2017

Humano, pós-humano, transumano: implicações da desconstrução da natureza humana

por Laymert Garcia dos Santos

Resumo

Saltos exponenciais e relativamente recentes de estudos e experimentos nos campos da tecnociência (notadamente a biotecnologia, a nanotecnologia e a robótica) têm gerado profunda inquietação sobre o presente e o futuro próximo da humanidade, impactando em transformações do próprio conceito de “humano”. As implicações que envolvem as práticas desses campos são evidentes nos debates sobre o assunto que só aumentam na medida em que o conhecimento e suas aplicações se aprofundam. Questões éticas suscitadas pela possibilidade de manipulação genética fizeram com que Sloterdijk se opusesse publicamente a Heidegger; e ainda, Barbara Stiegler, retomando Nietzsche, evidenciaria “a violência da aporia da seleção”, intrínseca à engenharia genética que, com efeito, lida inevitável e simultaneamente com a eugenia aberta ou camuflada e a defesa do humanismo. Quanto ao desenvolvimento de inteligências artificiais, a perspectiva de um acontecimento-chave é, para muitos, tão certa quanto temida: trata-se, segundo Vernor Vinge, da “iminente criação pela tecnologia de entidades com inteligência superior à humana”, ao que denominou “singularidade” inspirando-se no termo já usado por John von Nemann na década de 1950, no sentido de um ponto sem retorno. Predições e especulações de proporções cataclísmicas multiplicam-se, indo da “ficção científica” à “ciência da ficção”, sem que se possa escapar do fato de que as circunstâncias e os problemas são bem reais! A transferência de mentes inteligentes “para e por máquinas espirituais” seria, há pouco, concebida como pura fantasia ou delírio, mas, para Ray Kurzweil é meramente uma questão de tempo para que isso aconteça num curso inexorável de eventos evolutivos, uma espécie de “ultradarwinismo”. Dentre as predições de que algo dê errado na relação homem-máquina, talvez a mais disseminada e aterradora seja a “da superação da espécie superior por outra ainda mais superior, porque mais inteligente”, ou seja, a autodestruição do homem por uma quimera gerada por ele mesmo. Mas, dentre as possibilidades, Vinge apontou o conceito de amplificação da inteligência por meio do “aprofundamento homem-computador” por via do acoplamento. Mais uma vez emerge o temor de um pesadelo: a “superelite hipertecnologizada” que tiver acesso a esse upgrade, dele se valerá como meio de dominação nas esferas política, econômica e social.


[1]

A mutação que eu gostaria de analisar é aquela que concerne ao futuro do humano. Por isso mesmo minha intervenção tem um caráter futurista, isto é, um caráter de ficção científica, se entendermos por esse termo não um gênero literário menor e bastardo, mas a expressão de uma realidade potencial, que é parte de nossa realidade e que se manifesta ao mesmo tempo como ficção da ciência e ciência da ficção. Parto, portanto, do pressuposto de que vivemos num tempo em que a ficção científica deixou de ser sinônimo de fantasia para tornar-se a cifra de uma nova era. Pois, como observa John Moore, um “nerd sem arrependimentos” e escritor de ficção científica:

A ficção científica é o presente. Nós vivemos em uma sociedade de ficção científica, e não me refiro apenas à tendência da sociedade de se cercar de aparelhos de alta tecnologia. O que quero dizer é que a projeção no futuro, outrora o território do escritor de ficção científica, se transformou na modalidade dominante de pensamento. Esta é a influência da ficção científica no pensamento moderno[2].

Tenho consciência de que meu ponto de vista deve soar estranho para vocês, e por isso mesmo convido-os a fazer a experiência de um deslocamento de perspectiva que lhes permita entrever o presente de uma outra maneira. Se John Moore estiver certo, se a projeção no futuro se transformou na modalidade dominante de pensamento, então as projeções estão aí, em nós e fora de nós, não só permeando a nossa realidade como configurando a percepção que temos dela. A projeção no futuro está “no ar”, e para torná-la palpável para vocês, vou “baixá-la” sob a forma de duas canções que problematizam o futuro do humano no âmbito da cultura de massa, antes de passarmos a explorar a questão no plano do pensamento.

A primeira canção é “All Is Full Of Love”, da cantora islandesa Björk, que ganhou videoclipe dirigido por Chris Cunningham em 1999, portanto, há quase uma década. Se a escolhi, é porque ela apresenta uma visão otimista, prazerosa e até mesmo erótica da fusão do homem com a máquina.

A segunda é uma balada da cantora inglesa Alison Goldfrapp, intitulada “Utopia”, gravada no ano 2000. E está aqui porque apresenta uma visão pessimista e totalmente deserotizada da mutação do humano. Na verdade, não se trata de utopia, mas de distopia.

Tomei a iniciativa de introduzir meu tema através dessa confrontação porque nos dois casos o futuro do humano começa como uma espécie de desdobramento. No clipe, enquanto ouve a voz da cantora – nas palavras de Steven Shaviro, voz neutra, etérea, distante, flutuante, quase desencarnada, voz desumanizada, voz branca e gelada que enaltece um amor onipresente (“Trust your head around,/ It’s all around you./ All is full of love,/ All around you.”) –, o espectador vê uma Björk-androide transando com uma outra Björk-androide, isto é, com a duplicação de si mesma. Na verdade, duplicação de uma duplicação, pois sob a máscara impassível da máquina movimentam-se os olhos e a boca de um organismo feminino… da própria Björk. Assim, a vida erótica das máquinas decorre do acoplamento humano-máquina. E se tudo está cheio de amor na tecnosfera é por contaminação – como se humanos e robôs pudessem compartilhar, entre seres específicos e interespecíficos, sentimentos, sensações, afetos, fluidos, Eros. Que, por sinal, não são produzidos por máquinas individuais autossuficientes, mas gerados no momento mesmo em que seus corpos são fabricados. Pois, como bem observa Steven Shaviro: “Será que os androides de Björk estão tão enamorados um pelo outro que se esquecem de sua própria construção? Ou será que o processo de algum modo realça o seu deleite? Em todo caso, seus movimentos são tão lentos e estilizados que sugerem um estado de graça sobre-humano[3]”.

