2017

Máquinas utópicas e distópicas: a condição inumana

por João Camillo Penna

Resumo

O gênero literário de ficção científica, que Herbert Georg Wells denominou romance científico, tem na obra-prima de Mary Shelley o seu marco inicial. Frankenstein ou o Prometeu moderno (1818) cumpre com os requisitos formais caraterísticos desses primeiros tempos: a ciência, a narrativa gótica e a invenção técnica. Mas a obra cumpre, sobretudo, com aquilo que Rousseau chamou de piedade e que hoje entendemos pelo “sentimento de identificação à dor do outro”. Tanto o gótico quanto o gênero fantástico contêm o DNA das tradições místicas, folclóricas medievais, enquanto que a ficção científica vem de uma tradição racionalista, de onde a constante proximidade de seus autores com a vanguarda do universo científico de cada tempo, mas uma vez que se deparam com o limite do conhecimento científico, suas obras são suplementadas pela imaginação. Para além da narrativa fantástica atraente, o que confere real valor literário a uma obra do gênero é a sua relação com o humano, é o fato de ela vir a ser um “espelho analógico” do homem (Suvin). É o caso de obra precursora e uma das matrizes do gênero. Utopia (1516) de Morus é um “não lugar”, segundo o neologismo do próprio autor que assim nomeia a ilha ideal, imagem invertida da Inglaterra de seu tempo, “lugar” da patologia social da desigualdade. Se terras desconhecidas do Globo alimentavam a imaginação de autores como Thomas Morus a Júlio Verne, com o capitão Nemo, passando pelas aventuras de Gulliver de Jonathan Swift, do momento em que o mundo foi inteiramente mapeado do final do século XIX, a ficção voltou-se para outro “desconhecido”: o futuro. A partir de então, as utopias cedem lugar às distopias. O futuro de A máquina do tempo (1895) de Wells é sombrio. É um romance que se inspira no darwinismo, para, contrariamente, desenvolver a ideia da “involução” subsequente ao apogeu do domínio técnico do homem sobre o mundo. Assim, o seu viajante do tempo testemunha, num futuro distante, uma humanidade preguiçosa, insensível e que até mesmo desaprendeu a ler. O admirável mundo novo de Aldous Huxley desenha um futuro análogo, uma sociedade livre de problemas materiais, mas programada e privada da liberdade por um sistema político totalitário. O caçador de androides de Philip K. Dick é uma “distopia clássica contemporânea”, tendo como pano de fundo o capitalismo e uma “sociedade radicalmente individualizada” e que controlava até os sentimentos dos indivíduos. Nessas distopias, o humano e o inumano estão presentes através estratégia da “desfamiliarização”, tendo “o presente como história” e o futuro como espelho.


Kant, no final da Antropologia do ponto de vista pragmático (1797), depara-se com a dificuldade de não haver outra espécie racional na terra além da humana, a partir da qual, por comparação, se pudesse caracterizar a espécie humana enquanto tal. E chega a supor a existência de habitantes de outros planetas, superiores moralmente, não dissimulados, não dotados de nossa fundamental má intenção uns para com os outros, que falassem tudo o que pensassem, não fossem movidos pelo objetivo do logro, não mentissem, que fossem, em suma, “puros anjos”. Apenas a partir desse paradigma hipotético seria possível estabelecer um modelo ético a partir do qual poderíamos julgar a espécie humana, deduzindo dele a necessidade de progredir na razão, de fazer com que o mal caminhe progressivamente em direção a um bem superior[1].

Por outro lado, em um texto famoso sobre Jean-Jacques Rousseau, Lévi-Strauss afirma que podemos encontrar no pensador do século XVIII o princípio capaz de fundar as ciências humanas: a recusa de si mesmo e a percepção do outro, qualquer outro, como forma vazia universal do eu e do humano. A fundação das ciências humanas estaria indicada em Rousseau por uma faculdade essencial, a piedade, isto é, a identificação ao outro, não apenas um parente, um próximo, um compatriota, mas um homem qualquer, “à medida em que é homem, ou melhor: um ser vivo qualquer à medida em que é vivo[2]”.

Tanto o anjo ou o extraterrestre de Kant, como modelo ético comparativo, quanto a piedade ou a identificação em Rousseau (ou Lévi-Strauss), como sentimento que nos une através das diferenças, descrevem a fundação da antropologia a partir da identificação com o inumano, i.e., o além ou aquém do homem universal enquanto tal. Salvo engano, o território da ficção científica é precisamente este, o do inumano, o humano alterado, protético, borgue, robô, androide, extraterrestre etc., como destinação futura da mutação do humano. Este o protagonista que inventa. Dessa forma, poderíamos dizer que, se Kant funda a antropologia a partir do primado do progresso necessário da razão, e Rousseau, as ciências humanas a partir do princípio ontológico da piedade, a ficção científica fundaria uma nova antropologia, capaz de pensar o humano em bases não humanas, ou as ciências inumanas, em torno precisamente do fracasso da piedade e da identificação com o outro, mas não qualquer outro, o outro inumano. Mas para chegar a esse ponto da discussão precisamos antes desbastar o terreno, definir o que é ficção científica, e aprofundar alguns de seus aspectos mais importantes.

A definição da ficção científica foi posta de maneira canônica por Darko Suvin: ficção científica é o relato sobre um novum como espelho analógico, no qual interagem estranhamento e cognição, na construção de um mundo imaginário possível, outro com relação ao do autor/leitor[3]. A differentia especifica da ficção científica a situa em um local ao mesmo tempo distinto e imbricado de/com três territórios afins: a ciência tout court, a narrativa gótica ou fantástica e a invenção técnica. Quando Percy Shelley, no prefácio assinado por sua mulher, escreve no livro de Mary Shelley, Frankenstein ou o Prometeu moderno (1818), considerado o primeiro romance de ficção científica, que “[o] fato em que esta ficção se baseia tem sido considerado pelo Dr. Darwin [trata-se do avô de Charles, Erasmus] e alguns dos fisiologistas da Alemanha como não impossível de acontecer”,

ele delimita o campo de um possível da ciência[4]. No caso, a possibilidade de dar vida à matéria inanimada, conforme explica Mary na introdução à edição de 1831. Segundo corria a história, Darwin teria mantido um pedaço de macarrão cabelo de anjo em uma redoma de vidro, que por algum meio extraordinário começara a mover-se por sua própria vontade. Trata-se, portanto, sem dúvida de uma “ficção”, mas “não impossível de acontecer”. “Não impossível” circunscreve a zona hipotética de uma possibilidade lógica, por mais rarefeita que ela possa parecer. O que poderíamos formular da seguinte maneira: se aceitarmos os pressupostos estabelecidos pela ciência, os fatos narrados podem ser realizados, não importando à ficção que não o sejam, ou precisamente pelo fato de não o serem. A ficção científica ficcionaliza, ou “imaginariza” dados das ciências de seu tempo. Stanislaw Lem cita o exemplo da proliferação das histórias envolvendo transplantes de órgãos, no momento, nos anos 1970, em que os feitos impressionantes dos transplantes de coração assumiram importância na cultura de massas[5]. Os autores de ficção científica têm frequentemente contato direto, de primeira mão, com a invenção nas ciências ditas duras. Dois exemplos conhecidos: H. G. Wells assiste às aulas de Thomas Huxley, o autointitulado “buldogue de Darwin”, em 1894, e publica no ano seguinte a primeira versão de sua primeira ficção científica, A máquina do tempo. Ou, John W. Campbell, autor das primeiras histórias sobre computadores e robôs (1930, 1932), que foi aluno de Norbert Wiener, o pai da cibernética, no MIT[6]. Está jogada a carta fundamental da ficção científica: “apelar para as especulações de cientistas reais como […] fonte da […] ficção narrativa[7]”. A partir daí, da ficcionalização da ciência do presente, ditar os horizontes da ciência por vir.

No entanto, continua Percy Shelley, “não me considerei tecendo apenas uma série de terrores sobrenaturais[8]”. Distinção sutil: o texto em mãos tem o status imaginário ou fantasioso da ficção, em nenhum momento o ventríloquo marido de Mary Shelley confunde ciência e imaginação. Ao mesmo tempo, não é menos importante distinguir o gênero que ora se fundava daquele que produzia “terrores sobrenaturais”, i.e., por um lado, a tradição do romance gótico que desembocaria nos gêneros contemporâneos de terror e horror, e, por outro, os gêneros fantásticos, que resultarão em obras contemporâneas de grande sucesso comercial como O senhor dos anéis de J. R. R. Tolkien e Harry Potter de J. K. Rowling[9]. Tanto o gótico quanto o gênero fantástico contêm o dna das tradições místicas, folclóricas, medievais, enquanto a ficção científica vem de uma tradição racionalista[10].

