2017

Formas estéticas do discurso autoritário

por Jorge Coli

Resumo

Será possível revelar um discurso, fantasias utópicas ou distópicas a partir da arquitetura e das artes visuais da primeira metade do século XX? Embora a arte não seja traduzível em palavras no seu campo expressivo, ao observarmos os contextos e as conexões em que as obras em questão nesse ensaio foram concebidas, fica claro que a resposta é sim, há convicções e mesmo mensagens pedagógicas previstas em muitas dessas criações, principalmente se olharmos com atenção para a arquitetura e naquilo ela contém em termos de pretensões massificadoras. Começaremos com o exemplo de Le Corbusier, na verdade pelo aspecto mais obscuro que se faz presente na vida e obra do famoso arquiteto: suas cidades planificadas com suas superfícies nuas, janelas em fita, teto terraço, árvores alinhadas. Evidentemente, Le Corbusier foi além de meras escolhas estéticas baseadas no rompimento com cânones do passado. Trechos de correspondências, sua colaboração com o governo de Vichy, sua tentativa de aproximação com Mussolini são indícios de motivações para a criação de uma arquitetura descarnada, massificadora, o que justifica a classificação de “arquitetura fascista” dada pelo crítico de design Xavier Jacy. Uma arquitetura que, ao contrário do que sugere, nada tem de funcional, sendo sujeita a infiltrações, má vedação contra o frio, manchas de chuva. O tempo foi um carrasco impiedoso da utopia que essas obras arquitetônicas carregavam. Não se pode, contudo, negar a genialidade de Le Corbusier; há uma beleza, mesmo que seja dentro de um universo autoritário e regulador. O planejamento que queria fugir das irregularidades das ruelas, dos becos das cidades antigas, queria sanitarizar visual e fisicamente tais “imperfeições” para, finalmente, condicionar comportamentos de seus habitantes. Esse foi o ponto de partida de Lúcio Costa ao se basear em A cidade funcional (1941) de Le Corbusier antes de conceber Brasília. Seus grandes eixos, suas avenidas regulares queriam favorecer, sem dúvida, a indústria automobilística. Superfícies arquitetônicas lisas e imensas, multiplicadas de forma autoritária junto a estéticas comuns ao nazismo, ao fascismo, ao fordismo e à sociedade soviética. Em seu exterior, adota-se uma arte despojada, geométrica, industrial com linhas modernas e axiais, características da art decó, por exemplo, que André Chastel definiu como “uma poda da forma”. Na luta contra o passado antiquado e a modernidade supostamente livre, tem lugar um paradoxo, porque tal liberdade “condena todos os criadores aos limites rigorosos do campo moderno”. Trata-se, portanto, de uma tirania do moderno. E essa tirania em alguns casos não conheceu limites. Jean-Louis Vullierme, historiador, percebeu conexões explícitas entre nazismo e Ocidente. Notamos assustadoras semelhanças, por exemplo, entre a estética dos filmes de propaganda nazista de Leni Riefenstahl e aqueles do cineasta e coreógrafo norte-americano Busby Berkeley. Apesar de os fins serem totalmente diversos, ambos trabalharam segundo a mesma simetria e segundo o mesmo campo estético. Berkeley exibia pernas de bailarinas perfeitamente alinhadas e Riefenstahl as baionetas dos soldados de Hitler.


[1]

Meu propósito é esboçar uma hipótese que deve ser aprofundada e nuançada, mas cujas premissas me convencem. Trata-se de um apanhado voluntariamente simplificador para que os pressupostos sobressaiam com clareza.

Essa hipótese é a de que houve um projeto disciplinar da modernidade, de forte natureza autoritária, que formou, de modo exemplar, uma configuração utópica muito ampla.

As utopias funcionam como críticas às sociedades humanas. Elas criam Pasárgadas imaginárias cuja perfeição denuncia as imperfeições do mundo. Mas elas também podem se armar de forças teóricas ativas, de convicções militantes. É quando passam a intervir na realidade dos comportamentos.

A utopia adquire poderes atuantes e instrumentais. As construções teóricas adquirem foros de verdade e uma alma científica. Além disso, ela se dissemina, por intuições, convicções e crenças. Ela atinge atitudes e comportamentos, inspira criações literárias e artísticas, desdobra soluções e vetores setoriais. Ela parte da história passada, que deve ser corrigida no presente para ser transfigurada no futuro.

