Invenção e crise do Estado-nação
por Adauto Novaes
“A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção, isto é, todo o conjunto das relações sociais. Esta mudança contínua da produção, esta transformação ininterrupta de todo o sistema social, esta agitação, esta perpétua insegurança distinguem a época burguesa das precedentes. Todas as relações sociais tradicionais e estabelecidas, com seu cortejo de noções e ideias antigas e veneráveis, dissolvem-se; e todas as que as substituem envelhecem antes mesmo de poder ossificar-se.”
Marx e Engels, 1848
A questão que anuncia o título deste livro testemunha uma perturbação crescente nas sociedades contemporâneas, mas a ideia de crise não deve ser entendida aqui como um “acontecimento”. Ela se inscreve na “lógica da história” e, portanto, só pode ser lida no quadro de uma reflexão crítica. Invocado por democracias e regimes totalitários, Estado-nação é um conceito que traz certa indeterminação que pede para ser desvelado nas suas dimensões mais ocultas.
Em um ensaio no livro Regards sur le monde actuel, Paul Valéry escreve: “Se o mundo moderno não quiser chegar à ruína universal e irremediável de todos os valores criados por séculos de tentativas e experiências de toda ordem, ele deve, antes de tudo, estabelecer certo equilíbrio econômico, cultural e político entre as nações.” Valéry publicou o ensaio às vésperas da Segunda Guerra, que iria abrir, entre as nações, uma nova etapa de desequilíbrios sem precedentes na História. Desde então, nações foram criadas, outras desapareceram, novas guerras entre nações surgiram, tudo seguindo a lógica da ruína descrita por Valéry e inscrita em outro texto célebre do historiador Ernest Renan, citado de forma reiterada em alguns ensaios deste livro: “O esquecimento e, eu diria mesmo, o erro histórico são um fator essencial da criação de uma nação… A investigação histórica traz de volta à luz fatos de violência que se passaram na origem de todas as formações políticas, mesmo aquelas cujas consequências foram mais benéficas.”
Ainda que certos no diagnóstico, Valéry e Renan expressam uma visão romântica de nação, que implicaria um espaço homogêneo do território, um tempo homogêneo da história nacional e uma cultura homogênea em toda a população. Justamente os três conceitos revolucionados pela ciência e pela técnica contemporâneas: Espaço, Tempo e Cultura. Daí, Valéry falar “de ruína dos valores” e Renan atribuir a um “erro histórico” aquilo que só se pode definir como um irrecusável e coerente movimento geral do capital. Já a violência, originária e permanente, lembrada por Renan, apenas revela um dos segredos da existência do Estado-nação. A sua formação histórica caminhou, pois, em direção inteiramente oposta à visão romântica: ela foi montada com peças e espólios de guerra, anexações, alianças e dominação de classe.
Todos sabemos: em um século apenas, a geografia política transformou-se consideravelmente: entre 1900 e 2000, grandes espaços dominados por velhos Impérios foram fracionados em quase duzentos Estados. Esta fragmentação do mundo permitiu a multiplicação de Estados-nações baseados nos princípios de “liberdade política e identidade nacional”, isto é, um soberanismo generalizado em nome do direito dos povos de disporem deles mesmos. Mas a pretensa autodeterminação e a aparente igualdade entre nações não conseguem ocultar a assimetria entre países fortes e dominadores e Estados fracos. A eficácia deste domínio está na trama em que os países dominados se envolveram: são eles que legitimam a nova ordem mundial ao criarem sua própria imagem de autoridade que, em última análise, serve para produzir e reproduzir continuamente a imagem e o domínio do novo Império. Como nos lembram Antonio Negri e Michael Hardt, diferente da velha forma de dominação, a legitimação hoje não repousa em nada de exterior a cada país. Ela é reformulada sem cessar pelo desenvolvimento de sua linguagem de autovalidação.
