2017

Herança sem testamento

por Adauto Novaes

Resumo

É comum ouvir e repetir que o mundo está em crise.

O que significa isso?

A crise, que etimologicamente significa “pôr em crítica”, caracteriza-se pelo rearranjo de concepções que, ocultas pelo poder, determinaram os espíritos e as mentalidades. Ela é como que o diálogo de uma sociedade, desde seu interior.

A mutação, por sua vez, é a passagem de um mundo a outro, da qual participam todas as atividades humanas.

Como caracterizar, no entanto, uma transformação que se dá no vazio do pensamento e é tão profunda que atinge a matriz biológica do homem, seu estatuto e lugar? E isso não necessariamente porque ele assim o queira, mas porque a força da tecnociência – com ênfase na biotecnologia e na revolução virtual – o atravessa. É ela a mutação – hoje.

Mas não se trata de uma classificação somente. É preciso, pois, aprofundar-se nela.

Pode-se começar pelo diagnóstico de que se vive uma época prodigiosamente vazia, na qual concepções, crenças, ideias, sensibilidades, visões de mundo, formas de vida – tudo que se cria, enfim, é esvaziado de valor. Para isso, concorrem os aspectos superficiais e mecânicos das sociedades contemporâneas, que, velozes e semoventes, escapam às antigas categorias filosóficas. É a capitulação do pensamento diante de seu duplo técnico, de que é impossível destacar algo que se conserve. Daí a necessidade de novos saberes, exigidos também pela descontinuidade entre passado e presente, tradição e antecipação, perdidos que estão, no fluxo dos fatos, o pensamento, o espírito e o Ser, que, à medida que se afastam de sua concepção original, reduzem-se a simples objetividades para a ciência ou reservas para o domínio técnico do mundo.

Se épocas marcantes da humanidade esculpiram em pedra a expressão de suas metafísicas – pirâmides, monumentos, catedrais… –, que construções a atualidade, efêmera e virtual, legará para o futuro?


Infinitos espíritos encontram-se arruinados pela própria força e flexibilidade.

MONTAIGNE

Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por opor-se a tudo o que somos.

PAUL VALÉRY

Cercado de invenções maravilhosas e destinos sombrios, o mundo moderno se desfaz. Hoje, os clássicos nem sempre são lidos. A glória dos espíritos vazios e sem obras é maior do que o esperado. Política, cultura, obras de arte e obras de pensamento, antes admiradas, tornam-se coisas indiferentes. Dificilmente podemos desfazer a imagem do caos. A inteligência confunde-se com a ideia de uma ordem única e invariável, admi- nistrada pela ciência e pela técnica. Não sabemos inventar novas formas e o pensamento move-se com dificuldade na unidade bruta do mundo. Entramos nos domínios das mutações na sensibilidade, nos costumes e mentalidades, nos valores e nas noções de espaço e tempo, no progresso sem limites e na organização do mundo em grandezas apenas mensuráveis. As duas maiores invenções da humanidade – o passado e o futuro, como escreve o poeta – desaparecem, dando lugar a um presente eterno e sem memória. Tendemos, no máximo, a repetir velhas críticas em uma mistura de inquietação e compaixão e a pôr em evidência os aspectos brutais e sórdidos de guerras e massacres – 191 milhões de mortos apenas no século XX –, mas também nos perdemos em admiração confusa e sem crítica nas descobertas científicas e suas aplicações técnicas.

Vivemos entre dois mundos: o “velho” mundo moderno está muito próximo de nós ainda, o que torna difícil falar dele como personagem legendário; o mundo contemporâneo, que se apresenta como o começo de uma nova era, conta apenas com velhos conceitos para acolhê-lo. A ideia de unidade e conjunto tende a escapar, apesar do nosso esforço: símbolos e ideias passadas, cada vez mais em desacordo com os novos fatos, ainda tentam dar sentido às nossas ações. Não devíamos, portanto, espantar-nos com o fato de o espírito, como constata Valéry, estar “preso a uma quantidade enorme de enigmas decorrentes dos antagonismos e contrastes que se manifestam entre os desenvolvimentos e a natureza fundamental do homem […] Ao lado dos enigmas reais que nos são propostos pelas coisas, encontramos outros enigmas que nos são propostos por nossas próprias obras, por nossas criações acumuladas”. A ideia de unidade e conjunto tende a escapar, apesar do nosso esforço. Como tudo é muito novo e muito veloz, faltam os intervalos do acaso, que é o espaço do pensamento. É certo que existe uma lógica sensível e desconhecida em tudo o que acontece, mas ela também nos escapa. Perdemo-nos, a cada instante, em “miríades de fatos”. Tudo se desdobra sem a plena consciência de si.

