2015

Matar sem culpa: algumas reflexões sobre os assassinatos coletivos

por Eugène Enriquez

Resumo

Por que os assassinatos coletivos se impuseram tanto no século XX: essa é a questão central a ser aqui considerada. Para compreender melhor o problema, ele será visto a partir de quatro “razões”: antropológicas, sociológicas, psicossociológicas e psicológicas. Recorremos às teses de Hobbes e Freud sobre a tendência do ser humano de matar o outro, versus o conceito de Rousseau sobre “a bondade do homem em estado de natureza”. Concorre para a visão de Hobbes e Freud o fato de que todas as civilizações – para seu próprio escândalo – tenham cometido transgressões de um interdito que as definem: não matar; assim, “a civilização é o reinado da paz e da guerra” (Lévi-Strauss). A Primeira Guerra expôs formas de violência até então inauditas e, para melhor compreender o que levou e tem levado o homem a cometer formas de assassinatos em massa desde século XX, partimos da “ligação estreita entre Estado moderno e guerra, o triunfo da racionalidade instrumental (e seu corolário, o declínio da transcendência dos valores) e a construção de um homem novo, oscilando entre a paranoia e a apatia.” A racionalidade instrumental é capaz de perguntar “como”, mas não o “por que” das inovações científicas que possam vir a afetar vidas. Quanto ao agente da violência, o paranoico que, por definição, desconfia constantemente tanto do mundo quanto do outro, o faz supostamente pelas “boas razões”. Assim, ele é propenso a agir antecipadamente às agressões “iminentes” contra si, tarefa que é facilitada por sua apatia, característica de nosso tempo, que o leva a matar o semelhante – literal ou simbolicamente – sem “padecer” a partir desse ato. Reich considerou que o indivíduo crê no que lhe dizem os poderosos, mas não crê em seu próprio pensamento, o que nos faz levar em conta aspectos determinantes do meio, uma vez que “o paranoico, seguro de seu direito, certo de lutar contra as forças do mal, vai colocar toda a sua energia e suas pulsões a serviço de sua causa. Se for ao mesmo tempo apático, perverso, fará esse trabalho também com a capacidade meticulosa do bom funcionário.” Encontramos na junção da sociedade com o indivíduo condições propícias para a violência de origem psicossocial, identificada com o peso de ideologias, seitas, nacionalismos exacerbados e com a opressão dos Estados e do capital. Essa violência decorre de uma identificação em que “os membros do grupo cedem ao contágio das atitudes e dos comportamentos para não serem rejeitados […]”. Por fim, é necessário explorar as razões psicológicas da violência. Ainda que não seja possível e tampouco apropriado querer isolar indivíduo e sociedade, aludimos a uma condição em que um comportamento prévio, masoquista, transformado em sadismo, projeta-se sobre o outro, mas será mais fácil odiar o outro se a sociedade der ferramentas ideológicas para isso, porque assim a culpa original advinda da prática da violência pode ser aplacada.


[1]

Genocídios armênio, judeu, cigano, ruandês, bósnio etc. A lista poderia ser aumentada e por certo se estenderá. O século XX, após a grande carnificina de 1914-1918, terá sido marcado pelos genocídios. É verdade que os séculos precedentes também conheceram, no mundo dito civilizado, seus massacres. Quanto aos membros das tribos arcaicas que se designavam simplesmente como os homens, eles tampouco foram ternos com seus adversários. Mas o século XX deu ao reinado do assassinato de massa seu princípio de legitimidade. Devem desaparecer os seres diferentes (estranhos, estrangeiros) por causa de sua impureza e de sua fraqueza (ou de sua força fantasmática). Esses seres diferentes podem se agrupar ou ser agrupados em comunidade (judeus, ciganos etc.), fazer parte do conjunto nacional (comunistas, descrentes ou supostos quejandos, subversivos de todo gênero) ou de um conjunto qualificado de inimigo. Falar-se-á de genocídio propriamente dito no primeiro caso, de assassinatos que visam dar um exemplo e aterrorizar a população no segundo (eliminação de opositores no Chile ou na Argentina, massacres coletivos na Argélia), de humilhação e de destruição no terceiro (matança de poloneses ou de russos pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial). Esses casos não são redutíveis uns aos outros. No entanto, possuem um caráter comum: a vontade de afirmar que a espécie humana não é una, que o humano pode, em certas circunstâncias, ser rebaixado à condição de animal, que pode ser sacrificado sem culpa se a causa transcendente o exige (pois ele não é mais que uma peça de engrenagem substituível) e que, quanto mais fracos forem os indivíduos (velhos, mulheres, crianças) ou alucinados como fortes, mesmo sendo fracos (como os judeus), tanto mais se pode utilizá-los, martirizá-los, eliminá-los sem remorso.

É esse caráter comum que será explorado neste estudo que se arrisca a mostrar-se lapidar e chocante. Somente num livro seria possível desenvolver os argumentos, examinar e confrontar as diversas teses. Assim, não me resta senão esperar que os leitores tirem proveito deste texto relativamente breve, embora amadurecido. A questão à qual tentarei responder é: por que esses assassinatos coletivos se impuseram tanto no século XX, a ponto de marcá-lo de forma indelével, e quais são as consequências disso para a sociedade e a psique? Trata-se aqui, portanto, de um ensaio de compreensão e de interpretação do mal radical. Alguns autores julgam que essa vontade de compreender já é um sinal de transigência com o mal e não pode senão reforçar seu poder[2]. Meu propósito situa-se numa perspectiva inversa: toda possibilidade de elucidação de um fenômeno social retira-lhe uma parte do seu mistério e permite, se não dominá-lo, pelo menos escapar um pouco de sua influência. Estudar os assassinatos coletivos não é ceder a um fascínio mortífero por esse objeto e encontrar escusas para tais condutas; é manifestar a capacidade de atacar frontalmente as ilusões das quais, em maior ou menor escala, nos alimentamos. Thomas Mann qualificava Freud de “sublime destruidor de ilusões”. Participar de um trabalho de desmontagem das ilusões situa-me numa filiação que me honra.