Diferente da concepção de Estado Federal do século XVI que, pelo menos em tese, pretendia garantir um mínimo de autonomia às “nacionalidades”, a ideia de Estado-nação fez um deslocamento do poder, criando um núcleo central, que é o Estado: é a soberania do Estado que deve garantir a independência nacional. Os cidadãos de uma nação não reconhecem nenhuma autoridade superior à do Estado. Mas na era da internacionalização da economia, quando as políticas nacionais perderam grande parte do poder de decisão, vemos uma reversão espetacular: são os Estados nacionais que criam estruturas que tendem a neutralizar as diferenças nacionais.
O debate em torno da crise do Estado-nação tem, pois, o mérito de nos obrigar a repensar com clareza alguns conceitos teóricos e políticos que aparecem, felizmente, de forma polêmica neste livro. Os textos aqui reunidos nos levam a interrogar dois fenômenos contraditórios, construídos neste fim de milênio globalizado: o ressurgimento do nacionalismo e o enfraquecimento dos Estados-nações, em consequência da expansão dos mercados em escala mundial. É certo que o fenômeno da mundialização pôs em crise as relações intrínsecas entre cidadania e nacionalidade, entre Estado nacional e burocracia internacional, entre projetos de autonomia nacional que começavam a emergir e projetos de “sociedades heterônomas”, isto é, sociedades cuja instituição é dada por outras. Mas seria apressado dizer que o que acontece hoje é sintoma do “começo do fim” da forma nação. A teoria política nos mostra que as crises são constitutivas da própria ideia de nação: não se pode esquecer que os conflitos sociais — mais precisamente as lutas de classes — ocupam um lugar central no processo de “legitimação e consolidação do Estado-nação”, como escreveu em recente ensaio o filósofo Etienne Balibar: “As lutas de classes — esta boa velha palavra da qual não consigo me desfazer — são ao mesmo tempo o que, em certos momentos, ameaça romper a unidade nacional e o que, no final das contas, lhe dá conteúdo, sob a forma de um compromisso histórico ou de um pacto social.” O que vemos de novo, na atual crise, são alterações radicais na ideia de democracia: sempre se disse que ela é fundada sobre a pluralidade de opiniões e que essa pluralidade depende, ao mesmo tempo, da pluralidade de valores de que falava Valéry. Ora, o mercado reduz todos os valores a um só, o preço da mercadoria, e um único interlocutor, o consumidor.
Sabemos desde Marx que o “espírito” das sociedades está implicado no seu modo de produção, uma vez que ele expressa “certo modo de coexistência dos homens cujas concepções científicas, filosóficas e religiosas são o simples desenvolvimento ou a contrapartida fantástica”. Porque o “espírito do mundo” (e, com ele, a própria política) refugiou-se nos negócios internacionais e no mundo da mercadoria, hoje expressão real e simbólica das relações sociais e humanas, qualquer movimento nacional que busque a diferença caminha necessariamente na contracorrente e tende a ser acusado de anacrônico.
A globalização produziu ainda novos fenômenos que ajudam a confundir a própria ideia de Estado-nação. Como escreve Michael Löwy, a nova ordem mundial alimenta pânicos identitários e nacionalismos tribais: a falsa universalidade do mercado mundial desencadeia particularismos e endurece xenofobias. Cosmopolitismo mercantil do capital e pulsões identitárias alimentam-se mutuamente. Aquilo que havia assegurado, de alguma maneira e com um esforço contínuo, um mínimo de coesão a partir do século XIX, desfaz-se, produzindo novas crises.
É certo que quando se fala de Estado-nação pensa-se de imediato no liberalismo e nos ideais democráticos de 1789, irmãos gêmeos e inimigos íntimos. Eis a contradição: se a democracia estrutura-se sobre a ideia do bem comum e na invenção permanente de direitos e poderes coletivos, o liberalismo é fundado na afirmação da autonomia dos indivíduos, princípio do Estado moderno. A teoria política tentou solucionar esta contradição através de pactos e “compromissos históricos”. As experiências não são novas: na política das Luzes, por exemplo, o Contrato Social procurou dar forma à sociedade civil tomando o indivíduo como fundamento do poder político mas, ao mesmo tempo, pensando um Estado capaz de assegurar a todos a liberdade e a igualdade. Para isso, foi necessário “encontrar uma forma de associação que defendesse e protegesse de toda força a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedecesse, entretanto, senão a si mesmo e continuasse tão livre quanto antes”. Bastava que cada indivíduo se comprometesse, junto a todos os outros, a renunciar a todos os direitos e simultaneamente constituísse com eles um só e mesmo “corpo coletivo” (o povo), depositário exclusivo de toda a soberania, que se exprime pela “vontade geral”, “expressão” da vontade dos indivíduos. Se, no momento seguinte à ideia de Contrato Social, Hegel fez do Estado um conceito absoluto e o definiu como a tradução da vontade divina, a teoria de Marx foi mais longe ao mostrar seu caráter violento. Sabe-se que, na prática, o Estado liberal sobrepõe-se à vontade dos indivíduos, legitimando a violência, expressão da vontade de uma classe.