É este o desafio que os autores dos ensaios sobre as mutações enfrentam: existem momentos em que as agitações do espírito levam a caminhos que não existem ainda. É nesses momentos que as interrogações têm mais sentido que respostas apressadas. A tarefa torna-se mais difícil ainda quando se sabe que o pensamento hoje vem a reboque dos acontecimentos. Os limites do entendimento e de uma teoria crítica, criados pela era dos fatos, esbarram na submissão da razão ao que é imediatamente dado. Chegamos a este curioso estado de estranha dificuldade, como analisa Valéry, no qual nos encontramos impotentes “não tanto diante de um fenômeno a explicar, mas diante de uma palavra que parece conter mais do que tudo o que se pensa quando se pensa”. A palavra de que fala Valéry tem a mesma força da ideia de conceito, que significa a elaboração consciente do múltiplo não no sentido empírico, mas no sentido ideal de “coisas vagas”–, e reconhecido como tal pela sociedade e através do qual e sobre o qual os sujeitos podem se entender. Em outras palavras, esta é a origem de novas linguagens que a nova realidade do mundo pede. Podemos falar da ciência da abelha para usar a metáfora de Nietzsche na construção permanente de conceitos, ainda que nem sempre ele tenha uma visão otimista da existência deles: “Como a abelha que constrói as células de seu favo e em seguida as enche de mel, a ciência trabalha sem cessar neste grande columbário de conceitos, no cemitério das intuições, constrói sem cessar novos andares mais elevados, escora, limpa, renova as velhas células e se esforça principalmente em preencher este colombage construído sem limites, e fazer entrar nele a totalidade do mundo empírico, isto é, o mundo antropomórfico. Enquanto o homem de ação liga sua existência à razão e a seus conceitos a fim de não ser conduzido e perder-se, o pesquisador constrói sua cabana ao pé da torre da ciência para poder ajudar sua construção, e buscar proteção à sombra do já construído. De fato ele precisa de proteção porque existem perigosas potências que invadem continuamente e que opõem à verdade científica ‘verdades’ de outro gênero sob as mais diversas figuras”.

Estas novas configurações do mundo convidam-nos, de início, a esquecer a noção de crise. Pensemos, pois, na ideia de mutação.

Lemos em vários autores que toda crise é excesso, expressão da potência de transformação do pensamento, de ideias muitas vezes secretas, racionais, materialistas, algumas aparentemente absurdas, outras místicas, das quais nem sempre é fácil se desfazer porque, como observa o poeta Paul Valéry, só encontramos nelas aquilo que já trazemos em nós. As crises são, portanto, constituídas de múltiplas concepções que se rivalizam e que dão vigor dialógico às sociedades, excitam o sensível e o inteligível. Por isso, são elas que apontam para o novo que estava oculto pelas contradições no interior de um mesmo processo. A passagem da ideia de crise inerente à modernidade à mutação que assume, entre ou- tras, a forma instrumental da vida pode ser lida na pequena nota escrita por Valéry em seus famosos Cahiers: “Vejo passar o ‘homem moderno’ com uma ideia de si e do ‘mundo’ que não é mais uma ideia determinada – que não pode viver sem várias ideias, que quase não poderia viver sem esta multiplicidade contraditória de visões –, que mostrou impossível ser o homem de um ponto de vista apenas e de pertencer realmente a uma única língua, a uma única nação, a apenas uma confissão, a uma só física.

Isso decorre de seu modo de vida e da relação mútua de diversas soluções. Mas, em seguida, as ideias, até mesmo os hábitos, começam a perder o caráter de essências para ganhar o caráter de instrumentos”. Caráter instrumental de ideias e pensamento único são uma só e mesma coisa.

Mutações são passagens de um estado de coisas a outro – passagens muitas vezes indefinidas do ponto de vista conceitual –, que nos deixam à deriva quando as trilhas são pouco visíveis ou pouco confiáveis, em particular se elas foram abertas, como acontece hoje, não propriamente pelo trabalho do pensamento, mas pela técnica, o que marca, pelo menos até agora, certa resignação do saber diante do poder da ciência. Isso não quer dizer que, antes, tínhamos muita certeza de onde estávamos e para onde íamos. É preciso construir, pois, novo itinerário, uma vez que já não temos nenhuma garantia de retorno aos velhos roteiros e uma vez que o positivismo da técnica só nos pode indicar caminhos falsos.

