Iluminações profanas (poetas, profetas e drogados)
Resumo
O olhar visionário sempre foi um deslocamento do tempo, desde os xamãs tribais que juntavam profecia, canto, dança e alucinógenos em suas visões de partes do tempo inacessíveis aos mortais. Esse olhar pode ainda ser próximo, como o de Clarice Lispector ao escrever “O ovo e a galinha”, texto que é um verdadeiro tratado poético do olhar, visão de um ovo arquetípico no ovo doméstico à maneira de uma “iluminação profana” benjaminiana. Mas a relação com a droga, com o fármaco que era veneno e remédio, mudou em relação ao passado. Se seu uso continua sendo tabu, sua aura se perdeu. A droga virou a mercadoria por excelência do consumo de massa depois que passou da experiência neo-romântica hippie com a maconha e o LSD para a aceleração egoica e destrutiva da cocaína e do crack. Num mundo pós-utópico e pós-moderno, ela é somente um hábito, confessa o escritor William Burroughs. Seja como for, os poetas sempre reconheceram a ambiguidade simbólica e os perigos dessa experiência que implica uma perda dos dêiticos, isto é, daquilo que nos situa no mundo da linguagem (Baudelaire já falava da ressaca e da fraqueza que sucedem à beatitude, à inteligência cósmica e à acuidade provocadas pelo haxixe). Ir ao avesso da visão e voltar, reconhecer o mito para poder ultrapassá-lo: sobre o fundo dessacralizado e ambivalente da modernidade, é como aparição fugaz ou como disfarce (“A galinha é o disfarce do ovo”, diz Clarice) que o olhar visionário acontece, irrupção do imprevisto, do entrevisto, do interdito no tempo.
O visionarismo é um assunto que peca por ser muito antigo ou então excessivamente atual. É que o olhar visionário é já uma visão deslocada do tempo, uma visão que desloca o tempo. Enquanto experiência concreta (mesmo que não como tema filosófico) a visão impõe: toda distância ou nenhuma.
Por isso mesmo esse é um tema difícil. Tenta-se falar daquilo que quase não pode ser falado. Quase: se esse movimento de representação do irrepresentável não estivesse também na matriz da poesia. Se o discurso profético não fosse movido pelo esforço enigmático de cifrar e decifrar. Se os relatos de alguns drogados, que fizeram da droga um uso de tipo poético, não tentassem dar conta de uma evidência que se apresenta nitidamente e que não se deixa fixar.
No sentido forte, a visão é uma evidência do invisível, do indizível e do indivisível. Essa experiência é vivida por alguns visionários, e por muitas culturas, como uma experiência do sagrado; por outros, e muito pela nossa cultura, como uma experiência da ordem do profano (ou de uma ambivalente iluminação profana, como a chamou Walter Benjamin). De todo modo, a tentativa de apresentar pela linguagem aquilo que se experimenta como radicalmente ausente dela convoca o símbolo a exercer-se na sua mais alta potência, ali onde ele está no limite de desintegrar-se (essa desintegração constitui em larga medida a literatura moderna).
Por outro lado, se me arrisco a abordar o [1]tema é porque, de algum modo, ele faz parte de uma experiência comum. Qualquer pessoa que vacila de sono por um instante conhece a sensação de um vertiginoso e incontável tempo no espaço de um segundo. No limiar entre a vigília e o sono experimenta-se a sensação de estar fora do tempo. A pessoa que sonha é literalmente um visionário. O visionarismo escapa e entra pelas aberturas mais cotidianas.
Para falar disso sem carregar na excessiva e inútil tentativa de explicação, solicita-se do leitor que contribua com essa parcela de entendimento. Numa introdução ao livro Mensagem, quando fala das condições necessárias ao “entendimento dos símbolos”, Fernando Pessoa enumera antes de mais nada a simpatia e a intuição. Pode-se dizer que a simpatia corresponde a essa margem de contribuição que o leitor oferece ao indizível do tema. A intuição, a essa disposição para a percepção do inconsciente como outra coisa, que nos habita como um conhecimento prévio (ou como um pré-consciente). Depois, então sim, as outras condições: a inteligência (e todos os torneios da análise crítica), a compreensão (e a necessária visão do contexto histórico), mas sem dispensar a graça (também chamada “a conversação do santo anjo da guarda”, ou, se quisermos, o entendimento da criação segundo a ótica do criador).[2]
Os visionários ocupam desde épocas remotas essa área que está entre a poesia e a profecia, campos que não poucas vezes se confundiram. Na Grécia arcaica (sempre recorremos ao nosso tesouro de paradigmas) poeta e adivinho têm em comum o dom da vidência, mesmo que sejam emblematicamente cegos. O que eles vêem são as partes do tempo inacessíveis aos mortais: o que foi, o que ainda não é. Inspirado pelas Musas, filhas de Mnemosyne, a Memória, o poeta volta-se para o passado primordial; inspirado por Apoio, e auxiliado por certas ervas propiciatórias, o profeta volta-se para o que está por vir. Mas, nos dois casos, o passado e o futuro são partes integrantes da circularidade do cosmo, do eterno presente, do qual só se afastam aparentemente, para decifrá-lo naquilo que ele oculta.[3]
O olhar visionário é pois uma experiência que resulta do apagamento da visão habitual (o excesso que acompanha a falta de visão comum), e que fala por enigmas. Além de ver o indizível, ou de cifrar o invisível, o visionário se depara com um indivisível: a visão excede o foco e os limites do ego (se se pode dizer assim), e o sujeito se vê tomado, possuído e intensivamente superado pela própria força da visão. O peso da história entra em suspensão mas em incontrolável agitação; o Começo e o Fim, que de hábito ficam entre parênteses, esquecidos na vida normal, querem incorporar-se ao presente. O tempo é tumulto, tempestade, agitação das potências, habitado em regime de urgência por nada menos do que a vida, a morte e o renascimento cósmicos. A visão da história social é vazada e varrida pela visão de ciclos maiores que ela.
Mais antigo ainda do que essa aliança que une o poeta e o profeta, o xamã das sociedades tribais e nômades é o modelo mais remoto da fusão entre o mito, a profecia, a poesia, o canto, a dança e os alucinógenos. Através da “performance integral” da narrativa cantada e dançada, “o mito se torna rito e a cerimônia uma suspensão do tempo, evasão do espaço e libertação dos frágeis limites do corpo mortal e carente”. Esse “orquestrador” e ritmador das energias coletivas, sexualmente ambíguo, marcado por signos de exceção, “obedece tabus e prescrições alimentares, jejua, ingere e inala substâncias tóxicas que o predispõem a sonhos, delírios e estados de êxtase”.[4] Nele encontramos, arqueologicamente, a junção primitiva dessas experiências que as culturas aproximam e separam: o mito poético (associado à música), a visão profética e a alucinação pelas drogas.
Temos motivos para supor que as aproximações modernas entre poetas, videntes e drogados, que despontam isolada ou coletivamente desde o século XIX, estão ligadas a uma experiência matricial da visão comum a esses campos, a uma visão diferenciada do tempo, que pode ser analisada nos relatos sobre as viagens alucinógenas feitas por poetas, nas operações de linguagem que as drogas provocam, e na vertente profética que acompanha a poesia. A propósito, na época de Platão reconhecia-se (como se lê no Pedro) a poesia, a adivinhação, a possessão dionisíaca, e mais a paixão amorosa, como os quatro campos de manifestação da mania, a loucura divina enquanto estado de entusiasmo, no seu sentido etimológico: estar tomado por um deus. No caso de Dionísio, que se acrescenta aqui a Eros, Apoio e as Musas, trata-se de um deus eminentemente vegetal, como indicam o seu nome Bákkhos (designativo do ramo em geral, em especial do carvalho e do abeto, que o devoto enfeita para fazer o tirso) e seu epíteto dendrites, o arbóreo (de dendron, árvore, mais tes, sufixo de agente, princípio ativo masculino), o que sugere uma ampliação dos seus domínios embriagantes, comumente associados à uva e ao vinho, para as propriedades do vegetal em geral.[5]
Mas a relação entre o ambíguo papel social do visionário e a sua vinculação com as drogas tem um outro aspecto subjacente. Acontece que enquanto canalizador (e formulador) da angústia e da violência social, que o visionário assinala e sublima, ele se identifica com a figura do bode expiatório, ao mesmo tempo vítima sacrificial e veículo de purificação. Agente catártico mitificado e marginalizado, o visionário é sintoma e remédio da doença social. Isso o faz ambivalentemente “adorado e excluído […] Seu trabalho, político porque religioso, é integrador, canalizador da angústia, da violência e do imaginário […] Mas, também, porque ameaça de morte, transgressor, anunciador, profeta de novas formas de relação com o conhecimento e de novos poderes.[6] Para nomear essa função de vítima sacrificial e veículo terapêutico, de que se investe o bode expiatório, os gregos tinham a palavra pharmakós, substantivo masculino cujo correspondente neutro, phãrmakon, designa justamente a droga, no seu sentido mais geral e “farmacêutico”, enquanto substância carregada da ambivalência entre o valor negativo do veneno e o valor positivo do remédio. Na sua origem as chamadas “drogas” são fármacos, e durante muito tempo as leis oscilam sobre o seu caráter terapêutico ou destrutivo (veja-se a propósito a história do uso médico do ópio e seus derivados, bem como da cocaína).[7] Curiosamente, a própria palavra droga, em português, reedita essa ambivalência entre o lado positivo e o negativo subjacentes ao fármaco. Assim também a indústria farmacêutica, se bem pensada, pode ser vista como produtora de venenos. A viagem drogada, quando bad trip, por sua vez, é bode.
