Experiência e destino
por Adauto Novaes
Este livro resultou do primeito ciclo de conferências que a Divisão de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte – Funarte – (Ministério da Cultura) organizou sobre os quinhentos anos do descobrimento do Brasil. Programados para se realizarem até o ano 2000, serão ao todo quatro ciclos.
A descoberta do homem e do mundo põe em evidência não só as condições econômicas e políticas da Europa e, em particular, de Portugal na época das grandes descobertas, mas também as formas de organização de vida dos homens. O estudo da história, pensamos, deve partir de uma análise imanente do real, ser a crítica da velha visão teleológica e teológica. É esta análise que nos permite revelar obstáculos e rupturas na filosofia, na política, nas ciências, nas artes, nas técnicas, nas formas de poder. Mas como a história nem sempre se faz de saltos e acontecimentos bruscos, procuramos ver as transformações muitas vezes insensíveis e invisíveis ã primeira vista, aquilo que preparou os descobrimentos. A construção de um sistema de pensamento dá-se muito menos nos “acidentes visíveis’· da história do que nos vestígios deixados por esses “acidentes”, desdobramentos que permitiram, por exemplo, o nascimento da moderna civilização ocidental com suas técnicas, mitos, ambições e formas de dominação política. Datas emblemáticas como “Brasil 1500” ofuscam todo o resto (quando se pensa apenas em comemorar), mas podem também ser “pontas de iceberg” de um processo de reflexão.
Os ensaios deste volume põem em cena uma nova era construída sobre as ruínas de concepções tradicionais. Historiadores costumam dizer que este é um momento inaugural da história, uma nova origem do mundo. Desde o mito da criação do mundo, tendemos a acreditar que toda origem é perfeita. Mas é preciso reconhecer que há sempre muita imaginação nas narrativas de todo Estado nascente. A história oficial esquece que o que aconteceu no Brasil a partir do “encontro” (aniquilamento de outros povos e outras culturas. e, portanto, produção do que somos hoje) é parte essencial desta origem: Como nos lembra Valéry, na história
os personagens que não têm as cabeças cortadas e os que não cortaram cabeças desaparecem sem deixar vestígios. É preciso ser vítima ou carrasco, ou sem nenhuma importância … A memória histórica obedece às leis do teatro. O homem gosta do drama. Mas o drama engendra o drama… Para demonstrar isso, basta tentar levar ao extremo a representação que se faz de qualquer dado “histórico… Vê-se, então, a parte que tomam nosso arbitrário, nossa sensibilidade e nossos conhecimentos dessa fabricação. Aliás, se retirarmos da leitura da história o socorro de nossa crença no valor de uma representação do passado esta representação torna-se uma combinação entre outras igualmente possíveis.
Acontece que, no Brasil, as cabeças cortadas fundem-se com os “sem nenhuma importância” e desaparecem da história. O Ocidente, sempre é bom lembrar, construiu-se sobre as ruínas do Velho e do Novo Mundo.
Este primeiro volume da série procura mostrar o que e como pensava a Europa na época do descobrimento; como era a organização política de Portugal; a arte e a técnica das navegações; o dia-a-dia no mar, a chegada ao Brasil, as narrativas dos primeiros viajantes e os primeiros conflitos.
Experiência e destino são duas noções que, direta ou indiretamente, estarão presentes ao longo dos livros da coleção. Por que experiência e destino? O mundo das descobertas mostra-nos que, de alguma maneira, a política europeia dominada pela Escolástica, pensava de olhos fechados. Era um pensamento sem objeto, e a experiência era feita a partir apenas da ideia de experiência. O mundo não se preocupava em interrogar as coisas. Ou melhor, os homens viam o mundo tal como aparecia para eles e não tal como ele é; não viam nas coisas as próprias coisas mas apenas as ideias delas. Por meio da experiência concreta, além da descoberta do mundo, o homem também se descobre, funda a filosofia da autoconsciência, isto é, põe no lugar do ser unicamente pensado, no lugar de Deus, do ser supremo e último de toda filosofia escolástica, o ser pensante, o Eu, o espírito autoconsciente… Esta foi a grande descoberta do homem que permitiu as experiências da descoberta do mundo. A crença cede lugar à experimentação. Experimentar quer dizer, em última análise, não acreditar. A revolução inaugurada no século XVI consiste, pois, na derrocada da “bela unidade medieval”, que tinha no divino o mediador de todas as coisas. A certeza imediata, sensível, ajuda a fundar a época moderna.
