1992

Experiências do tempo

por Benedito Nunes

Resumo

Na ontologia de Ser e Tempo (1927), Heidegger diz que o advir do dasein se desloca no presente, que o seu haver sido é um passado-presente, e que o presente é o confrontar-se aqui e agora com os outros e as coisas. Nessa temporalidade, que define nossa compreensão de nós mesmos e nossa finitude , o presente é o instante de decisão. O ser humano é um acontecer histórico, mas Heidegger o diferencia da práxis cotidiana que permite formar o “esquema” de sucessão temporal com seu caráter público e regulador: tempo da cronometria, da cronologia, da previsão de eventos, do princípio-meio-fim. Hegel, o historicismo e o positivismo ligaram a História à Natureza, postulando a ideia de progresso. Mas essa perspectiva ignora o enigma presente dos “fragmentos do passado” (as antiguidades de um museu, por exemplo). Heidegger pergunta: “Com que direito chamamos esse ente de histórico se ele ainda não passou? (…) O que foram as ‘coisas’ que hoje não são mais?” Para ele há sempre convergência do presente com o passado sob a perspectiva do futuro. E o que define a decisão do dasein é a retomada das possibilidades do passado, do que nele permanece vivo. Assim, a ontologia heideggeriana é um abalo da representação aristotélica do tempo e da ideia hegeliana de História universal, além de afirmar a contingência do conhecimento histórico, obrigado a um trabalho hermenêutico. Mas faltou-lhe um horizonte ético para a humanidade, o que talvez seja a única universalidade histórica possível a conquistar nesta época de crise.


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Se o tempo encontra o seu sentido na eternidade, é preciso então que seja compreendido a partir dela”, disse Heidegger em 1924, numa conferência perante a Sociedade Teológica de Marburgo. “Pelo mesmo motivo, o ponto de partida e o caminho de uma tal pesquisa estariam previamente delineados: da eternidade ao tempo” (Le concept de temps, 1924). E acrescentava que, nesse caso, “é o teólogo o verdadeiro especialista do tempo”, uma vez que trata do ser temporal do homem em sua relação com Deus.Três anos depois, em 1927, o tratado Ser e tempo, de que aquela conferência trouxe o primeiro esboço, anuncia, em seu próprio título, o trajeto de uma investigação do sentido do ser em geral, que se desenvolvendo a título preparatório, como análise ontológica do homem, chega ao tempo sem passar pela eternidade. Tal análise explicita fenomenologicamente a compreensão do ser na conduta humana, independentemente do pressuposto da natureza substancial do sujeito e do seu vínculo com o Ser supremo. E assim, demitidos ou destituídos de antemão os suportes tradicionais do mais antigo problema filosófico, o ente humano, que se mostra nessa compreensão, não tendo por essência senão a existência, investida no mundo, o que dele faz um Dasein, é Cuidado, ser derrelito, envolvido pelos outros com os quais convive, e imerso nas coisas com as quais se defronta.

No Cuidado, os três constituintes do Dasein — a existência, o fático ser-no-mundo e o envolvimento (queda), cada um dos quais é uma escala da compreensão de si e do mundo — unem-se no movimento de transcendência desse mesmo ser. Pois que, situado no seu irredutível fático, junto às coisas com que se preocupa, sob a estabilizada dominância da vida cotidiana, sempre está aberto ao mundo, como adiante de si mesmo. Enfim, para abreviar ainda mais o longo caminho da Ontologia em campo raso de Ser e Tempo, Ontologia sem Metafísica, à margem da ciência especulativa dos “primeiros princípios”, só é possível o inquieto ser do Cuidado porque o pôr-se adiante de si mesmo já é futuro como advir (Zukunft), incluindo um haver sido (passado) que se presentifica (presente). Eis o tempo a que chega a Analítica — tempo originário, expressamente chamado de temporalidade. No idioma kantiano da Crítica da razão pura, obra com a qual o tratado de 1927 tem inegáveis afinidades, poder-se-á dizer que ela é a condição de possibilidade do Cuidado e da compreensão do ser pelo Dasein. Detenhamo-nos um pouco no exame dessa noção peculiar.