O visionário, poeta ou profeta, tem para a sociedade o mesmo valor ambivalente do fármaco, buscado como remédio e marginalizado como doença. Quando experimenta drogas, está experimentando e potenciando a sua própria condição.
Do visionário mais antigo podemos passar diretamente a um visionário muito próximo. Não é preciso que ele se abisme necessariamente nas profundidades míticas do tempo primordial, nem que projete imagens proféticas convulsionadas. Ele pode aparecer como fenda na superfície do olho voltado para o aqui e o agora, e se exercer na pura. instantaneidade. Ele pode se alucinar só de lucidez, e não tomar como droga senão a oscilante relação sujeito-linguagem.
O texto de Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”, do livro À legião estrangeira é um verdadeiro tratado poético sobre o olhar.
De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios.
- No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. — Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. — Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento, não há; há o ovo. — Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. […][8]
O primeiro momento supõe a coincidência feliz entre o olhar e a coisa: eu me reconheço naquilo que eu reconheço. A ressonância cognitiva que a visão produz, sem necessidade de prova nem demonstração, afirma sem sombras tanto a realidade do objeto quanto a do sujeito.
Imediatamente no entanto a coincidência se abre numa falha geológica, numa fenda que “engolfa as imagens”, e o olho cai em falso entre as margens do real, entre o que olha e o que é olhado.[9] O ovo não se mostra mais tão apreensível como parecia, e o lapso vertiginoso que se instaura, incidindo na instantaneidade, é uma modificação do tempo. “Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo.” Olhado, o ovo “envelhece” instantaneamente, e recua para um remoto e primeiro ovo ancestral (pura efígie), traço de um inscrição originária que nunca foi, desde o primeiro momento, senão distância, separação, diferença. “Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido.” Toda visão é recortada pelo gabarito de uma primeira visão que nunca se deu como plenitude mas já como afastamento. O ovo visto reflete um primeiro ovo que nunca houve. Desse lapso originário vive a percepção, e é sobre ele que o texto transpõe sutilmente a velha questão do ovo e da galinha: o que se viu primeiro? o ovo que se vê ou o ovo que foi visto e criou o :padrão com que se vê o ovo? A charada irônica e inde’cidível versa então sobre o dilema filosófico entre o caráter emissivo ou receptivo do olhar, questão que dividiu durante Iongo tempo a filosofia, aqui posta em suspenso pelo jogo poético.
É porque perdido para sempre num passado onde nada se deposita que o ovo é também futuro: “ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo”. A fenda na visão alimenta a possibilidade, ou o desejo, de que se mostre aquilo que se esconde no visível, de que se veja a pura presença. Assim como contém a sua vertiginosa e inacessível gênese, o instante projeta também a sua escatologia, o seu apocalipse. Mas nem gênese nem apocalipse repousam em lugar nenhum. Passado e futuro, que se dividem ilimitadamente no instante, sinalizam o desencontro entre o olhar e a coisa, que não preenche o presente. O “olhar curto e indivisível”, mesmo que busque reter o ser em sua duração, recairá sempre na operação divisória do tempo, do eterno instante como forma vazia e superficial, “sempre já passado e eternamente ainda por vir.[10] Se indivisível (para captar a inteireza do objeto ovo) curto demais para experimentar a sua duração. Se longo (para acompanhar a duração) dividido em instantes separadores.
O vértice dessa descoincidência no texto de Clarice, e sua superação, é o esvaziamento do olhar e do pensamento, para que se toque a coisa. Como no zen, o conhecimento é uma operação de descodificação da visão e da linguagem, um silenciamento radical mas instantâneo, que mostra o invisível não como sobrenatural mas como desvela-mento do real (embora a palavra real também tivesse que ser apagada e zerada para que sobreviesse um contato com um algo real, não-prescrito, não-codificado, não-trilhado de antemão). “Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto.” O indizível que emana desse silêncio torna-se matriz irrepetível, geradora de um texto que glosa ilimitadamente a margem entre o vazio e a palavra, a atenção e o intervalo, a consciência e o inconsciente, para dizer pouco. (Sem adotar a brevidade oriental, o conto de Clarice prolifera como um fluxo de koans.)
“O ovo e a galinha” nos remete imediata e muito fortemente para esse deslocamento do olhar e do tempo que é o núcleo comum da visão profética e drogada quando polarizadas pela visão poética. No próprio movimento em que se multiplica em instantes descontínuos permanecendo o mesmo (como também o ovo, em sua proliferação), sempre outro e sempre igual, o tempo abre em ritmos desiguais e simultâneos, o agora, primórdio, o porvir. Essa percepção constitui-se no próprio modelo do visionarismo como modo de ler a realidade, e de vazar o código habitual que regula o tempo linear, cronológico , homogêneo.
Esse “tratado” de Clarice Lispector sobre a visão não se limita a comentar as vicissitudes do olho e do pensamento diante da coisa, mas cifra na própria escolha do objeto uma espécie de circularidade enigmática do olhar. Porque o ovo é uma espécie de objeto arquétipo, matriz e produto final, côncavo e convexo, a um só tempo um modelo de introversão (puro conteúdo oculto) e de extroversão (aparência sem sombra). Segundo as teogonias órficas, Chronos, o Tempo, “monstro polimorfo, gera o ovo cósmico que, ao se abrir em dois, dá origem ao céu e à terra e faz aparecer Phanes, o primeiro-nascido dos deuses, divindade hermafrodita na qual se anula a oposição do macho e do fêmeo”.[11] Assim também, num contexto nu de mitologia, o ovo é símbolo privilegiado da intersecção indissolúvel entre objeto e sujeito, capaz de suspender a oposição entre a aparição de dentro e a de fora, entre o espelho e o espelhado, o conteúdo e o continente, caráter passivo e ativo do olhar.
Mesmo assim, prototípico, alegórico, marca sublinhada e apagada de um real que hesita entre a consciência e o inconsciente, o eu e o Outro, o ovo não deixa de ser, no conto de Clarice Lispector, o ovo doméstico, cotidiano. O fato de que a visão vertical, metafísica, não se separe em momento nenhum do concreto, e que a dimensão a que ela remete seja sempre a da experiência, mais do que a da “teoria” ou da “fantasmagoria”, aproxima o texto de Glance daquilo que Walter Benjamin chamou de revelação ou iluminação profana. Falando do Surrealismo, e identificando nele um tipo de olhar que sonda o impenetrável no cotidiano, e o cotidiano no impenetrável, Benjamin localizou pedra-de-toque do visionarismo moderno. Postulou além do mais a ideia de que a transformação revolucionária da realidade estaria a depender de uma profunda interpenetração do espaço físico e imagístico (isto é, do desencadeamento das tensões acumuladas entre a organização material da sociedade e a ordem do imaginário coletivo, de cuja reverberação poderiam saltar descargas revolucionárias). Tal interpenetração potencialmente explosiva entre a natureza transformada pela técnica e o imaginário social seria dada a conhecer, ou a entrever antecipatoriamente, pelo viés da iluminação profana.[12]
Em suma, o profetismo benjaminiano apontou para o profundo enraizamento da dimensão política no imaginário, margem de um tempo que salta dos trilhos da história, sem abismar-se no eterno retorno do arquétipo. Aliás, impedir que isso aconteça é o grande desafio do seu visionarismo profano e revolucionário. A realidade se transforma na medida em que se põe em contato com uma outra experiência do tempo, que tem seu modelo na experiência solitária da iluminação profana, mas que poderia transformar-se revolucionariamente numa experiência histórica coletiva. Embora os tempos não ofereçam uma visão animadora dessa conversão das energias do êxtase em transformação social, ou então por isso mesmo, o pensamento complexo de Walter Benjamin, como pensamento dos cruzamentos, permanece como uma referência incontornável, de uma atualidade cristalina e esfingética. (“— O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. — Ovo por enquanto será sempre revolucionário.”)