Tentarei definir quatro tipos de razões que podem esclarecer um pouco o problema de que trato: razões antropológicas, sociológicas, psicossociológicas e psicológicas. No final do texto, evocarei algumas consequências do crescimento dos assassinatos coletivos para nossa sociedade e nosso aparelho psíquico.

RAZÕES ANTROPOLÓGICAS

De Hobbes a Freud ou Einstein, muitos apontaram a tendência do ser humano a matar seu próximo, humilhá-lo e fazer disso uma glória. Uma pulsão de destruição marcaria a realidade humana (E. Morin)[3]. Essa posição, porém, foi contestada: bondade do homem no estado de natureza (Rousseau), pulsão de morte suscitada unicamente pelo desenvolvimento do capitalismo (Marcuse), interrogação sobre a existência de uma pulsão de morte (numerosos analistas, que não vou citar, recusam ainda a hipótese freudiana). Não discutirei essa posição. Parto da ideia de que Hobbes e Freud, para citar apenas esses dois autores, tinham razão. Os que quiserem mais detalhes podem consultar dois de meus livros: De la horde à l’État (Da horda ao Estado) e Les figures du maître (As figuras do mestre)[4]. Da mesma maneira, dou todo o seu peso à tese freudiana do assassinato do pai primitivo, paradigma de todos os crimes cometidos em comum. Assassinato necessário para fazer advir o sentimento de culpa, as restrições morais e para instaurar o direito. Mas assassinato que legou à humanidade várias questões que ela se esforça por resolver sem conseguir: o que fazer do chefe morto? Sua entronização ou sua metamorfose como pai simbólico, que edita a lei e prega a pacificação, não impediu sua transformação em pai idealizado, em totem, em ídolo, em causa que reclama de seus filhos sacrifícios sangrentos (sacrifícios de Isaac, de Cristo, para mencionar apenas os mais célebres). Simbolização, idealização e sacrifício se juntaram (o que não é o caso da sublimação[5]) e não cessamos de pagar o preço disso. Que aconteceu com as instituições criadas tendo em vista a pacificação? Elas possibilitaram a existência de Estados de direito. Mas dizer Estado de direito nunca significou que todo ser humano tivesse os mesmos direitos, a mesma dignidade e devesse suscitar respeito e consideração. O Estado nazista ou o Estado soviético eram Estados de direito, ou seja, Estados nos quais as diferenças podiam ser institucionalizadas e sancionadas por lei. O que aparece na noção de Estado de direito, portanto, é primeiramente a sanção sempre forte (Durkheim não se enganou quanto a isso), isto é, a violência institucionalizada e codificada. As instituições não conseguem exorcizar totalmente o que presidiu ao seu nascimento: a violência originária. Assim, quando passam a permitir o que haviam interdito, o assassinato oficial e reivindicado (como nos casos que mencionei e que deram lugar ao assassinato psíquico e ao assassinato disfarçado em exploração e alienação), elas dão livre curso à violência que haviam contido e que pode, então, abater-se sobre todos aqueles entregues à vindita pública.

Sobre essa questão do interdito, conhece-se a oposição entre Freud e Bataille. Freud[6], inspirado em Frazer, diz que o interdito serve de barreira ao desejo de matar (proibir aquilo que as pessoas têm uma profunda tendência a realizar). Já Bataille[7], assim como Caillois[8] (em doutrina formulada no Collège de Sociologie), pensa que a transgressão está ligada à formulação do interdito[9]. Mauss, inspirador de Caillois e de Bataille, dizia em seus cursos: “os tabus são feitos para serem violados,[10]” e Bataille escreveu: “a transgressão não é a negação do interdito, mas o ultrapassa e o completa”[11]. Assim, se o sagrado (o interdito) deve provocar respeito, ele engendra necessariamente sua transgressão. Minha posição quanto a isso é simples: não se deve opor Freud e Bataille, mas, ao contrário, ligá-los. O desejo traz o interdito que acarreta a transgressão. Em relação ao nosso tema, o desejo de matar (que esteve, não esqueçamos, na origem da humanidade e que aflora sempre no sacrifício) engendra o interdito (interdito sempre limitado aos membros da tribo ou da nação, que não devem autodestruir-se, pois toda construção humana responde ao princípio da autoconservação). Mas esse interdito que impede a atualização de certas tendências ou pulsões induz à transgressão, já que o supremo gozo, de um lado, e de outro a inovação e a invenção sociais só são possíveis pelo ato de transgressão. Sem transgressão, sem ataque ao interdito, os prazeres obedecem a uma codificação e a um ritual, e as sociedades são levadas à repetição (como as tribos indígenas estudadas por Clastres[12]). A sociedade torna-se plenamente humana, isto é, inventiva, capaz de progresso na civilização, graças à transgressão. É nesse sentido que a transgressão não nega o interdito (ela o conserva, pois ele impede a autodestruição), mas o ultrapassa e o completa, permitindo que a sociedade se coloque sempre novas questões e procure resolvê-las. O que significa (e convém examinar bem o caráter escandaloso desta proposição) que a transgressão do interdito de matar e, portanto, o assassinato são parte integrante do trabalho civilizador. Se se admitem, com Freud, ao lado das pulsões de vida, pulsões de morte das quais deriva a pulsão de destruição, deve-se aceitar que o trabalho civilizador não é apenas, como o mostra magistralmente Nathalie Zaltzman[13], cada um encarregar-se da espécie humana, responsabilizar-se em relação a outrem, mas é igualmente o não reconhecimento do conjunto humano, a violação do rosto do outro, a criação de estruturas de rejeição, de repulsa, que favorecem em cada grupo a construção de uma identidade própria. Eros e Tânatos compartilham entre si o trabalho civilizador. Não há civilização que não seja construída (pelo menos até o presente) sobre os escombros de outra ou que não tenha contribuído para o seu enfraquecimento ou sua liquidação. A comemoração da descoberta da América por Cristóvão Colombo tem valor exemplar. Devemos nos felicitar por essa revelação de um novo mundo que os povos europeus tentaram modelar à sua maneira e que resultou na criação de uma civilização americana (há menos contrastes entre a América do Norte e a do Sul do que se pensa habitualmente) ou devemos deplorar o desaparecimento das grandes civilizações asteca, maia, inca e outras – e a redução dos indígenas a povos mantidos em reservas e fadados à assimilação ou ao aniquilamento? Como ignorar, para ficarmos por um momento nesse exemplo, que um Las Casas[14], para proteger os indígenas, propôs aos europeus que fizessem vir escravos negros, o que resultou em dizimar a África? A civilização é o reinado da paz e da guerra. Ela é sempre fundada, como bem observou Lévi-Strauss[15], na criação de diferenças e em critérios de classificação que foram sempre a base, como eu mesmo insisti[16], de sistemas de dominação.