Comecemos por notar que, pela descrição da temporalidade, nem o futuro nem o passado nem o presente, interligados, correspondem aos mesmos termos na linguagem comum, ordinária. O primeiro, como advir, no qual o Dasein já está projetado, não é o termo para onde se desloca, indefinidamente, em seu presente; o segundo, como haver sido, é um passado-presente, e o terceiro, enquanto presentificar, é o agora-aqui do confrontar-se com os outros ou com as coisas. O haver sido, aquilo que já fomos, comenta Heidegger, “faz parte igualmente do futuro. […] O que nós somos por havê-lo sido não é passado, no sentido em que poderíamos desfazer-nos de nosso passado como alguém que se desembaraça de suas roupas velhas…” (Die Grundproblem der Phãnomenologie, p. 375). Por isso, a temporalidade perfaz-se extaticamente: é a saída, o desclau-suramento da subjetividade, dando conta do movimento de transcendência do Dasein, a partir de si mesmo para a derrelição no mundo e para o envolvimento pelos entes, que caracterizam a banalidade da existência cotidiana. Assim, o futuro fundando o poder-ser da existência, o passado fundando o ser-no-mundo fático e o presente a queda, são, cada qual, um êxtase, um sair fora, e é o enlace recíproco entre os três, de tal modo que cada qual se produz em função de outro, o que constitui a temporalidade, também cognominada extática.

Porém, é hora de lembrar que, em sua singular completude, a temporalidade só pode abranger o homem como um todo, porque se remete (e nos remete) à morte, ao inultrapassável fim do ser-no-mundo, sua mais extrema possibilidade. Diante dela, lograríamos a compreensão própria de nós mesmos, tornando-nos aquilo que verdadeiramente somos. Assumida contra a tendência para encobri-la no envolvimento do cotidiano, cessa a oscilação que polariza o Dasein, e que a Analítica acompanha, entre o plano da existência autêntica e o da inautêntica. Com a definitiva autenticidade de um si mesmo sem disfarces ou encobrimentos, alcançado numa decisão, antecipamos o fim que já somos. No arco tenso traçado pela decisão antecipadora, revela-se o perfil da temporalidade autêntica: o futuro, que puxa a cadeia dos êxtases, é uma antecipação, o passado, a retomada do que uma vez foi possível, e o presente, o instante de decisão. Mas, sob o foco da morte, onde o arco finda, a temporalidade extática, originária, revela-se finita, nela espelhado o sentido do Dasein em sua mesma finitude.

A fuga à finitude, que nos fecha à transcendência, estampa-se no oposto perfil da temporalidade inautêntica: presente pontual, o futuro demudado na simples expectativa de ocorrências e o passado no puro pretérito do esquecimento. Fundada na mesma estrutura do ser humano, difere’ da outra porque, com a preponderância desse presente, dela nasce o regime temporal da sucessão infinita. Contudo, em qualquer das duas encontramos a unidade movente dos êxtases, futuro, passado e presente, e cada uma delas, autêntica ou inautêntica, está toda inteira em cada um desses êxtases. Por essa forma concebida, como sentido do Dasein, a temporalidade excede a experiência do tempo decalcada nos ícones de processos externos da Natureza. As metáforas de curso, fluxo ou ciclo seriam inadequadas para representá-la. Se é assim, só se pode expressar-lhe o caráter extático por uma mudança de categoria gramatical, passando-se de substantivo a verbo: a temporalidade é o que se temporaliza. E não é outro senão o homem, radicalmente temporal, que por isso dentro do tempo não está, à maneira dos entes intramundanos, coisas naturais e objetos fabricados, o sujeito desse verbo.

Considerado o ser humano em seu curso de vida, entre nascimento e morte, a mesma mobilidade extática, que inclui tanto mudança quanto permanência, é um acontecer (Geschehen) histórico. Não há precedência do tempo sobre a história. Afirma Heidegger que o Dasein “somente existe e pode existir historicamente porque é temporal no fundo de seu ser” (Sem n und Zeit, p. 376). A historicidade, com que deparamos agora, nada mais é do que a mesma temporalidade, o mesmo tempo finito, transportado aos dois níveis solidários, individual e coletivo da existência do ser-no-mundo, que implicam o agir e, portanto, também, a tomada de decisões. O homem se temporaliza, e o seu acontecer histórico é temporalização.