No ensaio Breves reflexões sobre a atual conjuntura, de 1998, o filósofo Claude Lefort aponta, ao lado da denegação da política, “que parece ser o traço maior do último período deste século”, duas outras grandes transformações que se produziram: a primeira foi a desagregação do regime soviético e dos regimes do Leste Europeu, desaparecimento do modelo de uma sociedade comunista; a segunda grande transformação consiste “na desestruturação das sociedades ocidentais modernas em consequência de uma revolução tecnológica que reduziu consideravelmente o setor da grande indústria e o lugar que tinha a classe operária na sociedade”. Convém levar em conta uma terceira transformação, conclui Lefort, “mais difícil de discernir, que se produz nos costumes”. Jean Baudrillard faz um diagnóstico aproximado de Lefort sobre as transformações no Ocidente – ainda que chegue a conclusões diferentes – e aponta duas vertentes da mutação: a mundialização e as transformações nos ideais universais que tendem a desaparecer, pelo menos tais como se constituíram como “sis- tema de valores na modernidade ocidental”. Os ideais universais morrem na mundialização, escreve Baudrillard: “A mundialização das trocas põe fim à universalidade dos valores. É o triunfo do pensamento único sobre o pensamento universal. O que é mundializado é, inicialmente, o mercado, a promiscuidade de todas as trocas e de todos os produtos, o fluxo perpétuo do dinheiro… A democracia e os direitos do homem circulam exatamente como qualquer produto mundial, como o petróleo ou como os capitais. O que advém com a passagem do universal ao mundial é ao mesmo tempo uma homogeneização e uma fragmentação do sistema ao infinito”. No mundo globalizado, os valores universais tendem a se redu- zir ao modelo de valor das Bolsas, e flutuam em um vasto mercado, como já intuía bem antes o poeta Paul Valéry. Até mesmo o valor “espírito”, diz ele, não é diferente do valor “trigo” ou do valor “ouro”. Em síntese, é a desvalorização dos valores supremos.

Estas análises não estão longe do que pensavam Adorno e Horkheimer: para eles, a concepção instrumental da ciência e o desenvolvimento técnico em bases de conhecimento científico permitiram a edificação de sociedades totalitárias, o ordenamento metódico de sociedades de massa e a racionalização mortífera da natureza no campo da própria sociedade. Até mesmo a ideia de “saber crítico” como aspiração de liberdade dos primeiros textos da Escola de Frankfurt perderam sentido diante de um mundo não apenas totalmente reificado como também dirigido pela tec- nociência. É a denegação da política em escala nunca vista, como sugere Claude Lefort, e, assim, a vida perde potência. A consequência mais evidente e trágica desta denegação manifesta-se não apenas na domesticação das potenciais forças de oposição, como pensavam Adorno e Horkheimer, mas na perda do próprio sujeito da história: as máquinas estão tomando o lugar do trabalhador e o mito da classe operária como classe universal e revolucionária foi substituído pela verdadeira revolução – mutação – feita pela tecnociência.

O maior problema que se põe para os intelectuais hoje, fonte de compreensíveis inquietações, consiste na instrumentalização do saber e do espírito. Talvez fosse o momento de levar a sério uma das mais radicais definições de Heidegger: “Em relação à técnica, minha definição da essência da técnica, até agora não aceita em nenhum lugar, é – para dizer em termos muito concretos – que as ciências modernas da natureza fundam-se no quadro do desenvolvimento da essência da técnica moderna e não no seu contrário”. A conclusão inevitável do que Heidegger escreve é que não apenas as ciências modernas só podem ser compreendidas a partir da essência da técnica como a técnica é, em essência, coisa que o homem não pode controlar por ele mesmo.

O que se quer dizer com instrumentalização do saber e do espírito? Comecemos pela ideia de espírito. Entendemos por espírito aquilo que de Montaigne a Valéry se define como “potência de transformação”. Para Montaigne, o espírito jamais pode ser instrumentalizado, a menos que perca todo sentido e valor. Ele é necessariamente inventivo e desregrado, no sentido literal do termo.

No brilhante livro Montaigne – regras para o espírito, o filósofo Bernard Sève mostra a diferença entre Razão e Espírito, ao contrário do que sempre se leu nos comentadores que insistem em identificar o Espírito à Razão ou ao Entendimento: a Razão, escreve Sève, é sempre flexível, já o Espírito é volúvel. Isto é, a razão “é sempre apresentada por Montaigne como uma ‘faculdade’ de segundo tempo: a razão raciocina sobre coisas dadas, apoiando-se em princípios não propostos por ela”. Sève cita Montaigne:

É muito fácil construir o que se quer a partir dos fundamentos admi- tidos porque, segundo a lei e o ordenamento deste começo, o restante das peças do edifício se faz com facilidade […] Por este caminho, pen- samos nossa razão bem fundada e discorremos com toda a facilidade. […] Porque cada ciência tem seus princípios pressupostos por onde o julgamento humano é contido de todos os lados.

Ao contrário da razão, o espírito aparece em Montaigne “como uma ‘potência’ que trabalha ex nihilo, sem princípio anterior. O espírito distingue-se, pois, da razão, por ser uma operação ‘primeira’”. Podemos pois avaliar as desastrosas consequências do trabalho do espírito submetido à razão instrumental. Poderíamos dizer que é isso que acontece hoje quan- do muitos pensadores – a partir de Nietzsche – insistem em demonstrar que espírito e saber perderam autonomia?