Além, portanto, do conceito de cidadania nacional, isto é, forma política que permite ao cidadão ser titular de direitos e deveres cívicos, civis e sociais (a condição essencial para o gozo desses direitos é justamente o pertencímento à nação), o livro trata ainda da ideia de soberania, entendida em dois sentidos: soberania do Estado, exercida sobre os cidadãos enquanto nacionais, e soberania do povo, “que se exerce mais comumente por delegação ou representação”. Ora, soberania popular, por mais perfeita que seja — porque é por meio dela que se forma a ideia de comunidade nacional —, torna-se problema se pensarmos que é quase impossível atribuir este papel de soberano sem transformar o povo em uma entidade homogênea ou em uma suposição abstrata investida, ao mesmo tempo, “de uma aura metafísica e de uma missão implicitamente e muitas vezes explicitamente religiosa e, em consequência, susceptível de justificar todas as repressões” em seu nome.
Este livro procura, portanto, mostrar que a política traduz a natureza contraditória dos homens, como esclarece o ensaio “A invenção da política”, de Francis Wolff. Se os homens pudessem viver naturalmente em harmonia, escreve Wolff, o poder político seria supérfluo, mas se a concórdia fosse contra a natureza, a comunidade política seria impossível: “Assim, a política apresenta sempre uma dupla face: de um lado o poder, de outro a comunidade. O homem existe a esse preço: sem política não há humanidade possível.” A política é, pois, o vínculo contraditório entre poder e sociedade; a invenção da política, obra de todos.
A crise do Estado-nação é o terceiro dos quatro livros dedicados aos quinhentos anos do Brasil. Este breve itinerário começou com A descoberta do homem e do mundo (1997): filósofos e historiadores discutiram a formação das ideias na Europa na época das grandes descobertas, momento singular que pôs em dúvida saberes estabelecidos, revolucionou as ideias de espaço e tempo, e criou novas estruturas políticas. O segundo livro, A outra margem do Ocidente (1998), propôs um gesto intelectual inédito: mostrar a influência da cultura do novo mundo na constituição da moderna política do Ocidente. Mais ainda: a partir das experiências das sociedades indígenas, antropólogos e filósofos analisaram a origem da dominação política, mais precisamente a origem do Estado. Seguindo as ideias propostas por Pierre Clastres e sua “revolução copernicana”, que consiste em fazer com que “as sociedades de Estado” girem em torno das “sociedades contra o Estado”, invertendo, portanto, a maneira comum de pensar, interrogamos com ele: como repensar a política ocidental “à luz da politeia selvagem”? A extrema diversidade da organização social dos primitivos, isto é, sociedades múltiplas, e, portanto, o espaço da liberdade, contrapõe-se ao Um, à figura do Estado que destrói as diferenças e institui o poder centralizador. Mais do que falar sobre as sociedades indígenas, o segundo livro procurou ver, através delas, o impacto do Novo Mundo na filosofia, na política e na cultura europeias: é certo que, além do ouro e das especiarias, os europeus levaram também em sua travessia costumes e formas de organização social e política que iriam abalar verdades estabelecidas. “A linha divisória entre sociedades arcaicas e sociedades ‘ocidentais’” — escreve Clastres — “passa talvez menos pelo desenvolvimento da técnica e mais pela transformação da autoridade política.” Eis a grande questão: qual é a natureza dessa transformação? Todos sabemos que as ideias do Novo Mundo só puderam ter influência porque a Europa era um mundo em crise — guerras civis, Reforma e Contra-Reforma, revolução nas ciências, nas artes e nas técnicas etc. — momento de preparação das transformações das estruturas tradicionais. O novo modo de produção exigia a criação de mercados, novas fronteiras e nações. A formação do Estado-nação nasce destas transformações.