Ora, pode-se dizer que as invenções são feitas sob o signo da descrença. Com a experiência, o pensamento estabelece uma nova modalidade de razão, operante a partir das coisas do mundo. Experiência quer dizer prova, tentativa, ensaio. Na época dos descobrimentos, a palavra experiência designava o conjunto das aquisições do espírito em contato com a realidade. Já no fim do século XVI, o termo adquire conotações científicas, significando “praticar operações destinadas a estudar algo… A etimologia nos ensina que experiência liga-se à importante raiz indo-europeia per que quer dizer ir “adiante”, “penetrar em”, dando ainda origem às palavras perigo, pirata, porto. Lemos, por exemplo, no ensaio Quod nihil scitur [De que nada se sabe], do português Francisco Sanchez (1551- 1623), um dos precursores do pensamento moderno, antecessor de aspectos do racionalismo de Descartes e do ceticismo de Montaigne: “Observa diretamente …”; “A experiência e o juízo são os meios pelos quais os míseros humanos alguma coisa percebem e aprendem'”. Ou, como escreveu Duarte Pacheco, no Esmeraldo de Situ Orbis, “A experiência é a madre das cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira”.
Este pré-racionalismo português, de tendência empirista, teve o mérito de romper com o pensamento teológico e escolástico, tanto na teoria quanto na prática das navegações, resultando no que historiadores denominam de Renascimento português. Como observa Georges Lefebvre “desta aventura multissecular – aos nossos olhos, o Renascimento – qual foi o aspecto essencial? Evidentemente os descobrimentos marítimos”.
O Renascimento português, com seu desenvolvimento técnico, levou, portanto, a transformações radicais na própria forma de pensar e agir. As observações do poeta Paul Valéry, feitas para outro context, servem também para ilustrar o que aconteceu em 1500:
O progresso dos meios enfraqueceu a metafísica que jamais previu o que quer que seja dos fenômenos descobertos pela experiência […] Enquanto o “espiritualista” move-se na linguagem, com a qual ele faz o que quer por meio de definições que se dá sem apoiá-las em fenômenos constantes – o materialista obriga-se a manter relação com a observação e a experiência e busca nos fenômenos o que o outro procura no seu cérebro verbal.
Desta experiência inovadora, o que restou para o Brasil do século XVI? Nada ou quase nada. Isso porque o Brasil cresceu intelectualmente à sombra da Contra-Reforma, da Inquisição e da Companhia de Jesus, contra o pensamento heterodoxo, que, seguindo a linha dominante em Portugal, estabelecia uma relação despótica na política e nas ideias.
Se parece difícil vincular o Brasil às evoluções experienciais no mundo a partir de 1500, pode-se, pelo menos, precisar o sentido que o termo experiência adquiriu para nossa política e nossa cultura: no lugar da invenção política, cópia: no lugar da criação permanente de obras de pensamento, repetição.
Outro legado português, também tema deste livro, é o conceito teológico-político de destino. Por destino entende-se fatalidade, reservar esta ou aquela sorte à nação e ao povo. Na ideia de destino, há uma potência exterior ao homem que regula o curso dos acontecimentos; nela, há sempre um ser superior e exterior que sabe o futuro e o anuncia. Sem passado e sem presente, destino é uma maneira de dizer que jamais podemos mudar o presente porque tudo já está definido nos céus de um futuro glorioso: ·”Brasil, país do furturo”. Esta ficção é teológica porque resulta de uma profecia semelhante à perfeição divina que nada pode ignorar; é política porque sempre foi apropriada até nossos dias pelas classes dirigentes para manipular vontades e adiar desejos de transformação.