Mais de uma vez, Montaigne alertou para o risco de o espírito voltar-se contra a própria natureza. Lemos, por exemplo, no capítulo da De l’art de conférer: “Como nosso espírito se fortalece pela comunicação dos espíritos vigorosos e regrados, não se pode dizer quanto ele perde e se abastarda pelo contínuo comércio e frequentação que temos com os espíritos baixos e doentios”. Não se pode dizer que vivemos momentos de “alta fantasia”.

Mas vejamos o vazio de pensamento como um dado constitutivo do espírito. Montaigne nos diz ainda que a fabulação, que Paul Valéry chama também de “coisas vagas”, é anterior a todas as coisas: ela não é uma resposta ou uma reação – escreve Bernard Sève –, mas um gesto absolutamente primeiro. Valéry pergunta:

O que seríamos nós sem o socorro do que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos bem desocupados feneceriam se as fábulas, as abstra- ções, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não povoassem de imagens e seres sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais. Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores. Só podemos agir movendo-nos em direção a um fantasma. Só podemos amar o que criamos.

Em outras palavras, as ideias vagas são indestrutíveis e necessárias ao funcionamento psíquico, mesmo com mutações que trocam as antigas linguagens e as antigas ideias vagas por ideias claras e novas linguagens. Muitos pensadores certamente estariam de acordo com a afirmação: vivemos uma época prodigiosamente vazia, na qual concepções políticas, crenças, ideias, sensibilidades, enfim, formas de existência e visões de mundo que antes pareciam dar sentido às coisas perdem valor. Ou melhor, vemos não propriamente o desaparecimento dos valores hu- manos, mas de certos meios de expressão desses valores, como observa Wittgenstein. Alguns pensadores falam de falência da imaginação, fracasso do entendimento, “incapazes que somos de danos uma representação homogênea do mundo” que abarque os dados antigos e novos da experiência. Ora, sabe-se que são os meios da imaginação, junção de sensibilidade e desejo, que ajudam a solucionar enigmas. O estilo de vida e as concepções de mundo que hoje nos dominam são superficiais e mecânicos, e as antigas definições são insuficientes para entendê-los. A este novo fenômeno pode-se dar o nome de mutação, ou de revolução, não do tipo das revoluções históricas que a precederam, mas uma verdadeira revolução antropológica, como escreveu o filósofo Jean Baudrillard em um de seus últimos ensaios: revolução que corresponde “a uma perfeição automática do aparelho técnico e uma desqualificação definitiva do homem, da qual nem ele mesmo tem consciência. No estágio hegemônico da técnica, que é o da potência mundial, o homem perde não apenas sua liberdade, mas a imaginação de si mesmo”. Estaríamos vivendo o fim de uma ideia de civilização, diante de um novo mundo de reprodução automática, “obsolescência do homem em fase terminal, a quem seu destino escapa definitivamente […] e inauguração de um mundo sem o homem […] capitulação simbólica, derrota da vontade, muito mais grave do que qualquer fracasso físico?”, pergunta Baudrillard. A acreditar nas suas descrições trágicas, estamos na era da capitulação do pensamento diante do seu duplo técnico, o que implica o “desaparecimento de qualquer sujeito, seja do poder, do saber ou da história, em proveito de uma mecânica operacional e de uma falta de responsabilidade total do homem”. Seria ingenuidade negar o grande avanço das pesquisas científicas; mas quanto mais elas aumentam seu poder maior é o nosso sentimento de distância do entendimento: a velocidade das transformações é tamanha que “o olho do espírito não pode mais seguir as leis e concentrar-se em algo que se conserve”, observa Valéry.

Baudrillard não está sozinho neste diagnóstico: em dois livros recentes, nos quais analisa as ideias de modernidade, progresso, declínio e fim da civilização ocidental, o filósofo Jacques Bouveresse retoma algumas análises clássicas da visão apocalíptica do mundo – nem sempre concordando com elas, é certo – a partir de Wittgenstein, Karl Kraus, Nietzsche, Gottfried Benn e Spengler, nos ensaios “La ‘conception apocalyptique du monde’ ou Le pire est-il tout à fait sûr?”; “Gottfried Benn, ou Le peu de réalité et le trop de raison” e “La vengeance de Spengler”. A simples retomada desses autores, alguns deles relegados ao esquecimento, é sintomática. Em uma conferência feita durante um congresso de médicos em 1958 com o título “A medicina na era da técnica”, Karl Jaspers inscreve a medicina no quadro global da tecnização e mercantilização do mundo no qual “mais o saber e o poder científicos aumentam, mais os aparelhos que ajudam no diagnóstico e no tratamento são eficientes, mais se torna difícil encontrar um bom médico, ou mesmo um simples médico”. Jaspers conclui com um diagnóstico “sinistro”, como ele mesmo diz:

Nesta situação, parece objetivo perguntar-se se caminhamos em dire- ção a uma existência que não é mais verdadeiramente humana, se nos dirigimos assim ao fim da humanidade. Mas não saberíamos responder a esta questão objetivamente recorrendo ao nosso saber. Para o médi- co, como para qualquer homem, a questão é, ao contrário, saber que a decisão ele toma, por que ele quer viver e agir. Esta perspectiva sinistra pode ocultar a abertura de novas possibilidades de nosso ser.