As utopias são forçosamente simplificadoras e sintéticas. As propostas de harmonia coletiva só podem ser unânimes embutidas em cada indivíduo. Seus enunciados são coerentes e, portanto, obedecem à racionalidade. Ordenadora, ela passa da teoria à norma quando intervém no mundo. Ou seja: a utopia, constituída pela racionalização, precisa simplificar o mundo para poder atuar, negando assim as contradições infinitas e o aleatório de que o mundo é feito. Ela propõe-se como agente da história, agente corretor, retificador, simplificador. Agente antropocêntrico: a racionalidade humana constrói o coletivo com o sacrifício de tudo o que lhe escapa. Pensemos numa metáfora: os jardins de Versalhes figuram a utopia da natureza racionalizada pelo homem. Eles significam a exclusão da natureza que prolifera segundo suas próprias leis secretas.

Os projetos utópicos – sejam eles formulados em termos filosóficos e conceituais, sejam intuídos por convicções coletivas, muitas vezes alimentados por ambos – significam uma forçosa redução da complexidade contraditória e fluida própria das múltiplas dimensões humanas.

Essas simplificações engendram um corolário de grande importância. À realidade cuja complexidade perturba, incomoda, desconforta, elas oferecem o paraíso utópico da ordem harmoniosa na qual as escolhas já estão feitas. O esforço do exame, as incertezas das escolhas foram eliminadas. A utopia cria um espaço mental e sentimental de conforto. Em troca, exige a abdicação de si, das contradições e pulsões reais, e a entrega de si a um outro, que é abstrato, maior, mais poderoso, protetor e seguro. Os indivíduos simplificam-se para igualarem-se; os perfis diversos integram um mesmo perfil. Le Corbusier inventou o homem de série e o modulor, essa medida humana áurea na qual todos devem caber.

Le Corbusier é uma excelente entrada para tratarmos das utopias modernas. Primeiro, porque o espaço é a dimensão privilegiada para os grandes processos de organização. Segundo, porque o arquiteto é objeto, hoje, de uma grande exposição no Centro Pompidou, em Paris, que homenageia o quinquagésimo aniversário de sua morte.

A exposição, sofisticada e fina, produziu um catálogo suntuoso de excelentes textos eruditos e sutis. O título da mostra é, significativamente, Le Corbusier, medidas do homem.

Ora, essa homenagem plena, sem nenhum laivo crítico, produziu reações muito vivas em pelo menos três autores. Os livros que publicaram são fortemente críticos e conduzidos por um espírito de denúncia. François Chaslin, arquiteto, teórico e crítico, escreveu Un Corbusier [Um Corbusier], que esmiúça, sem simpatia, a personalidade de seu biografado. Sua visão é implacável. Por exemplo, quando recorre a Bataille para esta denúncia: “[Bataille] Com efeito, é o ser ideal da sociedade, aquele que ordena e proíbe com autoridade, que se exprime nas composições arquiteturais propriamente ditas. Assim, os grandes monumentos se elevam como barragens, opondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos perturbadores”. Chaslin conclui: “A arquitetura é professora, pedagoga. Ela guia, ordena e proíbe”[2].

Marc Perelman, arquiteto, esteta e filósofo, estuda teoricamente os escritos e os projetos de Le Corbusier, sua forte eloquência e retórica, para demonstrar a forma imperativa simples que ele impõe. Seu livro se intitula Le Corbusier, une froide vision du monde [Le Corbusier, uma fria visão do mundo]. As análises são precisas. Um exemplo:

A cidade radiosa [ou radiante][3] parece antes privada de história, no sentido de que esta seria o fruto de oposições, de conflitos, de contradições entre os indivíduos que são aqui reduzidos a pequenos pontos; privada de história no sentido de que a matéria da cidade é reduzida a imensas superfícies retilíneas, tensas, expurgadas de qualquer relevo; as superfícies são lisas, polidas, escanhoadas; nada pode grudar nelas[4].