Uma terceira distinção se faz ainda necessária: em que pese a importância dos aparelhos, dispositivos, máquinas e termos científicos na ficção científica, todo este aparato tecnológico é estritamente inessencial, fornecendo quando muito uma aparência ou verossimilhança de realismo técnico. H. G. Wells, o autor inglês que funda a ficção científica moderna, por exemplo, era prolixo na descrição de detalhes desimportantes, e lacunar no que de fato interessava. É o que explica enfaticamente ainda Wells, ao distinguir sua obra de seu correspondente francês, Júlio Verne. Verne interessa-se pela inovação científica, suas fantasias têm de fato valor antecipatório, o autor apenas suplementando pela imaginação uma insuficiência técnica que a ciência um dia talvez preencha. Muitas invenções, inclusive, tornaram-se realidade após a sua publicação em forma literária. Para Wells, no entanto, a finalidade da parafernália técnica é tão simplesmente prender a atenção do leitor. São elementos periféricos, que funcionam como um espelho distorcido, fatores de estranhamento, com o objetivo de intensificar as nossas “reações naturais de espanto, medo e perplexidade[11]. Uma vez despojado o relato dessas pirotecnias (o que denominamos no cinema os “efeitos especiais”), que funcionam como uma isca para o leitor, a ficção torna-se “humana”, esta sendo a questão essencial dos romances científicos, como Wells batiza o gênero que criara. Eles apelam para a “simpatia” humana. O relato procura situar-nos na pele do protagonista, de forma a nos perguntarmos: “Como você se sentiria e o que poderia ocorrer com você no lugar do protagonista, naquele mundo estranho ao nosso, povoado de seres desconhecidos?[12]”. Eis portanto a matriz da definição de Darko Suvin: a ficção científica como “estranhamento cognitivo”. A identificação, a “piedade” no léxico rousseauniano, a simpatia ou empatia, como a psicologia clássica a denominará, retomam a função mimético-catártica, conforme Aristóteles chamara o efeito essencial à tragédia ateniense, a função constitutiva do que adiante será a literatura[13]. Com uma diferença importante, no entanto, no caso da ficção científica: a distorção da estranheza, o resíduo irredutível à humanidade, a transposição da figura analógica, i.e., a identificação com o inumano (ou o humano transfigurado, o pós-humano etc.) se dá justamente quando essa identificação fracassa. O que implica que a função mimético-catártica continua funcionando – identificação e desidentificação sendo reações programadas pela polaridade terror e piedade –, mas de uma forma paradoxal. A ficção científica nos expõe de maneira essencial à identificação com aquilo que nos produz estranheza, terror: a diferença, o inumano, como veremos; ela é bem-sucedida precisamente quando fracassa. Esta a função do inumano: fazer com que o humano fracasse e assim inventar o humano.

Utopia, de Thomas More (1516), é uma das matrizes da ficção científica, além de um subgênero importante da ficção científica contemporânea. O contexto é o das descobertas marítimas e a exploração espacial da terra, mas o modelo da fundação atópica de mundos possíveis deriva da especulação teórica platônica da Politeia (A República). A distância que separa A República da Utopia é a que separa a teoria ou a ideia da ficção. Quando Sócrates inicia os trabalhos no livro ii, dizendo: “ora vamos lá! […] Fundemos no discurso [ho lógos] uma cidade”, o “discurso” aqui se opõe ao ato (tò érgon), i.e., à construção de uma cidade real[14]. Mas quando More descreve a ilha onde está instituído o optimus reipublicae status, “a melhor constituição de uma república”, ele o faz como ficção, o que se opõe não ao ato, mas ao fato. É assim que na carta fársica endereçada ao amigo Giles ele comenta a crítica de um leitor particularmente agudo da Utopia, provavelmente também inventado por More, que expõe o dilema: “se a história [do livro] é oferecida como fato [veritas, ‘verdade’], vejo nele um número de absurdos; mas se é ficção [fictio], então acho que More carece em alguns assuntos de seu bom juízo moral[15]”. O que More contesta afirmando peremptoriamente o caráter factual de sua ficção, devolvendo ao tal leitor o julgamento que o mesmo fizera dele próprio (“mas quando ele questiona o fato de o livro ser fato ou ficção, acho que ele carece de bom juízo)[16]”. O contexto sendo o do Elogio da loucura (Moriae encomium), livro do amigo de More, Desiderio Erasmo, que contém um trocadilho com seu nome no título, e escrito em sua casa, percebemos que a boa repartição do juízo, ou da falta dele, o que dá no mesmo, é precisamente o lugar em que a ficção satírica viceja. Eu poderia ter usado de ficção, explica ainda More, como maneira de tornar mais palatável a verdade, como se lambuza o remédio com mel. Mas se este fosse o caso, eu teria oferecido pistas ao leitor erudito de se tratar de ficção, dando nomes inventados aos locais verdadeiros que visitei. O que é precisamente o que faz o narrador. O estatuto da ficção afirma-se farsicamente, portanto, como verdade do fato, fidelidade absoluta à verdade histórica, precisamente no momento em que ficcionaliza, e dá densidade “real”, à construção da figura utópica.

A sátira de More gira em torno do humanista e alter ego, o navega dor português Raphael Hythloday, que teria participado das três últimas expedições de Américo Vespúcio, e escolhido permanecer, com outros tripulantes, na terra incognita situada no entrelugar entre o velho e o novo mundo. Lá teria aportado na ilha de nome Utopia, neologismo cunhado por More, do grego latinizado, “não lugar”. Nas duas partes do diálogo, escritas em ordem cronológica inversa, temos, na primeira, um diagnóstico sobre o mal social da sociedade inglesa do tempo, surgido em uma discussão sobre um tema familiar a nós: a pena de morte como punição ao mesmo tempo profundamente injusta e inócua pelo delito de roubo. O aumento impressionante da criminalidade não pode ser resolvido pelo endurecimento da repressão. Seria preciso atingir a causa, o aumento exponencial de mendigos, e sua dupla origem: a ociosidade dos nobres e seus exércitos particulares compostos de servos empregados para a guerra, mas inúteis em tempos de paz, ou inválidos uma vez terminada a guerra, que não aprenderam nenhum ofício, e que, após a morte do senhor, são jogados no olho da rua, e obrigados a furtar e ao recurso da violência; e o cercamento (as enclosures) das pastagens para carneiros que expulsara os pequenos camponeses de suas terras. Ou seja: o diagnóstico crítico da desintegração do feudalismo e do nascimento da economia de mercado[17]. Para resolver essa dupla patologia seria preciso erradicar o princípio da guerra feudal e restituir o trabalho aos camponeses expulsos de suas terras[18]. Na segunda parte, Hythloday descreve a topografia e a estrutura social-política da ilha de Utopia, o “não lugar”, que ele teria visitado, e onde inexistiria a patologia social da desigualdade, que está na origem do delito de roubo. A ilha, um duplo fantasmático da ilha inglesa, teria, como a Inglaterra da época, 54 cidades (53 + Londres) absolutamente idênticas, seguindo um planejamento estrito guiado pelo princípio da necessidade. Ela seria fundamentada sobre a noção comunista da igualdade, da propriedade pública absoluta e da inexistência da propriedade privada e do dinheiro, princípios que More colhe na Politeia (República) e nas Leis de Platão, mas reformatada em nova chave[19]. A tese de Hythloday, que o utopismo até Herbert Marcuse herdará, é que uma simples redistribuição do trabalho, instituindo uma proporcionalidade estrita, fazendo essencialmente com que aqueles que na sociedade atual não trabalham passem a trabalhar, seria suficiente para erradicar a escassez de bens, voltando a produção para a garantia da subsistência, reduzindo a jornada de trabalho a seis horas diárias, e permitindo o lazer intelectual. O geometrismo do estado, pautado por uma regra matemática rigorosa, sedimentada no princípio da distribuição unitária das diferentes naturezas, “one man, one job”, como dizia Leo Strauss (a Díke, no sentido de “ajustamento”), programado pela Politeia de Platão[20], funda o comunismo, a lei da subsistência e a exclusão do mercado sobre uma exigência estritamente lógica, que o utopismo como um todo reelaborará. Aqui repousará precisamente, como veremos, o cerne da crítica distópica: a geometrização estatal das vidas ignora a essencial singularidade do humano, e consiste, em suma, em uma ditadura do princípio da necessidade.

A constituição da utopia repousa em três operações: 1) Inversão ou negação. A estrutura social da ilha inverte ou nega termo a termo as condições sociais discutidas na primeira parte do livro, o que dá à ilha a consistência de um mundo paralelo, figura invertida das patologias sociais descritas antes, mas que, como sabemos, More escreveu após construir a sua ilha. O exemplo clássico da inversão é a transformação do ouro, na ilha, em material para a confecção de penicos; 2) Disjunção ou separação. O primeiro ato oficial do rei Útopos é destruir o istmo que ligava o promontório de Utopia ao continente, literalmente constituindo a ilha;

3) Exclusão. Certas manifestações das patologias sociais como a violência ou o dinheiro, que estão no cerne da origem da desigualdade, objeto do diagnóstico social e cuja inexistência fundamentaria a Utopia, são simplesmente excluídas dela, e passam a ser realizadas fora do estado (das cidades) ou da sua circunscrição.

A primeira parte da Utopia simplesmente explicita o elemento crítico que a figura autárquica da ilha constrói analogicamente. Nas utopias posteriores, far-se-á a economia dessa primeira parte, a utopia reduzindo-se à construção da figura, perpassada pelas alusões críticas à realidade da época, transpostas na analogia. Dessa forma é possível deduziremse da figura analógica, termo a termo, os elementos da realidade de que ela constitui a negação. Por outro lado, a redução distópica dela derivada, figura essencial da ficção científica contemporânea, desde as catástrofes científicas da Segunda Guerra Mundial – Hiroshima, Nagasaki e Auschwitz – pautar-se-á pela regra oposta: o diagnóstico crítico hiberbolizado da sociedade contemporânea transposto em regra social que governa a figura.