O que há em comum entre esses pensadores? Certamente não só as ideias de progresso e a relação da ciência e da técnica com o homem, mas também a dificuldade de o saber instituído explicar o mundo. A tecnociência pede novos saberes.

As mutações de hoje são toda uma aventura que se inscreve na nossa história de maneira veloz, com deslocamentos conceituais ainda em for- mação pela filosofia e pela antropologia, antecipação de categorias ainda incertas: não sabemos ainda nomear esse novo estado de coisas. Neste momento de incerteza, somos capazes de reconhecer apenas o caráter transitivo dos acontecimentos, e, com isso, a primeira pergunta que nos ocorre é: vivemos a continuidade ou a descontinuidade entre o passado e o presente? É certo que tradição e antecipação são duas categorias e dois problemas que acompanham a história do pensamento. Mas duas grandes tendências tentam definir hoje, em linhas gerais, este momento de passagem: para alguns, trata-se da morte ou do esquecimento de tradições que tinham sido capazes de estabelecer concepções de mundo tidas como claras, uma visão unitária que dava sentido às coisas; para outros, é o momento da insuficiência da razão, do fim da metafísica ou ainda a expressão de uma ontologia fragmentada ou fraca (Gianni Vattimo). Assistimos, é certo, ao enfraquecimento de uma racionalidade que se exercia em domí- nios bem definidos do saber. Muitos veem como virtude o esquecimento de conceitos como verdade e consciência absolutas, privilégio do observador absoluto que tudo dominava com um pensamento de sobrevoo. Este momento de passagem pode ser, portanto, sedutor e perigoso ao mesmo tempo: se outros valores ganham novos meios de expressão, corremos o risco de nos perdermos na indefinição do que acontece. Como observa Paul Valéry, ao diagnosticar a “morte da civilização” europeia, nesta fase não há mente, por mais sagaz e instruída que seja, “que possa vangloriar-se de dominar o mal-estar, medir a duração provável deste período de confusão de trocas vitais da humanidade”. Um ciclo de conferências sobre as mutações é, portanto, um irresistível convite a erros e acertos. Enfrentamos, de início, as dificuldades postas pelo próprio objeto e seu tempo: nem tudo pode ser descrito hoje em linguagem antiga e pouca coisa pode ser pensada com a ajuda de conceitos que dominaram o saber até bem pouco tempo. Muito menos podemos recorrer a dualidades exacerbadas – a começar pela tentação de comparar o acontecido com o vir a acontecer. As mutações não só determinam o sentido do curso dos acontecimentos como também anunciam o declínio das formas. “O espírito de uma sociedade realiza-se, transmite-se e percebe-se através dos objetos culturais que ela se dá e no meio dos quais ela vive. Suas categorias práticas sedimentam-se nela e, em troca, elas sugerem aos homens uma maneira de ser e de pensar”, escreve Merleau-Ponty em seu comentário ao método de Marx.

No prefácio aos ensaios dedicados à política, à liberdade e à modernidade – “La brèche entre le passé et l’avenir” –, Hannah Arendt cita o poeta francês René Char: “Notre héritage n’est précédé d’aucun testament”. René Char descrevia o sentimento dos escritores da Resistência francesa do pós-Segunda Guerra. Hannah Arendt interpreta o aforismo de Char como a perda do tesouro de ideais revolucionários que jamais se realizam completamente. Podemos dar também outro sentido ao poema: Char antecipa de maneira luminosa a estranheza ainda hoje quase imperceptível de uma grande mutação feita com o vazio de pensamento: pensar um mundo inteiramente novo sem que este mundo tenha deixado um testamento, isto é, um mundo sem a antecipação de concepções políticas e ideais, é a grande dificuldade. Ou pelo menos um mundo no qual o pensamento nas ciências humanas vem a reboque das invenções tecnocientíficas. O poema em prosa de Char faz parte dos textos reu- nidos em Furor e mistério (1938-1944), “notas” escritas, como ele mesmo diz na apresentação, “na tensão, na cólera, no medo, na emulação, no desgosto, no engano, no recolhimento furtivo, na ilusão do futuro, na amizade e no amor”.

Lemos essas “notas” sobre a ilusão do futuro como uma das últimas resistências de um humanismo consciente de um poeta, “discreto nas virtudes, desejando reservar o inacessível campo livre à fantasia dos seus sóis, e decidido a pagar o preço por isso”. Char conclui com outro aforismo:

Esta guerra se prolongará muito além dos armistícios platônicos. A ado- ção dos conceitos políticos será dada contraditoriamente nas convulsões e sob a cobertura de uma hipocrisia segura de seus direitos. Não sorria. Afaste o ceticismo e a resignação e prepare sua alma mortal para afrontar intramuros demônios gelados análogos aos gênios microbianos.