Enfim, Xavier de Jarcy, jornalista especializado em arquitetura e design, escreveu Le Corbusier, un fascisme français [Le Corbusier, um fascismo francês], no qual expõe o antissemitismo e as simpatias fascistas do arquiteto, que se torna conselheiro para o urbanismo no governo de Vichy, durante a ocupação alemã na França. Alguns documentos são aterradores, como esta carta que Corbusier escreve a sua mãe em 1940: “Hitler pode coroar sua vida por uma obra grandiosa: a planificação da Europa”[5]. A tentação nazista é pontual em Le Corbusier; ao contrário, sua atração pelo fascismo é antiga e constante. Tentou, sem grande sucesso, aproximar-se de Mussolini, apoiado por Pietro Maria Bardi, que escreve na revista Quadrivio de 1933: “Pensemos no papel de Mussolini […], nos equilíbrios que o fascismo restabeleceu. […] Le Corbusier escuta todas as nossas convicções. […] Seu entusiasmo por tudo o que é revolução urbanística, e portanto social, viverá o momento da mais alta felicidade”.

Os três livros apresentam em comum uma postura de exasperação veemente. Percebo nisto um sentimento de ser traído. O venerado arquiteto, louvado por todos, portador das mais insignes e poderosas convicções de modernidade positiva, não é o que parecia. Ele nos enganou e fomos enganados. A sacralização unânime impediu a percepção de seus aspectos mais negros e terríveis.

Há uma percepção pressuposta nos três livros, e claramente expressa no de Xavier de Jarcy. É a seguinte, nas próprias palavras do autor: “Como seus confrades americanos há alguns anos, os historiadores franceses deveriam hoje se perguntar se o fascismo não se misturou inextricavelmente à modernidade”[6].

Creio, porém, que é possível ir mais longe e perceber como a modernidade (entendida aqui como o processo ocorrido de revoluções artísticas) e o fascismo, assim como o nazismo, o fordismo, a sociedade soviética, brotaram no terreno da mesma utopia.

Escolho um exemplo que ilustra claramente o projeto autoritário infiltrando-se no cotidiano. Em 1924, o industrial Henry Frugès compra uma vasta extensão de terras em Pessac que destina à construção de uma cidade operária. Frugès, entusiasta das perspectivas que as vanguardas artísticas ofereciam, empolga-se com um artigo publicado em 1923 na revista L’Esprit Nouveau, assinado por Charles-Édouard Jeanneret, dito Le Corbusier. É a ele e a seu irmão, Pierre Jeanneret, que o industrial confia o projeto.

Le Corbusier concebe sete tipos diferentes de casas para serem produzidas em série, como um automóvel, ideia que ele desenvolvia desde 1920, particularmente com o projeto da Maison Citrohan. Analisemos a concepção de uma delas. Nos três esboços da planta térrea, figura-se uma intuição que pouco a pouco se precisa. O retângulo, o chai (adega), o espaço para a lavanderia e a saleta, a escada e a sala que se abre para o jardim – tudo parte de um traçado sumário e inspirado, como o rabisco de um pintor.

Inauguração da Cité Frugès, em Pessac, 1926. © flc/adagp

Uma foto de 1926 expõe uma rua da cidade operária ao ser inaugurada, quer dizer, no momento ideal de sua percepção. (A palavra ideal aqui tem um sentido forte, já que define, por princípio, a natureza da utopia. Ou seja, o tempo, que é o maior inimigo das idealidades encarnadas, ainda não pôde agir.)

A imagem de 1926 revela com clareza os princípios de ordem: rua retilínea, árvores plantadas com regularidade, casas onde nada vem perturbar as arestas rígidas, as superfícies nuas, em que se destacam dois temas essenciais da arquitetura doméstica moderna, tais como foram definidos por Le Corbusier: a janela em fita (fenêtre bandeau) e o teto-terraço. A casa impõe aos habitantes usos concebidos como os mais racionais e funcionais.

Há algo em negativo que me parece, porém, mais importante: trata-se de casas que, sobretudo, de modo algum, devem se parecer com casas. A imagem poética e acolhedora do telhado, das janelas que se abrem com venezianas, da porta centrada é excluída sem piedade. Esses modos passadistas, no entanto, pertencem à cultura dos habitantes. Também têm suas razões de ser por causa do clima, da umidade. Janelas em fita implicam perda de aquecimento no inverno; tetos-terraço têm o péssimo hábito de se deixarem infiltrar pela água; paredes sem beirais são manchadas pela chuva que escorre.

No entanto, ao verificar fotos recentes de casas restauradas, é possível perceber que estas retomam seu estatuto utópico[7]. Assim, os proprietários das casas tornaram-se heréticos contra a sacralização da utopia moderna. É bem fácil denunciar como bárbaros os vários proprietários que alteraram suas casas, por meio de reformas que destroem o projeto original. É mais difícil assumir as razões dessas mudanças, que correspondem ao conforto do usuário, ou interrogar o arquiteto: por que não levou em conta a cultura, os desejos, as necessidades concretas do habitante?