A ilha é justificada por Hythloday como única alternativa consequente diante de sua desistência do projeto reformista, ou seja, de uma colaboração ou intervenção do pensamento e do pensador na política. Toda reforma é vã se não se curar antes o mal, explica ele, citando Platão, que dizia que ao imiscuir-se nos negócios do governo o filósofo apenas deixa o abrigo da chuva para molhar-se junto com todos os outros[21]. A recusa da reforma mobiliza a construção da figura total e autárquica como mapa distributivo das diferenças quantitativamente iguais ou proporcionais. O fracasso do modelo interventivo significa na prática o fracasso do modelo teórico-dialético, no qual Sócrates, e a tradição racionalista que o humanismo renascentista refunda, apostava todas as suas fichas. Ao contrário da crítica que Marx e Engels farão no século XIX ao socialismo utópico, de que confiava excessivamente na razão e não possuía um verdadeiro conceito de ação ou de prática[22], vemos que é precisamente contra uma certa prática racional, o projeto reformista, que se funda no século XVI um mundo, ou mundos possíveis, sustentados estritamente em sua virtualidade prática, figural, ou “não impossibilidade”, para retomar mais uma vez a fórmula de (dos) Shelley. É este então o espaço preciso em que a construção da figura utópica se dá: no interior do humanismo e contra ele.

As Viagens de Gulliver (ou Viagens a várias nações do mundo, por Lemuel Gulliver), de Jonathan Swift (1726, 1735), retomam em veia satírica o motivo da navegação a ilhas não existentes, como antiviagem de conquista imperial, e como múltiplas transposições figurativas da realidade europeia satirizada. A variedade do mundo, isto é, o relativismo humanista do século XVI, como princípio fundante do humano enquanto forma vazia, universal, produz aqui um diagnóstico cáustico, negativo, sobre a bestialidade, o vício, a infantilidade essencial e a violência irredutíveis do humano tal qual era (é) conhecido. A variação é inicialmente de escala geométrica, como se as culturas possíveis visitadas por Gulliver, o homem-padrão inglês, fossem vistas respectivamente de cada lado de sua luneta de bolso (o pocket-perspective): a monarquia minúscula de Lilipute e a gigante de Brobdingnag. A transposição, no entanto, com suas alusões alegóricas precisas a dados históricos da época, tem um alvo certeiro: a mediocridade e a pequenez das políticas nacionais das monarquias contemporâneas, a vã ambição de conquista dos monarcas, a onipresença da guerra e do assassinato coletivo como regra da convivência internacional. A terceira viagem tem como alvo a ciência e as artes: a abstrata ilha de Laputa (o termo espanhol contém um juízo sobre a ciência newtoniana), onde os habitantes vivem na prática exclusiva da matemática e da música, é uma ilha literalmente voadora, aérea. A matematização ou a musicalização do mundo – o que dá no mesmo – não nos leva a conhecer melhor o mundo, mas a um conhecimento autônomo, inteiramente desligado da realidade. Se nas três primeiras viagens a regra que pauta a transposição satírica é a redução ao absurdo ou a radicalização hiperbólica, mecanismos que pautarão adiante, em sério, as distopias contemporâneas por vir, na quarta, a ilha utópica dos cavalos virtuosos, a transposição obedece à operação de inversão, conforme vimos configurada na ilha de More. Na ilha dos cavalos houyhnms, os yahoos, i.e., os humanos, descendentes de náufragos ingleses que por lá aportaram décadas atrás e se reproduziram como selvagens, é que são animalizados, precisamente como os cavalos o são na cultura europeia. O escrutínio moral rigoroso a que são submetidos os inumanos yahoos, inteiramente incapazes do uso da razão, viciosos, impulsivos, bestiais, avaros, destruidores, ambiciosos, é expandido à cultura humana europeia da época. Ao voltar para a Inglaterra Guliver rejeita a sua própria família de yahoos, de quem até o cheiro o incomoda, e passa a viver em um estábulo com os cavalos que comprara. Nas Viagens de Gulliver, na inversão da quarta ilha, mais precisamente nos yahoos, temos talvez a primeira figura do inumano do que virá a ser a ficção científica, como maneira de propor a pergunta sobre o humano.

No final do século XIX, com a ocupação total da superfície da terra pela forma dinheiro e pela submissão universal da vida ao modelo quantitativo, o não lugar deixa de ser espacial e passa a ter que se localizar em uma nova topologia, o tempo futuro[23].

Paralelamente, o mesmo motivo utópico da distribuição igual ou proporcional de quantidades, desenvolvido no socialismo utópico do século XIX, passará então a ser criticado enquanto modelo “totalitário”, uma vez sublinhado o seu caráter administrado. A igualdade administrada ignora a diferença de cada humano, e consiste portanto em um totalitarismo. É este o modelo que estruturará a série de distopias do controle, os “novos mapas do inferno”, que a ficção científica contemporânea reproduzirá no cinema com a frequência que conhecemos. A distopia é originalmente contrarrevolucionária, ao associar a razão como princípio de estado ao mecanismo de controle. O motivo que a move aparece pela primeira vez articulado em seu contexto específico por Edmund Burke, nas Reflexões sobre a Revolução em França (1790). A “filosofia mecânica” dos princípios metafísicos excessivamente teóricos e abstratos da Revolução Francesa significa na prática a erradicação da cultura do “coração”, dos “sentimentos”, associados ao cavalheirismo individualista e aristocrático[24]. Trata-se de uma “filosofia bárbara” que não permite o autogoverno dos indivíduos e a paixão. É esta mesma crítica que será endereçada ao socialismo utópico pela primeira vez no panfleto de Jerome K. Jerome, “A nova utopia” (1891). Jerome responde diretamente às ficções utópicas a ele contemporâneas de Edward Bellamy (1888) e William Morris (1890)[25], que constroem modelos de sociedades, respectivamente, de comunismo tecnocrático de Estado e de democracia participativa. Jerome empresta das duas utopias o estratagema narrativo de um dorminhoco que acorda de um sono de mais de cem anos e se depara com uma sociedade em que as divisões sociais e a exploração do trabalho teriam deixado de existir. A mesma moldura que alguns anos depois será adotada por H. G. Wells em Quando o dorminhoco desperta (1899), no qual Woody Allen baseou a comédia O dorminhoco (Sleeper, 1973). Vem basicamente de Jerome a representação, que adiante será expandida, de uma sociedade de um estado único, estruturado exclusivamente a partir da matemática, como a ficção crítica da União Soviética, Nós de Yevgeny Zamyatin (1921) e 1984 de George Orwell (1949). Ou como ficcionalização do liberalismo, em O admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932). Em geral, em todos esses casos trata-se de uma sociedade em que os problemas básicos da sociedade (a guerra e a fome, por exemplo) foram eliminados, estabeleceu-se uma sociedade inteiramente baseada no desenvolvimento tecnológico, livre embora programada (em Huxley), ou simplesmente autoritária (em Zamyatin e Orwell), mas à custa da eliminação de um componente fundamental da natureza humana. A igualdade administrada, derivada de More, e em última análise de Platão, só pode existir mediante a eliminação da singularidade humana (a família, a cultura, as artes, a religião), i.e., a diferença, ou a liberdade, em que se fundará o liberalismo, o que constitui o nosso paraíso e o nosso inferno.

Não nos enganemos a respeito do subtexto político dessas narrativas. A palavra robô vem do tcheco robota, “trabalho penoso”, ligado à servidão medieval, e cunhada por Joseph Capek[26]. As máquinas, desde as utopias sociais implantadas por Robert Owen, devem substituir o trabalho escravo. É como servo ideal, pacífico, e obedecendo a uma espécie de imperativo categórico robótico do bom escravo, as famosas “Três leis da robótica”, que Isaac Asimov vai compor as suas narrativas sobre robôs, no contexto do otimismo tecnocrático norte-americano[27]. Ou, ao contrário, como servo que quer dominar o humano dominador, segundo uma versão ficcional da dialética hegeliana do senhor e do escravo, em todas as narrativas ligadas ao motivo da revolta das máquinas[28]. Neste último caso, é ainda a mesma regra da inversão utópica que pautará a distopia, mobilizando uma estrutura de poder opressivo inumano, que inviabiliza a diferença humana. O inumano, subalternizado no mundo conhecido do autor e do leitor, é que domina agora o humano, num futuro mais ou menos distante. As máquinas devem ser de novo submetidas à vontade humana, e restabelecido o primado da falibilidade humana demasiado humana: a regra do coração, o amor (na trilogia Matrix dos irmãos Wachowski [1999, 2003, 2003], ou na série Exterminador do futuro, por exemplo), a caridade (a ágape de São Paulo), a piedade, erradicando-se o mundo da perfeição e da frieza maquínica, o princípio racional erigido em controle de Estado, com a vitória final do humanismo em sua versão apologética e piegas.

Convém aqui relembrar a hipótese de Fredric Jameson sobre a ficção científica mesmo que não necessariamente concordemos com todos os seus termos, sobretudo o que ela deve a certo determinismo lukacsiano[29]. Para ele o estatuto da ficção científica é paralelo e complementar ao estabelecido por Georg Lukács para o romance histórico, suplementando-o com temas levantados nos estudos de Walter Benjamin sobre Proust e sobre a experiência. Para Lukács, o gênero do romance histórico solicita uma memória do passado como fundamentalmente distinto do presente e desdobramento explicável deste passado que a história estuda e o romance histórico narra. O capitalismo requer uma experiência própria da temporalidade na qual se descortina em um passado originário o fio histórico do modo de produção capitalista.