A utopia de Goldfrapp também parte de um desdobramento. Como vocês viram, a própria cantora se duplica na capa do disco, e sua imagem evoca irresistivelmente a duplicação de Maria, a célebre personagem mística do filme Metropolis, que se transforma num robô revolucionário sob forma feminina. Aliás, Maria também é a matriz da imagem do clipe de Björk, mas não só: quem se lembra da imagem compósita da primeira Madonna, híbrido de mulher e homem (tutu de tule e jaqueta de couro), humano e máquina, santa e transgressora, não pode deixar de referi-la à criação de Fritz Lang. Voltemos, porém, à balada de Goldfrapp. Do que se trata? Tudo se passa como se estivéssemos ouvindo uma mulher confidenciando o seu estranhamento matinal a um namorado – ela não vê cores nem formas, não ouve sons, está perdendo sentimentos e sensações, se esquece de quem é. Mas à medida que a canção se desenvolve, se por um lado quem canta parece despertar em e para um processo de desincorporação e de desmaterialização, por outro quem ouve se dá conta de que essa mulher está progressivamente percebendo que foi reduzida a um supercérebro conectado ao mundo inteiro, a uma superinteligência que conhece tudo mas não sente nada, que se tornou a concretização da utopia de seu namorado fascista, de seu fascist baby. Assim, à utopia tecnológica de “All Is Full Of Love” se contrapõe a distopia, também tecnológica, de “Utopia”. E se na primeira os androides são agenciados por uma maquinaria apolítica, na segunda o humano transformado em inteligência artificial resulta de uma maquinação fascista.

* * *

A confrontação de duas canções da indústria cultural expressa uma problematização que também vem ocorrendo no plano do pensamento, e que se manifesta no embate entre promotores e críticos da intensa tecnologização da vida humana e da vida social. Com efeito, vem crescendo nas últimas décadas a percepção de que estamos no limiar de uma nova era, no que concerne ao indivíduo e à espécie, em virtude do modo como a aceleração econômica do capitalismo global engatou na aceleração tecnocientífica, a ponto de construir o que o poeta Heiner Müller designou como “estratégia da aceleração total”, que, em seu entender, vai conduzir ao desaparecimento do humano no vetor da tecnologia.

O entendimento de que o humano – enquanto indivíduo e espécie – está ameaçado não é novo. Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, portanto, C. S. Lewis já evocava o desaparecimento desta última ao escrever The Abolition of Man. Estendendo a perspectiva da espécie humana na linha do tempo, desde seu surgimento, e desdobrando a tendência de domínio progressivo da Natureza nessa escala de longa duração, Lewis imaginou um momento em que ela se renderia quando seu último bastião – a natureza humana – tivesse sido conquistado. Para ele, a conquista da natureza humana seria realizada por uma geração-chave do futuro, aquela que por um lado se teria emancipado da tradição e reduzido ao mínimo o poder de seus predecessores, e por outro exerceria o máximo de poder sobre a posteridade, porque poderia dispor de sua descendência como quisesse, através da eugenia e de uma educação planejada e executada cientificamente; mas, como tal poder não seria compartilhado igualmente por todos os homens dessa geração, caberia a um punhado deles decidir o destino de bilhões de outros. Assim, o escritor inglês pensou a humanidade futura segundo critérios de poder tecnocientíficos e políticos que a dividiriam em condicionadores da natureza humana e condicionados. Ora, se os condicionadores viessem a ter esse poder exorbitante, teriam de decidir que tipo de consciência gostariam de produzir na espécie. Lewis, então, se interroga: O que aconteceria se eles se perguntassem se devem ou não incutir nela a consciência de sua própria preservação? Mas, em vez de resposta, a indagação suscita outra pergunta: Por que a espécie deveria ser preservada? A questão se colocaria porque, sabendo muito bem como se produz o sentimento em prol da posteridade, os condicionadores teriam de decidir se esse sentimento deve continuar. Entretanto, considera Lewis, por mais que procurassem um motivo ou razão para fazê-lo, seria impossível achá-lo. Isso significa que, quando a questão da preservação ou não da espécie se colocasse como opção, o jogo já teria terminado, por não haver mais valor humano algum a preservar. É que, na realidade, condicionadores e condicionados já não seriam mais propriamente humanos: os primeiros porque “são homens que sacrificaram sua própria parcela de humanidade tradicional para se dedicarem à tarefa de decidir o que doravante a ‘Humanidade’ significará”[4]; os segundos porque, em vez de homens, são artefatos. Assim, conclui Lewis, “ficou evidente que a derradeira conquista do Homem foi a abolição do Homem[5]”.

Uma década depois da publicação de The Abolition of Man, em meados dos anos 1950, Günther Anders escreveu seu famoso ensaio dissecando o que chamou de “vergonha prometeica”, vendo nesse sentimento um sintoma inequívoco da “obsolescência do humano”, isto é, de que o homem não só se sentia inferior em relação à máquina como também passara a se perceber como um ser limitado, defasado e anacrônico em relação a ela. No entender do filósofo, a questão era gravíssima, tanto assim que, na introdução de seu livro sobre o assunto, Anders conjectura: “Parece-me que hoje uma crítica dos limites do homem, portanto não só de sua razão, mas dos limites de todas as suas faculdades (de sua fantasia, de seu sentir, de sua responsabilidade etc.) é o que se deve exigir em primeiro lugar da filosofia […][6]”.