A ideia de destino tem origem na própria tradição política portuguesa: das cruzadas (“dilatando a fé e o império”) às navegações (“…toda história de Portugal gira em torno dos descobrimentos marítimos e da expansão dos séculos XV e XVI”). Tudo o que aconteceu antes não foi mais do que uma preparação para esses grandes empreendimentos. Tudo o que aconteceu depois foram – e são ainda – consequências desses grandes empreendimentos”, escreve Barradas de Carvalho). O destino de Portugal está inscrito, pois, no mar e no além-mar. No Brasil, ao longo de sua história, o destino está sempre fora de suas fronteiras, espelho distorcido de experiências de outros países e, portanto, nunca realizável nas suas condições concretas: esteve em Portugal, esteve no Iluminismo, esteve na Revolução Francesa, esteve no positivismo. Está… Perdemos sempre a última caravela; alegremente esperamos a próxima …
O HOMEM, O MUNDO
O momento das descobertas foi também o momento das rupturas. Ao lado das invenções técnicas, que permitiram as aventuras dos navegantes, transformações nas estruturas materiais e mentais deram início ao que a filosofia e a história chamam de “liberação do indivíduo”, tirando-o do anonimato medieval: “divinização do homem e humanização de Deus”. Com o nascimento da ideia de indivíduo, surge um novo homem que se pretende autônomo. É essa autonomia que permite a construção, por meio da experiência, de uma nova ordem econômica e política que se contrapõe, no plano das ideias, ao caráter ideológico dominante.
Vemos, na circunavegação, a criação do grande processo de circulação: surgimento do espírito capitalista, com a circulação da mercadoria e ela moeda: ao mesmo tempo que o gosto pelo risco nas navegações se afirma, aparece o primeiro esforço para organizá-lo racionalmente através de contratos de seguro, fundação das bolsas e dos grandes bancos. Como observa Claude Lefort em seu ensaio Capitalismo e religião no século XVI, como não reconhecer o capitalista e o banqueiro internacional já governando o mundo por detrás do príncipe e do papa no início do século XVI?
Circulação das ideias, com a descoberta por Gutenberg do processo de impressão por meio de tipos móveis, com a multiplicação de livros e o aparecimento da imprensa escrita.
Descoberta da circulação dos astros com as pesquisas do astrônomo Copérnico, dando início à revolução científica moderna, ao lado do dinamarquês Tycho Brahe e do alemão Kepler. Comprova-se, com rigor científico, o heliocentrismo, derrubando a visão do antropocentrismo vigente no mundo antigo e em toda a Idade Média.
Descoberta da circulação do sangue, ainda que sem verificação experimental, por Miguel Servet. A grande circulação sanguínea será confirmada um pouco mais tarde, experimentalmente, pelo médico inglês William Harvey. Mas é nessa época também que Leonardo da Vinci se dedica à descoberta do corpo através dos seus estudos da anatomia humana. São desse período ainda os estudos de anatomia, a partir da dissecação de cadáveres, do pai da anatomia moderna, o belga André Vesalio.
São desse período, também, as primeiras greves na imprensa e nas fábricas de tecidos. Mas, o que marcou a história das revoltas foi a Guerra dos Camponeses alemães, de 1524 a 1526. Liderados, entre outros, por Thomas Müntzer, os camponeses reivindicavam a propriedade comum dos bens de produção, a extinção da servidão, a redução dos impostos.