A propósito da dimensão profética e poética, “materialista” e “antropológica”,, da iluminação profana, Benjamin faz alguns comentários no mínimo intrigantes sobre a droga. (Ele tinha o projeto de escrever um livro sobre o haxixe, do qual nos chegaram anotações e relatos de experiências pessoais.)[13] Temos de novo aí, agora em chave eminentemente filosófica, a convergência de poesia, profecia e droga. Como Baudelaire, ou como Henri Michaux, para quem o alucinógeno é fortemente associado a uma aventura especulativa, mais do que ao prazer que também traz, Benjamin se aproxima e se distancia da droga, vendo nela uma espécie de auxiliar técnico. Em especial, faz questão de não confundi-la com a própria revelação profana, para a qual ela pode se constituir num “estágio preparatório”.. Ao lado disso, reconhece muito Curiosamente o caráter de droga em coisas que se pensa estarem entre os seus antípodas: a reflexão “que é um narcótico eminente”, “sem falar daquela [droga] mais terrível […] — que ingerimos na solidão, nós próprios [o grifo é meu][14]. A estratégia de não-endeusamento do ópio ou do haxixe; que acompanha a defesa do caráter profano da experiência visionária, resulta numa definição “ampla” e irônica de drogas como todo agente, interno ou externo, de transformações psicofísicas, nas quais se incluem tanto o pensamento filosófico, o próprio ego e aflanêne, quanto os narcóticos, os estimulantes e os alucinógenos. (“O leitor, o pensador, o indivíduo que espera ou passeia são tipos tão elucidados quanto o comedor de ópio, o sonhador ou o extático. E são mais profanes”)[15].
Octavio Paz diz também coisas interessantes no mesmo sentido, ao interpretar a obra do poeta/pintor Henri Michaux. “A pintura de Michaux nos emociona por sua veracidade: ela é um testemunho que acusa a irrealidade de todos os realismos. Isso que eu chamei, na falta de melhor palavra, de sua exatidão, é uma virtude que transparece em todos os grandes visionários. Mais que um atributo estético, é uma condição moral, é preciso valentia, firmeza e pureza para ver de frente os monstros que são os nossos.”[16] Segundo ele, Michaux busca um acercamento à materialidade tanto pelas vias do seu longo contato com os alucinógenos, que converte em obra poética, ensaística e plástica, quanto pelo seu contato íntimo com as próprias matérias pictóricas, que ganham um valor de sondagem comparável ao das drogas. Enquanto o combate da pintura se trava na superfície tensionada, o outro combate leva o campo da materialidade para os confins do sujeito, no mítico lugar em que o corpo e a mente se encontram (mítico mesmo no sentido freudiano, de que as pulsões, enquanto ponto de contato inapreensível entre o psíquico e o somático, “são nossos mitos”). Essa cena ou campo de presentificação das pulsões problematiza o sujeito e a arte que se tangenciam no lugar de um olhar “figural” (olhar que desvê a representação através das marcas do inconsciente).[17] (“Seus quadros são menos janelas que nos dariam a ver uma outra realidade que buracos e aberturas perfuradas pelos poderes da outra borda.”)
E finalmente, diz Octavio Paz, há outra droga, interna, que age em nós: o humor, enquanto líquido orgânico produtor de disposições psíquicas. A medicina medieval e renascentista atribuía a melancolia à influência combinada de Saturno e da bile negra. “As afinidades entre o temperamento melancólico, o humor negro e a predisposição às artes e às letras não cessaram de intrigar os antigos […] O calor da bile é próximo da sede da inteligência, razão pela qual o furor e o entusiasmo tomam conta desta, como ocorre às Sibilas e às Bacantes, e todos os que são inspirados pelos deuses.” A melancolia seria assim, no Ocidente, a “doença dos contemplativos e dos espirituais”, vale dizer, dos visionários — intuitivos e introvertidos —, e a bile negra a sua droga saturnina. Uma longa corrente de melancólicos passaria através de Heráclito (citado como tal por Aristó-teles nos Tópicos), Ficino, Durer, Donne, Juana Ines de la Cruz, os românticos e os simbolistas, antes de desembocar no próprio Michaux, que Paz identifica ao príncipe noturno (nome de um de seu quadros).[18]
Pode-se fazer contraponto desse elenco de melancólicos citado por Paz com aquilo que se disse da melancolia de Ulisses, instalada também no sentimento do tempo: “Sempre ainda por vir, sempre já perdido, o lugar onde cantam as sereias significa a impossibilidade de realizar a ânsia por um fim, por uma destin.ação última”.[19] Expatriado no tempo, nem o repouso final nem o retorno a uma Ítaca originária (que não se deixa mais reconhecer como a mesma) são possíveis a Ulisses. Sua relação com o canto das sereias, o abismo de infinito que ele contém e o recalque que se impõe sobre ele, seria paralela nesse sentido à relação do visionário com a visão. Por outro lado, o tema nos reconduz por outra trilha a Walter Benjamin, que viu na alegoria barroca, regida pelo príncipe enlutado, e emitindo sinais lancinantes para o futuro moderno, o domínio por excelência da melancolia sob o signo de Saturno.[20]
Proponho-me a falar sobre o uso poético das drogas: cruzamento entre a droga e poesia convergindo para a profecia. Nesse sentido, quando estiver falando de relatos de poetas sobre alucinógenos estarei falando de alguma maneira dessa outra droga: o humor melancólico, a bile negra. Acontece também que isso tudo tem uma história complexa, cheia de vieses que é preciso percorrer, mesmo que sumariamente. As aceleradas alterações do uso clandestino das drogas no mundo da repetição em série, e suas implicações, transformam completamente o seu sentido. Hoje por exemplo as drogas não significam mais o que significavam há dez anos atrás, muito menos há vinte, e quanto mais há mil. É preciso mapear minimamente esse terreno mal conhecido e minado por toda sorte de estereótipos.
Entre muitos aspectos relevantes, as drogas sintomatizam um ponto de encaixe e desencaixe entre as formas de produção social e as demandas do imaginário. Se o ego dos indivíduos, além de trabalhosamente sustentado pelos sujeitos, é fabricado socialmente, as drogas, enquanto agentes de desinvestimento ou de hiperinvestimento do ego são sintomas de pontos múltiplos de descolamento do social como tecido homogêneo.
É possível começar assinalando a polaridade extrema, visível hoje, entre dois modos de uso que dividem a história da droga, e entre os quais oscila certamente o espanto de quem os olhar.