Na conferência preliminar de 1924 a que nos referimos no começo, Heidegger escrevia: “[…] o tempo é Dasein […] Dasein é tempo”. Mas esse tempo, finito, condição da finitude do ser humano, é, como temporalização, feita ou no sentido do presente ou do passado ou do futuro, a origem dos vários tempos que se apresentam no mundo, cada qual legítimo em seu domínio ôntico próprio, na medida em que resultam de uma modificação da mesma temporalidade extática de que derivam. Heidegger resume esses tempos num só: o intratemporal, de que deriva o tempo natural que ele chama de vulgar, e ao qual assimila o tempo histórico. Ligado à pragmática atividade cotidiana, à lida pré-reflexiva com entes descobertos em sua instrumentalidade ou serventia, o intratemporal encerra o modo elementar de compreensão do tempo. Os traços distintivos que apresenta, a nosso ver “esquemas” da imaginação, no sentido kantiano da expressão, e que passamos a examinar, integram-se aos padrões comuns da experiência temporal — cronometria, cronologia, cronografia e cronosofia — culturalmente transmitidos e sedimentados na linguagem.

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Desatado da preocupação, na práxis cotidiana, o intratemporal transporta a compreensão do tempo como provisão disponível, ao alcance de qualquer um e de todos, com que se conta sempre e antecipadamente para fazer — ou não fazer — isso e aquilo: o tempo que tanto podemos agarrar (Prenez votre temps, diz a usual locução francesa), quanto dissipar ou perder. Como a preocupação é a ondulante conduta de confronto com as coisas diante das quais se está, ela condiz com o apresentar da temporalidade extática, e se expressa num “agora que”. “Dizendo agora, nós sempre já compreendemos um em que ‘isso ou aquilo’, embora sem dizê-lo explicitamente” (Sein und Zeit, p. 408). O “agora” é também um “aqui” dentro do mundo. E assinalaria apenas fugidio momento, se ao pronunciar agora” não expressasse igualmente, ainda que de forma tácita, um “então” ou um “outrora”. Mas então quer dizer “ainda não” e outrora, “já não mais”. Cada um desses termos é, pois, co-implicado pelos outros; o encadeamento entre eles nos dá uma estrutura relacional remissiva.

Não é, porém, insignificante pormenor que a cadeia seja verbal. Na estrutura remissiva, temos a sucessão em imagem, um “esquema” da idéia de sucessão — que permite localizar acontecimentos no tempo —, ou, na terminologia hei-deggeriana, a databilidade, em que se apóia a datação. Mas, desse modo, o tempo se torna disponível entre os termos da estrutura remissiva — do “agora” ao “então” e do “outrora” ao “agora”, numa linha extensiva — o “enquanto” e eis o intervalo (Spanne), esquema da permanência ou da duração.