O tempo das descobertas foi, ainda, o tempo de Lutero, Calvino, Erasmo, Thomas Morus, Maquiavel, Montaigne, La Boétie, Piero della Francesca, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Van Eyck, da Companhia de Jesus, da Contra-Reforma e, por fim… o nascimento das europas fora da Europa e também – por causa da Europa – o nascimento das Áfricas fora da África”, como escreveu Jean Delumeau.
Época que antecipa nosso tempo, que produz o Brasil e suas contradições.
O MAU ENCONTRO
Uma das rupturas mais determinantes para a história no século dos descobrimentos foi a ideia de Estado. Sua reestruturação deu maior controle do poder central sobre as províncias. Historiadores assinalam que tais modificações nas estruturas políticas e sociais (ao lado das guerras de religião) fizeram nascer a filosofia política. Ora, vemos surgir nesse momento a revalorização da ideia de natureza humana e uma nova dimensão das relações entre o indivíduo e o Estado. A nova noção de natureza humana afirma a valorização do indivíduo e implica a “convicção de uma autodeterminação possível”. Uma vez postas as determinações puramente humanas da vida social, a responsabilidade de cada um na vida do Estado não é mais objeto de dúvida. Em um comentário sobre as transformações políticas do século, Nadia Gontarbert nos lembra de que um dos textos de referência para católicos e huguenotes é A cidade de Deus, de santo Agostinho, que dá um sentido religioso às ideias de autodeterminação e de indivíduo, legitimando toda autoridade. Gontarbert resume esta concepção: “Deus quis que a multidão humana fosse guiada por um chefe. Este, escolhido pelo Criador, tem todos os direitos e todos os poderes sobre seu povo, ao qual não deve prestar nenhuma conta”. Mas dois outros pensadores do século presentes neste livro – Erasmo e Maquiavel invertem estes valores religiosos e põem o indivíduo no centro das especulações filosóficas e políticas. Mas quando critica os mecanismos de funcionamento do Estado, Maquiavel considera o príncipe o único responsável pela autoridade e organização política do país. Pensador difícil de compreender, comenta Merleau-Ponty em sua
Nota sobre Maquiavel, pois “desconcerta os crentes do Direito como os dá Razão de Estado” e para quem entre o poder e os sujeitos, entre o eu e o outro “não existe terreno em que cesse a rivalidade. É preciso sofrer a repressão ou exercê-la. A cada instante Maquiavel fala de opressão e de agressão. A vida coletiva é o inferno”.
Fina interpretação de Merleau-Ponty que ressalta em Maquiavel tanto a crítica ao príncipe quanto à rejeição à ideia de um poder supremo das massas e o povo transformando-se em monarca. De alguma maneira, ele aponta para a crise desta oposição julgada essencial pelo pensamento clássico.
Neste cenário é escrito um pequeno texto que se transformou em um dos monumentos isolados da teoria da política moderna: o Discurso da servidão voluntária, de Etienne La Boétie. Relegado ao esquecimento durante mais de três séculos, o Discurso é uma reflexão sobre o ser tornado servo. Poucos comentadores se dispuseram a analisar a obra de La Boétie; poucos políticos buscaram o seu concurso para bandeira de lutas libertárias: como nos lembra Marilena Chauí no ensaio Amizade, recusa de servir, o texto
retorna à cena política durante a Revolução Francesa e no século XIX, retraduzido por La Mennais, no curso das lutas proletárias. Com os revolucionários, e em particular com Marat, a obra converte-se em panfleto pedagógico no qual ensina-se ao povo a causa da tirania e o remédio que o fará feliz, mesmo contra a sua vontade. Nessa apropriação do texto, abandona-se a intenção expressa de La Boétie que escrevera não querer pregar ao povo.