Por um lado, há traços fortes de uma cultura imemorial e artesanal da droga que se espalha entre o Oriente Médio, a Índia, a África e a América. Os sinais de uso cultural das drogas na Europa parecem ter sido, mais do que em qualquer outro lugar, recalcados. O que caracteriza essa cultura (dos opiáceos, do cânhamo, da coca, dos cogumelos, raízes, flores e cipós alucinógenos) é o seu uso ritual, terapêutico, divinatório, enteógeno (capaz de fazer participar da divindade), uso cercado de uma série de prescrições, precauções, tabus. Assim, no belíssimo relato de vida da índia mexicana Maria Sabina, “la sabia de los hongos”, conta-se que os cogumelos são ingeridos somente durante as “veladas” noturnas, sob a orientação cerimonial da vidente, com suas preces cantadas e danças, com fins curativos, dentro de uma fase de abstinência sexual, aos pares (um cogumelo representando o masculino e outro o feminino), sem olhá-lo demais e sem pronunciar o seu nome sagrado (Maria Sabina gosta de chamá-los “santinhos” ou “meninos santos”).[21] Assim também, na intrigante série de Carlos Castarieda o feiticeiro Don Juan o introduz aos poderes da erva sob á condição de que o aprendiz se retire para um lugar isolado, plante e cultive o vegetal, dançando e proferindo em torno dele uma série de ritos até que a droga seja colhida por ele mesmo e só então experimentada (um trabalho interior antecipa e acompanha o desenvolvimento externo da planta). Não por acaso Artaud, escrevendo sobre o México, constatava: “o peiote, eu o sabia, não foi feito para os Bancos […]. Um Branco, para esses homens Vermelhos, é aquele que os espíritos abandonaram”.[22]
No polo oposto ao do vegetal cultuado temos a droga serializada (produto de transformação laboratorial que implica uma indústria clandestina com aspectos multinacionais e paraestatais). A droga produzida em escala repetitiva, tomada clandestina ou semiclandestinamente, assume seu lugar entre os demais produtos de consumo generalizado. Trata-se de uma mercadoria com certas propriedades singulares. Hiper-investida de desejo ou necessidade, ela concentra em si, com máxima força, todo o ambíguo potencial de expectativa e decepção que as demais mercadorias podem conter, prometendo, cumprindo ou frustrando. Mas girando num mercado paralelo, circuito de droga pesada, duplicação espectral do mercado branco, ela torna-se a mercadoria por excelência, a “mercadoria final”, realizada em seu máximo de perversão. Como diz William Burroughs, o traficante não vende mais a mercadoria para o consumidor, mas o consumidor para a mercadoria (ele a suplica); a transação progride não através da promoção e melhoria do produto mas pela piora e pelo rebaixamento do cliente.[23] Burroughs, o mais radical representante da geração Beat não diz isso por moralismo, mas para levar o culto da droga, no extremo oposto do seu uso ritual e como transporte para outras “esferas”, a um estado de intranscendência radical. Assinalando a forma extrema do encaixe deslocado entre o fármaco e a reprodução social, dentro de uma ordem que não conheceria outro sentido senão o da repetição, Burroughs assegura ter tomado todas as drogas possíveis, por todas as vias possíveis, e ter constatado que elas não guardam nenhuma revelação última que não seja o hábito. Esse é o horizonte profético, pós-utópico e pós-moderno, negativo, que opõe nitidamente Burroughs a Ginsberg, seu companheiro de geração, inspirado no modelo do vate xamânico e utopista. O lugar estrutural de Burroughs é o do provador-de-venenos, sintoma via detrito, forma pura do pharmakós phármakon exercendo a sua função purgativa extrema através de uma farmacopeia que não revelaria em última instância nem infernos nem paraísos, mas um purgatório infinito e tautológico.
Ambivalente na sua origem, cruzada entre as articulações da cultura e o continuum indizível da natureza (não-dito, interdito, maldito), a droga é tabu. No mundo sacrificial pré-moderno, tabu implica cuidado, zelo, reconhecimento dos perigos e poderes, mediadores, herméticos, do fármaco. No mundo serial, onde se rompe o reconhecimento dessa ambivalência, o tabu que cerca a droga não representa cuidado, zelo, e conhecimento, mas clichê, desconhecimento, cisão do símbolo original em duas versões: veneno (na classificação oficial, que se faz acompanhar de um anticonhecimento médico-policial) ou panaceia (numa prática difusa onde ela aparece como o grande remédio). Agora mesmo, mais uma das dificuldades desse tema é driblar a irresistível redução dualista de um certo leitor aferrado ao tabu que não concebe o assunto senão tratado pelos modos morais da apologia ou da condenação. Ora, uma droga é uma droga é uma droga é uma droga. O meu problema, no caso, é a visão e o entendimento do caráter irredutivelmente ambivamente do símbolo, bem como do caráter problemático da cultura.
Uma pequena digressão musical. O uso ritual das drogas corresponde ao domínio pré-moderno da música modal, praticada em contextos solenizadores ou sacrificiais. O uso repetitivo corresponde ao domínio moderno ou pós-moderno da música pós-tonal, já na sua versão minimalista (em contexto “culto”) ou repetitiva da massa do rock pós-punk (para os quais Burroughs corresponderia a uma espécie de John Cage). Entre essas duas formas vemos, em música, todo o arco da música tonal praticada no contexto de representação concertística, mas vivendo ao longo da sua história a brilhante curva da sua desintegração. Podemos pensar o retorno das drogas na cena europeia como acompanhando essa crise da representação e do sujeito, que é da tonalidade, bem como da verossimilhança clássica e realista.
Depois de uma longa história de ocultamento, já que há vestígios, mas só vestígios, do culto das drogas no Ocidente (um especialista americano sugere que os elfos e gnomos seriam metáforas residuais de um antigo culto de cogumelo)[24] o ópio retorna paulatinamente à cena da Europa como medicamento, e depois como experiência, curtição ou refúgio (junto com o haxixe). Do fim do século XVIII ao século seguinte, espalhando-se depois entre simbolistas e modernistas, muitos poetas escreveram sobre (ou sob) efeitos de drogas. Há uma linhagem de textos desse gênero, ligada à tradição romântico-radical-moderna, passando pelo “Kubla Khan” de Coleridge, as Confissões de um comedor de ópio, de Thomas de Quincey (dois dos mais importantes românticos ingleses), os Paraísos artificiais de Baudelaire, o Opium de Cocteau, o “Opiário” de Alvaro de Campos/Fernando Pessoa. O interesse dos poetas coincide, segundo Octavio Paz, com o declínio das musas como doadoras da visão poética.[25] Um movimentado e movediço clube dos escritores em êxtase (havia um Clube dos Haxixins em Paris fundado na altura de 1844, frequentado por Baudelaire, Balzac, Nerval, Gautier) estaria às voltas, além de outras coisas, com os próprios fundamentos da criação num tempo em que as potências divinas (deuses, demônios, musas) teriam deixado de falar.
A interpretação de Paz é interessante, porque a entrada das drogas no cenário da poesia sinalizaria, no próprio Baudelaire, uma espécie de compensação — profana — pela perda daquele vestígio de sagrado na obra de arte, a sua aura, bem como daquilo que Benjamim chama memória involuntária, isto é, a disposição associativa espontânea e intensamente investida de afeto, que é básica para a experiência lírica, e cada vez mais problemática no mundo moderno (memória involuntária pode figurar aqui como o nome profano das Musas).[26]
Certamente, o haxixe dificulta extremamente a memória voluntária, mas deixa todas as sensações invadidas por feixes conotativos sem margens, prorrompidos em fluxos involuntários. Baudelaire descreve as (quatro) fases do efeito, segundo sua experiência.[27] Num primeiro momento, emerge uma “maravilhosa inteligência do cômico”, provocando o riso em efeito-cascata (um demônio histriônico parece tirar tudo do seu lugar habitual, embora tudo permaneça impecavelmente lá). O relato de Baudelaire é ele mesmo deliciosamente engraçado. Entre outras histórias que conta, há a de uma simpática doméstica que toma a droga sem saber, e que diz sentir-se “toute drôle, toute je ne sais comment”. Num segundo momento, a disponibilidade para os múltiplos sentidos do inabitual tende para o lúdico-poético, a extrema acuidade para o jogo de palavras, o senso das correspondências e sinestesias, a alteração da sensação do tempo (eternidades brilham num minuto e “de tempos em tempos a personalidade desaparece confundida com os objetos exteriores”). A terceira fase é a da beatitude, o êxtase (“posso ter jantado mal”, diz o drogado, “mas sou um deus”). Dá-se uma suspensão daquelas contradições que alimentam a dúvida filosófica, e os dilemas entram em eufórica suspensão: “Todos os problemas filosóficos resolvidos. Todas as árduas questões contra as quais esgrimam os teólogos, e que fazem o desespero da humanidade pensante, são límpidas e claras. Toda contradição tornou-se unidade”. A quarta fase é a aterrissagem forçada, a cobrança do excesso: tudo que foi dado é de certa forma tirado sob forma de ressaca e fraqueza. Os deuses do haxixe cobram o que dão, e punem a “ímpia prodigalidade com que fizeste um tão grande dispêndio de fluido nervoso; depois de ter jogado a personalidade aos quatro ventos do céu, é preciso reagrupá-la e concentrá-la”.