A resposta não é difícil. Na utopia, os decisores sabem mais e se dão o direito de impor a todos esse saber. Tal saber, no entanto, origina-se de convicções abstratas incapazes de dar conta de todas as ramificações das complexidades humanas. A utopia no mundo opera sempre pelo desbaste.

Talvez o maior delator das utopias arquiteturais modernas seja o tempo. Como nos encontramos no terreno do ideal, a obra deve corresponder sempre à concepção abstrata que a preside. Deve manter-se intacta e incólume, como se sua matéria fosse a pura concepção mental que a presidiu. Sua existência utópica exige um suplício de Sísifo: a manutenção constante.

François Chaslin exprime-se sobre a Villa Savoye, casa de campo destinada à família de Pierre Savoye, dono da maior companhia de seguros da França: “A mais límpida e mais estruturada de suas obras. Frágil edifício, quase impossível de se viver nele, rapidamente largado, arruinado pelos vazamentos, com a pintura incessantemente escamando, mas incontestável obra-prima. Sempre escalavrado e várias vezes restaurado”[8].

A Villa Savoye ilustra a teoria dos cinco pontos da arquitetura moderna concebidos por Le Corbusier: pilotis (que permitem a liberação do solo), teto-terraço (solário higiênico), planta livre (supressão das paredes de sustentação), janela em fita (permitindo a visão panorâmica) e fachada livre (independente da estrutura). Necessita de constante manutenção para manter-se segundo o projeto, numa contínua luta contra o tempo: a umidade escorre sobre o branco, impedindo a forma imaculada. As célebres fotos de René Burry, tomadas num momento em que o edifício estava em completo abandono, formam a admirável expressão do tempo devorando a utopia[9].

Assinalei o gesto artístico, pessoal, intuitivo do esboço que determina a casa de Pessac. Esse traço de desenhista ou pintor, que impõe a autoridade pessoal, torna-se ainda mais sumário quando se trata da concepção de uma cidade. Em sua “Memória descritiva do Plano Piloto”, memória muito breve, com um preâmbulo do autor que justifica a brevidade – “estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes”; estão “apoiados na espontaneidade original” –, Lucio Costa justifica em modo poético e grandiloquente a forma a conferir à nova cidade que deverá ser construída: “[Brasília] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. O pensamento é único, individual e parte do símbolo simples. A cidade se articula em eixos e se determina por largas avenidas.

Brasília deriva do pensamento contido na Carta de Atenas, concebida por Le Corbusier em 1933 e publicada em 1941 sob o título de A cidade funcional. Nesse pensamento, os eixos importantes, as grandes avenidas são essenciais. Elas são um velhíssimo tema do urbanismo, mas representam o triunfalismo da modernidade, apoiada na geometria para sanear os velhos labirintos urbanos, cheios de desordem, de ruas e ruelas que os modernos proclamaram como nocivas.

Le Corbusier aplicaria essas ideias num projeto para renovar um grande setor de Paris, em torno das Halles, ao norte da ilha de La Cité: o plan Voisin, de 1925 – do nome de um fabricante de carros que poderia financiar essa reforma. É preciso lembrar que as ideias urbanísticas de Le Corbusier estão ligadas ao princípio do desenvolvimento da indústria do automóvel – como Brasília também está. A base de sua concepção são dois grandes eixos norte-sul e leste-oeste, que rasgariam a cidade, articulando esse centro com outras metrópoles europeias. Está claro, o tecido urbano histórico é impiedosamente eliminado em nome da racionalidade moderna.

Não é pouco significativo que projetos desenvolvidos em regimes autoritários da época apresentem afinidades de concepções com essas ideias. É assim com a Nova Berlim, que Speer concebeu para Hitler, embora detestasse os planos de urbanismo concebidos por Le Corbusier, porque eram excessivamente controladores. “Mesmo o mais cruel dos ditadores não submeteria seus súditos a tais monstros!”, declarou Speer.

Também Mussolini – que Le Corbusier tanto admirava por seu plano de renovação urbana em Roma, ao criar em 1942 o novo bairro da Esposizione Universale Roma (eur), concebido em grande parte por Marcello Piacentini – se baseia em premissas cujo espírito demonstra se afinar com os precedentes.