O silêncio em torno de La Boétie deve-se a algumas peculiaridades: primeiro, como já foi dito anteriormente, La Boétie “considera secundárias as oposições julgadas essenciais pelo pensamento clássico”, que põe de um lado o povo, de outro o tirano. Como lutar pelo poder, como chamar o povo a tomar o poder político, como transformar-se em demagogo e panfletário sem criar a figura do outro como inimigo? Ora, La Boétie mostra que o povo é parte do poder e que entre o tirano e o povo não existe propriamente antagonismo. No processo de fabricação do tirano, “o que ele tem de fato de grandeza e potência é constituído apenas por aquilo que lhe é oferecido: o que ele tem não é senão aquilo que lhe é oferecido: o que ele tem não é aquilo que o ‘povo’ lhe dá” (Jean Michel Rey, em La part de l’autre). O povo faz corpo com o tirano, e os servos só são servos por vontade própria. Daí a força do tirano. O povo aliena-se porque quer bens; o tirano quer a força porque quer (e tem) o outro, o desejo do outro, em um processo incessante de produção e reprodução dos mecanismos de dominação. La Boétie escreve:
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhes dais destruir vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Como ousaria atacar-vos se não estivesse conivente convosco?
Mais ainda: para o povo, não basta obedecer ao tirano,
também é preciso agradá-lo, é preciso que se arrebentem, que se atormentem, que se matem de trabalhar nos negócios dele; e já que se aprazem com o prazer dele, que deixam seu gosto pelo dele, que forçam sua compleição, que despem o seu natural, é preciso que estejam atentos à palavra dele, aos sinais dele, e aos olhos dele; que não tenham olho, pé. mão, que tudo esteja alerta para espiar as vontades dele, descobrir seus pensamentos. Isso é viver feliz?
A servidão é voluntária, isto é, há uma cisão no interior da própria vontade, ela se desdobra, divide-se nela mesma a ponto de desejar a própria alienação, o próprio aniquilamento. Ao desejar servir, o povo confere ao tirano um poder ilimitado. “Não há desejo de mandar sem desejo correlativo de obedecer”, comenta Pierre Clastres.
Outra razão que levou La Boétie ao esquecimento foi o rompimento com o discurso político cristão, apontado por Claude Lefort no ensaio O nome do outro. Ora, o discurso cristão é, diz Lefort,
justamente referido pelo lugar de um saber produzido sob a garantia das Escrituras, do qual pretende ser o comentário face a um mundo ao mesmo tempo regido e concebido por Deus. De resto, a marca dessa ruptura é flagrante para quem faz o esforço de remontar aos tempos do humanismo. La Boétie recusa os signos visíveis da servidão e da dominação, esses signos que sugerem causas naturais, volta o seu leitor em direção do invisível, o nome de Um; mas desse modo exclui, sem que precise dizer materializado no todopoderoso divino, o senhor absoluto, do qual, contudo, só a noção bastaria para impedir a ideia de uma servidão voluntária, a ideia de que o homem seja o autor de sua sujeição – ou a modificaria inteiramente tornando-a consequência de um decreto providencial.
Ora, sem ser um discurso aceitável pela política clássica, ainda que de “oposição”, por ser ainda um pensamento transistórico, original e absolutamente livre, e tendo como inimigo todo o poder teológico-político, entende-se por que La Boétie é combatido através do esquecimento.
Seria preciso ter muita paciência e prudência para analisar todos os aspectos do mundo político do Discurso da servidão voluntária, mas, para os propósitos dos quinhentos anos do descobrimento, é mais que necessário fazer uma referência ao tema do “mau encontro” e às relações feitas por Pierre Clastres entre as concepções políticas do Discurso e a organização política das sociedades indígenas quase quinhentos anos depois.