Como esse tempo é preenchido por um que-fazer, asua disponibilidade fica, assim, no mesmo plano da disponibilidade prática das coisas, que não nos são dadas como objetos da Natureza, postados diante de nós, à nossa vista, mas descobertas em sua serventia, ao alcance da mão, como entes instrumentais, ferramentas ou instrumentos ao sabor de uma visão abrangente, que antecede as representações e os conceitos. Esse vinco pragmático do pensamento de Heidegger mais ainda se afirma pelo terceiro traço — o caráter público, de base instrumental — que atribui ao intratemporal. Sendo este uma provisão comum, o tempo de cada qual e de todos, o intratemporal recai sob o regime de anonimato do ser-em-comum, em que cada qual se vive como um outro, expressão de um sujeito anônimo pervasivo, que não é nunca alguém mas toda gente. A provisão temporal exterioriza-se. Ao dizer “agora”, dela retomo o referencial comum, que se exterioriza instrumentalmente. Olho o tempo consultando o relógio. Mas o tempo que olho no relógio é disponível porque contado, e porque contado d maneira concordante por meio de um instrumento, torna-se instância reguladora da atividade humana, algo que vem ao nosso encontro e com que nos defrontamos. Por essa verdadeira gênese existencial dos relógios — varas de sombra, ampulhetas, clepsidras, relógios mecânicos — o deslocamento do Sol peregri-nante, visado instrumentalmente, pôde ser o primeiro medidor do tempo, devido ao fato de que a alternância do dia e da noite enquadra-se nos dois esquemas anteriormente expostos. A medida é nesse caso datação, contagem, imaginativo suporte para o emprego dos números. O Dasein já conta com o tempo, e por isso medidas sucederão a medidas, de acordo com o móvel utilizado como instrumento. Olhar o relógio, ver as horas, significa utilizá-lo para a regulação de atividades dizendo “agora é tempo de”. Mas a dominância pública do medidor que, independentemente da luz solar, regula as ocupações, infletindo-se sobre a descoberta da Natureza (o desenvolvimento dos relógios faria parte da História), desprende as medidas de tempo dos esquemas de apoio, convertendo a contagem numa sucessão de “agora” independentes, esquecidas a databilidade e a linha extensiva da duração. Em suma, o tempo contado passa a ser um curso temporal objetivo, contínuo, uniforme e infinito.

Assim, apaga-se do intratemporal o nexo com a temporalidade originária do qual deriva tanto como tempo do mundo, dos seres e eventos naturais quanto das coisas produzidas pela atividade humana. Pelo que vimos antes, esse tempo é inautêntico — o que não o anula nem o invalida — a menos que se imponha como único e verdadeiro. Na verdade, porém, ao derivar da temporalidade, o intratemporal modifica-lhe a ordenação dos êxtases, do futuro ao passado, pondo na dianteira o presente, em função das coisas ou objetos na direção dos quais se temporaliza. É essa primazia do presente — correlato a um defrontar coisas e traduzido no efeito de nivelação dos “agora”, identificados ao instrumento medidor, digamos à posição dos ponteiros do relógio, para nos lembrarmos de Bergson, muito por trás dessa análise — que justifica, no seu plano próprio, entretanto historicamente preponderante, a definição de Aristóteles: “O tempo como número do movimento segundo o anterior e o posterior” (Física, IV, 21 9b), que Heidegger identifica ao conceito de tempo natural ou vulgar.

Por outro lado, podemos acrescentar, embora a análise de Heidegger não tome esse rumo, que os dois primeiros “esquemas” do intratemporal redistribuem-se nos padrões culturais da experiência do tempo — a duração, na cronometria (contagem recorrente periódica), e a databilidade, na cronologia (escalonamento dos intervalos em fases, épocas e eras, com base num referencial significativo). Como o futuro, no intratemporal, é a expectativa de acontecimentos, também essa compreensão do tempo alimenta a cronosofia (predição ou previsão do que vai ocorrer ou tem possibilidade de ocorrer), padrão de enraizamento arcaico, dos áugures aos profetas, e destes aos historiadores — profetas às avessas, alguém já o disse — e aos recentes futurólogos. E ainda, na medida da preocupação que o mobiliza, o intratemporal não está menos relacionado com a cro-nografia — registro de eventos, isolados a princípio (dias fastos e nefastos), e depois, numa forma avançada que já confina com a Historiografia, narrativa com princípio, meio e fim.

De qualquer maneira, segundo afirma K. Pomian, esses padrões, “quatro maneiras de visualizar o tempo e de traduzi-lo em signos”, diferem “pelas suas ontologias implícitas” (L’ordre du temps, p. IX). Enquanto a cronometria se liga ao ser natural, e a cronografia, do mesmo modo que a cronosofia, à História, a cronologia, nas dimensões cósmicas sob que hoje se apresenta, suprimiria a diferença entre a Natureza e a História. Esse enunciado problemático leva-nos ao segundo núcleo de nosso assunto — a questão da historicidade e da História Como ciência, conexa à do tempo.