Esses projetos são todos ordenadores e imperativos. Pressupõem uma disciplina comportamental e, para tanto, entendem-se como pedagógicos e civilizadores. São higienistas, alusivos ao esporte e à forma física. O homem futuro é um ginasta em plena saúde. Tudo isso faz parte de uma estratégia ampla destinada a atingir um futuro no qual a ordem moderna procederá à instauração da harmonia plena e feliz.

Assinalo que é importante não reduzir esses projetos a uma identidade perfeita, um igualando o outro. Le Corbusier foi capaz, sem dúvida, de invenções muito inovadoras e belas. O que me importa, porém, é que eles se inserem num mesmo universo autoritário e regulador. São momentos utópicos de uma utopia maior, mais ampla, mais difusa e insidiosa.

Em 1925 abria-se na cidade de Paris a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas. Ela lançou a expressão art déco, cujos traços estilísticos, presentes no design, o mais sofisticado ou o mais corrente, invadiriam o mundo: a moda, as artes, o cinema. As variantes são muitas, mas os princípios de base permanecem os mesmos: ordem e geometria. A própria figuração da natureza ou do homem obedece a simplificações volumétricas que tendem a diminuir os acidentes individuais para exaltar as formas genéricas. Em consequência, o art déco evoca uma estética industrial, da série, para quem o princípio generalizador garante a reprodução em série, mesmo que seja virtual.

A escultura O sepultamento, de Brecheret, datada de 1934, que adorna o túmulo de Olívia Guedes Penteado, a grande mecenas dos modernistas em São Paulo, nos permite compreender essas características. O grupo de diversos personagens se alinha num plano, cujo aspecto é constituído por superfícies achatadas e recortadas. O ritmo, admirável nessas variações simplificadas, elimina as individualidades, tornando emblemáticas as personagens. Suas esculturas da bailarina, da tocadora de alaúde são magistrais criações de personagens rítmicos e genéricos.

André Chastel definiu o art déco como “uma poda da forma”: poda como a que se faz com as árvores, disciplinando as singularidades e igualando os indivíduos.

Os modos artísticos de submissão das formas visíveis, a regulamentação da arte pelo rigor da régua, do prisma, dos sólidos geométricos, os processos de redução do indivíduo a uma forma genérica são inumeráveis durante os momentos de triunfo moderno. Poupo a todos os monumentos soviéticos, nazistas, fascistas, as imagens de propaganda, as obras de arte oficiais. Eles são os mais evidentes.

O mundo da publicidade explorou a moda geométrica, e não preciso dar exemplo aqui das louças, chaleiras, móveis que invadiram as casas; das fachadas geométricas e prismáticas que no Brasil atingiram as cidades mais remotas e foram tão belamente fotografadas por Anna Mariani.

Esses exemplos me bastam para demonstrar o quanto o espírito de clara organização espalhou-se e se impôs. Nos lugares mais recuados e mais simples, eles revelam o desejo de ordem, de modernidade, que constituíam a própria substância de uma noção cuja positividade não conhecia limites: a utopia do progresso.

A beleza suprema, transcendente, era oferecida nos quadros do mais rigoroso geometrismo: Composição com amarelo, azul e vermelho (1937-42), de Piet Mondrian, eleva-se a uma nova espiritualidade pelo rigor do ângulo reto.

Para além das características específicas de Mondrian, há um aspecto crucial e impositivo na arte abstrata. Refiro-me aqui à exclusão obrigada de qualquer referência ao mundo visível, o que significa, está claro, qualquer referência específica ao humano. Malevich explica: “Por suprematismo, entendo a supremacia da sensibilidade pura na arte. Do ponto de vista dos suprematistas, as aparências exteriores da natureza não oferecem interesse algum, só é essencial a sensibilidade. O objeto em si nada significa. A arte atinge, com o suprematismo, a expressão pura sem representação”.

Nesse sentido compreendem-se as obras suprematistas mais radicais. Elas são, justamente, supremas. Devoram qualquer significante para entregar-se à própria contemplação. A obra, nela mesma, é contemplação e forma contemplada. Formas que pertencem ao mundo das formas, e essa percepção dissolve o mundo sensível, num radicalismo platônico raramente tentado. O homem transmuta-se em sensibilidade ideal e pura. Ou seja, tais obras excluem o impuro, a figuração das felicidades e das dores humanas em nome da bem-aventurança espiritual. A modernidade se rarefaz em espírito.