Invoco Lewis e Anders para assinalar que o problema tecnopolítico do futuro do humano está, portanto, posto há mais de meio século. Mas só agora ele parece emergir com urgência, por causa da aceleração, ou melhor, da aceleração da aceleração tecnológica. Pois aquela geração-chave do futuro de que falava Lewis… é a nossa! Quero dizer que é na nossa geração que já se fazem escolhas éticas e opções tecnológicas decisivas. E, de certo modo, como Lewis previu, os homens que podem decidir parecem não mais ver motivo ou fundamento na ideia de preservação do que entendemos por humanidade.

A fim de se ter uma “medida”, se é que se pode dizer assim, do impacto da aceleração tecnológica sobre o humano, vejamos o que diz Konstantinos Karachalios, um especialista do Escritório Europeu de Patentes que se dedicou nos últimos anos à construção de cenários futuros nessa organização.

Se você considerar o progresso tecnológico realizado no ano 2000 como uma “unidade de tempo tecnológico”, então calcula-se que o século XX teve, ao todo, 16 dessas unidades. Todo o século XX é equivalente a apenas 16 anos do progresso tecnológico medido pelo ano 2000; isto é, em termos tecnológicos o século todo poderia ser comprimido em apenas 16 anos, com desenvolvimentos cada vez mais concentrados em seu final. Levando em conta esse efeito de aceleração, você poderia imaginar quantas unidades de tempo tecnológico nós e nossos filhos vamos experienciar (e ter de enfrentar) durante o século XXI? Aparentemente, haverá mais de cem, mas você pode imaginar quanto? Bem, se você simplesmente extrapolar a tendência atual, presumindo que não ocorrerão desastres em larga escala e a longo prazo, pode ser que tenhamos que lidar com um progresso tecnológico equivalente a 25 mil anos (baseado na tecnologia do ano 2000) dentro de duas gerações. Mesmo que você considere “apenas” mil anos, teremos que enfrentar desafios semelhantes aos que a maioria das populações da África ainda está enfrentando, populações que foram catapultadas da idade da pedra ou do ferro na modernidade, dentro de duas ou três gerações[7].

Se Karachalios estiver certo, a pergunta que se coloca, então, é a seguinte: Como a experiência humana vai “processar”, ou melhor, está “processando”, essa aceleração que os especialistas qualificam como “avalanche tecnológica”? A analogia com os povos indígenas soa interessante, não porque estes sejam “atrasados” ou “arcaicos” em termos sociais e culturais, mas porque não trilharam o caminho do desenvolvimento técnico cada vez mais acelerado, optando por outros rumos. Assim, quem já esteve numa aldeia ianomâmi, por exemplo, sabe da distância que separa a sua vida cotidiana do nosso universo tecnologizado e constata a sua dificuldade em lidar com nossas máquinas; mas, nesse caso, o problema que eles enfrentam não é com a sua sociedade, mas com a organização social dos outros, dos brancos. A ironia, entre nós, é que vamos ser cada vez mais confrontados com a vertiginosa aceleração que nossa própria sociedade produz e de cujo impacto parece que não temos como escapar. Como se estivéssemos nos tornando um povo primitivo dentro de nossa própria cultura! Por outro lado, as observações de Konstantinos Karachalios são relevantes porque conferem maior densidade à leitura dos escritos sobre a Singularidade, e ao modo como esta tendência do pensamento trata a “obsolescência do humano”.

A perspectiva dessa corrente ganhou visibilidade quando o escritor de ficção científica Vernor Vinge publicou, em março de 1993, um artigo acadêmico intitulado “The Technological Singularity”, introduzindo uma ideia polêmica que correu o mundo. Nesse texto, o autor argumentava: “estamos no limiar de uma mudança comparável ao surgimento da vida humana na Terra. A causa precisa dessa mudança é a iminente criação pela tecnologia de entidades com inteligência superior à humana[8]”. Ora, para nomear esse acontecimento como Singularidade Tecnológica, o autor se inspirava no termo “singularidade”, empregado por John von Neumann nos anos 1950 para designar o momento em que o progresso tecnológico cada vez mais veloz e as transformações da vida humana criariam um ponto de mutação na história do homem, a partir do qual nada mais seria como dantes, e nossos velhos modelos precisariam ser descartados. Entretanto, ao apropriar-se da expressão, Vinge vinculou-a ao intelecto sobre-humano, porque, para ele, “a sobre-humanidade é a essência da Singularidade”. E foi ainda Vinge quem estabeleceu uma analogia entre esse acontecimento e o surgimento do homem na perspectiva da evolução das espécies, ao afirmar que estávamos entrando num regime tão radicalmente diferente do de nosso passado humano quanto foi o dos homens com relação aos animais inferiores. Assim, tal analogia, ao mesmo tempo em que anunciava a “superação” da espécie, consagrava o advento da era pós-humana.

Em traços rápidos, e diante de um acontecimento de tamanhas implicações, o texto procurava responder à pergunta se a Singularidade Tecnológica podia ser evitada. Contrariando alguns autores, Vinge argumentava que isso seria impossível devido a fatores inerentes à própria tecnologia, e também porque as vantagens comparativas na competição econômica, militar e até mesmo artística fariam com que os avanços na automação se tornassem tão importantes que não haveria lei ou costume que fosse capaz de detê-los. Aliás, pelo menos num certo sentido, o passar do tempo parece ter dado razão ao autor – na época em que ele escreveu, aceleração tecnológica e aceleração econômica andavam juntas e pareciam estabelecer uma aliança indestrutível, através da universalização dos sistemas de propriedade intelectual, que asseguravam ao mesmo tempo a pesquisa e o desenvolvimento da invenção e da inovação, e a sua exploração pelo capital global; mas, agora que a tecnociência começa a constatar que a propriedade intelectual está retardando e represando o ímpeto de seu próprio movimento, aumenta o coro de cientistas e tecnólogos dispostos a abrir mão de patentes e copyrights e a forçar o capital para que este – em nome da própria competição! – venha a superar a sacrossanta questão da propriedade e encontre saídas para essa contradição…