Convém não esquecer que a civilização é a conjunção da cultura (da Kulturarbeit, do trabalho da cultura) e do social. A cultura visa, como enunciou Freud, a um progresso na espiritualidade. A vida do espírito se caracteriza pela predominância do processo de sublimação sobre todos os outros. Ora, sublimar quer dizer abandonar os laços de sangue para substituí-los pelos da paixão (importância do sentimento na sublimação) associados aos da razão – “nada se faz sem grandes paixões”[17], dizia Goethe –, ou seja, pelo reconhecimento em si e em todos os outros da qualidade de seres humanos, capazes de sentimentos fortes, temperados pela presença das luzes da razão e, portanto, dignos de respeito, pois indicam seu pertencimento comum à espécie humana. Lévinas[18] dirá que o rosto do outro nos chama e nos faz descobrir nosso próprio rosto e o direito de cada um a ter um rosto indestrutível. Sublimar é também ser movido pela busca de uma verdade a compartilhar sem vontade de dominação; é ser capaz de uma interrogação infinita e do trabalho do luto; portanto, é abandonar o mundo das certezas que nos leva a opor-nos aos outros, em favor de um saber que reúne e está sempre em obra, “work in progress”. É enfim (não pretendo ser exaustivo) querer criar, com outros, obras não idealizadas, não ideologizadas, mas que proclamem que um dos objetivos do homem é a edificação da beleza, beleza sempre frágil, ao mesmo tempo apaziguadora e representativa dos esforços e das incoerências do homem. Assim, sublimar nos obriga a entrar em contato com os outros, aos quais reconhecemos os mesmos direitos que os nossos na busca da verdade. O social, por sua vez, desenvolve um programa bem diferente: aquele em que a vontade de influência, quando não de controle, pode se exprimir completamente. Trata-se de organizar a natureza ou pelo menos de buscar fazer dela uma amiga; de ver no animal apenas um objeto a dominar e, progressivamente, depois do animal, de estender essa dominação sobre os mais fracos, mulheres, crianças, velhos, antes de exercer sua força sobre outros homens, outros conjuntos, ou o conjunto ao qual se pertence. E, para tanto, trata-se de criar instituições que provoquem o respeito, quando não o medo, para que a lei se exprima e o temor da sanção amordace as oposições. O social é o mundo da idealização, da mentira, do disfarce. (Por isso não existe boa sociedade, ainda que algumas sejam preferíveis a outras.) O social diz pacificada a sociedade e faz funcionar a violência. Constrói desigualdades, apoia-se sobre a exploração e a alienação, mesmo quando apregoa sua vontade igualitária e seu reconhecimento da liberdade do homem. Se a cultura está do lado de Eros, o social está sempre do lado de Tânatos. Mas, atenção! Um Tânatos infelizmente necessário. Pois não há cultura sem instituições, não há laços sem ataques contra os laços, não há desejo moderado que a sociedade não deveria controlar, embora saiba que um dia ele poderá ter a última palavra, encontrando para si um novo enfeite.

Portanto, amor e morte, laço social e assassinato permanecem indissoluvelmente ligados. Isso não quer dizer que as sociedades não possam proporcionar uma vida mais agradável e reconhecer a cada um o direito de viver como quiser. Toda sociedade é uma criação contínua dos homens e pelos homens. Sociedades melhores são então possíveis. Mas a cidade ideal continua sendo um fantasma cujas reincidências foram sempre mais mortíferas que criadoras. É o que vamos examinar agora.

De fato, é necessário sublinhar uma evidência que, como toda evidência, se oculta: o caráter fácil da destruição. Uma civilização leva séculos para construir seus fundamentos, seus monumentos, sua arte de viver. E leva apenas alguns anos ou dezenas de anos para se destruir (o exemplo nazista ou do Khmer Vermelho podem ser suficientes) e menos ainda para destruir outros. Por quê? Talvez porque, desde o início do cristianismo, os homens sejam obcecados pela cidade perfeita. Para purgar a sociedade de seus problemas, as antigas civilizações conheciam o sacrifício humano. Ao sacrificar alguns de seus membros (cuja designação era codificada), a sociedade se purificava de suas manchas. No mundo ocidental, o sacrifício humano desapareceu, foi substituído pelos assassinatos coletivos. O sacrifício era já um assassinato (L. Scubla[19]), mas um assassinato coletivo que permitia, como bem percebeu R. Girard[20], administrar a violência interna do grupo. Desde que esse mecanismo não existe mais (e não é o caso de lamentar sua falta), os homens adotaram outro: permitir, em momentos privilegiados, que a violência do grupo se exprima no exterior em guerras ou em massacres; expulsar os impuros do templo exterminando todos os que poderiam representar o antigo mundo condenado ao extermínio ou à redenção (os judeus, os bolchevistas ou, como para o Khmer Vermelho, todos os velhos, os pais, os que haviam conhecido o antigo mundo e puderam apreciá-lo, especialmente os intelectuais que tinham a petulância de querer pensar). Não é mais possível, portanto, selecionar. É preciso eliminar todos os que não querem ou não são capazes de querer a nova ordem (“O Reich que vai durar 1.000 anos!”). Ao transformá-los em estrangeiros, em animais, em bichos nocivos, pode-se mobilizar o povo contra eles ou, pelo menos, obter sua adesão muda e sua passividade. A cidade ideal revela seu verdadeiro rosto: o de um inferno para um grande número de pessoas, com a transformação de seus assassinos em indivíduos cada vez menos capazes de sublimação, assassinos de sua própria capacidade de contribuir para a vida do espírito.