O termo História se generalizou à Natureza, e, com o respaldo da idéia de evolução ou de transformação dialética, pôde-se conceber uma História global, sob um tempo único e uniforme, como o descrito por Aristóteles. Mas a História da espécie humana, que da global faria parte, em continuação à das galáxias, da Terra e da vida em geral, não contém aquele nexo congênito entre o futuro, o passado e o presente que empresta ao gênero, desde a istoria dos gregos, o sentido de preservação da gesta humana, de memória dos homens e de suas ações. A despeito das diferenças metodológicas que as separaram, as duas linhas do historicismo germânico, a begeliana e apositivista, influentes na problemática histórica de Ser e tempo, e com as quais Heidegger polemiza, remontam, desde Herder, a esse sentido.

É certo que o historicismo, contestando o governo da razão Iluminista, divisou, em função da diversidade e da autonomia orgânica de povos e nações, causas não racionais, excedentárias às motivações da ação individual, convergindo num processo independente da vontade humana, que 1he leterminariam o crescimento, a maturidade e a decadência. “Tudo é um grande destino, não pensado pelos homens, não esperado nem provocado por eles”, escreveu Herder (Filosofia de la historia, p. 84). Hegel pensou depois esse grande destino como a regência de uma razão astuciosa, que se universaliza concretamente por meio dos interesses dos indivíduos e da vida ética, do espírito objetivo de cada povo. Mas é a vida humana objetivada na cultura, na sociedade e no Estado que é histórica, e não a Natureza. Realidade humana e realidade histórica se identificam.

Conseqüentemente, o conhecimento do que procede da sociedade e da cultura só se efetiva por meio da pesquisa do processo de desenvolvimento, que permite ligar, no tempo, o estado atual de uma instituição, de um sistema de normas, de um conjunto de obras artísticas, de uma corrente filosófica, aos estados ou fases de seu passado. A Ciência da História, a Historiografia, alcançaria nisso a transbordante realidade, vital ou espiritual, em que desemboca, sob forma ob-jetificada, exterior, o intercurso das ações intencionais dos homens, que ela teria por função conhecer. Foi este o entendimento de W. Dilthey, pensador vinculado mais à tradição hegeliana do que à positivista, quando, à busca de uma “razão histórica”, compreensiva e não causal explicativa, como a das Ciências da Natureza, razão hermenêutica que interpreta conexões de sentido entre fatos da atividade humana colocou a História (Geschichte), significando ambiguamente tanto a espécie de realidade estudada quanto o estudo respectivo, entre as ciências do Espírito (Geisteswissenschaft).

Convertida, como diz Michel Foucault, em “meio de recepção, ao mesmo tempo privilegiado e perigoso” (“milieu d’accuell à la fois privilegié et dangreux”) das Ciências Humanas (Les mots et les choses, p. 382), a História tornar-se-ia uma ciência errante, desdobrável em cada domínio do conhecimento, Economia, Política, Direito, Ética, Psicologia, Sociologia, e desdobrando em cada um deles o objeto de um saber ilimitado, jamais intemporal mas sem idade. Quanto ao alcance interpretativo, hermenêutico, de seu conhecimento próprio voltado para as conexões de sentido do passado, Dilthey confiou na “empatia”, na projeção afetiva da consciência do historiador para aproximá-lo das formas de vida e de pensamento distantes no tempo. Poderíamos compreender, por uma dilatação das vivências individuais, o que outrora foi humanamente vivido. No fundo, o conhecimento histórico seria uma nova espécie de autoconhecimento, o espírito humano mediado pela consciência do historiador.

No polo oposto, a linha positivista, Leopold Ranke à testa, exigiu do historiador a neutralização de sua subjetividade para que fosse possível apreender, à luz do exame dos documentos, esses testemunhos, se não vestígios, do que não mais existe, os fatos wie es eígentlich gewesen, tais como realmente se passaram. Porém, ainda foi o historicismo tardio de um Collingwood, no século XX, que mostrou o quanto esse ideal de completa objetividade deve à interferência do trabalho da imaginação que, preenchendo lacunas, estabelecendo seqüências e encadeamentos causais, e, por fim, selecionando e simplificando os fatos, na reconstrução da realidade passada, aproxima o historiador do ficcionista.