De todo modo, segundo Vinge, a Singularidade Tecnológica seria, portanto, inevitável; mas isso não significava que ela pudesse se expressar apenas através da Inteligência Artificial, isto é, da superação da espécie superior por uma outra ainda mais superior, porque mais inteligente. Com efeito, o autor via também um outro caminho possível, mais soft: a Amplificação da Inteligência, isto é, a intensificação e o aprofundamento da relação homem-computador, de tal modo que a ênfase não recaísse nas máquinas, mas no acoplamento. Entretanto, não faltou quem apontasse que tal opção, se não favorecia o advento de uma nova espécie, criava, no entanto, uma superelite hipertecnologizada que poderia se constituir num pesadelo, em termos sociopolíticos. Por isso, depois de examinar a questão, Vinge concluía: “O problema não é apenas que a Singularidade representa a saída da humanidade do centro da cena, mas que ela contradiz nossas noções mais caras de ser”.

O fato é que as ideias e o argumento do escritor de ficção científica foram posteriormente retomados e desenvolvidos por outros especialistas e entusiastas das novas tecnologias, principalmente pelo inventor Ray Kurzweil, em A era das máquinas espirituais, escrito em 1999. O livro é importante e merece menção porque nele o termo Singularidade adquire uma nova inflexão no sentido de naturalizar uma estratégia de aceleração que é sociotecnopolítica, isto é, de transformá-la numa lei da natureza. Com efeito, assim como Vinge modificara o sentido da Singularidade de Von Neumann, estabelecendo uma analogia entre o que estava por vir e o surgimento da espécie humana, agora Kurzweil se apropria da expressão de Vinge para explicar, retrospectivamente, toda a cosmologia e toda a teoria da evolução. Assim, toda a evolução do universo é lida sob a ótica de uma aceleração que vai desembocar na criação, por seres inteligentes, de seres mais inteligentes do que eles. No prólogo do livro, intitulado “Uma emergência inexorável”, o autor sintetiza o raciocínio que guiará o desenvolvimento de mais de quatrocentas páginas:

A evolução tem sido vista como um drama de um bilhão de anos que levou inexoravelmente à sua maior criação: a inteligência humana. Nas primeiras décadas do século XXI, a emergência de uma nova forma de inteligência na Terra que possa competir com a inteligência humana, e no fim das contas superá-la de modo significativo, será um desenvolvimento de maior importância do que a criação da inteligência que a criou, e terá profundas implicações em todos os aspectos do esforço humano, incluindo a natureza do trabalho, o aprendizado humano, os governos, a guerra, as artes e nosso conceito de nós mesmos[9].

Kurzweil aposta, portanto, na aceleração como fator de superação do humano; e não seria demais sublinhar que o autor é coerente quando afirma, tanto nesse volume quanto em textos mais recentes[10], que a convergência de três revoluções tecnológicas – biotecnologia, nanotecnologia e robótica, todas elas baseadas na cibernetização da ciência e nas tecnologias da informação digital e/ou genética – vai nessa direção. Por fim, cabe ainda assinalar que seu ultradarwinismo não só o leva a explicar todo o passado – do universo, da Terra, das espécies, do homem e da tecnologia em função da inteligência, da sobrevivência e da competição – como ainda o leva a projetar para o futuro o cumprimento da “lei” da seleção natural que só reservaria uma saída para nós: o desaparecimento do humano no vetor da tecnologia, que, na verdade, consistiria em nossa realização pós-humana – como mente inteligente eternamente transferida para e por máquinas espirituais, e imortalizada, portanto, nos bancos de dados, nos fluxos e nas redes dessa nova civilização.

* * *

Na tentativa de apreender o alcance maior da tese central do pensamento da Singularidade, interessa a reflexão do sociólogo português e professor do St. Antony’s College, de Oxford, Hermínio Martins. Com efeito, avaliando os estudos que vêm sendo realizados sobre a temática da aceleração na civilização tecnológica, Martins comenta que os Singularitarians preconizam uma mutação inédita, “ontológica (ou desontológica)”, para um futuro pós-humano, pós-biológico, e acrescenta:

A escola da aceleração-para-a-Singularidade […] pelo menos dá um sentido de transcendência potencial e uma direção privilegiada bem definida para os processos tecnoeconômicos em curso, e de toda a História; mas mais que um significado histórico-mundial, uma viragem para uma nova civilização, […] um salto para um novo modo de existência[11].

Entretanto, segundo o sociólogo da tecnologia, o essencial da visão pós-humana que constitui o cerne do projeto da Singularidade, apesar de calcado na cibernetização da ciência e no desenvolvimento das tecnologias da informação, foi formulado antes do grande surto das máquinas inteligentes pós-1945, e mesmo sem a antecipação clara desta linhagem tecnológica[12]. Martins identifica no ensaio de John D. Bernal, The world, the flesh and the devil – Three enemies of the rational soul, publicado em 1929, a matriz desse pensamento que, então, visava tornar os humanos mais aptos para as viagens espaciais. “A motivação essencial”, escreve o autor, “parece ter sido a necessidade de pensar a melhor maneira de superar os limites do progresso do conhecimento científico que decorrem das nossas

características contingentes de meros primatas inteligentes […][13]”. No entender de Martins, tratava-se, então, de tentar superar os limites do humano para realizar a “Tarefa Comum”, isto é, a maximização do conhecimento tecnocientífico, como fim último e exclusivo; mas se a intenção foi mantida e alimentada ao longo de todo o século XX, o foco, todavia, mudou: hoje a ênfase deslocou-se das viagens espaciais e do cosmos para os microcosmos, centrando-se na mente e no indivíduo, entendidos sob a ótica das tecnologias da informação. É por aí que se acredita ser possível operar a Singularidade.