Todo o Discurso vai no sentido de alertar o leitor sobre a origem e o preço da servidão e, portanto, da liberdade. O núcleo do texto está na questão, que La Boétie deixa sem resposta: “…que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. “Brutal encontro”, “acidental”, escreve Pierre Clastres no ensaio Liberdade, mau encontro, inominável, que faz desabar o antes da liberdade no depois da submissão, trazendo à sociedade a divisão entre os que mandam e os que obedecem: “O que é designado aqui é, efetivamente, o momento histórico do nascimento da história, essa ruptura fatal que jamais deveria ter se produzido, o acontecimento irracional que nós, modernos, nomeamos, de modo semelhante, o nascimento do Estado”. Para Clastres-La Boétie, essa ruptura é uma passagem “fatal” e “brutal”, que torna o homem desnaturado (isto é, sem liberdade, que é a essência de sua natureza), porque é sem volta. Não é uma passagem simples de uma maior para menor liberdade, gradações criadas pela democracia moderna, mas “passagem fatal” que quer dizer, em essência e na origem, que toda sociedade dividida é uma sociedade de servidão: “Não existe bom príncipe que se possa opor ao mau tirano. Amável ou cruel, ele, de qualquer modo, não é o príncipe a quem o povo serve?”. Servidão voluntária, junção aparentemente contraditória: servidão só existiria pela vontade do outro; voluntária é a ação livre, sem pressão e por intenção, aquilo que está em nosso poder fazer ou não fazer. Espinosa ensina-nos que desejo e vontade são essências do homem determinado a fazer coisas que são úteis à sua conservação. Ora, com a perda da liberdade e com a junção à servidão, a vontade torna-se flutuante, o homem perde a consciência de si e da sua condição; assim, diz Espinosa, somos “agitados de diversas maneiras por causas exteriores e, como as flutuações agitadas por nossa sorte e de nosso destino”. Ao expor o movimento contínuo e interminável de produção e reprodução do desejo de servir, La Boétie desloca o eixo da interpretação; não é mais a astúcia do tirano que leva à servidão, mas o próprio desejo do povo, que dá ao tirano mais do que ele espera. Pior ainda: o povo “não sente mais o seu mal”, o que faz com que se crie uma espécie de anestesia (o termo é de Jean Michel Rey) que duplica o esquecimento da liberdade, “a lembrança do seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo”.
Os poucos comentadores de La Boétie costumam dizer que sua análise obedecia a um procedimento puramente lógico, transistórico, liberto de toda “territorialidade” social e política. Mas Pierre Clastres lembra-nos que o século XVI é o da Renascença, a volta da cultura greco-romana, mas também o século da descoberta do Novo Mundo. É fácil imaginar o fascínio exercido no pensamento europeu das narrativas das sociedades indígenas feitas pelos primeiros viajantes. Dificilmente La Boétie teria desconhecido tais narrativas. Mesmo tomando o Discurso como um trabalho de “pensamento”, no sentido autônomo do “pensamento” que lhe dá Claude Lefort, é clara a alusão aos novos povos descobertos. “A propósito”, diz La Boétie,
se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição, nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou viver livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que preferiria somente à razão obedecer do que a um homem servir…
Ora, Clastres nos mostra, através da análise de La Boétie, que as sociedades indígenas, antes do mau encontro vindo com os europeus, eram sociedades livres, “sem lei, sem fé nem rei”. O que se conclui das análises é que duas concepções de mundo estavam em conflito em 1500. Sociedades sem Estado não porque fossem atrasadas mas porque, por escolha política e pela visão das relações entre os homens, eram estruturalmente contra a ideia de Estado, contra a sociedade dividida entre os que comandam e os que são comandados. A resistência ao invasor deve ser entendida dessa maneira: se, no início, as sociedades indígenas souberam reconhecer o outro enquanto outro – todos os viajantes narram nesse sentido as primeiras acolhidas -, logo viram surgir em seu seio essa coisa absolutamente nova que desejava alterar radicalmente a relação entre os índios: a inquietante figura do poder separado. Os tupinambás, como centenas de outras nações, foram dizimados. É certo que eles preferiram a resistência e a morte a “desejar servir”. Eles sabiam que entre o desejo de liberdade e a liberdade não há diferença e que o homem só é servo por vontade própria. Mas isso é outra história. Ou melhor, esta é a história do próximo livro: o que eram as sociedades no Brasil de 1500.