Mas em qualquer das vertentes do historicismo subsiste, como pressuposto tácito, sedimentado, do tempo histórico, o tempo natural ou vulgar, denunciando uma carência geral das concepções modernas da História. “Mesmo o materialismo histórico”, observa Giorgio Agamben, “omitiu-se de elaborar uma concepção do tempo que esteja à altura de sua concepção da história” (Enfance et histoire, p. 13). E acabou cedendo à representação vulgar do tempo, como “um contínuo pontual homogêneo”, que integrou, com a laicização da sociedade, uma vez esfacelada a direção escatológica salvacionista do “tempo cristão retilíneo e irreversível” a que se associou, a noção de progresso contínuo e infinito. É o abalo dessa representação, de raiz aristotélica, que perdurou até mesmo no devir hegeliano, negação do instante em proveito da eternidade do Espírito, um dos motivos do fecundo alcance dos conceitos interligados de temporalidade e historicidade em Heidegger, ambos, de resto, problematizando o status episte-mológico e o objeto do conhecimento histórico.

3

Afirma Paul Ricoeur (Temps et récit, p. 115) que Heidegger critica na epistemologia das ciências humanas, de modo particular na de Dilthey, sobretudo a falta de um conceito fundado, explícito, de passado, que o senso comum identifica ao histórico, uma dupla espécie de realidade, seja como algo perimido, não mais existente, mas parte de um devir, e assim propriedade do que sofre mudança no tempo, seja como algo existente, mas sem influência sobre o presente. O historiador trabalharia dando as costas para o enigma que irrompe do paradoxo das ruínas, dos “fragmentos do passado”, numa das mais estimulantes passagens de Ser e tempo:

As antiguidades conservadas no museu, os utensílios domésticos, pertencem a um “tempo passado” e se encontram, também, simplesmente dadas no “presente”. Se esse instrumento ainda não passou, em que medida ele é histórico? Será apenas porque ele se tornou um objeto de interesse historiográfico no cultivo das coisas antigas e regionais? Este instrumento, no entanto, só pode ser um objeto historiográfico porque é, em si mesmo, já, de algum modo, histórico. A questão se repete: Com que direito chamamos esse ente de histórico se ele ainda não passou? Ou será que essas “coisas” possuem em si “algo passado”, não obstante serem, ainda hoje, simples-mente dadas? Será que essas coisas simplesmente dadas são ainda o que foram? Manifestamente, as “coisas” se modificaram. Com o correr do tempo, o utensílio tornou-se frágil e deteriorado. Mas o caráter especificamente passado, que faz dele algo histórico, não reside nesta contingência que continua se dando no museu. O que então passou no instrumento? O que foram as “coisas” que hoje não são mais? Elas ainda são o instrumento de um uso determinado — embora fora de uso. Mas se hoje elas ainda estivessem em uso — como muitos móveis herdados estão — elas já não seriam históricas? Em uso ou fora de uso, elas não são mais o que foram. O que então “passou”? Nada mais do que o mundo, no seio do qual, pertencendo a um nexo instrumental, vinham ao encontro da mão e eram utilizadas por um Dasein no mundo de suas ocupações. O mundo não é mais. [Sein und Zeit, p. 380]