A vitalidade do gênero do romance histórico deve ser ela também submetida à temporalidade histórica: entre a emergência do gênero com sir Walter Scott e Salambô de Gustave Flaubert o passado deixou de fornecer a senha organicamente necessária a partir da qual se vislumbra a explicação do presente. É justamente aqui, no momento da decadência do romance histórico, quando ele perde a sua funcionalidade, que surge a ficção científica, com Júlio Verne e H. G. Wells, no final do século XIX, com a proposição não mais do sentido do passado, mas do futuro, um futuro inteiramente destituído de qualquer sentido de progresso que poderia complementar a descoberta burguesa do passado originário, no romance histórico.

Se, com o romance histórico, durante o nascimento do capitalismo, o presente podia ser intensificado pela narrativa de um passado processual do qual nasceria organicamente, hoje em dia, a partir do fim do século XIX, o passado coletivo se nos apresenta como estéril e o futuro como irrelevante. Estas representações do futuro, portanto, embora obedeçam aparentemente a protocolos narrativos realistas, repousam em uma estratégia radicalmente distinta. Na ficção científica o futuro é uma via de acesso indireta e analógica ao presente. Ele compartilha com Proust do diagnóstico sobre a desafetação do presente: em nossa sociedade o presente experiencial nos é inacessível, somos anestesiados, habituados a ele por causa da intensa multiplicação de objetos que o compõem e pela espessa camada de fantasias subjetivas e objetivas – as imagens da cultura de massas que saturam o nosso imaginário – que nos defendem dele. Para acessar o presente e quebrar o filtro monádico que nos protege da realidade, fazendo-nos finalmente experimentá-la, é necessário uma estratégia indireta. Em Proust a memória ficcionalizada é o que permite que a “intensidade de um agora apenas lembrado” seja experimentada por nós[30]. É precisamente o que a ficção científica faz com o futuro. Logo, o que a ficção científica produz não é uma tentativa de representar o futuro, e sim “transformar o nosso presente em um passado determinado de algo por vir[31]”. É o presente cuja experiência nos é inacessível, que vivemos como o “passado remoto de um mundo futuro”. A estratégia de “desfamiliarização”, ou de ostranenie (estranhamento) dos formalistas russos[32], consiste, em suma, em apresentar o presente como história. O futuro é nada mais do que o espelho a partir do qual podemos pensar o presente como passado virtualmente possível.

O que interessa portanto no futuro representado não é uma crença qualquer em sua possibilidade libertária. O futuro representado na ficção científica revela a profunda pobreza de nosso presente, provando assim a nossa incapacidade constitutiva de imaginar um futuro de fato diferente. O que explica o ressurgimento de relatos utópicos na ficção científica, precisamente quando o gênero e o projeto utópico pareciam ter se esgotado. A nossa incapacidade de imaginar um futuro realmente outro é a mesma incapacidade que nos impede de conceber uma utopia de fato.

Examinemos agora três narrativas representativas de ficção científica, com a finalidade de reconstituir nem que seja minimamente a evolução do gênero. Em primeiro lugar, Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818) de Mary Shelley, que funda o gênero; em segundo, A máquina do tempo (1895) de H. G. Wells, a matriz de toda a ficção científica moderna, o primeiro romance fantástico de Wells, e para muitos a primeira narrativa de ficção científica; e em terceiro, O caçador de androides (ou Os androides sonham com ovelhas elétricas?) (1968) de Philip K. Dick, como representante da ficção contemporânea. Em cada caso, circunscreveremos o inumano que a protagoniza, e a ciência matriz que “imaginariza”.

Frankenstein, ou o Prometeu moderno, portanto, funda o gênero, extraindo o romance gótico da referência arcaizante, introduzindo a proposição científica iluminista da tecnologia como possibilidade falhada do futuro. A invenção de Victor Frankenstein situa-se precisamente na interface do nascimento da biologia, entre as ciências do oculto – Cornelius Agrippa, Albertus Magnus e Paracelso – i.e., a tradição de astrólogos e alquimistas medievais e renascentistas que o rapaz lia na adolescência – e a história natural e a química, as ciências modernas, que o jovem cientista absorve com afinco ao ser introduzido aos estudos da anatomia e da fisiologia por seus mestres universitários em sua formação na universidade de Ingolstadt, na Alemanha, cidade historicamente associada aos illuminati. Há algo de Xavier Bichat, o inventor da anatomia patológica, em Frankenstein. Assim como Bichat define, de forma inaugural, a vida como o “conjunto de funções que resistem à morte[33]”, Frankenstein faz da morte o seu grande laboratório, frequenta capelas mortuárias e catacumbas a fim de entender o fenômeno da degradação e da decomposição, da geração e da corrupção. No auge do ardor de sua invenção, seu laboratório se assemelha a um matadouro. A descoberta da “causa da criação e da vida”, do enigmático “princípio da vida”, consiste em conferir vida à matéria morta de uma forma que apenas as ciências do oculto explicariam[34]. Parece, portanto, que a invenção de Frankenstein se situa no intervalo entre a mágica alquímica e a anatomia patológica de Bichat.

Com Frankenstein surge basicamente a ficção protagonizada pelo cientista mais ou menos “louco”, assombrado pela hybris prometeica de haver almejado igualar-se aos deuses, criando homens, a “criatura”, o “monstro” – cujo destino irônico será ser conhecido pelo nome do criador que o rejeitara. A analogia teológico-científica compreende uma reescrita do mito de Prometeu em sua dupla face greco-romana, de Prometeu piróforo, o ladrão do fogo olímpico, personagem de Prometeu acorrentado de Ésquilo; e de Prometeu plasticor latino, o escultor de homens de argila[35]. O romance de Mary Shelley se estrutura em círculos concêntricos, a partir de uma narrativa-moldura composta de cartas endereçadas pelo navegador inglês Walton a sua irmã. Em uma expedição a caminho do polo Norte – lembrança das narrativas de viagens, de que deriva a ficção científica, como vimos –, ele se depara em primeiro lugar com um gigante que se assemelha a um homem, e logo em seguida com um cavalheiro estrangeiro exausto, quase morto, que Walton imediatamente recolhe em seu navio. A parte central do livro dividida em capítulos consiste na narrativa do estrangeiro, Victor Frankenstein, o inventor do monstro. Este é o relato da hybris prometeica, da desmesura de haver ousado criar uma vida roubando o fogo dos deuses e a terrível punição a que será submetido pela própria criatura que criara: abandonada por seu criador subitamente tomado de nojo pelo aspecto hediondo de seu experimento, vinga-se dele assassinando sistematicamente todas as pessoas de suas relações, queimando e destruindo tudo o que ele preza, até convertê-lo em uma réplica de si, um ser tão solitário quanto ele próprio, ou seja, criando o seu criador ao destruí-lo. Na conclusão do romance, persiste o par criatura-criador, atavicamente ligados em uma perseguição em que não se sabe quem é perseguido e quem é perseguidor, sucumbindo ambos em meio às geleiras do polo. O miolo do livro, no centro das duas molduras concêntricas que resumi acima, consiste no relato que faz o próprio monstro ao seu criador, reportado por ele ao navegador Walton, e contido nos capítulos em que Walton transcreve a narrativa de Frankenstein. O monstro discorre aqui sobre a sua vida, desde que fora abandonado pelo seu criador. Trata-se de um relato de formação rousseauniana, nos moldes do Emílio, com referências explícitas aos Devaneios de um caminhante solitário, narrando a educação de um ser absolutamente excluído da ordem dos homens, por conta de sua aparência. O monstro é educado na convivência da natureza, observa uma família de exilados franceses através de uma fenda na parede de uma humilde choupana, em que vê a família sem ser visto. É neste teatro da vida familiar que ele faz a sua educação humanista: ouve música, aprende a língua, imitando os sons que ouve de lições dadas a uma estrangeira árabe, a ler, compõe um pequeno cânone de leituras a partir do qual compreende a humanidade e sua história.

Há algo de enigmático no texto, frequentemente considerado uma falha estilística da inexperiente narradora: logo após conferir vida à criatura, concluindo magnificamente anos de trabalhos com o que seria o coroamento de sua invenção, Frankenstein, enojado, sente repulsa pelo que criou, e foge. O texto detalha o fato: os membros da criatura eram belos e bem-proporcionados, a pele deixava transparecer os músculos, os cabelos lustrosos, os dentes alvos, mas “todas essas exuberâncias” contrastavam horrivelmente com os “olhos desmaiados”. O trabalho intenso e imoderado a que se entregara ardorosamente como a um sonho, ao concluir-se desvanece, e seu coração enche-se de “horror e asco”. “Incapaz de suportar o aspecto do ser que eu havia criado, saí correndo do aposento, e continuei durante muito tempo a andar pelo quarto, sem poder dormir.” Após muito custo, concilia o sono e tem pesadelos horripilantes, premonitórios da narrativa que se seguirá, em que o corpo de sua noiva se transforma no cadáver de sua mãe. Ao despertar depara, ao seu lado, iluminado pelo pálido luar, mais uma vez, com o “infeliz monstro que […] criara”, com seus olhos fixados sobre si[36]. Como entender essa súbita mudança de opinião do criador diante da criatura que criara a não ser como o sintoma de um ponto cego do texto em que precisamente se revela a sua chave de leitura?

