tornem públicos a sua fortuna e o uso que fazem dela etc.

Tudo isso é só um exemplo, contudo destinado a ilustrar uma lição geral. O esquecimento da política pelos cidadãos é o perigo que ronda a democracia. E a democracia implica e supõe que os homens são iguais não apenas em direitos, mas também em valor: que o poder não deveria ser atribuído nem aos mais sábios nem aos peritos em economia, nem aos mais bonitos ou aos que falam melhor, nem àqueles cuja vida particular é a mais exemplar, nem aos que são modelos de virtude, mas aos que são simplesmente como todo mundo e aceitam, por um tempo, nos servir, ou seja, servir a comunidade assumindo responsabilidades no nome dela. É isso que não podemos esquecer nunca. Porque, se esquecermos isso, tomamos o risco de entregar a comunidade política somente ao poder dos políticos: um poder sem limites, já que o único limite somos nós.

Tradução de Yves Bergougnoux

Notas

  1. .”Entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a tendência que eles têm a entrar em sociedade, tendência, no entanto, associada a uma constante resistência a fazê-lo, que sem parar ameaça partir a sociedade. Essa disposição reside manifestamente na natureza humana. O homem possui uma inclinação para se associarpois se sente mais homem nesse estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele também possui uma forte tendência a se singularizar (se isolar), pois ele encontra ao mesmo tempo dentro de si esse caráter insociável que ele tem de querer dirigir tudo somente do seu ponto de vista”. Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Quarta proposta. 
  2. A piada é bem conhecida: perguntam ao anarquista o que ele fará depois de ter tomado o poder. Muito simples, diz ele, fuzilaremos toda a polícia e estaremos tranquilos. Mas — objetam — como vocês farão para que reine a ordem? Muito simples, responde o anarquista: chamaremos voluntários para substituir os mortos e formar uma nova polícia, encarregada de fazer com que as novas leis sejam respeitadas. E então, não será mais a anarquia, retorquem. Sim, responde o anarquista. Porque fuzilaremos todos esses voluntários, assim estaremos definitivamente tranquilos! Teremos nos livrado de todos os que protegiam o poder e de todos os que tinham a mesma mentalidade do que eles! Será finalmente a sociedade anarquista, a comunidade sem poder. 
  3. A. de Tocqueville, “Do individualismo nos paises democráticos”, in Da democracia na América.
    Sao Paulo, Martins Fontes, tomo II, capitulo II. 

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