RAZÕES SOCIOLÓGICAS

O período de 1914-1918 inaugurou a era dos grandes massacres. A partir do momento em que uma guerra, sem verdadeiro objeto de disputa e concluída de maneira sinistra (o Tratado de Versalhes e os outros tratados de paz), provocou a balcanização da Europa e causou milhões de mortes (mortes, portanto, sem causa), tudo passou a ser permitido. Essa guerra conseguiu acionar três elementos essenciais que foram os motores do século XX: a ligação estreita entre Estado moderno e guerra, o triunfo da racionalidade instrumental (e seu corolário, o declínio da transcendência dos valores) e a construção de um homem novo, oscilando entre a paranoia e a apatia.

A ligação estreita entre Estado moderno e guerra foi bem sublinhada por R. Caillois[21], de quem retomei ou prolonguei certas análises. A cria-ção dos Estados-nações, em que todos os indivíduos se tornam cidadãos (mesmo que não se trate de repúblicas) e são chamados a defender sua pátria em perigo, permitiu a guerra de massa, a guerra totalitária (na qual o vencido é intimado a render-se sem condições), a guerra revolucionária (pela qual os homens querem criar um novo Estado), a guerra de extermínio, na qual os instintos mais mortíferos são desta vez aceitos e mesmo favorecidos. Sabemos, desde Clausewitz, que a guerra é a continuação da política por outros meios. Quando os Estados-nações conseguiram a adesão da grande maioria da população, esta viu-se presa nas malhas da política decidida por esses Estados e submetida com isso à lógica da guerra. Na medida em que os Estados-nações, na Europa principalmente, cederam à onda do nacionalismo viril e quiseram constituir comunidades homogêneas, eles só podiam colocar-se na problemática amigo-inimigo, definida por C. Schmitt, e recusar a seus membros qualquer desvio ou mesmo qualquer divergência. O outro (inimigo interno ou externo) tornava-se o homem a abater. Não era mais suficiente a imagem do combatente como adversário a suprimir. Os civis passaram então a ser os alvos privilegiados e, entre eles, os mais fracos, pois os mais inúteis. Bombardeios sem objetivo militar e destinados a suscitar o terror (Guernica, Coventry) se multiplicaram. Os campos de concentração e de extermínio tornaram-se os novos lugares onde se exprimia o poder nu, ilimitado e arbitrário dos mestres. Quanto mais os Estados-nações quiseram ser os representantes do povo unido, quanto mais desejaram exprimir sua essência, tanto mais recorreram aos assassinatos coletivos. (A Alemanha nazista continua sendo o exemplo mais probatório desse comportamento.) A segunda parte do século, na Europa ocidental, viu afrouxarem-se os laços entre o Estado e o cidadão (progressivamente, não mais se considerava que o indivíduo fora feito para a nação, mas sim a nação para o indivíduo, para retomar uma expressão de Marc Bloch[22]). A guerra entre nações da Europa ocidental foi então afastada, e impôs-se a ideia de uma Europa unida. Mas em outros países da Europa (Europa meridional, com a questão da Bósnia e agora do Kosovo), em países do Oriente Próximo e do Extremo Oriente ou na África, onde justamente estão nascendo Estados-nações, a guerra e os assassinatos de massa se alastram. Esses povos entraram no mundo do terror e não parece que possam abandoná-lo. Em todo caso, o Estado moderno, querendo organizar e controlar seus membros, revelou sua verdadeira natureza, sua violência constitutiva, indo da intolerância ao assassinato organizado. É o afrouxamento do laço social que afasta o assassinato coletivo. Esse afrouxamento, porém, se paga com o recrudescimento da violência interna.

O triunfo da racionalidade instrumental no século XX não significou a vitória das Luzes. Muito pelo contrário. A racionalidade, como evocamos antes, não é contraditória com a consideração das paixões. Além disso, ela coloca necessariamente a questão dos fins e dos valores, a simples e indispensável questão: por quê (por quais razões devemos perseguir certos fins e certos objetivos)? Só que a racionalidade instrumental esvazia tanto o problema das paixões (e, ao recalcá-las e ocultá-las, faz que ressurjam com toda a sua violência arcaica) quanto o problema dos fins, substituído pelo problema dos meios. A pergunta como? é a única que vale. Ao se colocar apenas a questão dos meios, não somente não se examina o valor dos fins buscados mas com muita frequência o meio acaba por se tornar o fim último. A matematização do mundo, os avanços da ciência e da tecnologia (e a ideologia a elas ligada) têm por resultado que somente os meios rentáveis e os de menor custo serão utilizados. Tudo se resume então ao confronto custo/benefício. A partir dessa ótica, meios moralmente deploráveis, como dizia Weber, podem e devem ser utilizados. Além do mais, nessa ótica, os seres humanos são esvaziados ou, se levados em conta, não passam de um elemento (que naturalmente se busca quantificar para que possa entrar num sistema de equações ou de inequações) reificado do cálculo. Portanto, se o cálculo revela um menor custo global, ele será escolhido mesmo se for dispendioso em vidas humanas.