Há muita discussão sobre o caráter utópico ou realista dessa empreitada que mais parece literatura de ficção científica, e chovem argumentos dos dois lados. De todo modo, Martins pensa que está colocada a Questão do Homem como a “Grande Questão”. A Questão do Homem, no caso, não vem a ser propriamente a elaboração de uma nova resposta para a pergunta “O que é o Homem?”, nem mesmo a tentativa de se considerar o Homem-como-Experimento, isto é, como ser lançado numa grande aventura:

Mais propriamente, poderíamos dizer que surgiu o projeto do “Experimento-sobre-o-Homem”, pelo Homem, sobre o seu próprio ser ou natureza […], que ocupa enfim um lugar cada vez mais saliente na agenda tecnológica, especialmente no projeto tecnocibernético transumanista. […] Estamos a falar do Grande Experimento […] de passarmos da modalidade biológica à existência puramente virtual […][14].

A análise de Martins importa, e muito, porque, sem sombra de dúvida, é ele quem explicita em termos sociológicos o que está em jogo, aquém e além da vertigem da aceleração e do fascínio que o pós- e o transumanismo suscitam. Com efeito, ao nomear a Questão do Homem, com q e h maiúsculos, como o projeto do Experimento-sobre-o-Homem, pelo Homem, sobre o seu próprio ser, esse autor mostra como se pensa e como se pretende realizar o desejo secreto que o conhecimento científico parece nutrir de romper definitivamente com o passado animal do humano, e a vontade de superar os limites do homem, entendidos como limitações intoleráveis por uma ambição desmedida, através da efetuação de um experimento radical que permita a um ser desanimalizado e desumanizado assumir inteiramente a condução da seleção natural e substituí-la por uma seleção não natural, isto é, tecnocientífica.

Evidentemente, por tudo o que foi dito antes, o conceito-chave que norteia o Experimento é seleção. Mas o sentido desse conceito se transforma numa noção paradoxal, pois, embora o princípio darwiniano da seleção natural seja reconhecido, reafirmado e até mesmo reivindicado como princípio operatório que confere inteligibilidade a todo o processo evolutivo e valida toda a formulação teórica da Singularidade, é para ser, em seguida, recusado, rompido e transcendido por uma seleção não natural que, a um só tempo, tem a pretensão de continuar e de descontinuar aquela postulada por Darwin! Nesse contexto, a pergunta que emerge é: Como abordar tal formulação? Como ciência, como pretendem os adeptos da Singularidade? Como ficção científica? Como ficção científica da ciência? Se a seleção natural se prolonga por outros meios, por meios artificiais, do que se trata então? De naturalização do artifício? De artificialização da natureza? De ambas ao mesmo tempo? Martins considera que a teoria da Singularidade não é simplesmente ciência, mas ciência cibernetizada por uma metafísica da informação; concomitantemente, reconhece, porém, que a tecnociência vem concretizando essa metafísica, inscrevendo-a no chamado mundo real, tornando-a realidade.

Ora, tal concretização não se restringe ao Experimento levado a cabo pelos adeptos da Singularidade e por outras correntes que atuam na construção da Inteligência Artificial. O próprio Hermínio Martins percebe com clareza a existência no interior da tecnociência de dois programas distintos, que vêm se desenvolvendo paralelamente: o projeto de aceleração-para-a-Singularidade e o projeto da reprogenética, ancorado na engenharia genética e na genômica – o primeiro como a expressão de uma vontade de superar o humano, o segundo, de uma vontade de ampliar ilimitadamente os poderes naturais do homem[15]. Nessa perspectiva, a ambição dos biotecnólogos parece ser mais modesta; mas, como ambos se ancoram na ciberciência e na cibertecnologia, pois têm como conceito fundante a concepção do humano como informação e põem em questão o futuro da espécie, vale a pena indagar se a biotecnologia se atém realmente a ampliar os limites dos poderes naturais do homem ou se ela faz mais do que isso. A saber: se ela também não conduz à superação do humano através de um programa igualmente fundado no princípio da seleção.

* * *

Para muitos críticos o problema, tanto ético quanto político, da engenharia genética exige a discussão e o estabelecimento de limites, na medida em que estas, ao operarem a desconstrução da natureza humana, podem conduzir à abertura de uma segunda linha de evolução da espécie. Assim, nos últimos anos tem aumentado nos países do capitalismo avançado o coro dos que alimentam o debate visando seja a uma intervenção dos governos, seja a uma mobilização da sociedade civil em favor de uma regulação do que pode e deve, ou não, ser tolerado. Parte das manifestações favoráveis ao estabelecimento de limites vem de autores humanistas que rejeitam a engenharia genética pura e simplesmente. Porém, não me parece interessante tentar problematizá-las porque elas soam irrealistas e, de certo modo, muitas vezes retóricas, tendo em vista sua obstinação em ignorar o terreno, as condições e as forças que tornam o Experimento factível. Minha intenção era problematizar, aqui, as posições de alguns pensadores no debate – Francis Fukuyama (Our Posthuman Future), Jürgen Habermas (Die Zukunft der menschlichen Natur O futuro da natureza humana), Peter Sloterdijk (Regeln für den Menschenpark Regras para o parque humano) e Slavoj ŽiŽek (Organs Without Bodies). Mas não há tempo. Vou, assim, finalizar minha intervenção atendo-me a algumas considerações sobre o caráter imensamente perturbador do problema da seleção.