Jean-Jacques Lecercle provou de maneira convincente, seguindo nisso indicações da própria Mary, que o monstro é uma figura da multidão revolucionária francesa[37]. Ou seja: que por detrás do romance gótico encontram-se elementos de um romance histórico, e que o inumano romanesco é uma figura social. A partir de sugestões de datas cifradas ou deduzidas, ele consegue datar com precisão a ação do romance entre 1792 e 1799, isto é, durante o período da convenção, do terror e do diretório da Revolução Francesa[38]. As referências biográficas e as alusões históricas abundam: os pais de Mary, William Godwin e Mary Wollstonecraft, ambos intelectuais progressistas, ela uma das precursoras do feminismo, autora de The Vindication of Women’s Rights, foram testemunhas inglesas, simpatizantes de primeira hora do terror revolucionário, e escreveram longamente sobre o que viram e viveram. Suas posições a respeito são emblemáticas: francamente favoráveis, se não entusiastas, de início, mais ambivalentes a seguir, como outros ingleses no período e na mesma situação, suspeitos inclusive de espionagem pelo governo francês, cidadãos que eram de um país em guerra contra a França, e gradativamente passando a uma posição moderada, abertamente ou discretamente girondina, ao mesmo tempo em que eram considerados terroristas jacobinos na Inglaterra. O próprio círculo dos Shelley, e sobretudo Percy Shelley, já dispondo do recuo do tempo para refletir sobre um acontecimento do passado, vai se manter entusiasticamente favorável ao ideal revolucionário, no qual via o grande acontecimento da história contemporânea e a perspectiva não realizada de uma redenção do sofrimento dos pobres, embora admitisse que o povo francês não estava preparado para a revolução que construíra. Percy escreve, na mesma época em que a esposa publica Frankenstein, um drama lírico intitulado Prometeu libertado, certamente uma das fontes do motivo prometeico utilizado no romance, como uma sequência à tragédia de Ésquilo, Prometeu acorrentado, drama da predileção de Byron, poeta amigo e companheiro do círculo, saturado de ressonâncias políticas, em que Prometeu é o herói que se insurge contra o pai, Zeus, alegoria do absolutismo e do antigo regime. Nessa reversão libertária da fábula esquiliana, a figura misteriosa mas irresistivelmente ambígua que porá fim à opressão de Prometeu é Demogorgon, isto é, em grego, “povo-

-górgona”, “povo-monstro”[39].

O monstro inumano contém sugestões precisas a representações das revoltas negras e mulatas de Santo Domingo em 1791, com as quais o casal tinha grande familiaridade na época, em que se multiplicam descrições de massacres, como resultado mais do que esperado da incitação à sublevação de intelectuais visionários, i.e., na “loucura monstruosa de emancipar repentinamente homens bárbaros[40]”. Não é um acaso que o próprio personagem do romance seja citado, alguns anos após a sua publicação, em um discurso de Canning em 1824 na Câmara dos Comuns contra a libertação dos escravos das Antilhas[41]. O monstro, portanto, figura ambiguamente uma série de personagens históricos: o coletivo da multidão revolucionária, conforme representado pelos conservadores na época (Edmund Burke, por exemplo), donde a sua falta de nome ou de individualidade, que inscreve a anomia do proletariado inclusive inglês, no momento da formação da classe operária; a mob parisiense. Em suma, tudo isso leva à conclusão de que basicamente o inumano aqui é a encarnação do sans-culotte[42].

O tema sublime da aparência repulsiva, da “deformidade[43]”, discutido pelo monstro como um “preconceito” contra ele[44], figura assim ambiguamente a posição de Mary Shelley, neste sentido bem menos progressista que seu marido, com relação à multidão sublevada. O romance explica a sua vingança, mas não deixa de exprimir o horror conservador diante dela. Não há acaso portanto que seja justamente o olhar do monstro que desperte em seu criador “horror e asco”: é justamente no momento em que a criatura se torna sujeito, cuja interioridade reflexiva é denotada pelo olhar, como bem sabia Hegel, que o inventor sente repulsa. O romance explicitamente exclui a subjetividade da criatura[45]. O que pode ser claramente lido na pergunta que o monstro angustiadamente repete a seu criador: “Que era eu?[46]” (And what as I?), e nunca: Quem era eu?.

Uma leitura circunstanciada de Frankenstein nos faz observar em primeiro lugar que o que articula os três segmentos concêntricos que estruturam o romance – a moldura epistolar das cartas de Walton à sua irmã; o relato de Frankenstein; e, no centro deste e do romance, a história do próprio monstro – é o tema rousseauniano da piedade, o sentimento de identificação à dor do outro[47]. Assim, a história contada pelo extenuado Frankenstein ao navegador lhe inspira compaixão. Da mesma forma, o monstro se compadece do sofrimento da família francesa de exilados que observa de seu esconderijo, aprende a língua e a cultura identificando-se com o teatro que vê de um orifício oculto na parede, identifica-se com os protagonistas dos livros que lê, O paraíso perdido de Milton, um volume das Vidas ilustres de Plutarco, Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe… Mas apenas o criador não tem compaixão pela criatura que criou.

Suas palavras produziram um estranho efeito sobre mim. Fiquei compadecido, a ponto de desejar consolá-lo, mas, quando o contemplei, quando vi aquela massa suja [filthy] que se movia e falava, senti uma angústia no coração e meus sentimentos se transformaram em horror e ódio. Tentei sufocá-los, achando que, pelo fato de não simpatizar com ele, não tinha o direito de privá-lo daquela porção de felicidade que estava em minhas mãos conceder-lhe [i.e., fabricar uma companheira para o monstro][48].

É essa falta de simpatia pelo inumano, instituindo uma fissura na ciência humana, i.e., precisamente aquela que se organiza em torno de sujeitos que são objetos de si próprios, segundo a definição de Foucault[49], que aparece como traço de estranheza precisamente no ser mais sofisticado, doravante o protagonista da ficção científica, o inventor, o cientista.

Mas é com Herbert George Wells, a partir do evolucionismo biológico, que se chega à modernidade da ficção científica. O primeiro romance científico que escreve, A máquina do tempo (1895), está intimamente ligado aos seus estudos com Thomas Huxley, o biólogo inglês, grande divulgador das ideias de Charles Darwin. A hipótese da seleção natural das espécies através da luta pela sobrevivência, que consumaria a vitória do mais bem adaptado às condições naturais, é um poderoso modelo explicativo da vida natural colocada no vetor temporal. O paradigma evolucionista baseia-se na noção de necessidade, como função determinante e regulatória da sobrevivência: por necessidade de sobreviver combatem as espécies, é a necessidade que determina os caracteres mais bem adaptados e a sua reprodução. A esta função de seleção natural Huxley acrescenta a da liberdade – seguindo nisso a polaridade filosófica clássica, fundada por Agostinho e perpetuada na filosofia do sujeito – essa função deveria descrever a ação seletiva humana, a cultura, sob a forma, por exemplo, da agricultura, como adequação da natureza aos fins produtivos, artificiais humanos. Daí a dicotomia no próprio título da conferência Evolução e ética – Prolegômenos, assistida por Wells em 1894, ano em que estuda com Huxley, e anterior à publicação de sua novela, em que o termo “ética” descreve algo como o programa humano aplicado à natureza.

A evolução contém implícito o pressuposto de um longo arco de mutações progressistas que culminariam no homem como senhor absoluto da natureza e continuador dos planos da seleção natural em seu próprio interesse. Conforme a define Huxley, na mesma conferência, evolução significa a mutação gradual de uma condição de uniformidade, ou de relativa uniformidade à de uma relativa complexidade, ou de uma complexidade maior. Caminhando no sentido contrário ao do tempo, observaríamos no passado remoto uma diversidade de seres convergindo a uma série de complexidade decrescente, eventualmente se apagando a oposição entre vegetal e animal, e conduzindo à hipótese de uma substância única. Ora, é esta visão otimista tão característica da Inglaterra vitoriana que vai ser vigorosa e escandalosamente preterida por Wells em A máquina do tempo. E se, ao contrário do plano tão belamente traçado pelo evolucionismo, a humanidade não se desenvolvesse progressivamente? E se houvesse uma “metamorfose retrogressiva”– esta é a expressão de Huxley – isto é, o “progresso de uma condição de relativa complexidade a de relativa uniformidade”[50]? É exatamente o que Wells vai descrever em A máquina do tempo.

O que esse aluno idiossincrático de Huxley faz é literalmente inverter a série evolutiva canônica darwiniana. A tese evolutiva figura uma série de opostos, condensando o motivo da luta, que resume o mecanismo e explica a série: homens e primatas; placentários e marsupiais; mamíferos e pássaros; animais de sangue quente e animais de sangue frio etc., até chegarmos no final, isto é, na origem – é o termo de Darwin – aos opostos, animais e plantas; seres orgânicos e inorgânicos; existência e não existência[51]. Ora, Wells começa do final, isto é, do ser humano, para projetar sobre o futuro a mesma série de Huxley, mas invertida, concluindo-se milhões de anos no futuro, no último estágio de tempo visitado pelo viajante do tempo, no literal desaparecimento da vida. O ciclo evolutivo, partindo do nada, chegaria, no futuro, ao nada, configurando um gigantesco círculo linear em quiasmo.