Em seu estilo interrogativo, esse riquíssimo trecho alia, de maneira surpreendente, através do mesmo motivo prático do intratemporal, diretamente conectado, conforme vimos, com os objetos úteis, e já por nós encontrado na gênese dos relógios, os temas da historicidade e da Historiografia. Revela-o a abrupta resposta final — “O mundo não é mais” — que leva em conta a distinção entre dois sentidos do termo passado. Os objetos utensiliares subsistem mesmo depois que se desarticulou o mundo onde se propunham a um Dasein, no âmbito de suas ocupações diárias, como uma parcela do intratemporal. Mas enquanto aqueles, como diria Hegel, se tornaram inefetivos, ruínas ou fragmentos de um mundo, esse mesmo mundo, que deixou de existir, e que é, como mundo humano, um passado-presente, um haver sido da existência, continua na linha do tempo originário. Poder-se-á afirmar, então, que as “antiguidades” puderam despertar o interesse historiográfico que as reuniu no mesmo espaço reverencial de um museu, porque compreendidas antecipadamente em sua historicidade, isto é, presentificadas numa temporalização que abriu ao historiador o passado, e assim lhe deu acesso, por meio desses objetos, ao mundo que uma vez tornou-se possível. As ruínas são intratemporais; e é o intratemporal, como tempo do mundo, o mediador de sua historicidade. Para Heidegger, o interesse cognoscitivo da Historiografia depende, ontologicamente, da historicidade. Aquela tematiza o que se desencobre da situação temporal de quem a elabora, de antemão colhido, graças à temporalização, numa convergência do presente com o passado sob a perspectiva do futuro. Não é, portanto, a investigação histórica, mas a historicidade, o que abre para esse descobrimento do passado, condicionando o conhecimento de uma ordem de fatos, legitimado pelo método de investigação.

Como acontecer do Dasein, que se manifesta na tomada de decisões por nós anteriormente referida, a historicidade é, na sistemática de Ser e tempo, um conceito extremamente problemático. Por um lado, visa a depurar o sentido que Dilthey emprestou, em seu Introdução às ciências do espírito (1883), à realidade histórica, enquanto objetificação de vivências. No intuito de assegurar, sem esse derivativo psicologista do desenvolvimento do Espírito em Hegel, a continuidade do que perdura de geração a geração, de período a período, de cultura a cultura, Heidegger antepôs a “silenciosa força do possível” aos fatos. Por outro lado, pretendendo evitar o escolho do subjetivismo, que resultaria da episte-mologia diltheiana, concebeu a historicidade no plano da existência individual, livre na escolha de si mesma, e no plano do ser-em comum, que impõe ao Dasein a carga de uma herança ou tradição.

Esse plano do ser-em comum, inseparável da prática cotidiana, traz de volta o intratemporal, já como tempo social e cultural, que impõe à historicidade o peso de um destino (Geschick) coletivo. Mas, dessa forma, combinam-se naquele conceito contingência e necessidade. Tal composição mista reflete-se na decisão que separa a historicidade autêntica da inautêntica.

Assim é que, sem dizer-nos o que decidir, a Analítica, incorrendo numa sorte de decisionismo, ensina como o Dasein decide. Ele o faz retraindo-se, nos limites da experiência geracional correspondente a um momento de seu curso de vida (presente), a uma herança comum (passado), inercial, latente, em geral esquecida. Mas se ao decidir volta-se para si mesmo, entregue à sua finitude — antecipando o fim —, a decisão, esposando o movimento da temporalidade autêntica, é o instante (Augenblick) da retomada (Wiederbolung) de possibilidades do passado, ou, numa outra linguagem, do que nele ainda permanece vivo.

Se a Historiografia tematiza o que, autêntica ou inautenticamente, abre-se na situação temporal de quem escreve a História, e se, portanto, como se pode ler no parágrafo 76 de Ser e tempo, a historicidade é a historicidade da existência do historiador, então, no conhecimento histórico, sem prejuízo de sua envergadura factual, está sempre em causa uma escolha do passado. É óbvio, pelo que ficou dito antes, que nessa escolha interferem as circunstâncias do presente e a perspectiva do futuro.

Mas, por esse mesmo motivo, a imagem do passado, oscilando conforme a temporalização que a orienta, introduz a diversidade na angulação da História. De acordo com a fulgurante intuição de Nietzsche na segunda de suas Considerações intempestivas (Unzeitgemasse Betrachtungen), aproveitada no referido parágrafo 76 de Ser e tempo, teremos ou uma história monumental, que elege as realizações dignas de serem imitadas, e imitadas porque possíveis uma segunda vez, ou uma história antiquária, que venera o que existiu como patrimônio a conservar, instituindo o culto do antigo por ser antigo, e a história crítica, que julga os outros tempos em nome das necessidades ou urgências do presente. Do ponto de vista de Nietzsche requeridas pelas condições de conservação da vida, e assim legitimáveis se nenhuma se sobrepõe às demais, as três espécies, virtuais à historicidade, atestariam que a História como ciência não se constitui independentemente da maneira como o homem se compreende, interpretando o mundo.