Quando se pensa na invenção do Estado, surge, de início, um problema do qual, de algum modo, decorrem todos os outros: o pensamento dominante confunde (não sem más intenções) a política com o Estado. Estado e política são dados como partes de um mesmo corpo, indissolúvel, resultando na produção de um sistema incompatível: o Estado se superpõe deliberadamente à política, e a “política”, deliberadamente, inclina-se a servi-lo. Ou melhor, elimina-se a dimensão política pela redução, reificada abusivamente, ora nas “razões de Estado”, ora nas questões de ordem puramente gestionárias da economia.
Falar da invenção da política é o primeiro passo que permite desfazer esta ambiguidade: se, de um lado, o Estado se apresenta como expressão do poder e, em consequência, a negação da política, porque se põe como uma instância exterior e acima da sociedade, por sua vez a política, no sentido forte e original do termo, jamais se confunde com o Estado; ela é, por natureza e essência, uma invenção permanente dos homens que não depende de nenhuma autoridade exterior e superior, e que, através de conflitos incessantes entre o pensado e o impensado, deixa campo livre à experiência da indeterminação. Pensada assim, a política é, na bela definição de Miguel Abensour, a “invenção de um mundo sem repouso, trabalho de um espírito igualmente sem repouso”, que aceita e assume a divisão originária do social. Política “selvagem”, poderíamos dizer com Claude Lefort, ao criticar as definições que pretendem reduzir a democracia a uma fórmula institucional, a um regime político ou a um conjunto de procedimentos ou de regras: “É, verdade” — escreve Lefort — “que ninguém detém a fórmula da democracia e que ela é mais profundamente ela mesma enquanto democracia selvagem. Talvez seja isso que faz sua essência: desde que não exista uma referência última a partir da qual a ordem social possa ser concebida e fixada, esta ordem social está permanentemente à procura de fundamentos, de sua legitimidade, e é na contestação ou na reivindicação daqueles que são excluídos dos benefícios da democracia que esta encontra sua força mais eficaz.” O Estado é a negação da idéia de uma política selvagem.
Qual é, então, a política do Estado-nação? Historicamente explicáveis, Estado e Nação parecem ter um destino comum: criar a ideologia dos tempos modernos, que é o conceito de soberania (nacional ou popular). É este conceito que dá conteúdo concreto à ideia de Estado, que supõe a existência de uma vontade comum dos indivíduos e, portanto, unidade ideal: é isso que atribui coerência e legitimidade ao poder do Estado: a soberania “racional e necessária” que emana da vontade do povo — “realização histórica do Espírito” — e da nação. O Estado é, na expressão de Hegel, a organização concreta do Espírito de um povo, do qual é a revelação. O Estado é, portanto, a forma visível da soberania, e que, por isso mesmo, atribui-se o poder de resolver à base da violência, quando a ideologia falha, qualquer conflito surgido na sociedade, uma vez que povo e Estado representam a mesma realidade, isto é, “vontade comum” e “unidade racional”. Negação da multiplicidade do múltiplo, o Estado é expressão da lógica do Um, que se separa do corpo da sociedade, tornando-se uma instância exterior e superior.