A utilização da racionalidade instrumental teve como consequência o declínio dos valores transcendentais, pois estes são impossíveis de ponderar. Assim eles são, aos poucos, esquecidos ou mesmo ridicularizados, pois impedem o controle que o homem quer ter sobre a natureza e sobre outros homens. Os campos de extermínio são um dos exemplos mais inegáveis do esquecimento dos valores ligados às religiões monoteístas. Eles permitiram o desenvolvimento dos assassinatos de massa, já que os fuzilamentos eram menos rentáveis e às vezes se mostravam psicologi-camente prejudiciais aos assassinos (C. Browning)[23]. Num nível menos violento, as demissões em massa por diretores que querem enxugar, cortar a gordura (expressões que ouvi várias vezes nas organizações industriais), criando excluídos e dejetos sociais, seres considerados como definitivamente inúteis, são uma manifestação da barbárie inerente à racionalidade instrumental. (Chamo bárbara toda decisão que quer retirar do homem seu pertencimento à espécie humana.) Essa constatação não significa que a racionalidade instrumental não possa ser utilizada. Nas ciências ditas duras e mesmo nas ciências sociais (desde que haja prudência e se interrogue sobre a ideologia subjacente a todo modo de formalização do real) ela se mostra indispensável. Mas, para não ter efeitos mortíferos, ela deve sempre ser a serva da racionalidade dos fins. O século XX fez a escolha inversa. Disso resulta um mundo em que somente têm direito de viver os que se enquadram nas categorias do mesmo, do conforme, do fiel, do integrado, capazes de encontrar seu lugar num universo funcionalizado. Quando essa racionalidade se torna pesada demais, então retorna o mundo encantado dos valores transcendentais mais regressivos. O fanatismo religioso ou político é o sinal do choque de retorno, que se torna mais violento quando não é esperado pela maioria. Ora, os decisores deveriam saber que todo triunfo é o pai natural do fracasso. Racionalidade instrumental e fanatismo são as duas faces da mesma moeda. Quando se completam em vez de se oporem, então o terror pode reinar, pois os fins mais aberrantes podem ser perseguidos através dos meios mais sofisticados.

O século XX deu origem a um homem novo. Certamente, a figura que será desenhada não é a de todo mundo. Alguns resistem. O homem de pé de E. Bloch não se vergou definitivamente. O que não impede que outro tipo de homem, diferente daquele desejado pelas Luzes e pelo século XIX, tenha nascido e proliferado: um homem ora paranoico, ora apático, ou que oscila entre as duas posições. Ambos são, de qualquer maneira, assassinos em potencial, pois representam, segundo Micheline Enriquez[24], as duas faces do ódio.

O paranoico. Querendo-se puras e condensando todas as marcas da perfeição, nossas sociedades sentem uma verdadeira repulsa em relação a tudo que poderia contaminar a boa ordem social e causar doenças perniciosas. Ora, o que é unheimlich, estranho, estrangeiro, exótico – no sentido dado a esse termo por V. Segalen – imigrante, não integrado, não conforme, é visto como suscetível de trazer a peste. Piolhos são lançados sobre a sociedade e é preciso livrar-se deles. Esses piolhos vêm do interior: os que não são como os outros são acusados dos piores complôs (por exemplo, os judeus tais como descritos nos “Protocolos dos Sábios de Sião”). Eles vêm do exterior: os soviéticos ou, para os iranianos atuais, os americanos, símbolos do grande Satã. Cada nação se arrisca a ser invadida, leiloada. É preciso então se defender. E não há nada melhor para se defender do que atacar e exterminar os que querem destruir a felicidade conformista. Nessas condições, profetas, messias e gurus de todo tipo serão facilmente escutados, pois predizem o apocalipse e indicam o caminho da redenção. Eles colocam as pessoas no imaginário e lhes asseguram a possibilidade de realizar seus sonhos mais desvairados. Mas com uma condição: matar ou eliminar de si o que poderia ser um obstáculo à criação de uma raça de senhores, ao homem comunista ou ao combatente do islã.