A máquina do tempo, como Frankenstein, é estruturado a partir de uma narrativa-moldura, em que o protagonista, o “viajante do tempo”, discute com amigos sobre o paradoxo da quarta dimensão do tempo, e mostra a seus ouvintes incrédulos uma máquina, de sua fatura, com a qual dizia poder viajar no tempo. Wells retira o modelo da viagem do tempo de Bellamy e de Morris, com quem debate no romance, mas projeta-o em um aparelho que produziria a viagem. O centro da novela consiste no relato feito por ele, uma semana depois, a uma audiência de amigos um pouco modificada, sobre a sua viagem ao ano 802.701 d.C. No futuro ele encontra uma sociedade de homens e mulheres que parecia inicialmente confirmar a tese darwiniana de um aperfeiçoamento crescente da vida natural e humana, por meio do controle social e da agricultura, em uma espécie de Idade do Ouro: o mundo solar em que os frutos e as flores eram bem maiores, e do qual os vermes e os insetos haviam sido erradicados. A indiferenciação de gêneros entre homens e mulheres, vestidos de maneira idêntica, imberbes, com os “mesmos membros roliços de uma menina”, conduz o viajante do tempo à hipótese de que no futuro reinaria uma espécie de comunismo: a dissolução da família e da distinção das funções combativas para os homens e de procriação para as mulheres, a que, conforme observa o viajante, já assistimos hoje em dia, seria agravada, terminando por desaparecer por completo no futuro[52]. A especialidade de gêneros se dissipa à medida que a necessidade da família desaparece, em uma especulação que junta elementos da utopia platônico-moriana a Darwin. A interpretação darwiniana deve ser logo, no entanto, nuançada: ele encontrara a humanidade em decadência. O triunfo do controle ético, humano sobre a natureza, revertendo no desaparecimento da necessidade de progredir, que move a mutação, acabaria por produzir uma estagnação dos seres. O que na prática significa um dilema no evolucionismo: já que, por excesso de progresso, os seres tenderiam a involuir, a diferenciação crescente, característica do vetor progressivo, tende à uniformidade e não à variação crescente. O advento da segurança material resultante do domínio sobre a natureza, em uma sequência de força da humanidade, teria sido sucedido por um período de calmaria, de fraqueza, com os seres humanos dedicados às artes, ao erotismo. Daí a fragilidade física dos habitantes de 802.701 d.C., que viviam brincando e dançando, como borboletas, em meio a flores, em uma espécie de idílio regressivo, parecendo-se com verdadeiras crianças. Eles desaprenderam a ler, manifestam uma profunda “falta de desinteresse” pelas coisas e pelas pessoas, e inclusive parecem indiferentes à morte uns dos outros, conforme o viajante percebe no episódio do quase afogamento de Weena, o esterotípico personagem feminino por quem se enamora, o que define, segundo o paradigma que venho definindo, a sua inumanidade: falta a eles basicamente a piedade rousseauniana.

Mas esta primeira hipótese interpretativa, a que se sucederão mais duas, revela-se completamente falsa: a humanidade, o viajante do tempo eventualmente descobre, ter-se-ia desenvolvido não em uma, mas em duas espécies distintas. A solar, dos Elois, que ele conhecera inicialmente, e sobre a qual especulara, e a subterrânea e soturna dos Morlocks, espécie de símios brancos, Lêmures cuja existência ele só descobrirá mais tarde. Os Morlocks são descendentes dos operadores das máquinas, i.e., dos operários, no momento do desenvolvimento industrial do século XIX, e os Elois são descendentes das classes privilegiadas, que usufruíam dos benefícios do trabalho operário. Seria o trabalho Morlock, desenvolvido ao longo de centenas de anos em indústrias subterrâneas, gerando inclusive neles um sistema óptico inteiramente adaptado à visão noturna, que sustentaria o idílio dos Elois. O abismo social entre as classes teria gradativamente se biologizado à medida que as classes teriam caminhado para a segregação total, exacerbando uma tendência presente já hoje em dia, i.e., no século XIX, mas ainda então atenuada por casamentos interclasses. Aos poucos, no entanto, a reprodução exclusiva de cada classe no interior de si mesma teria engendrado literalmente duas espécies. A explicação para a estagnação dos Elois e sua subordinação àqueles que um dia lhes foram submissos já fora adiantada pelo viajante do tempo: à medida que a necessidade, o eterno motor da mutação progressiva, tivesse deixado de pressioná-los a evoluir, eles teriam pouco a pouco involuído. Mas isso ainda não é tudo. O viajante do tempo eventualmente descobre que os Morlocks se alimentam da carne dos Elois, que constituem assim uma espécie de “povo gado”, bem alimentado, vegetariano (os Elois são frutívoros), como costuma acontecer com toda criação bovina que se preze. Em algum momento na história da humanidade teriam faltado alimentos, e, diante da fome e da necessidade de fazer subsistir o trabalho que sustenta a vida de todos, ter-se-ia feito a opção de alimentar os trabalhadores, que mantinham a sociedade funcionando, com a carne das antigas classes privilegiadas, no que não deixa de ser uma versão, mais uma vez, da dialética hegeliana do senhor e do escravo.

Vemos dessa forma como a tese utópica inicial, amparada em um darwinismo otimista, é agora invertida em uma distopia sombria: o desenvolvimento progressivo que produziria a variação superior dos homens como mutação interna à espécie símia seria seguido no futuro pela sua inversão: é uma mutação simiesca gerada como variação humana, que dominaria a antiga espécie humana, identificada aos Elois. Tocamos aqui em uma questão delicada: o viajante do tempo não tem nenhuma dificuldade em identificar-se com os Elois, os descendentes das classes proprietárias. Eles são vistos por ele como os verdadeiros herdeiros da mutação humana, enquanto os descendentes dos operários são vistos de forma repulsiva.

Eu sentia certa rejeição por aqueles corpos pálidos [dos Morlocks]. Eles tinham a mesma cor semiesbranquiçada dos vermes e das coisas que se veem conservadas num museu de zoologia. E, quando se tocava neles, eram repulsivamente frios. Provavelmente minha rejeição era em grande parte devida à simpática influência dos Elois, cujo repúdio aos Morlocks eu agora começava a apreciar[53].

Indica-se aqui, para alguns críticos, o preconceito de classe de Wells, ele próprio de origem modesta, filho de jardineiro e empregada doméstica. De toda forma, é evidente que o narrador escolhe identificar-se aos inumanos de sua preferência, evidentemente movido, em parte, pela intenção heroica de defesa da vítima, motivo que vai mobilizar a trama do romance de aventuras.

Podemos agora resumir o problema central de A máquina do tempo como programa da ficção científica por vir. Wells inverte a estrutura básica do darwnismo social. Ao invés de pensar a cultura a partir da analogia para com o mecanismo da seleção natural, é a biologia que serve de metáfora social. Wells produz um aterrorizante espelho a partir do qual devemos pensar o presente. E de fato, como sempre na ficção científica, é o presente que interessa, acessado indiretamente pela analogia da ficção. Como podemos perceber na seguinte passagem na qual se exprime com exatidão a parábola moral contida nesta versão não marxista, biológica, da moral da luta de classes:

Então tentei evitar o horror que estava se apoderando de mim, considerando aquilo uma punição rigorosa ao egoísmo humano. Os homens haviam ficado contentes por viver com tranquilidade e prazer graças ao trabalho de seus semelhantes, haviam tomado a Necessidade como seu lema e desculpa, e com o passar do tempo a Necessidade tornou-se familiar a eles[54].

O futuro projetado na superfície do espelho inumano da ficção é uma punição para o nosso “egoísmo” do presente. Poderíamos, se quiséssemos, é o subtexto da fábula, modificá-lo, mas de fato queremos modificá-lo?

O caçador de androides (Do Androids Dream of Electric Sheep? [Os androides sonham com ovelhas elétricas?]), de Philip K. Dick (1968), situa-se em 2021. Como em geral nas narrativas de Dick, a ação se desenrola após uma catástrofe ecológica nuclear, a guerra Terminus, que gerara uma poeira radioativa que pouco a pouco erradicara toda a vida animal na Terra. A emigração para Marte passa a ser estimulada pelas Nações Unidas, e um dos grandes incentivos para ela é que cada colono teria direito a um robô humanoide, um androide orgânico, para realizar as tarefas domésticas. A grande maioria dos humanos que aqui permaneceram foi afetada pela radiação. Mesmo usando tapa-sexos de chumbo para se proteger, todos têm uma fragilidade física importante, quando não são “Especiais”

– categoria de retardados que são impedidos de emigrar e compõem a grande maioria da população da terra gasta em que a Terra se transformou. A população que aqui permaneceu é unificada por tecnologias de massa: uma religião universal, o Mercerismo, que tem como messias Wilbur Mercer, acessível de cada lar por meio de uma caixa de empatia que permite a todas as pessoas se fundir com Mercer a qualquer hora; a Televisão, com um show de audiência universal, o Buster Friendly Show, publicidade, entrevistas, que rivaliza com o mercerismo; e moduladores psíquicos individualizados com uma gama imensa de estados de ânimo programáveis e codificados em seletores. O grande artigo de consumo são os animais de estimação, que atingem preços altíssimos no mercado quando autênticos, ou mais baratos quando mecânicos, ambos vendidos em lojas especializadas, outras que produzem réplicas vivas perfeitas de animais mortos, ou de consertos, de substituição de peças etc. Ter um animal é o símbolo de status máximo, e logicamente os animais autênticos conferem maior status do que as reproduções.