Antes portanto de se discutir de que maneira se constituiu, entre nós, a ideia de Estado-nação, o pensamento exige uma breve incursão pelos filósofos que entre os séculos XVI e XX nos levaram a pensar sobre o Estado, a soberania, a política e a liberdade. Parte desta reflexão foi iniciada no livro anterior, A outra margem do Ocidente, através de um autor que é considerado por muitos comentadores como um dos mais importantes pensadores da questão política do século XVI, Etienne La Boétie. No mesmo momento em que Bodin escrevia Os seis livros da República (1576), no qual lemos uma das primeiras referências ao Estado como “potência soberana”, era publicado O discurso da servidão voluntária de La Boétie, que, mesmo sem citar o conceito de soberania, tornou-se até hoje um dos textos mais contundentes contra o Estado soberano. Para La Boétie, acima do tirano está o Estado, acima do poder do “Um” existe a potência estatal. Como bem definiu Gérard Mairet, no ensaio Gênese do Estado laico, é no interior da discussão sobre a tirania que La Boétie concebe a estrutura da potência do Estado. Isto é, a crítica que Odiscurso faz do poder tirânico — o “Um” — é o suporte de uma crítica muito mais profunda daquilo que, tempos depois, teóricos e homens de Estado definirão como a “soberania”. A partir daí, La Boétie revelará o verdadeiro significado da política moderna. “Quaisquer que sejam as aparências” — comenta Mairet — “a soberania, diferenciando-se da tirania, será sempre marcada por ela.” Em O discurso, a gênese da potência soberana é tirânica, da mesma maneira que é tirânica a própria estrutura do poder moderno: “O tirano torna os sujeitos servos, uns por meio dos outros.” Assim, cada um teme o outro que se toma a si mesmo por chefe, fazendo de todos e de cada um pequenos chefes servis à devoção do chefe supremo, identificando-se com ele, até tornarem-se, sob o grande tirano, eles mesmos tiranetes.” (Não é difícil identificar esta descrição com os mecanismos da burocracia moderna.) A conclusão de La Boétie vai ser tema do pensamento político desde então: o poder é em si tirânico.
No Ocidente, o conceito de tirania adquire hoje nova dimensão. Se é inquestionável que, para potências econômicas e militares, a ideia de soberania é “inalienável”, o mesmo não se pode dizer dos países dependentes. Para eles, passa a ser posto em prática o conceito de “direito humanitário de intervenção”, que se sobrepõe à soberania dos Estados. Essa nova ideologia começa a ser justificada até mesmo por alguns presidentes de países dependentes através da doutrina de “bombardeios humanitários”, com as consequentes bombas de fragmentação humanitária. Diante do que acontece hoje na política, na cultura e na economia mundiais, cabe uma pergunta, mesmo sabendo que, em política, devemos sempre desconfiar das analogias e aproximações: o “direito humano de intervenção”, comandado por um império, seguido da crise e do enfraquecimento do Estado-nação, não seria o desejo de realizar, em tempos modernos, a velha ideia pré-moderna de “Governo Universal”? Algumas análises inscrevem-se nessa linha de pensamento. Lemos, por exemplo, em Ignacio Ramonet, editor do Le monde diplomatique e autor do livro Geopolítica do caos: “a mundialização — que elimina fronteiras, homogeiniza culturas e reduz diferenças — põe igualmente em xeque a identidade e a soberania dos Estados. Como constata Alain Joxe, ‘a constituição de um império universal (americano) pela difusão da economia de mercado provoca balcanizações-libanizações pela destruição de prerrogativas reguladoras dos Estados tradicionais’; (…) pela primeira vez em dois séculos, um país domina o mundo de maneira esmagadora nas cinco esferas essenciais do poder: política, econômica, militar, tecnológica e cultural. Este país, os Estados Unidos, não vê razão para partilhar ou limitar sua hegemonia, uma vez que pode exercê-la plenamente, sem que ninguém (nem mesmo as Nações Unidas) possa contestá-la.”