Baudelaire se inclui (como Michaux e Benjamin) entre aqueles que desenvolvem uma relação ambivalente com os alucinógenos (tecendo em paralelo o elogio irrestrito dos poderes embriagantes e solidarizantes do vinho). Os paraísos artificiais oferecem (como o fará também a arte na modernidade, de certa forma), miseráveis milagres (a expressão é de Henri Michaux, que diz — depois de tê-las experimentado todas mais que detalhada e longamente, bem entendido: “As drogas nos entediam com seu paraíso. Que elas nos dêem pelo menos um pouco de saber”.[28]
É possível imaginar perfeitamente o quanto o sentido lúdico, sinestésico, musical, das viagens visuais, e linguísticas provocadas pelo haxixe e pelo ópio, seu efeito figural (isto é, intensamente associativo, a-lógico, a-temporal e não-referencial) combinam com esteticismo simbolista, e a autonomia conferida a partir de então ao poético. E isso não se reduz simplesmente à fórmula verlaineana (“de la musique ‘avant toute‘ chose”), no sentido de uma ênfase no caráter ambíguo, associativo e sonoro das palavras. O que entra em jogo é a reversão do ego a partir de um lugar que envolve o sujeito, os sentidos e o tempo. Nas suas cartas de 1871, onde declara a aventura poética como vidência (“ trabalho para tornar-me vidente… Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos”), Rimbaud introduz a sua conhecida fórmula “je est un autre” (Eu é um outro).[29] A desregulagem do habitat egóico (suas trilhas usuais, seus hábitos perceptivos) dá a ver fluxos do real inacessíveis ao olhar comum. Essa reversão do ego cria sobre mundo dos objetos um efeito de reverberação em abismo. O “desregramento dos sentidos” passa a ser tomado como uma técnica poética. (Mais tarde, Rimbaud verá nela os mesmos limites já comentados aqui a propósito de Burroughs e Michaux: as trilhas do desconhecido trazem de volta o hábito, à medida que seus sulcos se aprofundam e que a repetição recodifica. O oculto tem uma enorme capacidade de se ocultar.) Na mesma trilha da abertura simbolista, a linguagem surrealista concebe o campo da poesia como sondagem de uma ordem oculta, inconsciente, procurando os vasos comunicantes entre realidade visível e invisível.
As anotações de Walter Benjamin recolhidas em Haxixe, datadas em torno de 1930, os ensaios poético-pictóricos de Henri Michaux, e o testemunho das visões de Aldous Huxley (ambos dos anos 50) assim como o belo texto de Paulo Mendes Campos sobre o ácido lisérgico, de 62,[30] estão numa espécie de intermezzo reflexivo entre o surrealismo e a explosão contracultural no mundo de massas, da geração Beat ao rock. É um período em que os antigos e milenares narcóticos e alucinógenos vegetais, objetos da manipulação laboratorial avançada dão lugar cada vez mais a drogas sintéticas como a mescalina e a psilocibina (derivados do peiote e dos cogumelos, como a heroína já o era do ópio e a cocaína da coca) e, num nível mais complexo de construção, o ácido lisérgico (LSD). Transformada em assunto fechado da indústria química, a droga estava agora às portas da disseminação serializada no mundo das massas. Enquanto a ciência experimentava os poderes e as possibilidades do seu objeto, os poetas experimentavam através da droga as possibilidades e as impossibilidades do próprio sujeito, acercando-se ao núcleo em que o ego e a linguagem se deslocam frente a um transreal em aberto, conjectural, universo em obras.
Seria interessante comparar a experimentação do sujeito, levada a efeito pelos poetas através da mescalina e do LSD (às vezes, sob o olhar vigilante do cientista), com aquela experimentação sobre a natureza que se realizava à mesma época na física, e que levou, na esteira da observação cada vez mais vertiginosa das partículas subatômicas, à teorização da mecânica quântica. Ambas as sondagens, sobre o sujeito e o objeto, levam a observações desconcertantes, paradoxais, surpreendentes, sobre um real que não se apresenta senão sob a perspectiva de múltiplos verossímeis sem repouso. No limiar indecidível entre partícula e onda, os confins observáveis da matéria são construções inseparáveis do instrumento de observação, o “olho” que os observa, assim como o sujeito é um feixe de inverossímeis em permanente construção e desconstrução. O real, no seu polo objetivo e subjetivo, revela-se, igualmente, obra aberta: duplo horizonte sem fundo, no vértice da arte e da ciência, em que se desenha para o Ocidente o reencontro entre as concepções de sujeito e de objeto (repensáveis, num mesmo movimento, como puro movimento, energia que interpreta energia).[31]
Contrapondo-se à proibição generalizada das drogas, das mais artesanais às mais tecnológicas, segue-se a investida comportamental e contracultural da geração Beat, que apostou na possibilidade de uma generalização utópica da viagem alucinógena. Embalada pela liberação da aventura existencial promovida na grande onda dos anos 60 (e que também teve o efeito de abrir ao mercado de massa todos os espaços de imaginário) a poesia Beat surge em paralelo com o disparo do rock, cuja expansão implicará a difusão maciça de uma estética e de uma existência permeadas pelas drogas.
As drogas alucinógenas cultuadas na década de 60, como a mescalina e o ácido lisérgico, que acompanham o neo-romantismo hippie, estão ligadas à utopia contracultural da implantação de uma vida comunitária à margem do tempo da concorrência. Essas drogas desmobilizam o aparato do ego, o tempo organizado pela sucessividade causal, e são incompatíveis com a regularidade do desempenho produtivista. Dos anos 70 aos 80, a cocaína toma o lugar privilegiado que os alucinógenos tiveram na primeira onda das drogas no mundo das massas, e isso é fartamente significativo. O todo-poderoso pó é pós-utópico, não contesta o tempo de concorrência, ao contrário, é um acelerador egoico, não só compatível como inerente ao mundo da repetição acelerada. (Se os alucinógenos remetem ao Id, a cocaína hiperboliza ou hiper-realiza o ego.) As proporções do tráfico e a guerra da droga fazem do comércio paralelo de cocaína uma poderosa rede paraestatal (militar, econômica, política), réplica perfeita que duplica o poder instituído desde dentro, como uma falha geológica. Um porta-voz do governo americano identificava na droga o inimigo público número um hoje: o inimigo preferencial do Estado, o seu outro, deixa de ser o invasor, o alienígena, o oposto (o comunismo) e passa a ser reconhecido como o mesmo, a sombra, o duplo, o de dentro, frente ao qual não se consegue estabelecer distância (mesmo que a Bolívia possa ser projetada como o Vietnam dessa guerra). Um inovação recente, o crack (cocaína barata) acelera a repetitividade desse circuito. Enquanto isso, o uso da maconha no mundo de massas ganha uma estabilidade parecida com a da calça jeans (na sua capacidade de exceder divisões ideológicas, de classe, de gosto existencial mais ou menos refinado).
Vamos aos poetas. Henri Michaux diz que, sob os alucinógenos (no caso, ele está falando da mescalina), os objetos não ficam iguais a si mesmos, mas mudam incessantemente a olhos vistos.[32] O nosso apoio habitual nos limites dados pela realidade dos objetos cede, porque estes não se opõem mais a uma espécie de “mobilidade transformadora” que toma conta de tudo. Com isso, vacila tanto a estabilidade do mundo objetivo quanto a do sujeito. A “perda” dos limites, dados e garantidos pela identidade das coisas, pode levar tanto a uma espantosa sensação de plenitude quanto a uma arrasadora falta (Artaud aproxima os que tomam drogas daqueles “que têm em si uma falta, genital e predestinada”, ou aqueles, poetas “de seu eu”, que sentem, mais ou antes que os outros homens, “aquilo que falta desde sempre à vida”).[33] O sentimento “de pertencer ao ilimitado”, no “outro lado das coisas”, alterna (ou funde) o’homem divinizado ao feto levado pelo turbilhão da correnteza. Extrema felicidade e angústia acompanham essa investida do “processo primário” na consciência, fazendo-se figuralmente visível.
Depois de um período inicial de náuseas e mal-estares, um “raio branco bate no occipital” e prorrompe uma visão regida por brilhos e ondulações contínuas, que caleidos-copizam as formas, aliterando e rimando todo o campo visual em figurações energéticas: É como se as formas não pudessem mais ser percebidas como configurações estáticas, mas só como fluxos, rastilhos de movimentos luminosos que as redesenham e acintosamente as interpretam. O real se constrói sem cessar, e não cessa de se contruir, numa profusão de verossímeis inverossímeis. O olhar se deixa levar por um princípio ornamental (uma ornamentogênese, diz Michaux) que descobre arabescos, gregas e iluminuras prodigiosas nas mínimas texturas. Formas de minaretes: o Islã não as criou, sugere Michaux, mas as imitou do haxixe, assim como a levitação do tapete mágico. Os rendilhados e as cortinas fascinam a atenção, observou Huxley; elas “são intérpretes da linguagem dos ventos”, disse Benjamin, e captam a atenção do “fumante absorto em seu jogo ondulatório” como “uma bailarina consumada”.[34] O ornamento traz à tona propriedades texturais dos objetos nas quais jamais prestamos atenção (só na infância, ou em estados febris). Ao investir a visão das coisas mais diferentes com as propriedades caleidoscópicas dos arabescos, o ornamento confere a elas uma multiplicidade de sentidos e de interpretações (o que é um traço geral do êxtase). Além disso, os objetos aparecem multiplicados por si mesmos em vertiginosas séries paradigmáticas. Tudo é atravessado de energia ondulatória, que se irradia das coisas e da visão (impossível decidir, nessa oscilação exposta, entre o dado emissivo e o dado receptivo do olhar, pois a própria percepção se percebe como um jogo onde diferentes escalas energéticas interpretam energia). Algo se configura jogando através do sujeito e dos objetos, enquanto os desconstrói sob a aura de uma patética neutralidade.