No tocante à biotecnologia, tal problema foi, a meu ver, levantado do modo mais interessante por Peter Sloterdijk, na famosa conferência intitulada Regras para o parque humano – Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, em meados de 1999. Como alguns de vocês devem se lembrar, a intervenção do filósofo desencadeou uma grande polêmica na Alemanha, quando Habermas qualificou-a de “genuinamente fascista”, por entender que seu colega falara de técnicas de manipulação experimental de seres humanos sem levar em conta o trauma histórico do país com a eugenia nazista, desistoricizando, portanto, um assunto tão sensível. No meu entender, Habermas não tinha razão, até porque o que Sloterdijk propôs foi a elaboração de um “códex das técnicas antropológicas”, isto é, um conjunto de normas válidas para a comunidade política da humanidade que determinasse o que é permitido e o que é proibido em termos de biotecnologia. Nessa direção, deveria ser considerado legítimo aquilo que ajuda a reduzir o risco de vida, como, por exemplo, evitar graves doenças hereditárias; ilegítimo “tudo aquilo que desemboca numa biopolítica elitista para grupos não solidários”; e, para decidir o que deve ou não ser legítimo, Sloterdijk preconizava uma moratória para a pesquisa genética, seguida de um debate, “o mais amplo possível entre as culturas sobre suas visões sociais e antropológicas[16]”.

Pois bem. Em sua conferência, Sloterdijk não se deteve mesmo na eugenia nazista porque escolhera invocar como Heidegger, Nietzsche e Platão haviam colocado parâmetros filosóficos importantes, que precisavam ser levados em conta na discussão de hoje. No entender de Sloterdijk, “Heidegger inaugurou um campo de pensamento transumanista ou pós-humanista no qual se tem movido desde então uma parte essencial da reflexão filosófica sobre o ser humano[17]”. Por isso, toda a primeira parte da intervenção de Sloterdijk foi concebida como uma resposta à carta que Heidegger escreveu sobre o humanismo.

Em traços ultrarrápidos, e correndo o risco evidente de simplificações redutoras, trata-se do seguinte: em sua carta de 1946, Heidegger reflete sobre o que é ser humano numa perspectiva existencial-ontológica. Para ele, a essência do ser humano não pode ser expressa do ponto de vista zoológico ou biológico, à qual se acrescentaria um fator espiritual – o homem não pode ser definido como animal racional, porque o que existe entre o homem e o animal não é uma diferença de gênero ou de espécie, mas uma diferença ontológica, uma diferença de modo de existência: se o ser humano tem um mundo e está no mundo, plantas e animais estão atrelados apenas a seus respectivos ambientes. Assim sendo, explica Sloterdijk, se há um fundamento filosófico para se falar da dignidade do ser humano, é porque o homem é chamado pelo próprio ser e escolhido para sua guarda; o homem é o pastor do ser e por isso possui a linguagem. Sloterdijk cita, então, um trecho da carta de Heidegger: “A linguagem é antes a casa do ser; ao morar nela o homem existe, à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, na definição da humanidade do ser humano enquanto existência é que o essencial não é o ser humano, mas o ser como a dimensão do extático da existência[18]”. Em poucas palavras: verifica-se uma espécie de descentramento do ser humano, cuja tarefa passa a ser guardar o ser, e cuja essência passa a ser corresponder ao ser; e o lugar em que isso acontece é a clareira extática, em que o ser surge como aquilo que é. Nesse sentido, continua Sloterdijk, “o autocontido habitar heideggeriano na casa da linguagem define-se como uma escuta paciente e às escondidas do que será dado ao próprio ser dizer[19]”.

Interessa destacar aqui que o homem se encontra na clareira do ser, que sua tarefa é guardá-lo, que nessa clareira ele é “vizinho do ser” e não se encontra mais no centro, como no humanismo, que para corresponder ao ser ele precisa ouvi-lo, que para ouvi-lo precisa submeter-se a uma ascese reflexiva, que pensar consiste agora num intenso exercício ontológico de humildade. Mas, ao recolocar a questão de Heidegger, Sloterdijk introduz a sua própria contribuição filosófica, quando afirma ser preciso tentar caracterizar a clareira em termos históricos. A história real da clareira, diz o filósofo, é feita “de duas narrativas maiores que convergem em uma perspectiva comum, a saber: a explicação de como o animal sapiens se tornou o homem sapiens[20]”.

A primeira dessas narrativas dá conta da aventura da hominização:

Ela narra como nos longos períodos da história pré-humana primitiva surgiu do mamífero vivíparo humano um gênero de criaturas de nascimento prematuro que […] saíram para seus ambientes com um excesso crescente de inacabamento animal. Aqui se consuma a revolução antropogenética – a ruptura do nascimento biológico, dando lugar ao ato do vir-ao-mundo. […] O ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal e em seu permanecer-animal. Ao fracassar como animal, esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o mundo no sentido ontológico. […] esse êxodo geraria apenas animais psicóticos se, com a chegada ao mundo, não se efetuasse ao mesmo tempo um movimento de entrada naquilo que Heidegger denominou “casa do ser”. As linguagens tradicionais do gênero humano tornaram capaz de ser vivido o êxtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos homens como esse estar-no-mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo[21].

A primeira narrativa conta, portanto, como o homem deixa de ser animal e se hominiza. A segunda narrativa, que explica como o animal sapiens se tornou o homem sapiens, é aquela que conta como os seres humanos chegaram não à casa da linguagem, mas à casa que eles próprios construíram, depois que se tornaram sedentários. A relação entre homens e animais adquire então marcas completamente novas, a casa, os homens e o animal se transformam num complexo biopolítico, no qual a domesticação dos animais e dos homens se torna uma questão central. Sloterdijk acredita que a casa propicia uma íntima conexão entre domesticidade e construção de teoria, pois “as janelas seriam as clareiras das paredes, por trás das quais as pessoas se transformaram em seres capazes de teorizar[22]”. Contudo, com a humanização nas casas, a clareira muda de sentido, e isso é da maior importância para o assunto que nos mobiliza aqui. É que, agora, a clareira não é mais apenas um lugar de contemplação, mas passa a ser ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e seleção. Diz Sloterdijk: “Lá onde há casas, deve-se decidir no que se tornarão os homens que as habitam; decide-se, de fato e por atos, que tipo de construtores de casas chegarão ao comando. Na clareira, mostra-se por quais posições os homens lutam, tão logo se destacam como seres construtores de cidades e produtores de riquezas”. Em suma: desponta um outro processo de seleção no próprio processo de domesticação do humano, isto é, de criação e de educação. E é nesse momento que Sloterdijk introduz Nietzsche como o homem que pensou a segunda narrativa.