Pela primeira vez na história, mergulhamos de repente em um mundo que, se foi ao menos parcialmente concebido pelo homem, certamente não é regido por ele, mas pela ciência-poder. Outros preferem dar a este novo domínio do mundo o nome de revolução tecnocientífica. Assim, não sabemos dizer onde estamos e para onde vamos, porque o movimento da revolução técnica escapa ao entendimento humano. É essa a peculiaridade desta mutação: se tomarmos como referência as que a precederam – o Renascimento e o Iluminismo, por exemplo –, vemos que elas foram geradas não só por revolucionárias visões de mundo na política, nas artes, nas ciências, nas mentalidades e nos costumes etc., mas também deram origem a outras revoluções. Nesse sentido, o poeta Paul Valéry recorre a um Hamlet intelectual para mostrar a multiplicidade de pensamentos de tendências, crânios ilustres que meditam sobre a vida e a morte das verdades:

Esse foi Leonardo. Ele inventou o homem voador, mas o homem voa- dor não tem servido precisamente às intenções de seu inventor: sabe- mos que o homem voador montado em seu grande cisne (il grande uccello sopra del dosso del suo magno Cecero) tem, em nossos dias, outros empregos que não o de ir apanhar neve no cimo dos montes para jogá-la, nos dias de calor, sobre as calçadas das cidades… E este outro crânio é o de Leibniz, que sonhou com a paz universal. E este foi Kant, Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit…

A partir do que acontece hoje, entendemos melhor o que Valéry queria dizer quando escreveu “nós, civilizações, sabemos hoje que somos mortais” e, ao mesmo tempo, percebemos mais facilmente que o homem moderno estava se afastando da cultura ao abandonar uma das mais “extraordinárias invenções da humanidade”, a invenção do passado e do futuro. Em síntese, “entramos no futuro de costas”, herança sem testamento. Criando o tempo passado e o futuro, o homem foge do pre- sente eterno. Ele não apenas constrói “perspectivas aquém e além dos intervalos de reação como faz muito mais que isso: vive muito pouco apenas o próprio instante”. A civilização tecnocientífica é, de alguma maneira, a negação desses dois tempos.

Pode-se perguntar: o que gerou a revolução tecnocientífica? É certo que ela não nasceu do nada, e uma das hipóteses é que tal revolução técnica pode bem ser o destino de iniciativas humanas acumuladas no curso dos séculos. Ela seria um prolongamento técnico de outros pensamentos. Assim, o que acontece hoje não é apesar das invenções anteriores, mas graças a elas. O império da tecnociência não seria um acidente da civilização ocidental, mas sua própria essência. O filósofo Jacques Bouveresse afirma que Heidegger foi mais incisivo ao afirmar que, se existe uma aliança que pode ser fatal para a humanidade, é, antes, a aliança da metafísica com a ciência e a técnica, “que não podem ser separadas, como se faz habitualmente, uma vez que a técnica não é senão, segundo expressão do próprio Heidegger, a metafísica acabada e realizada”. Bouveresse conclui que, para Heidegger, o problema da técnica não seria minimamente abordado se não fosse pensado do ponto de vista da história da metafísica, isto é, da questão do ser e do “esquecimento do ser”. Na hoje clássica entrevista a Richard Wisser, Heidegger diz: “Não falo de uma história da decadência, mas apenas do destino do Ser, na medida em que ele se afasta cada vez mais em relação à maneira de manifestar-se entre os gregos – até que o Ser se torne uma simples objetividade para a ciência e hoje um simples fundo de reserva para o domínio técnico do mundo”.

Se levarmos as ideias de Heidegger às últimas consequências, podemos concluir que esta é uma das razões pelas quais recorremos sempre a velhos conceitos quando buscamos respostas para novos fatos, fatos postos hoje pelo desenvolvimento técnico, uma vez que, em essência, tudo tem a mesma origem. Ou então podemos optar pelo paradoxo: não sabermos o que nos acontece porque velhos conceitos jamais conseguem esclarecer os novos fatos.

Peter Sloterdijk atribui as mutações a uma ação fundamental da modernidade que é o poder-agir. A modernidade teve a audácia, afirma ele, de proclamar a organização do mundo apenas através da ação:

O caráter projetivo desta nova era resulta da suposição grandiosa segundo a qual se poderia logo fazer evoluir o curso do mundo de tal maneira que apenas se moverá o que gostaríamos de racionalmente manter em movimento por nossas próprias atividades. O projeto da modernidade repousa, pois – e isso jamais é dito claramente –, sobre a utopia cinética: a totalidade do movimento do mundo deve tornar-se a realização do projeto que temos para ele. Progressivamente, os movimentos de nossa própria vida identificam-se com o movimento do mundo.