No oposto da abstração de um Mondrian ou de um Malevich, a pintura de Pollock e todos os modos da abstração lírica não nascem da concepção mental, mas das pulsões corpóreas e emotivas. O quadro se torna então, soberbamente, ele próprio, a vibração das intensidades vitais.

No entanto, geométricos e gestuais se unem num ponto: com autoridade, eles excluem qualquer representação. Encontram-se além do discurso e recusam-se a compartilhar seu próprio estatuto de arte com tudo aquilo que, em arte, não se manifeste a si mesmo.

Estamos de novo no desbaste. “Eu, a suprema”, poderia dizer a abstração em qualquer de suas manifestações. A situação específica norte-americana é reveladora. Até hoje, a grande tradição realista daquele país, que incorporou uma reflexão sobre as transformações de uma modernidade real e não utópica sobre a humanidade, como George Bellows ou a fenomenal denúncia social que constitui a obra de Reginald Marsh, é desprezada e excluída pelo highbrow, negando-se a ela o estatuto de arte, pois a tirania moderna define o que é e o que não é arte. No entanto, são essas as obras capazes de constatar, criticar ou acusar os piores desvios e as consequências mais negras da real vida moderna.

A modernidade se construiu a partir de uma luta contra parâmetros que considerou como passadistas, antiquados, limitadores da liberdade de criação. Uma visão forçosamente sumária para atuar de modo contundente dentro do combate e da polêmica entre o “velho” e o “novo”. Mas ela pressupõe um princípio limitador de base: só se é livre de um lado do campo, no terreno da própria modernidade. Essa liberdade condena, portanto, todos os criadores aos limites rigorosos do campo moderno. Em outras palavras, fora da modernidade não há salvação. Nesse sentido, ela é tirânica: seja moderno para ser livre, e não: seja livre para ser moderno.

Alguns estudos têm apontado para o crossover entre o nazismo e as democracias que lhe foram contemporâneas. O historiador Jean-Louis Vullierme, no brilhante livro Miroir de l’Occident, le nazisme e la civilisation occidentale [Espelho do Ocidente, o nazismo e a civilização ocidental], mostra como o teórico norte-americano do racismo, Madison Grant, inspirou diretamente Hitler; como as teorias de eugenismo racista do britânico Francis Galton se difundiram pelo mundo e serviram de fundamentação científica para o nazismo. Sobretudo, como Henri Ford, que moderniza o capitalismo instalando a cadeia de montagem e de trabalho nas indústrias, autor do livro O judeu internacional, é o único norte-americano citado no Mein Kampf e recebe a comenda nazista da águia alemã. Bertrand Van Ruymbecke mostrou, num artigo, o fascínio de Hitler pela Ku Klux Klan.

Essas análises atenuam consideravelmente as oposições simples demais e mostram que a violência autoritária se espraia em redes de vasos comunicantes. Ocorre que a modernidade trouxe um clima particularmente fecundo de desejos ordeiros, obedientes, de unidades coletivas bem demarcadas. Mesmo as contradições se resolvem num afunilamento. De maneira indigna e violenta, os nazistas condenaram as vanguardas artísticas como arte degenerada. Mas as vanguardas artísticas eliminavam, por princípio, a arte que consideravam passadista. Rigorosamente, ambos os lados procediam por exclusão.

Para compreendermos, ou melhor, para intuirmos essas sintonias inesperadas, proponho uma comparação, no campo do cinema, entre o norte-americano Busby Berkeley, um dos mais fabulosos inventores de formas cinematográficas, e a cineasta alemã Leni Riefenstahl, que se tornou a diretora oficial do Terceiro Reich.

Coreógrafo, Berkeley especializou-se nas comédias musicais do cinema falado. Seu passado de sargento instrutor no Exército dos Estados Unidos afirmou nele uma autoridade que ele impôs ao balé. Percebeu que devia tratar a câmera, ela própria, como elemento da coreografia e criou espantosas sequências visuais, empregando contrastes fortes de preto e branco. Seu princípio fundamental eram metamorfoses geométricas, compostas sobretudo pelas bailarinas, as girls, escolhidas pela semelhança umas com as outras e pela precisão dos gestos.