Com o aperfeiçoamento da fabricação de androides-servos, eles se tornaram virtualmente indistinguíveis dos humanos, sendo em alguma medida superiores aos seus criadores. A fuga de androides de última geração Nexus 6 para a Terra, terminantemente proibida pelo estado, mobiliza a trama policial futurista, criando a figura do caçador de androides, mutação do antigo detetive da série noir – um dos códigos estéticos utilizados por Ridley Scott na adaptação cinematográfica do romance, Blade Runner (1982) –, que deve caçar os androides, identificá-los e “aposentá-los”, i.e., executá-los. Os Nexus 6 são dotados de memória e sentimentos, implantados na fabricação, e é impossível distingui-los de humanos, a especificidade humana com relação aos androides residindo quase que exclusivamente na capacidade de empatia. Dessa forma, a identificação dos androides fugitivos que vivem como humanos na Terra, ocupando profissões as mais variadas, e algumas de destaque, como a cantora de ópera Luba Luft[55], passa a ser a aplicação de um sofisticado teste psicológico, que classifica na Escala AlteradaVoigt-Kampff, desenvolvida recentemente por cientistas ligados às corporações multiplanetárias fabricantes de androides, o nível empático do indivíduo testado. O problema é que esta nova escala, ainda em teste, não é inteiramente confiável, havendo sério risco de que humanos – pacientes esquizoides, por exemplo – não passassem no teste, podendo então ser “aposentados” por engano[56]. É com este pano de fundo que a narrativa se desenrola, protagonizada por Dick Deckard, um caçador de recompensas que recebe mil dólares por androide aposentado e que sonha em comprar, com o dinheiro obtido com a execução de androides, uma ovelha autêntica para substituir a sua mecânica, uma reprodução da que tinha antes e que morrera.

Essa é a trama de fundo dessa distopia clássica contemporânea. A partir dos elementos já aqui identificados, podemos perceber uma série de recorrências. Trata-se de uma sociedade administrada, colonial, em moldes estritamente capitalistas, distintos portanto da configuração autoritária da gestão racional, matematizante, utópica, criticada nas ficções soviéticas. O androide consiste em uma mutação do robô, i.e., do servo, na tradição utópica descrita acima, mas transformado em empregado doméstico, ou operário industrial, em uma sociedade radicalmente individualizada, organizada em torno do consumo e da comunicação de massas, no contexto da ocupação colonial do espaço planetário. O motivo da empatia, desenvolvido pela psicologia clássica de Theodor Lipps, e que retoma a identificação e a piedade rousseauniana, reaparece agora na ficção como estrutura distintiva do humano: inscrito na religião de massas, na fusão virtual coletiva – esse é o termo utilizado – com a figura vitimária de um messias que galga uma montanha e é alvejado por pedras que ferem realmente os crentes “linkados” por caixas empáticas; na relação com os animais de estimação, encorajada e desejada por despertar empatia nos humanos com não humanos; e finalmente como instrumento de diferenciação policial entre o humano e o inumano, último reduto de uma humanidade já agora completamente replicável. Como toda distopia, há em O caçador de androides uma série de diagnósticos da sociedade contemporânea: a programação de sentimentos por mídias, o consumo de massas, a religião universal, espécie de cristianismo tecnificado mesclado com taoismo – transpostos em chave hiperbólica para a figura ficcional, que consiste em uma leitura analógica da sociedade em que vivemos.

Mas, ao recompormos essa figura, estaremos muito longe de tocar na verdadeira arte de Dick. Se a ciência de referência de Frankenstein era uma patologia alquimizada, e a de A máquina do tempo, o evolucionismo biológico, em O caçador de androides a ficção científica dialoga com a inteligência artificial, a cibernética, e sistemas científicos abertos, informados pelo princípio de incerteza de Heisenberg[57].

Em um mundo “absolutamente moderno”, para emprestar uma fórmula de Rimbaud, a simbiose entre homens e máquinas não permite mais que se julgue a legitimidade do princípio de desumanização maquínica a partir de um mundo humano de referência fixo e fechado. Dick estabelece zonas de reversibilidade do paradigma humanista que parece construir ao recorrer ao velho princípio empático para definir o humano. O texto não pretende fornecer respostas, apenas colocar boas perguntas. Assim: em que medida o humano Deckard, que passa com facilidade no teste empático ao executar friamente máquinas humanas, é de fato humano e não simplesmente uma máquina humana programada para matar? Qual o sentido de matar androides para comprar animais de estimação, trocando um inumano por outro? O dilema surge de forma aguda no confronto com seu duplo, Phil Resch, outro caçador de androides que gosta de matar, que poderia inclusive matar um humano como Deckard, só precisando para isso de um pretexto. Sua humanidade é posta à prova, já que ele poderia ser um androide sem sabê-lo. Ele realiza o teste Voigt-Kampff, e é detectado nele um “defeito em sua capacidade empática para assumir papéis[58]”: ele não consegue sentir nenhuma empatia por androides.

Deckard explicita o dilema ético: por que devo matar uma cantora de ópera genial, com intensa sensibilidade artística – ele a encontra admirando o quadro Puberdade, de Münch, em um museu –, só porque é uma androide, e não um homem inútil à humanidade como Phil Resch, cujo único sentido na existência é matar? Uma máquina de matar androides é pura e simplesmente uma máquina como os androides. O episódio faz Deckard repensar o sentido de sua profissão e em mudar de carreira. Ele faz sexo com a androide Rachel Rosen, que aceita fazê-lo sem nenhum sentimento, incapaz que é, como androide, de empatia com o outro. Mas ele, como humano, se identifica com ela no ato de amor, o que o faz pôr em questão definitivamente a lógica de sua profissão. Apenas para, no instante seguinte, ameaçado por uma pistola laser, ele matar Pris Stratton, o duplo androide de Rachel Rosen.

Ou então: o que pensar do “Especial” John Isidore, funcionário subalterno de uma firma de consertos de réplicas animais, desprezado pelos humanos, seus semelhantes, incapazes de sentir por ele qualquer empatia? É ele que ajuda aos androides fugitivos, abrigando-os em seu apartamento, por pura empatia para com eles, que, por sua vez, como androides, são incapazes de reciprocar. Ou seja: entre os inumanos, quem é o mais humano?

Dick define as características da psicologia androide da seguinte maneira: “pobreza de sentimentos, previsibilidade, obediência, inabilidade de fazer exceções, e uma inabilidade de alterar-se com as circunstâncias e tornar-se algo novo[59]”. Trata-se de uma definição tradicional do mecanismo, mas em que medida os humanos não têm uma psicologia semelhante, se não idêntica? O androide de Dick, como toda ficção científica, é um espelho analógico inumano a partir do qual podemos refletir sobre o humano, que é, na verdade, tão ou mais inumano do que as máquinas que criou. Apenas para percebermos que precisamos reinventar o humano em novas bases, já que as que conhecemos não dão conta minimamente da nossa ideia de humano, ou do que o humano deveria ser. Nesse sentido, a ficção científica aponta para um limite em nossa imaginação: temos condição de imaginar de fato o humano? Dick afirma que o herói principal da ficção científica é a ideia, termo que retorna mais uma vez a Platão, e nomeia algo como a imaginação ou a ficção[60]. De forma expandida, a ficção científica seria sempre uma mise en abyme que postula concomitantemente a ficcionalidade do real objetivo e a realidade da ficção subjetiva, como possíveis fontes da realidade objetiva que experimentamos. Isso é o que sugere o sistema de duplos espelhados dos personagens de O caçador de androides. O que significa perguntar-se, como o personagem do conto “Formiga elétrica”, se a realidade objetiva não é uma universalização hipotética, estatística, de uma multiplicidade consensual de realidades subjetivas[61]. Pergunta que o inumano coloca ao humano.