O apático. Desde Sade, conhecemos seu rosto. Ele teme todas as emoções, recusa deixar-se tocar, quer o repouso das paixões. Para ele, os outros seres humanos não passam de instrumentos possíveis de seu gozo. Considera-se como simplesmente dotado de um papel social. Caso se envolvesse pessoalmente, correria o risco de entusiasmar-se, de apaixonar-se, de vibrar e, portanto, de ser perturbado. Ele recusa a agitação do pensamento (Tocqueville) assim como a agitação emocional. Não que as recalque. Ao contrário, sabe que elas existem. Mas com a emoção se faz o mesmo que com uma tecla de piano. Pode-se tocá-la, mas não senti-la. O apático não detesta ninguém, mas é incapaz de amor. Na verdade, é um grande doente. Pelo menos é como Freud o via. Mas ele não sabe e sente-se muito bem assim. Indivíduo sem culpa, pode se envergonhar se o acusam de ter feito mal seu trabalho. Funcionário consciencioso, executa as ordens até mesmo com zelo. E sabe que será recompensado. Não se interroga sobre o valor da ordem, pois interiorizou perfeitamente os preceitos e os princípios da racionalidade instrumental. Imagina-se tanto mais indivíduo quanto mais funciona como elemento de uma massa, provando mais uma vez que o individualismo mais entranhado não é de modo algum contraditório com o processo de massificação. Ele crê, como dizia Reich, no que lhe dizem os poderosos, não crê em seu próprio pensamento. Assim poderá fazer o mal sem praticamente perceber. Eichmann foi um bom exemplo. E poderíamos encontrar exemplos franceses igualmente convincentes. No entanto ele detesta, inconscientemente, certas pessoas: as que pensam por si mesmas, as que são causa de si, como as denominou Micheline Enriquez[25]. Poderá assim despejar seu ódio inconsciente sobre todos os que parecem existir por si mesmos (os judeus, os ciganos, os velhos etc.). Quando dispõe de poder, constrange os outros e se necessário os destrói, mas apenas porque ameaçam, por sua originalidade, emperrar a máquina ou porque se mostram inúteis para a organização (caso das demissões em massa). Pode-se suspeitar (como o fez Devereux[26]) de que tenha instituído uma verdadeira clivagem em sua personalidade: de um lado a vida privada, na qual manifesta às vezes sentimentos; de outro a vida pública, na qual não é mais que um elemento de um conjunto que o ultrapassa. Nesse caso, não faz senão seguir os imperativos de uma sociedade burocrática que fez da separação da vida privada e da vida pública o alfa e o ômega de todas as condutas e que levou a racionalidade instrumental ao seu apogeu. A existência desse tipo de personagem foi seguidamente contestada. Claude Lanzmann[27], por exemplo, recusa a ideia da banalização do mal apresentada por Hannah Arendt[28]. Para ele, toda pessoa que faz o mal sabe muito bem o que faz. Ele certamente tem razão, exceto num ponto essencial: é possível fazer o mal, matar pessoas às centenas, sem experimentar a sensação de fazer o mal. Se o homem foi rebaixado à condição de animal (depois que o animal foi definitivamente separado do homem), não é grave nem matá-lo nem humilhá-lo. Como escreveu Florence Burgat:

O que encadeia o desterro dos humanos ao dos animais foi especialmente analisado por Claude Lévi-Strauss ao constatar que “o mito da dignidade exclusiva da natureza humana” conduziu ao “ciclo maldito” de um processo pelo qual a fronteira entre a humanidade e a animalidade serviu para “afastar homens de outros homens e para reivindicar, em proveito de minorias sempre mais restritas, o privilégio de um humanismo, corrompido desde o nascimento por ter feito do amor-

-próprio seu princípio e sua noção”[29].

De minha parte, procurei também mostrar anteriormente[30] que a cisão entre o homem, de um lado, e os animais e as plantas, de outro, levou à dominação dos homens por outros homens. Predador nato, o homem se diverte na infância (muitas vezes) em massacrar insetos. Por que não massacraria outros homens sem remorsos? Sobretudo quando integrou a racionalidade instrumental, quando quer afastar toda preocupação e quando vive numa sociedade onde essa violência é aceita e favorecida.

No momento em que a posição paranoica, sempre um pouco tingida de sadismo, se une à posição apática perversa, então não há mais freios. O paranoico, seguro de seu direito, certo de lutar contra as forças do mal, vai colocar toda a sua energia e suas pulsões a serviço de sua causa. Se for ao mesmo tempo apático, perverso, fará esse trabalho também com a capacidade meticulosa do bom funcionário. Pude constatar essa conjunção num mesmo indivíduo em inúmeras empresas, nas quais os chefes utilizam refinamentos perversos para destruir moral e psiquicamente seus subordinados, pensando que agem pelo bem e pela causa (da empresa). De fato, a empresa está muito satisfeita com eles. Até o dia em que se volte contra eles e os liquide, por sua vez. Claro que não se trata aqui de assassinatos físicos explícitos. No entanto, quantos homens são machucados definitivamente por essa experiência que acaba por destruí-los e por retirar-lhes toda a capacidade de revolta. Ou seja, capacidade de falarem, de pé, em seu nome, mostrando ainda a vontade de serem homens.

Assim, o indivíduo novo criado pelo século XX está sempre disposto ao crime. E ainda mais quando deve resolver os problemas por si mesmo, quando seu eu é um fardo e ele vê os outros como causadores de dificuldades que podem partir seu ser e causar a angústia da fragmentação. A famosa frase “O inferno são os outros” torna-se o motor de sua ação. Que os outros morram, então! Eles bem que o merecem.