As ondas tornam-se onipresentes. Michaux supõe que as ondas cerebrais mais lentas se fariam perceptíveis, seja em angélicos movimentos sinusoidais ou em paroxismos rítmicos, percorrendo os objetos visíveis, e impondo sobre eles sua tendência. As formas eludidas e mutáveis (que resistem perenemente a se deixar capturar completamente pelo olho, numa indefinição de alta definição) obedecem às modulações sísmicas dos padrões ondulatórios: dominando a visão, uma onda triangular trianguliza um quadrado, que fica alternando entre as duas formas.[35]
Um fisionomismo percorre as coisas fazendo com que nada deixe de ter face, visagem, seja um sapato, um tomate ou uma colher. Uma total pregnância de sentido (“mil faces secretas sob a face neutra”) acompanha silenciosamente a forma, textura, cor e brilho de cada coisa. Elas “trocam olhares cúmplices com tudo o que é insignificante, mesquinho e banal. Como se respondessem ao pestanejar ambíguo do nirvana”, num linguajar sem código.[36]
“Na ilimitada ambiguidade de todas as coisas”, “a eternidade dura um átimo”. Multidões de pontos, imagens, pequenas formas circulam entre “uma massa enorme de momentos” em sucessão prodigiosa. “A coexistência desse tempo de momentos multiplicados com o tempo normal, não inteiramente desaparecido, e que volta por intervalos, obliterado somente em parte pela atenção voltada sobre o outro (tempo), é extraordinariamente des-realizante”.[37] Os atos não duram, subtraem-se à duração, enfileiram-se, multiplicam-se e desgarram-se para regiões de tempo “autônomas” e disparatadas.
Do mesmo modo o espaço multiplicado em pontos inumeráveis (e bem “destacados”) convive com o espaço “normal” (que emerge à atenção de tempos em tempos). Essa multidão de tempos e espaços fustiga em todas as direções a memória, o futuro, o presente, flagrando relações inesperadas, luminosas, estupidificantes, que gostaríamos de reter mas que a multidão dos tempos e espaços que continuam a vir engolfa e faz esquecer (aliás, a memória fica colada ao imediato, sendo quase impossível dar perspectiva ao tempo).
Michaux observa uma conexão entre a sensação do tempo e estado muscular. As drogas alucinógenas (especialmente a psilocibina, extraída do cogumelo mexicano) desarmam a prontidão ligada à tensão muscular, à urgência do momento, à conquista, à competição, à vitalidade, ao record, à agressividade. “O músculo é uma das pontes do presente ao futuro.[38] Nisso a psilocibina é o contrário da cocaína”, tendente à explosão muscular e ao sentimento de apropriação do tempo no salto incessante de presente a futuro.” Visivelmente, os alucinógenos ralentam e a cocaína acelera. As diferentes prioridades de ocupação do tempo e do espaço em cada caso correspondem a duas relações opostas com a ordem da propriedade.
Num belo e transparente texto sobre a experiência do ácido lisérgico (de 1962), Paulo Mendes Campos nota essa espécie de deslocamento entre o tempo e a pessoa, que é fundamental para o visionarismo: “O tempo não está interessado em nós e portanto nós não podemos estar interessados nele. O tempo existe: é fenômeno que não nos concerne e do qual não podemos extrair nenhum elemento de angústia ou prazer”.[39]
O ego descolado do tempo, não plugado na corrente do tempo, é um outro, e isso não acontece só por um problema de prontidão muscular, mas porque a linguagem se desterritorializa, e corta o cordão umbilical que a liga ao sujeito. Acontece que a apropriação da linguagem pelo sujeito se dá através do investimento de certos signos-chave que os linguistas chamam dêiticos (signos cuja referência, incompletamente estocada no código, está a depender da circunstância existencial — pessoal, temporal, espacial — em que se dá a enunciação).[40] É o caso de palavras como, hoje, amanhã, aqui, agora, isto, aquilo, eu, você, que designam a cada vez circunstâncias, pessoas ou objetos diferentes dependendo do contexto em que se dá a sua atualização na mensagem. O principal entre os dêiticos é a própria palavra eu, cuja delicadeza e força estrutural estaria indicada no fato de ser a última das palavras decisivas da língua que o sujeito aprende a manejar, e a primeira que o afásico perde. A criança aprende que o signo eu admite investir o eu e o outro (o tu também é eu e o eu também é tu): fazer esse câmbio é consumar a sua investidura no domínio da língua. Mas ao fazê-lo, aprendendo então a dirigir e a embrear pessoas, tempos e espaços na linguagem, o sujeito tem que esquecer parcialmente que é um outro, acreditando na ficção da linguagem que lhe permite de resto organizar, delimitar, mapear a terrível infinitude do espaço e do tempo. O tempo é usualmente concebido segundo índices e metáforas espaciais fictícios (daqui pra frente…, mais adiante…, tudo o que ficou pra trás…), como se o futuro estivesse se abrindo na frente dos olhos, sob o domínio da visão, numa linha progressiva no espaço, subordinada à marca, ou ao marco, do ego. Na experiência alucinógena cai a rede dos dêiticos (como se usaria a expressão para a queda de transmissão de energia elétrica numa cidade), e o ego, não engrenado com o tempo, não o dirige. Isto se produz junto com a visão — espantosa (embora não haja nome para esse assombro como não há para a morte) de um universo a descoberto, que a linguagem não recobre com suas nomeações, habitado por coisas violentamente singulares, irredutíveis, visíveis em cada granulação, cada poro, como se tivéssemos retirado uma membrana dos olhos.[41]
Rompido o cordão dos pronomes, vínculo corporal com que o sujeito enlaça os signos, há uma queda não para fora, mas para dentro da linguagem (galáxia descentrada percorrida em toda parte por rastros de sentido e não-sentido, ou de um sentido maior e nenhum). Não funcionam mais aqueles intercâmbios entre código e mensagem, aquelas embreagens que caracterizam a dêbcir, e que permitem ao sujeito apropriar-se da linguagem para manipular imaginariamente o tempo, o espaço, a pessoalidade. Em vez disso, parece que se dá uma espécie de coincidência tendencial entre mensagem e código, num estado de linguagem em que cada palavra é quase o nome próprio de si mesma. Em tais condições, a sintaxe naufraga: “só queria que não me levassem para onde eu vim”, escreve penosamente Paulo Mendes Campos (frase cheia de ressonância afetiva que não consegue designar, por insuficiência dêitica, o outro tempo, o outro estado: não queria retornar àquela “normalidade” de onde, ou da qual, eu vim).[42]
Se o drogado perde o domínio discursivo, o escritor viaja por esse campo aberto, fundando nele um novo lugar de enunciação, e compatibilizando a linguagem usual com a “figural”. “Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo.”
Todas as “quinquilharias” mais banais e risíveis do mundo perpassadas (ou alternadas) pelas mais profundas das “intenções teológicas”, isto é (nos termos de Benjamin), tudo aquilo que tem lugar “no âmbito da vida ativa” transferido in totum para o “âmbito da contemplação”. O mundo “parece ser o mesmo”, isto é, “todos os eventos poderiam ter se passado no mesmo espaço”, mas o espaço, que não é senão pura relação, é totalmente outro. Essa verdade, reconhece Benjamin, é “algo débil e flácida” do ponto de vista teórico (isto é, se submetida diretamente à “inteligência”), mas implica uma “aguda percepção”, isto é, uma experiência insubstituível, que “se verifica plenamente quando entra em jogo a devoção, diante da qual tudo tende ao bem, assim como o espaço, sob a ótica da fantasia, parece abrigar todos os eventos possíveis”.[43]
A tendência ao bem, ao mal, ao caráter paradisíaco ou satânico do mundo, às vezes em alternâncias sucessivas como as dos pistons de uma máquina, oscilando entre o puro e o perverso numa dualidade fanática, indicia essa demanda de sentido subjacente ao êxtase, que o formula às vezes como uma sucessão rapidíssima de polarizações e despolarizações: sins e nãos, afirmações e negações vertiginosas da congruência do mundo. Que serenam, num dado estado regido pela ondulação sinusoidal (segundo Michaux), sob a qual o universo se dá como puro, de uma “total homogeneidade energética”, perfeito em seu absurdo inacabamento, toda a multiplicidade de suas vibrações, das maiores às mais ínfimas, em fase. (Veja-se que esse é exatamente o roteiro das visões no Apocalipse de são João.)