Mas, ao fim e ao cabo, a utopia cinética acaba por escapar ao controle do homem:

Inevitavelmente, tudo se passa de outra maneira, porque, fazendo vir ao pensamento e provocando aquilo que deve acontecer, põe-se ao mesmo tempo em movimento algo que não fora pensado, querido ou levado em consideração. Este algo se move então inteiramente sozinho com um entêtement perigoso. Somos rodeados por uma epinatureza feita de sucessões de ações, como uma segunda physis, que escapa à nossa prática “que faz história”. As sucessões automáticas do processo moderno do mundo, como nós o vemos com um mal-estar crescente, atingem os projetos controlados; do coração do empreendimento cha- mado modernidade, da consciência de uma autoatividade espontânea e conduzida pela razão, surge um fatal movimento estranho que nos escapa em todas as direções. O que tinha ares de ser um ponto de par- tida controlado em direção à liberdade anuncia-se um deslize em uma heteromobilidade catastrófica e incontrolável.

Sloterdijk aponta quatro consequências decorrentes das mutações. Destaquemos apenas duas delas: estamos em plena era pós-cristã, que não conta mais com os conceitos greco-judaico-cristãos para se compreender. Ele cita o “jovem conservador” Otto Petras, que, em 1935, resumiu assim esse estado de coisas: “[…] cristianismo, este movimento que marcou a história e que foi o mais poderoso formador de nosso planeta, esgotou sua força criadora, e vivemos a era do post Christum em um sentido mais profundo do que o calendário”; a segunda consequência, segundo Sloterdijk, é que a modernidade, abandonada a si mesma, esgotou suas reservas morais e “não é mais capaz de liberar, a partir de si mesma, contraforças para barrar sua deriva fatal […] as coisas andam como elas querem, as intenções iniciais não têm mais importância”. Como saída para o Ocidente, Sloterdijk aponta certa tendência de uma “fração sensível” de intelectuais que se volta para a civilização oriental – ou pelo menos para alguns fundamentos originários dessa civilização comuns entre as correntes de pensamento da antiga Ásia que compreendem o sentido do ser como “ser-em-direção-à-quietude-no-movimento”, isto é, a boa mobilidade. Isso antes que o hemisfério oriental se modernize através das técnicas ocidentais de mobilização. O descontrole pode ser traduzido, pois, como a assustadora autonomia da técnica. Como observa ainda Sloterdijk, coisas são postas em marcha sem que isso tivesse sido planejado. Mais: duvidamos que elas possam ser retomadas pela ação humana para serem conduzidas a caminhos não fatais, afirma ele. Seria esse o destino da modernidade? Isto é, ao provocar, pela ação ilimitada, o movimento da história, é a natureza mesma do movimento que faz história: “Quem se move, move sempre mais que a si mesmo apenas. Quem faz história, faz sempre mais que apenas história”. Isso equivale a uma visão cosmogônica, tentativa de definir as coisas a partir das propriedades intrínsecas, visão que nos aproxima da proposição de Edgar Allan Poe no capítulo oitavo de Eureca: “Cada lei da natureza depende, em todos os pontos, de todas as outras leis”. Sloterdijk segue aqui as ideias de Heidegger, para quem a técnica, na essência, é algo que o homem não pode controlar. Ela corresponde – diz Heidegger em uma entrevista a Der Spiegel – “a uma exigência mais potente que qualquer determinação de fins pelo homem… Uma exigência que se situa além do homem, de seus projetos e atividades”. A técnica, concluiJacques Bouveresse em comentário às reflexões de Heidegger, não é um processo que podemos submeter a restrições e exigências vindas de fora: “[…] é inicialmente uma exigência ilimitada e incondicional à qual estamos submetidos. A técnica não está em nosso poder; somos nós que, sem nos darmos conta, estamos em poder dela. Acreditar no contrário é ser vítima de um preconceito e de uma ilusão antropológica”.

Estas observações nos põem diante de outro paradoxo: a velocidade das mutações e o acúmulo desmesurado das novas criações – que também são o resultado do trabalho do pensamento – retiram do pensamento o tempo necessário à reflexão, o loisir de murir, como diz o poeta, uma vez que as coisas se apresentam como velozes, voláteis e principalmente mecânicas. Mais: criações acumuladas, resultado do trabalho do nosso próprio espírito, elas são artefatos mecânicos que, se de um lado são fáceis de serem manipulados, de outro dispensam e dispersam nossa atenção e, portanto, o trabalho “paciente e difícil do espírito”. Por fim, acabamos por nos acostumar, preguiçosamente, com necessidades inéditas e desnecessárias, com tudo o que nos é dado, repondo o velho axioma de Marx: o capital cria não apenas objetos para o sujeito, mas também o sujeito para os objetos. Ou, em outras palavras, como escreve Valéry, “como se, tendo inventado alguma substância, se inventasse também, segundo suas propriedades, a doença que ela cura…”. É este novo sujeito que é preciso entender.