Com efeito, evocando um trecho de Zaratustra, Sloterdijk escreve:

Da perspectiva de Zaratustra, os homens da atualidade são acima de tudo uma coisa: bem-sucedidos criadores que conseguiram fazer do homem selvagem o último homem. É óbvio que tal feito não poderia ser realizado só com métodos humanistas de domesticação, adestramento e educação. A tese do ser humano como criador de seres humanos faz explodir o horizonte humanista, já que o humanismo não pode nem deve jamais considerar questões que ultrapassem essa domesticação e educação: o humanista assume o homem como dado de antemão e aplica-lhe então seus métodos de domesticação, treinamento e formação […]. Nietzsche, por outro lado – que leu com a mesma atenção Darwin e São Paulo –, julga perceber, atrás do desanuviado horizonte da domesticação escolar dos homens, um segundo horizonte, este mais sombrio. Ele fareja um espaço no qual lutas inevitáveis começarão a travar-se sobre o direcionamento da criação dos seres humanos e é nesse espaço que se mostra a outra face, a face velada da clareira. Quando Zaratustra atravessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma política de criação até então próspera e indiscutível: os homens conseguiram – assim lhe parece –, com a ajuda de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores. Eles próprios se submeteram à domesticação e puseram em prática sobre si mesmos uma seleção direcionada para produzir uma sociabilidade à maneira de animais domésticos. […] Nietzsche, com sua desconfiança contra toda a cultura humanista, insiste em arejar o mistério da domesticação do gênero humano e quer nomear explicitamente os que até agora detêm o monopólio de criação – os padres e professores, que se apresentam como amigos dos homens –, e quer trazer à luz sua função oculta, desencadeando uma disputa inovadora, no âmbito da história mundial, entre os diferentes criadores e os diferentes projetos de criação[23].

Os leitores que me perdoem uma citação tão longa. Achei necessário que o próprio filósofo formulasse como lhe parece que o pensamento de Nietzsche introduz a questão da seleção não natural e o papel que cabe a ela na transformação do animal sapiens em homem sapiens. Pois ao fazê-lo, e ao deslocar, assim, o foco da passagem do animal ao humano para o campo da cultura, Nietzsche, no entender de Sloterdijk, demarca “um terreno gigantesco” dentro do qual deverá se realizar a definição do ser humano do futuro e postula o conflito fundamental para todo o futuro – a saber: a luta entre os que criam o ser humano para ser pequeno e os que o criam para ser grande. Levando então em conta a atualidade, a gravidade e o alcance da questão levantada por Nietzsche, Sloterdijk aborda a necessidade de regras para o parque humano, assumindo que as próximas grandes etapas do gênero humano serão períodos de decisão política quanto à espécie[24].

Ora, uma decisão política quanto à espécie não é de modo algum uma decisão banal. Para termos, então, uma ideia de suas implicações e do seu caráter tremendo, gostaria de terminar este texto com o alerta que Barbara Stiegler emitiu em seu livro Nietzsche et la biologie. Com efeito, analisando a politização da biologia empreendida por Nietzsche na Genealogia da moral, ao problematizar a teoria de Darwin, a jovem filósofa francesa parece captar com aguda precisão o que ela qualificou como a “aporia da seleção” e contra a qual, em seu entender, vai se quebrar o esforço de Nietzsche para pensar a articulação entre o “sofrer” e o “agir”, dois atos fundamentais no processo de domesticação ou de afirmação do homem.

Segundo Stiegler, o problema da seleção se coloca para o filósofo alemão porque, pensando a vida como regulação, Nietzsche percebe que, em face da potência do que acontece, a vontade de potência do organismo precisa se expor e se preservar, se expor para crescer e se preservar para não se comprometer, em suma, selecionar para ao mesmo tempo realizar-se como vida superior e como vida ainda “vivível”. Como mostra a autora, o problema da seleção progressivamente se impõe a ele em termos inextricáveis de saúde e de doença – inextricáveis porque, se é a potência da vida que nos fere e se é a vontade de potência do organismo que ao mesmo tempo em que busca o excesso procede à reparação dos ferimentos, é preciso “curar a vida” ou deixar-se infectar por ela. Diante de tal dilema, Stiegler, então, pergunta: “Como conciliar a seleção (vital) e suas medidas reparadoras com a imprevisibilidade e a desmedida da potência do que sobrevém? A seleção, a decisão de escolher entre o que queremos e o que não queremos viver, não corre o risco de nos tornar ainda mais desvitalizados, definitivamente fechados ao que nos acontece?[25]”.

A questão levantada por Stiegler é capital porque o problema da seleção formulado e enfrentado por Nietzsche projeta-se como gigantesca sombra sobre todo o campo da discussão contemporânea a respeito da evolução humana, a partir da “virada cibernética” e dos avanços da biologia molecular e da biotecnologia. Como escreve a filósofa:

Hoje, quando explodem entre as mãos do ser vivo humano seus poderes de manipulação e de experimentação sobre si mesmo e sobre os outros seres vivos, se recoloca com insistência a questão que Nietzsche suportou mais do que ninguém: é preciso “criar um partido da vida” que ponha “impiedosamente um termo a tudo o que é degenerado ou parasitário”? No mesmo momento, impõe-se a Nietzsche um outro pensamento inteiramente diferente: a ideia, ainda inspirada na regulação orgânica, de que toda saúde é um processo de cura e de que toda cura supõe uma patologia originária – a ideia de que não há saúde sem doença. Mas se a saúde exige a doença para se conquistar, e se é efetivamente através da experiência da doença que “nos tornamos cada dia mais problemáticos, mais dignos de questionamento, e talvez também mais dignos – de viver?”, não seria melhor temer “os homens da cura e os salvadores”, e esperar que nenhum “partido da vida” nos impeça, um dia, de ainda sermos capazes de ficar doentes? Desses dois pensamentos, que ameaçam cada vez mais a unidade do pensamento de Nietzsche à medida que se aproxima o seu “desmoronamento”, qual deles está mais próximo da vontade de potência como vida – ou da autorregulação com vistas à potência[26]?