Os relatos tocam assim nesse lugar de onde se entrevê um absoluto, vislumbre de um uno que não deixa de se apresentar em meio ao turbilhão dos simulacros, como lugar de absoluta não-violência. Configura-se aí uma espécie de platonismo às avessas, que não se eleva para longe da matéria na direção da Ideia ou da Forma, mas mergulha ou flutua nela até traduzi-la em puras escalas energéticas, até percebê-la, no vazio que a habita, como aquele limite inacessível que se furta à percepção: a pura presença. Tão Ionge, tão perto.
Para o poeta, a visão terá que convergir para aquele “reino das palavras” em que ele “penetra surdamente” à procura da poesia, como no poema de Drummond.[44] Sua matéria serão as palavras em “estado de dicionário”, tecido de significantes se apresentando um ao outro, numa mobilidade infinita, onde o ego não firma a sua baliza num lugar fixo, nem mantém a distância que cria o referente como “termo objetivo”. Em algum lugar, “a poesia elide sujeito e objeto”, põe em abismo sujeito e objeto perante as palavras, imersas em sua neutralidade de esfinge. O poeta é um mediador hermético e órfico: quer ir ao avesso da visão e voltar. Ou não. Mas de algum modo deve vazar esse outro estado da linguagem no seu estado comum, até como se fossem o mesmo.
O drogado é apossado, no limite, pelo demônio da visão, que se antecipa à linguagem e ao imaginário, dominando-os à sua maneira. Pode-se dizer que o esquizofrênico vive como perda (ou como impossibilidade de alternativa) aquilo que o drogado quer ganhar com a produção de uma “esquizofrenia experimental”. Se for poeta, ele não pode escrever obra em plena alucinação: não pode embrear, mesmo que ficcionalmente, o discurso, não pode criar contexto (pois se vê imerso num mundo de representações sem margens onde cada palavra, tomada por uma intensa significância fisionômica, é conotação incontrolável). O relato deixa rastros, notas de passagem, índices de intensidades ausentes. É o caso da poesia/pintura sismográfica de Michaux, sinais do terremoto, nervuras impregnadas de um caráter derrisório e fecundo, pois acabam por ser o índice sintomático e exemplar da arte moderna corno miserável milagre, “iminência de um pensamento” que é “pensamento da eterna iminência” (como disse dela Maurice Blanchot). Ou Borges: “A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer alguma coisa, ou nos disseram, e não deveríamos tê-lo perdido, ou não estão a ponto de dizer; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético”.[45]
A visão, no mundo moderno, arte ou profecia, é aquilo que escapa, que não se fixa na linguagem dos homens, que recusa a fórmula ou a repetição, ou que não se apresenta, não se deixa ver. Borges conta que o poeta Coleridge, na altura de 1798, tendo tomado uma dose médica de ópio, adormeceu e sonhou inteiro um magnífico poema de trezentos versos onde se descrevia o palácio de Kubla Khan.[46] Ao acordar, escrevia as primeiras dezenas de versos quando foi interrompido pela visita de um alfaiate (que parece ter encarnado, segundo Carpeaux, o próprio demônio, moderno, do prosaísmo, pois todo o restante do poema se desvaneceu como imagens na água, depois que uma pedra mergulha definitivamente no fundo de um poço). Anos mais tarde, depois da publicação do Kubla Khan, conta Borges, uma história universal persa, publicada fragmentariamente em Paris, vem a revelar que Kubla Khan, o próprio, também sonhara o seu palácio, antes de fazê-lo construir. A analogia imprevista entre os dois eventos, desconhecida por Coleridge, dá mais força ao caráter intenso e inacabado da sua visão. “Que explicação preferiremos?”, pergunta Borges, que, embora se declare participante do “grêmio” daqueles que recusam a hipótese sobrenatural, preferindo a do acaso, reconhece as explicações “que transcendem o racional” como “mais encantadoras”, terminando por sugerir que talvez “um arquétipo ainda não revelado aos homens, um objeto eterno […] esteja ingressando paulatinamente no mundo; sua primeira manifestação foi o palácio; a segunda, o poema”. A oscilação borgiana entre a explicação racional e a explicação “mais encantadora”, com toda a ironia distanciada com que ela se apresenta, toca no núcleo da ambivalência entre o sagrado e o profano que é a condição da visão no seu estado atual. Diante do enigma, o sagrado nomeia a sua vertigem com o nome de Deus, o profano nomeia a mesma vertigem com o vazio e o acaso. A profecia moderna é a frágil tangência e a linha de fuga dessas duas nomeações. Enquanto nomeações, e com todas as consequências disso, elas divergem (e a modernidade é o corte, dessacralizador, que fundou essa divergência). Enquanto visão, da qual o jogo estético é um sucedâneo, elas podem ser uma só (pois a contradição entre o sentido transcendente e o não-sentido não é excludente na lógica visionária). Walter Benjamin não pode ser entendido sem a inclusão desse suplemento visionário: o mais agudo intérprete da modernidade trabalha com categorias tradicionais (aura, analogia, iluminação, redenção) porque não vê o tempo moderno a partir do corte dessacralizante que jogou o sagrado para a ordem do recalcado (assumindo o recalque), mas vê o corte como fundador ambivalente da modernidade. Sem recalcar o enigma, e sem sublinhá-lo pateticamente em seu teor enigmático, ele ascende à categoria de instância decisiva para uma filosofia da história. A história demanda seu sentido ao tempo (a uma dimensão não-linear do tempo); esse é seu viés incontor-navelmente mítico, pois o tempo se apresenta e não se apresenta de todo. Nesse sentido o olhar visionário vaza o olhar ideológico: reconhece o mito e o ultrapassa (a rigor, ele permite dizer que só o reconhecimento pleno do mito é capaz de ultrapassá-lo).
O visionário é um regulador (ou um sinal) do permanente desequilíbrio entre a articulação da cultura (sobre-codificada pela sociedade) e o contínuo/descontínuo do que sobra (não ousaríamos mais chamar essa sobra de pura natureza). Ele trabalha na zona do imprevisto, do entrevisto, do interdito. Durante muito tempo as sociedades delegaram ao visionário essa função, ligada à ordem do sagrado, porque supõe a penetração no interdito, a circulação pelo seu domínio. Tocando nas potências do desejo e do indesejável, o visionário é excluído e adorado, fazendo par, obscuramente, com o lugar simbólico da vítima sacrificial, o bode expiatório, o pharmakós. No mundo serializado e dessacralizado, a regulagem do permanente desequilíbrio entre a articulação da cultura e contínuo /descontínuo do que sobra tende a ser delegada diretamente ao fármaco enquanto agente químico (remédio e droga em escala repetitiva, sem contrapartida sacrificial).
Entre essas duas ordens (uma remotamente pré-moderna, outra possivelmente pós-moderna) vemos a iluminação profana (que tampouco é “moderna”). Nela a visão, como não é mais da ordem do sagrado, não se fixa na inscrição formular do rito e do mito (pela qual profere Maria Sabina quando, convertida em cogumelo-mulher-livro, fala pela voz dos “menininhos santos”: “eu sou a mulher estrela, disse, / eu sou a água que mira, disse, / eu sou a mulher que pastoreia o grandioso, disse”). O sagrado permitiria ou exigiria que a palavra fixasse a visão, pois .o sagrado é aquilo que não se pode jogar fora. Em contrapartida, como a visão moderna também não é da ordem do profano, recusa a forma da linguagem usual, corrente, intercambiável, visível. Seu lugar é a aparição fugaz, assentada sobre uma “coluna ausente”.[47] “O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.”
Esse objeto da visão que quer fazer sua entrada no mundo, ao mostrar-se visível, divinizando o que há de mais comum, também se disfarça, porque precisa. “Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos. a galinha existe. Mãe é para isso.” (Mãe é para esconder a nudez do mistério? Je vous salue, Marie, de Godard, profetiza: o mistério está nu.) Porque o visionário é um assunto muito antigo ou então excessivamente atual, como “o ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia” e como “a galinha é sempre a tragédia mais moderna”. “A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular.”
“Deve-se dizer ‘o ovo da galinha’. Se se disser apenas ‘o ovo’, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu.”
Notas
[1] Walter Benjamin, “O Surrealismo – O mais recente instantâneo da inteligência europeia”. In Walter Benjamin et alit; Os pensadores, vol. XLVIII. São Paulo, Abril Cultural, 1975, pp. 83-93
[2] Fernando Pessoa, “O entendimento dos símbolos”. Mensagem e outros poemas afins (org. Antonio Quadros). Publicações Europa-América, pp. 147-8.