Notas

  1. Immanuel Kant, Anthropologie du point de vue pragmatique, trad. Michel Foucault, Paris: Vrin, 1970, 2a ed., pp. 161, 169. Cf. David L. Clark, “Kant’s Aliens. The Anthropology and its Others.” The New Centennial Review. 1.2 (2001). Devo a Oswaldo Giacoia a sugestão desse ponto. Além disso, agradecimentos a Lúcia Ricotta e a Henrique Cairus são devidos.
  2. Claude Lévi-Strauss, “Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de l’homme”. Em: Anthropologie Structurale ii, Paris: Plon, 1996, p. 50.
  3. Darko Suvin, Metamorphoses of Science Fiction. On the Poetics and History of a Literary Genre, New Haven/Londres: Yale University Press, 1979, pp.4, 7-8.
  4. Mary Shelley, Frankenstein, ou o Prometeu moderno, trad. Miécio Araujo Jorge Hopkins, Porto Alegre: l&pm, 1997, p. 13.
  5. Stanislaw Lem, “Todorov’s Fantastic Theory of Literature”, Science Fiction Studies 4, 1974.
  6. Patricia S. Warrick, The Cybernetic Imagination in Science Fiction, Cambridge/Londres: mit Press, 1980, pp. 54-55.
  7. Paul K. Alkon, Science Fiction Before 1900.Imagination Discovers Technology, Nova York: Twayne Publishers, 1994, p. 5.
  8. Mary Shelley, op. cit.
  9. Paul K. Alkon, op. cit., p. 25.
  10. Na codificação conhecida de Todorov da literatura fantástica, os primeiros corresponderiam ao fantástico maravilhoso. (Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica, trad. Maria Clara Coorea Castello, São Paulo: Perspectiva, 2007, 3a ed., pp.58-63.) Evidentemente, Todorov se equivoca ao incluir a ficção científica no campo do fantástico maravilhoso. A respeito, cf. Stanislaw Lem, “Todorov’s Fantastic Theory of Literature”, Science Fiction Studies 4, 1974.
  11. Henry George Wells, “Preface”. Em: The Scientific Romances, Londres: Victor Gollancz Ltda., 1935, p. vii.
  12. Ibidem, p. viii.
  13. Aristóteles, La Poétique, trad. Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, Paris: Seuil, 1980, 49b 24-28, p. 53.
  14. Platão, A República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, 8a ed., p. 73. Traduzo tõ lógo por “no discurso” ao invés de “em imaginação”, como Maria Helena da Rocha Pereira o faz, porque me parece que a tradução escolhida pela tradutora portuguesa não dá conta do sentido de Platão.
  15. Thomas More, Utopia, edição e tradução de George M. Logan, Robert M. Adanns e Clarence H. Miller, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 267.
  16. Ibidem, p. 269.
  17. Fredric Jameson, “Of Islands and Trenches: Naturalization and the Production of Utopian Discourse”, Diacritics, 7:2, 1977, p. 15. Resenha de Utopiques: Jeux d’espaces de Louis Marin, Paris: Edtions de Minuit, 1973.
  18. More é citado, a propósito, por Marx, em uma famosa nota de rodapé, no início do capítulo sobre “A acumulação primitiva” de O capital (Karl Marx, Capital. A Critique of Political Economy, trad. Eden e Cedar Paul, Londres/Toronto, J. M. Dent & Sons, vol. II, p. 797.)
  19. Platão, na República, v, 416d (p. 159), estipula o comunismo entre os guardiões e nas Leis (v, 739b-c), para todas as classes. (Platão, Oeuvres complètes, vol. II, trad. Léon Robin, Paris: Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1950, pp. 795-796).
  20. Conforme argumenta Sócrates: “[…] o resultado é mais rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo com a sua natureza […]”. Platão, A República, op. cit., 370c, p. 74.
  21. Thomas More, op. cit., p. 101. A referência de Platão é: República, vi, 496d-e (pp. 289-290, na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira). Não é de somenos importância, no entanto, que tanto More, na corte de Henrique viii, quanto Platão, em Siracusa com os tiranos, Dionísio, o velho e o jovem, tenham feito suas respectivas tentativas fracassadas de intervenção política real, o que, no caso de More, lhe custou a vida, e que ele faça Hythloday defender uma posição que no mesmo momento ele próprio contradizia em sua vida.
  22. Karl Marx e Friedrich Engels, “Manifest of the Communist Party” [1847-1848]. Em: Selected Works, Nova York: International Publishers, 1969, pp. 60-61. Ver, a respeito da necessidade de repensar o socialismo utópico retirando-o da oposição para como o chamado socialismo científico, Darko Suvin, “‘Utopian’ and ‘Scientific’: Two Attributes for Socialism for Engels”, e Fredric Jameson, “Introduction/Prospectus: To reconsider the Relationship of Marxism to Utopian Thought”, ambos em The Minnesota Review, 1976.
  23. Darko Suvin, op. cit., pp. 116-117.
  24. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, trad. Renato de Assumpção Faria et al., Brasília: Editora da UnB, 1997, 2a ed., pp. 90, 100, 101.
  25. Edward Bellamy, Looking Backward 2000-1887 (1888); William Morris, News from Nowhere (1890). Ambas acessíveis no Project Gutenberg. Disponíveis em: <http://www.gutenberg.org/etext/25439> e

    <http://www.gutenberg.org/files/3261/3261-h/3261-h.htm>. (Acesso em: mar. 2017.)

  26. Darko Suvin, Metamorphoses, op. cit., p. 270.
  27. As três leis são: 1) Um robô não pode ferir um ser humano nem, por inação, permitir que um ser humano seja machucado; 2) Um robô deve obedecer às ordens dadas a ele por seres humanos exceto quando estas ordens entrarem em conflito com a primeira lei; 3) Um robô deve proteger a sua própria existência enquanto essa proteção não entrar em conflito com a primeira ou a segunda lei. Retirada de Patricia S.Warrick, op. cit., p. 65. De Asimov, ver The Complete Robot, Nova York: Harper Collins Publisher, 1995.
  28. G. W. F. Hegel, “Dominação e escravidão”, Fenomenologia do espírito, Parte 1, trad. Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes, 2001.
  29. Fredric Jameson, “Progress Versus Utopia, or: Can We Imagine the Future”. Em: Archeologies of the Future. The Desire Called Utopia and Other Science Fictions, Londres/New York: Verso, 2005. O ensaio foi originalmente publicado em Science Fiction Studies 27, 1982.
  30. Ibidem, p. 287. Idem, p. 288.
  31. Ibidem, p. 288.
  32. A “desfamilizarização”, ou ostranenie, em russo, é a expressão cunhada por Viktor Shklovsky no ensaio “Arte como procedimento” (“L’art comme procédé”, em: T. Todorov, Théorie de la littérature, Paris: Éditions du Seuil, 1965.
  33. Cf. Michel Foucault, O nascimento da clínica, trad. Roberto Machado, Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1977, pp. 142-143.
  34. Mary Shelley, Frankenstein, op. cit., p. 55.
  35. Jean-Jacques Lecercle, Frankenstein: mythe et philosophie, 2a ed., Paris: PUF, 1994, p. 41.
  36. Mary Shelley, Frankenstein, op. cit., pp. 61-62.
  37. Mary Shelley, comentando sobre a vida político-literária de seu pai, William Godwin, e seu entusiasmo pela Revolução Francesa, escreve o seguinte, em sua biografia do pai: “O gigante agora despertou. O espírito, nunca entorpecido, mas nunca tampouco estimulado até a totalidade de suas energias, recebeu a centelha que o acendeu em uma chama inextinguível. Quem pode hoje dizer os sentimentos dos liberais durante a primeira eclosão da Revolução Francesa? Apenas pouco tempo após ele foi manchado pelos vícios de Orleans e de Mirabeau – ofuscado pela falta de talento dos Girondinos – deformado e manchado pelo sangue dos Jacobinos. Mas em 1789 – e em 1790 era impossível, salvo a um cortesão, não ser aquecido pela brilhante influência geral.” (Mary Shelley, The Life of William Godwin. Disponível em: <http://setis.library.usyd.edu.au/godwin/pdf/ch1.pdf.> Acesso em: mar. 2017.)
  38. Jean-Jacques Lecercle, op. cit., p. 55.
  39. Ibidem, p. 69. Percy Shelley, “Prometheus Unbound”. Em: Plays, Translations and Longer Poems, Londres:

    J.M. Dent & Sons Ltda; Nova York: E. P. Dutton & Co. Inc., 1907, reimpressão 1931, pp. 217-218.

  40. A citação é da History of the West Indies de Bryan Edward, apud Darko Suvin, Metamorphoses, p. 135.
  41. “Ao lidar com o negro, senhores, devemos nos lembrar que estamos tratando com um ser que possui a forma e a força de um homem, mas o intelecto de uma criança. Libertá-lo no estado adulto de sua força física, na maturidade de suas paixões físicas, mas na infância de sua razão não instruída, seria criar uma criatura que se assemelha à esplêndida ficção de um romance recente [Frankenstein]; cujo herói constrói uma forma humana, com todas as capacidades corpóreas de um homem, e com os músculos e tendões de um gigante; mas sendo incapaz de infundir à obra de suas mãos uma percepção do certo e do errado, ele descobre tarde demais que criara apenas um poder mais do que mortal de cometer danos, e ele próprio foge do monstro que criou.” Apud, Darko Suvin, op. cit., pp. 135-136.
  42. Lecercle, op. cit., pp. 71, 72.
  43. Mary Shelley, op. cit., p. 121.
  44. Por exemplo, ibidem, p. 142, mas as referências são inúmeras.
  45. Barbara Johnson, “Le dernier homme”. Em: Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy (orgs.) Les fins de l’homme. Actes du colloque de Cerisy sur Derrida, Paris: Galilée, 1981, p. 78.
  46. Mary Shelley, op. cit., p. 128.
  47. Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 170.
  48. Mary Shelley, op. cit., pp. 155-156, tradução modificada.
  49. Michel Foucault, As palavras e as coisas, trad. Salma Tannus Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  50. Thomas Huxley, Evolution and Ethics – prolegomena. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/ ebooks/2940>. Acesso em: janeiro de 2017.
  51. Darko Suvin, Metamorphoses, op. cit., p.226.
  52. H. G. Wells, A máquina do tempo, trad. Daniel Piza, São Paulo: Nova Alexandria, 2001, p. 47.
  53. H. G. Wells, op. cit., p. 73.
  54. Ibidem, p. 87.
  55. Philip K. Dick, O caçador de androides, trad. Ryta Vinagre, Rio de Janeiro: Rocco, 2007, pp. 143-147.
  56. Ibidem, p. 51.
  57. Patricia S. Warrick, op. cit., p. 96.
  58. Philip K. Dick, op. cit., p. 153.
  59. Philip K. Dick, citado em Bruce Gillespie (ed.), Philip K. Dick: Electric Sheperd, Melbourne: Nostrilla Press, 1975, p. 57, 63, apud Patricia S. Warrick, op. cit., p. 223.
  60. Patricia S. Warrick, op. cit., p. 216.
  61. Philip K. Dick, “The Electric Ant”. Em: John Brunner, (ed.) The Best of Philip K. Dick, Nova York: Ballantine Books, 1970, p. 441, apud Patricia S. Warrick, op. cit., p. 229.

    Tags

  • Aldous Huxley
  • alteridade
  • androide
  • ciborgue
  • Darvo Suvin
  • Darwin
  • distopia
  • evolucionismo
  • ficção
  • ficção científica
  • futurismo
  • Herbert Georg Wells.
  • humano
  • inteligência artificial
  • inumano
  • Issak Asimov
  • Jonathan Swift
  • Júlio Verne
  • Mary Shelley
  • Philip K. Dick
  • robô
  • Rosseau
  • Stanislaw Lem
  • Thomas Morus
  • utopia