Dilacerado entre a “grande política” e a “grande saúde”, Nietzsche encarna a violência da aporia da seleção. Ora, as discussões recentes a respeito do futuro do humano têm evidenciado que a aporia apontada por Barbara Stiegler se transformou num problema terrível não só para Nietzsche, mas para todos nós. Entre a “grande política” e a “grande saúde”, o que escolher? Problema que vem sendo basicamente enfrentado através da promoção e adoção da eugenia aberta ou camuflada, ou através da defesa do humanismo. Mas poucos têm se dedicado a explorar a via da “grande saúde” no contexto da “virada cibernética”. Talvez pela ausência de maior clareza quanto às implicações políticas da aporia da seleção, boa parte do debate intelectual que tem sido travado sobre o futuro do humano assume características regressivas. De todo modo, à biologização crescente da política, já apontada por Foucault desde meados dos anos 1970, devemos responder agora com a politização da biologia, da tecnociência e da tecnologia. Se a vida tornou-se uma questão política, a política tornou-se uma questão vital.

Notas

  1. Este texto faz parte de um projeto de pesquisa intitulado O futuro do humano, desenvolvido com o auxílio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Pesquisador 2), a partir de março de 2006. O autor agradece o apoio dessa instituição.
  2. Amy Biancolli, “A ficção científica séria está morta?”, The New York Times News Service, 10 jul. 2007.
  3. Steven Shaviro, The Erotic Life of Machines. Comunicação apresentada no Simpósio Internacional sobre Tecnologia, organizado por Hermínio Martins e José Bragança de Miranda no Convento da Arrábida, Portugal, 26 de setembro de 2000.
  4. C. S. Lewis, The Abolition of Man, Londres: FountHarper and Collins, 1978, p. 36.
  5. Idem, p. 36.
  6. (Grifos do autor.) Günther Anders, L’uomo è antiquato – 1. Considerazioni sull’anima nell’epoca della seconda rivolzione industriale, 2a ed., Turim: Bolatti Boringhieri, 2005, p. 52. Tradução para o italiano de Laura Dallapiccola. Ver ainda, do mesmo autor, o capítulo introdutório “Introduzione. Le tre rivoluzioni industriali” e “La storia, ii. La modernità è antiquata”, em: L’uomo è antiquato – 2. Sulla distruzione della vita nell’epoca della terza rivoluzione industriale. Turim: Bolatti Boringhieri, 2003, pp. 9 ss., 277 ss. Tradução de Maria Adelaide Mori.
  7. Em: “Inside Views column: A Look At The epo Project On The Future of Intellectual Property”, ip- Watch. Disponível em: <http://www.ip-watch.org/weblog/index.php?p=376&res=1600&print=0>. Acesso em: mar. 2017.
  8. Vernor Vinge, The Technological Singularity, vision-21 Symposium, nasa Lewis Research Center & Ohio Aerospace Institute, 30-31 de março de 1993. Disponível em: <http://www.kurzweilai.net/the-techno– logical-singularity>. Acesso em: mar. 2017.
  9. (Grifo do autor.) Ray Kurzweil, A era das máquinas espirituais, São Paulo: Aleph, 2007, p. 22. Tradução de Fábio Fernandes.
  10. Ver Ray Kurzweil, “Reinventing Humanity – The Future of Human-Machine Intelligence”. Em: Kurz- weilai.net, 3 fev. 2006, <http://www.kurzweilai.net/articles/art0635. html?printable=1>; ver também R. Kurzweil & Chris Meyer, “Understanding the Accelerating Rate of Change”. Em: KurzweilAI.net, 1o maio e, <http://www.kurzweilai.net/articles/ art0563.html?printable=1>.
  11. H. Martins, “Aceleração, progresso e experimentum humanum”. Em: Martins, H. e Garcia, J. L. (org.)

    Dilemas da civilização tecnológica, Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2003, p. 7.

  12. Ibidem, p. 29.
  13. Ibidem, p. 29.
  14. Ibidem, p. 37.
  15. Ibidem, p. 37.
  16. Cf. L. F. Pondé, “Zoopolítica”. Entrevista com Peter Sloterdijk, Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 10 out. 1999.
  17. Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano – Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 22. Tradução de José Oscar de Almeida Marques.
  18. M. Heidegger, apud P. Sloterdijk, op. cit., p. 26.
  19. Ibidem, p. 28.
  20. Ibidem, p. 33.
  21. Ibidem, pp. 34-35.
  22. Ibidem, p. 37.
  23. Ibidem, pp. 39-41.
  24. Caso o leitor queira obter maiores esclarecimentos sobre a posição de Sloterdijk, recomenda-se a leitura de P. Sloterdijk, Ni le soleil ni la mort: Jeu de piste sous forme de dialogues avec Hans-Jürgen Heinrichs, Paris: Fayard, 2003. Tradução de Olivier Mannoni. Nesse livro o filósofo esclarece os desdobramentos da polêmica com H. J. Habermas e sua análise do efeito de sua conferência “Regras para o parque humano”.
  25. Barbara Stiegler, Nietzsche et la biologie, Paris: Presses Universitaires de France, 2001, pp. 88-89.
  26. Ibidem, p. 91.

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