[3] Jean-Pierre Vernant, “Aspectos míticos da memória e do tempo”. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica: São Paulo, Difusão Europeia do Livro/Edusp, 1973, p. 71
[4] Baseei-me aqui no texto ainda inédito de Nicolau Sevcenko, “No princípio era o ritmo: as raízes xa-mânicas da narrativa”, apresentado no Colóquio “A narrativa: história e ficção”, realizado na UERJ, 1987
[5] Agradeço esses esclarecimentos sobre o nome de Dionísio a Jaa Torrano
[6] Jacques Attalli, Bruits — essa: sur l’economie politique de la musique. Paris. PUF, 1977, p. 60 (traduzi esta e as demais citações em língua estrangeira).
[7] Crescenzo Fiore, “Immagini di droghe — contributo ad una stone culturale” . Comunicazione e droga 1. Atti del Convegno Organizzato dalla Fondazione Giorgio Cini e dal CENSIS con la collaborazione delle aziende del grupo IRI. Venezia, Luglio 1984, pp. 129-59. Ver também Luiz Carlos Rocha, As drogas. São Paulo. Ática, 1987.
[8] Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”. A legião estrangeira. Rio, Editora do Autor, 1964, pp. 55-66.
[9] A leitura desse trecho de Clarice Lispector corre em paralelo com o texto de Octavio Paz sobre Henri Michaux, “Le prince: le clown”. Henri Michaux, Paris, Centre Georges Pompidou, 1974, pp. 16-22.
[10] Gilles Deleuze, “Do Aion”. Lógica do Sentido. São Paulo. Perspectiva/Edusp, 1974, p. 70. Pode-se dizer a partir de Deleuze que o visionarismo compreende um olhar excessivamenteprofundo ou excessivamente superficial sobre o tempo. Nesse segundo caso, o que comanda é a operação puramente diferencial do instante, enquanto o único absoluto do tempo físico.
[11] Jean-Pierre Vernant, op. cit., pp. 88-9
[12] Walter Benjamin, op. cit.
[13] Walter Benjamin, Haxixe. São Paulo, Brasiliense, 1984.
[14] Walter Benjamin, “O Surrealismo”, p. 92.
[15] Idem, ibidem.
[16] Octavio Paz, op. cit., p. 18
[17] O conceito de figural é desenvolvido por Jean-François Lyotard em Dérives ã partir de Marx et Freud. Paris, UGE, 1973. Consiste na aparição de traços do processoprimário (segundo a definição freudiana) no secundário, ou traços característicos do sistema inconsciente na consciência/linguagem. Não esquecer que dimensão de um outro da consciência, postulada pela psicanálise como inconsciente, adquiria um caráter “visionário”, caso se deixasse ver: Freud afirma que são características dos processos inconscientes a falta de contradição (a não-negação), o processo primário (mobilidade pulsional, energia “livre” não-ligada), a independência do tempo (os processos inconscientes não se submeteriam ao princípio da sucessão temporal), e a substituição da realidade exterior pela realidade psíquica (onde os referentes se substituem pelo jogo de forças, não-representativo, de prazer-desprazer). A extrema mobilidade dos investimentos marcaria o trabalho do inconsciente, não redutível às articulações lógicas, temporais, subjetivas (e interpessoais), que regem o sistema percepção-consciência, o espaço da ação e da linguagem (o que faz do inconsciente não um outro discurso, mas um outro do discurso). Esse outro, não-verbal por excelência, só se apresenta através de marcas do processo primário no processo secundário (por exemplo: imagens oximóricas e paradoxais, fluxos de linguagem sem linearidade, blocos de sensações e sinestesias, expansões e contrações do tempo-espiralado em galáxias autônomas e buracos negros, reversibilidade intensa entre figura e fundo, súbita autonomia dos significantes deslizando numa sem princípio nem fim de sentidos continuamente deslocados e condensados, erráticos).
[18] Octavio Paz, op. cit., pp. 19-20. Nessa passagem sobre os melancólicos, Paz está citando Giorgio Agambeu, La parola e fantasma nelle Culture Occidentale, Turim, Einaudi, 1977
[19] Olgária Matos, “A melancolia de Ulisses”. In Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras/Funarte, 1987, p. 155
[20] Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984. Susan Sontag trabalhou a questão do saturnino em Walter Banjamin no ensaio “Sob o signo de Saturno”, publicado no livro do mesmo nome. Porto Alegre, LPM, 1986.
[21] Alvaro Estrada, Vida de Maria Sabina — la sabia de los hongos. México, Siglo ma, 1984, 5a ed.
[22] Antonin Artaud, Les Tarahumaras. Décines (Isére), L’Arbalète — Marc Barbezat, 1963, p. 70.
[23] Cf. Crescenzo Fiore, op. cit., p. 154-155
[24] R. Gordon Wasson. The wondrous mushroom — mycolatry in Mesoamerica. Nova York — St. Louis — San Francisco, McGraw-Hill, 1980.
[25] Octavio Paz, “Conocimiento, drogas, inspiración”. Corriente alterna. México, Siglo XXI, 1969, ed., p. 79-83.
[26] Walter Banjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, p. 35-62.
[27] Charles Baudelaire. Les paradis artificiels. Paris, Louis Conard, 1928.
[28] Henri Michaux. Connairsance par les gouffres. Paris, Gallimard, 1961, p. 9. Ver também Miséra-ble miracle (Mônaco, Ed. du Rocher, 1956) e Les grandes épreuves de l’esprit (Paris, Gallimard, 1966).
[29] Arthur Rimbaud, “Trois lettres”. Oeuvres. Strasbourg, Éditions Broceliande, 1957, p. 292.
[30] Paulo Mendes Campos, “Uma experiência com ácido lisérgico”. O colunista do morro. Rio, Ed. do Autor, 1965, pp. 131-150.
[31] Baseio-me em W. Heisenberg et alii.,Problemas da física moderna, São Paulo, Perspectiva; F. Capra, O Tao da Física. São Paulo, Cultrix, 1986; e Umberto Eco, Obra aberta. São Paulo, Perspectiva, 1968
[32] Henri Michaux, op. cit.
[33] Cf. Geneviève Bonnefoi, “L’experience révélatrice”. Henri MiGhaux, Centre Georges Pompidou, p. 103.
[34] Walter Benjamin, Haxixe, p. 38.
[35] Henri Michaux, op. cit.
[36] Walter Benjamin, Haxixe, p. 50.
[37] Henri Michaux, op. cit., pp. 11-2
[38] Henri Michaux, op. cit., pp. 58.-64.
[39] Paulo Mendes Campos, op. cit., p. 134
[40] Os textos básicos para o entendimento dessa matéria são: Roman Jakobson, “Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe”, Essais de linguistique générale. Paris, Minuit, 1963; e Émile Benveniste, “O homem na língua”. Problemas da linguística geral. São Paulo, Companhia Editora Nacional/Edusp, 1976.
[41] “Como se uma membrana tivesse sido arrancada de cima das coisas, todo o meu ser VIA, serenamente, lentamente, muito lentamente” […] “Ondas obscuras me percorriam a consciência como se a lavassem.” Paulo Mendes Campos, op. cit., p. 138.
[42] O medo de ser devolvido ao convencionalismo me levou a escrever esta coisa, gramaticalmente tola, mas cheia de sentido para mim: ‘Só queria que não me levassem para onde eu vim”’ . Paulo Mendes Campos, op. cit., p. 139.
[43] Walter Benjamin, Haxixe, p. 55
[44] Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”, Rosa do povo
[45] O texto de Blanchot (“L’infini et l’infinit”), como o de Borges (“Sur Henri Michaux”), e um outro magnífico texto de Ungaretti, que não coube citar aqui, estão reunidos em Henry Michaux, Les Cahiers de L’Herne. Paris, L’Herne, 1966.
[46] Jorge Luis Borges, “El sueño de Coleridge”, Otras inquisiciones.
[47] “Je me suis bâti sur une colonne absente’, dit une fois Michaux. […] Mais, pour nous, ses lec-teurs, la colonne absente, c’est aussi, c’est d’abord son écrit — écrit sans poids, qui ne dépose rien dans le champ du savoir, mais supporte comme peu d’autres les questions qui ramènent la littérature et la métaphysi-que à leur commune origine.” Claude Lefort, “…Sur une collone absente”, Sur une collone. absente — écrits autour de Merleau-Ponty. Paris, Gallimard, 1978, p. 17.