Seja na versão do “esquecimento do ser” de Heidegger ou na “mobilização infinita” de Sloterdijk, a revolução tecnocientífica, feita no vazio de pensamentos novos, conduz à era dos fatos, fatos científicos, que passam a dominar toda a vida social e política, abolindo, na prática, a ordem das ficções, entendendo por ficções o trabalho do espírito, essa “potência de transformação”, com o seu cortejo: o pensamento, as teorias, a metafísica, as artes, tudo aquilo que Valéry chama de “coisas vagas”: “Se uma sociedade tivesse eliminado tudo o que é vago ou irracional para entregar-se ao mensurável e ao verificável, ela poderia sobreviver?”, pergunta Valéry. Ele conclui com um exemplo irônico: “Um tirano de Atenas, que foi um homem profundo, dizia que os deuses foram inventados para punir os crimes secretos”. Isso porque, para Valéry, toda sociedade que se constrói sobre o fato é bárbara, sociedade da desordem, uma vez que “não existe potência capaz de fundar a ordem através apenas do interdito dos corpos sobre os corpos. Forças fictícias são necessárias … A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes”. É, portanto, sobre “coisas vagas” que repousa toda civilização: “o mundo transcendente, não existindo, suporta, entretanto, pirâmides e catedrais”, mas, em contrapartida, é o espírito livre, puro, rigoroso que faz figura de “inimigo principal da civilização”. Ao tratar de um mundo dominado pelos fatos científicos, Valéry remete-nos à grande questão da atualidade, que é a distinção que ele faz entre ciência-saber e ciência-poder. As inquietações suscitadas no homem hoje pelas transformações espetaculares dos progressos da ciência e da técnica impostos ao universo natural e ao mundo humano podem ser resumidas neste axioma de Valéry: “Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por opor-se ao que somos”. Isto é, saber e poder tornam-se uma única coisa; a ciência-poder opõe-se hoje ao humano. Mas isso só foi possível a partir do momento em que a ciência se transformou em “vontade de potência”.

No plano da organização social, as ideias de ciência-poder e de “mobilização total” (acrescentemos também a “mobilização infinita” de Sloterdijk) são vistas por Valéry como os maiores perigos, triunfos definitivos da organização que corresponde ao advento do Estado-formigueiro: “Reina ainda certa confusão”, escreve Valéry; “ainda mais um pouco de tempo e tudo será esclarecido e veremos, enfim, surgir uma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro”.

Muitos comentadores tendem a uma nova leitura de O declínio da civilização, do filósofo alemão Spengler. É dele a ideia de saber como poder, vinculada ao sentido de progresso que a civilização ocidental tanto cultiva; uma ideia de progresso que está tão intimamente ligada à de progresso do conhecimento que é extremamente difícil, hoje como ontem, escreveu Bouveresse, “não perceber como intrinsecamente reacionária toda iniciativa intelectual que tente contestar radicalmente ou simplesmente relativizar seriamente o interesse de um acréscimo ilimitado do conhecimento”. Bouveresse cita ainda Nietzsche:

[…] nossa pulsão de conhecimento é muito forte para que sejamos capazes de apreciar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e sólida ilusão. O simples fato de imaginar estados desse gênero leva-nos ao suplício… Se a humanidade não morre de uma paixão, então ela morrerá de uma fraqueza; o que preferir? Eis a questão. Desejamos para ela um fim no fogo e na luz ou na areia?

Essa ambivalência em relação à ideia de progresso ilimitado é inevitável e é assim sintetizada por Spengler: “Somos a primeira civilização que está em condições de saber com certeza o que a espera, e não há outra escolha entre desejar o que nos vai acontecer inapelavelmente ou nada querer”.

Observação final: se vivemos a era do esquecimento das “coisas vagas” – isto é, as ideias, o logos, os fundamentos, a substância, o espírito, a estética, a ordem, a política… – e se é correto dizer que estamos em uma fase de mutação obscura e confusa, podemos concluir que isso decorre da não diferenciação entre espírito e realidade, vida real e pensamento.

Seria correto postular uma nova metafísica – isto é, novas harmonias e novas abstrações – fundada em novas experiências? Indicar à vida confusa dos fatos caminhos em direção a certa ordem? Buscar naquilo que é excessivamente visível e grosseiramente turbulento uma aparência oculta nova? Em síntese, que não vejamos na ausência de respostas imediatas apenas um nada ou o refúgio ao niilismo. Para tanto, saiamos do domínio da tecnociência e retomemos o caminho do pensamento em direção ao campo próprio da razão.

Essas novas evidências nos legam novas questões: se as “coisas vagas” ganharam expressão e forma nas construções de pedra, catedrais e monumentos – onde a própria física adquiriu conteúdo metafísico, como nos diz Valéry –, hoje, que forma “imortal” adquire o que, além de mortal, é também virtual, isto é, “catedrais” construídas virtualmente que desaparecem de maneira veloz no momento seguinte?

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