RAZÕES PSICOSSOCIOLÓGICAS

Os assassinatos coletivos se fazem sempre em grupo e testemunham a adesão das pessoas ao grupo de que fazem parte. Sabe-se há muito que, se os homens podem conduzir sua ação referindo-se a valores transcendentes, a uma ideologia, o fermento mais forte continua sendo, apesar de tudo, seu desejo de não infringir as normas do grupo, sobretudo quando este atingiu um alto grau de coesão e é dirigido por um líder no qual os homens têm confiança. Os estudos sobre a eficácia e o moral dos militares alemães durante a Primeira Guerra Mundial e dos militares americanos na Segunda Guerra dão o mesmo resultado: quanto mais coesas as ações de combate, tanto mais seus membros se entendem bem, tanto mais os chefes são investidos positivamente, tanto mais os soldados têm um moral sólido e combatem com toda a sua energia, mesmo quando não são motivados por uma ideologia e nem sempre sabem por que combatem. É ainda mais eloquente a história do 101o Batalhão de Polícia de Reserva de Hamburgo, analisada por Christopher Browning[31]. Mencionarei apenas dois fatos: antes do primeiro massacre de judeus em Josefow, o comandante do batalhão dá a seus homens a possibilidade de não participar das execuções. Somente 12 homens (em 1.800), que não serão incomodados por essa decisão, desistem. À medida que as ações de massacre se perpetuam e tendo os homens sempre a possibilidade de se subtrair à obrigação de matar (exceto uma vez, por ocasião da segunda execução em massa), há cada vez menos recusas e cada vez mais voluntários. Tratava-se, no entanto, de homens comuns e não de ss fanáticos. Em seu comentário desse livro, Georges Bensoussan escreve: “Recusar-se a obedecer pode fazer temer um castigo. Mas recusar se juntar ao grupo gera, mais ainda, um isolamento temido e raramente evocado. O conformismo, o gosto do consenso e a pressão do grupo desempenham no assassinato um papel capital”[32]. Assim a pressão do grupo à uniformidade, analisada na época por Wilhelm Reich e que foi o objeto de um grande número de estudos de psicólogos sociais americanos e franceses, tem um peso decisivo. Ninguém quer ser tachado de covarde ou de fracote por seus companheiros. Mais ainda, ao agir como os outros, cada um obtém o reconhecimento deles (e sabemos o papel decisivo que o desejo de reconhecimento desempenha nos grupos[33]) e pode, sem muito custo, sentir-se um herói, pois teve a coragem de efetuar a tarefa, por mais horrível que fosse. Os membros do grupo cedem ao contágio das atitudes e dos comportamentos para não serem rejeitados, para não se sentirem exilados. Com isso, são pegos no fantasma da ilusão grupal definida por Didier Anzieu[34] e, mais ainda, no da obsessão da plenitude já descrita por mim[35], graças à qual o grupo funciona sob a égide de uma metáfora comum: a de um corpo pleno, sem fissura, sem temporalidade, verdadeira bolha fechada em si mesma que serve de proteção total. Essa metáfora se apoia numa doença da idealidade que busca transformar este grupo, agora, neste espaço, num grupo puro, perfeito, que funciona segundo a lei que atribui um papel a cada um, ao qual não se pode nem se deve furtar. Os membros do grupo adquirem assim uma identidade coletiva que substitui sua identidade própria. Eles afastam toda preocupação e certamente desaparecem como seres diferenciados. Podemos então lembrar aqui a bela reflexão de Georges Devereux:

O ato de formular e de assumir uma identidade coletiva de massa e dominante – qualquer que seja essa identidade – constitui o primeiro passo para a renúncia “definitiva” à identidade real. Se não se é nada mais que um espartano, que um capitalista, que um proletário, que um budista, está-se muito perto de ser absolutamente nada e, portanto, de simplesmente não ser [36].

Mas, afinal, ser não é o mais difícil?

O grupo (exceto quando se trata de um grupo que pensa, isto é, que admite a variedade de seus membros e, portanto, não somente a discussão e o confronto mas também as dissensões e mesmo a polaridade nos extremos) serve de eu-pele, de invólucro psíquico, para retomar os termos de Anzieu[37]. O grupo protege e fecha. Ele tende, por definição, a querer transformar-se em comunidade compacta, em sociedade secreta, em seita, portanto, a absorver todos os indivíduos e a provê-los de um psiquismo coletivo. Essa tendência foi estudada magistralmente por Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”[38], no qual ele mostrou como os membros do grupo se identificavam uns com os outros depois de terem colocado um objeto comum (chefe, causa) no lugar de seu ideal do eu. Para Freud, a coesão (termo que ele não utilizou) do grupo, sua unidade, a similitude dos comportamentos de seus membros, só eram possíveis (pelo menos no que concerne aos grupos que estudou) pela presença de um chefe, de um guia que amava cada um de seus homens com amor igual e recebia deles, em troca, seu amor. O que pudemos verificar, retomando o texto de Browning, é que os investimentos amorosos sobre o chefe e sua presença soberana entre os membros do grupo não asseguram necessariamente a massificação do grupo. É certo que um grupo guiado por um chefe carismático tem grandes chances de desenvolver condutas uniformes, mas não é menos certo que o contágio das atitudes e o conformismo no comporamento pode se apoiar em outros fundamentos mais diretamente ligados à dinâmica do próprio grupo. O grupo, mesmo que não se funda, incita à comunhão, mais ainda quando se trata da comunhão dos fortes contra os fracos. E, como diz o provérbio: o primeiro passo é que custa. Por isso (exceto casos raros), os membros do 101º Batalhão se tornaram aos poucos mais duros e continuaram os massacres. Ao darem o primeiro passo, tornaram-se irmãos semelhantes. Não podiam mais ter outra imagem de si mesmos. Haviam matado o sentido dentro deles, em vez de se verem como assassinos. Sacrificam-se inimigos a um chefe que encarna uma causa ou é porta-voz dela. Pode-se também sacrificar a si mesmo por um ideal. Assim, na maior parte do tempo é preciso repetir aos homens que eles não estão matando, mas apenas liquidando os inimigos da causa, do chefe e mesmo da humanidade. (Alguns chefes nazistas, e também Pol Pot, disseram que queriam criar as condições para um paraíso vindouro.) Não se trata mais de assassinatos, mas de sacrifícios coletivos. Nessas condições, os sacrificadores sentem-se absolvidos. Ao sacrificar, eles mostram respeito ao sagrado, à lei promulgada pelo guia ou pelo texto divino e à qual todos devem obedecer. Eles mesmos tornam-se sagrados. Sabem disso conscientemente? É pouco provável. Mas eles têm o sentimento de agir pela causa. Os atiradores isolados no Líbano que utilizavam suas armas tão logo viam alguém, os degoladores argelinos (a julgar por suas declarações) não têm estado de alma nenhum. Trabalham ou trabalharam por sua pátria ou pela renovação do islã. Sob certo aspecto, são os sacerdotes que proclamam no sangue sua fé intangível. Cada um se comporta como o sacerdote de Nemi, figura emblemática em Frazer[39], ao mesmo tempo rei, sacerdote e assassino. São reis do mundo, pois matam os indefesos; são sacerdotes que oficiam e sacrificam; e são verdadeiros assassinos que, como o homem de Nemi, só têm um medo, o de também serem mortos. Para acalmar esse medo, só há uma solução: continuar matando. E sem culpa, porque a razão e a lei só podem estar do lado do mais forte. Poderíamos acrescentar outras características psicossociológicas: o narcisismo grupal resultante do narcisismo das pequenas diferenças estudado por Freud; a cultura do grupo que exclui a cultura de outros grupos vistos como portadores de sujeira e que vê na sua eliminação a única saída possível; o fato de cada um, no grupo que lhe serve de espelho, experimentar os limites de sua identidade e se aproximar dos outros para não sentir a angústia da fragmentação. Não insistirei: essas características são bem conhecidas. Quero apenas observar que a vida num grupo fechado em si mesmo (e os grupos assassinos são dessa ordem: o resto do mundo existe, mas eles mal percebem) é favorável ao desenvolvimento da tentação paranoica. Todo grupo é o mensageiro (às vezes sem que o saiba) de uma esperança messiânica. Quer salvar o mundo, lavá-lo de seus pecados, regenerá-lo (tema constante do Khmer Vermelho e dos comunistas chineses do tempo de Mao). Crê no impossível e em sua realização na Terra. Obedece ao mesmo tempo a um imaginário enganador[40] tecido pelos homens de poder, que dizem a seus discípulos que, quanto mais se identificarem, aderirem, se submeterem e renunciarem, tanto mais serão retribuídos, e a um imaginário motor[41] que lhe dá a força e a energia para empreender e prosseguir o combate, pois se trata de transformar o fantasma (um mundo novo sem impureza) em realidade. Ele não sabe que o fantasma não pode e não deve virar realidade, sob pena de criar, em vez do resultado esperado (um paraíso), um inferno tanto para os outros como para si, a alodestruição só podendo, com o tempo, engendrar a autodestruição. Também não sabe que os perseguidores não são os inimigos designados, mas que não há pior perseguidor que aquele interno, carregado do desejo de onipotência. Assim, a tentação paranoica que jaz em todo grupo (mesmo não sendo operante em todos) é um fator suplementar para a liquidação dos que se opõem ao grande desígnio de um mundo melhor onde só haverá amor entre os eleitos – os outros, seres odiosos e perseguidores, tendo desaparecido definitivamente da Terra, da nação ou do grupo que eles tentavam, por seu suposto complô, subjugar.