O abalo da representação aristotélica do tempo, preponderante na moderna Filosofia da História, é a primeira implicação da ontologia heideggeriana. A despeito do que nela possa haver de um disfarçado propósito de fazer a História, a temporalidade autêntica quebra a continuidade do tempo natural. “O que é central nessa experiência”, comenta Agamben, “não é mais o instante pontual e inapreensível que foge ao longo do tempo linear, mas o momento da decisão autêntica em que o Dasein experimenta a sua própria finitude, estendida do nascimento à morte” (Enfance et histoire, p. 128).

A finitude, sobrelevando-se à infinitude do tempo linear, atingirá, ainda — segunda implicação —, a idéia hegeliana da História Universal como saber reflexivo do desenvolvimento da humanidade. O conhecimento histórico, possibilitado pelo próprio tempo, não pode sintetizar senão o processo que o historiador alcança discernir através da perspectiva de sua época, de sua sociedade. Essa perspectiva, que faz da História, nas palavras de Raymond Aron, “um diálogo do presente e do passado no qual o presente toma a iniciativa e a conserva” (“un dialogue du présent e du passé dans lequel le présent prends et garde l’iniciative”) (Dimensions de la conscience historique, p. 14), impõe-lhe a contingência — terceira implicação — de um desenvolvimento hermenêutico, pois que em cada momento de sua elaboração está sob o efeito da História produzida — o Wirkungsgeschichte, de Gadamer —, mergulhada numa tradição, à luz da qual o historiador interpreta os documentos.

Essas três implicações positivas contrastam com as duas carências do pensamento heideggeriano da História — uma a respeito da função que a História teria na constituição da historicidade, outra a respeito da universalidade da consciência histórica.

Se a História franqueia o passado, na medida da compreensão prévia que dele tem o historiador em razão de sua própria existência, a prática que distingue o seu trabalho, operando sobre vestígios — restos, monumentos e testemunhos por ele localizados, datados e identificados —, “contribui para formar a noção de um Dasein sido” (Paul Ricoeur, Temps et récit, vol. III, p. 179). Além disso, essa prática culmina numa escrita História é Historiografia — que organiza, seleciona, sintetiza, e cuja forma, incorporando tanto ideologias quanto mecanismos retóricos e metáforas, veicula uma determinada compreensão do ser e do mundo. Quer isso dizer que o trabalho historiográfico reflui para a historicidade que o possibilita.

Enfim, a grande perplexidade em que nos deixa a ontologia heideggeriana é que a mesma via da finitude, pela qual logrou, substituindo o tempo linear, homogêneo e progressivo por um tempo irruptivo e reversível, lançar desconfiança sobre a consciência histórica como consciência do progresso da humanidade na filosofia hegeliana, e assim favorecer a crítica da “história universal” eurocêntrica, privou-nos de um projeto de universalidade futura. “Dasein é tempo… Tempo é Dasein.” Mas falta ao ser temporal do homem, no pensamento de Heidegger em Ser e tempo a que se limitaram estas considerações, um horizonte ético para a humanidade, como sujeito da História, ou a esperança de unidade da espécie humana, de que nos fala Paul Ricoeur, o que talvez seja a única universalidade histórica possível a conquistar-se nesta época de crise.

BIBLIOGRAFIA

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Hans George Gadamer, Wahrheit und Methode, Dritte Auflag, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1972.

 

 

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  • horizonte ético
  • Kant
  • L. Ranke
  • modos de ser autêntico e inautêntico
  • Nietzsche
  • retomada do passado
  • Ricoeur
  • Ser e Tempo
  • temporalidade
  • trabalho hermenêutico
  • universalidade histórica
  • “cadeia dos êxtases”
  • “intratemporal”