É, pois, na trilha da relação entre liberdade, poder, medo, esperança, totalitarismo, a guerra como meio para a redefinição da geopolítica, liberalismo, nacionalismo e internacionalismo, mito de separação dos poderes (legislativo, executivo e judiciário), “nação étnica” etc., que se desdobra a primeira parte deste terceiro ciclo. Como entender a noção de liberdade política que exclui a própria política, quando ela passa a ser regida, por exemplo, pelas ideias de segurança, força, potência e de seu inevitável complemento, o medo? (Basta lembrar a frase de Bill Clinton depois da destruição da Iugoslávia: “Conseguimos uma vitória para um mundo mais seguro e uma América mais forte.”) A relação entre liberdade e segurança, também tema deste livro, não é nova: é parte essencial da ideologia do Estado formulada por pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII. O objetivo maior da política como nos lembra Hannah Arendt no ensaio O que é a liberdade é garantir a segurança; já a ideia de liberdade pertence a outro domínio: “a palavra liberdade designava a quintessência das atividades que se produziram fora do domínio político”. Lemos, por exemplo, em Do espírito das leis, de Montesquieu: “A liberdade filosófica consiste no exercício da sua vontade (…). A liberdade política consiste na segurança.” É o medo, segundo Hobbes, que engendra a necessidade da segurança, que, por sua vez, leva o indivíduo a renunciar à própria liberdade ilimitada para gozar em paz uma liberdade limitada. A soberania é alienada a um homem ou a uma assembleia, e o soberano, a quem são conferidos todos os poderes, representa, com sua vontade única, a vontade de todos. Assim comenta Max Horkheimer, no seu texto sobre a filosofia política de Hobbes: a autoridade provém originalmente do povo e funda-se “sobre a vontade de todos os indivíduos ou pelo menos sobre a vontade da maioria da assembleia original. Mas, feita a abstração dessa origem, os indivíduos não têm mais nenhuma liberdade diante do Estado, isto é, diante do soberano; eles devem submeter-se completamente às suas leis: a vontade do Estado identifica-se com a vontade do soberano, quer ela proceda de um só homem (monarquia) ou de uma presidência (república)”. Estado nacional e soberania (nacional ou popular) dificilmente se livram dessa origem espúria.
A partir da ideia de soberania, os homens passam a viver nos horizontes do Estado e das leis. Mais precisamente, passam — na expressão de Maquiavel — do combate “com a força” ao combate “com as leis”. Funda-se, então, o conceito de legitimidade política. Ainda que as formas de poder tenham se transformado ao longo destes quinhentos anos, os Estados buscam sempre algum tipo de legitimidade, muitos à sombra dos ensinamentos de Maquiavel: “O príncipe deve se fazer temer de tal forma, que, se ele não é amado, pelo menos não seja odiado.” Essa fórmula, que procura combinar repressão e legalidade, não é monopólio dos regimes autoritários: pode-se mesmo dizer que ela é a essência do Estado liberal. Basta lembrar os permanentes apelos à liberdade e à justiça. A origem desta vida dupla do liberalismo está na antinomia criada por ele mesmo: o liberalismo é a “unidade da finalidade universal do Estado e do interesse particular dos indivíduos” (isto é, conforme exemplo dado por Marx, “o dever de respeitar a propriedade coincidindo com o direito à propriedade”). O Estado liberal não tem como desfazer esta antinomia. A “solução” está em apresentar um Estado como uma instância neutra, anterior e superior à sociedade, e, portanto, uma autoridade à qual “leis” e “interesses” estão subordinados; a legitimidade é dada pelo próprio funcionamento desta (e nesta) subordinação. Estes são alguns dos temas que serão discutidos na primeira parte do livro.
A segunda parte é dedicada à gênese do Estado brasileiro e à ideia de identidade nacional. Se, como escreve o historiador José Murilo de Carvalho, nações precisam de identidade coletiva para manter unidos os elementos dispersos e conflitantes, essa identidade é uma criação imaginária. Mas essa imaginação não surge do nada; ela é posição de uma forma, “posição não determinada, mas determinante”, como diz Cornelius Castoriadis: “Essas formas, criadas em cada sociedade, criam um mundo no qual esta sociedade se inscreve e se dá lugar.” Assim como a França é uma forma bem determinada de sociedade republicana na qual se vê a confluência das noções de cidadania e nacionalidade, assim também o Brasil — quinhentos anos depois da invenção do Estado-nação, quando essa ideia política dá claras demonstrações de entrar em uma crise sem precedentes e sem exemplos na história — busca ainda a sua forma. Ou melhor, a sua forma é dada pela desigualdade radical, pela dependência econômica, ou é simplesmente uma droga ambivalente, fármacon, no comentário de José Miguel Wisnik sobre Memórias póstumas de Brás Cubas: “Veneno que é remédio e remédio que é veneno.”