Seu filme Dames, de 1934, traz magníficas sequências de geometrização humana; e em Rua 42, de 1933, a imaginação metamórfica do coreó-

Cena de Rua 42 (1933), de Busby Berkeley. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=mSvQtAnh_CI>. Acesso em: 28 maio 2016.

grafo parece não ter limites. Note-se que a canção “Young and healthy” [Jovens e saudáveis] celebra a juventude e a saúde: é um mundo no qual velhos, doentes, incapacitados não têm lugar. Nessa sequência, surge uma tomada que é favorita nos balés de Berkeley: a câmera passa por baixo das pernas abertas das girls.

Na abertura do curta-metragem Tag der Freiheit [O dia da liberdade, 1935] que Leni Riefenstahl consagrou ao Exército alemão – e cujo título traz uma ironia involuntária –, vemos a mesma exata tomada de Berkeley: a diferença é que as pernas das bailarinas são substituídas por baionetas; depois, em claro-escuro contrastado, os soldados se fundem num mesmo molde.

No delirante Triunfo da vontade, em que Riefenstahl documenta o sexto congresso do Partido Nazista, realizado no ano de 1934 em Nu-

Cena de Tag der Freiheit (1935), de Leni Riefenstahl. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=Q8QjvinwbMg>. Acesso em: 28 maio 2016.

remberg e reunindo mais de 30 mil simpatizantes, as sequências nos dão a ver o nazismo que se oferece em espetáculo a si mesmo, com multidões que desfilam em passo e compasso, com botas impecavelmente ritmadas descendo escadas, com fenomenais campo/contracampo megalomaníacos.

As diferenças muito evidentes entre os dois universos não impede que os dois criadores se encontrem num mesmo campo epistêmico. Nele, as invenções artísticas, as formulações conceituais, as crenças coletivas, as intuições encantadas e felizes – que foram, para mencionar de passagem, cúmplices dos piores horrores muito reais – revelam-se e, na percepção da identidade, denunciam que as estruturas, conflituosas ou não, estão fundamentadas no mesmo terreno, ou, se se quiser, são constituídas por uma arché universal.

O campo epistêmico é uma prisão. Não é fácil escapar dela e projetar-lhe uma luz crítica. É difícil pensar “fora da caixa”.

Foram raros os espíritos que, em pleno apogeu da modernidade, conseguiram perceber os seus piores aspectos. Chaplin foi um desses raros lúcidos. Seu filme de 1936, Tempos modernos, denunciou a impiedosa formatação do homem na sociedade industrial, a violência implícita do fordismo. Muitos sublinharam a evidente crítica ao capitalismo. Poucos, na época, perceberam que o filme atacava – como seu título no entanto deixa claro – a própria modernidade.

Não há dúvida de que a solução de Chaplin é individual: no fim do filme, Ellen e o operário vão por uma estrada no amanhecer, fugindo da modernidade. Hoje, fala-se muito no individualismo atual, opondo-o às utopias. É importante um alerta: isso nos leva a nostalgias das sínteses e simplificações que são constituintes essenciais de todas as utopias. Esses aspectos são inumanos, porque a humanidade não é sintética e muito menos simples. Rabelais, no Renascimento, escreveu que o lema de sua utópica abadia de Thélème era “Faça o que quiser”. Essa é uma bela utopia, que pressupõe não regras, mas uma contínua negociação com o outro, para que as liberdades sejam as mais amplas possíveis. Em Tempos modernos, uma cena hilariante deixa clara a utopia de assimilar o homem à máquina. O desastre que ocorre é um sinal de esperança. É com esse sinal de esperança que entendo terminar esta fala.

Notas

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são do autor. [n.e.]
  2. François Chaslin, Un Corbusier, Paris: Seuil, 2015.
  3. Cité radieuse, concepção de cidade que Le Corbusier elabora desde a década de 1920 e que retoma em vários estudos teóricos e projetos diversos.
  4. Marc Perelman, Le Corbusier, une froide vision du monde, Paris: Michalon, 2015.
  5. Xavier de Jarcy, Le Corbusier, un fascisme français, Paris: Albin Michel, 2015.
  6. Xavier de Jarcy, op. cit.
  7. Disponível em: <https://en.wikiarquitectura.com/index.php/Quartiers_Modernes_Frug%C3%A8s #Photos>. Acesso em: 14 abr. 2016.
  8. François Chaslin, op. cit.
  9. Disponíveis em: <http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult&VBID=2K1HZO– LO0XUL0O&SMLS=1&RW=1600&RH=731>. Acesso em: 14 abr. 2016.

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