RAZÕES PSICOLÓGICAS

A psique do indivíduo não pode ser totalmente separada do contexto social. Freud insistiu suficientemente nesse ponto no início de “Psicologia das massas e análise do eu”. Lembremos estas frases célebres: “Na vida psíquica do indivíduo tomado isoladamente, o Outro intervém de maneira regular enquanto modelo, apoio e adversário, e por isso a psicologia individual é também, desde o início e simultaneamente, uma psicologia social, nesse sentido ampliado, mas perfeitamente justificado”[42]. O pertencimento à espécie humana, à sociedade e aos grupos de que fazemos parte vai pesar muito, portanto, sobre a psique individual, conforme observei anteriormente. Vivendo num universo ultracompetitivo onde reinam a racionalidade instrumental e a pressão dos grupos à uniformidade, os homens se tornam cada vez mais insensíveis a outrem, criam uma pequena sociedade de uso próprio (para retomar a expressão de Tocqueville) e desenvolvem comportamentos perversos e paranoicos. No entanto, é possível isolar algumas razões de ordem estritamente psicológica para completar o quadro esboçado até agora. Cada indivíduo está em busca de sua identidade. Ele a deseja o mais unificada e o mais sólida possível, pois procura realizar o programa do princípio de prazer. Assim, tudo que for capaz de bloquear a realização de tal programa poderá ser visto como um obstáculo a superar, a contornar ou, se preciso, a destruir. Ora, o outrem generalizado (homens, grupo, sociedade) busca por todos os meios lembrar-lhe que não está sozinho, que existem coerções, que ele não pode pôr em prática seu fantasma de onipotência, que deve substituir seu eu-ideal por um ideal do eu mais conforme às exigências da vida humana e social. Portanto, o indivíduo é sempre passível de ser rejeitado, diminuído, abandonado. Mas, se o corpo social lhe permite subitamente empregar sua força, ter o sentimento de estar acima dos outros e de dominá-los, então ele pode manifestar sua pulsão de destruição com toda a impunidade. Escutemos um torturador:

Quando pegávamos alguém, não era para entregá-lo à justiça, mas para eliminá-lo. Assim, torturávamos não como os que enviam seus prisioneiros ao tribunal. Estropiávamos o sujeito […]. Havia uma espécie de loucura em nós, não éramos mais normais. Pensávamos que uma vida nada mais significava […]. Sim, eu sentia um gozo. Depois de uma missão, você se sente como se tivesse se deitado com uma mulher. É pura adrenalina, você se sente esvaziado[43].

Sade foi o primeiro a mostrar que torturar corpos, queimar, retalhar, provocar dor podia engendrar o gozo, fazer de alguém um rei acima de todas as leis, a única lei que ele respeita sendo a lei do seu desejo e do seu prazer. E também, quando isso é possível, falar para racionalizar a violência. Assim, não apenas se faz o mal, mas se utiliza uma linguagem torturante, que desqualifica o outro e mostra que não há sentido. A identidade se fortalece na destruição do outro, o gozo aumenta à medida que o outro é apagado e reduzido a uma coisa que não pode mais se mexer e com quem não há nada a compartilhar. O fantasma de toda potência está prestes a se realizar e a virilidade tem livre curso.

Não se pode compreender tal violência sem ligar o ódio ao outro a um ódio mais fundamental: o ódio de si mesmo. Conhecemos o livro de Theodor Lessing sobre o ódio de si do judeu. Lessing formulou a hipótese de que muitos judeus em nossas sociedades eram imbuídos da recusa de ser judeus, recusa que tinha sua origem “na tendência do judeu a interpretar um mal que o atinge como a expiação de uma falta cometida”[44]. Ele identificou esse ódio em alguns de seus correligionários cujo retrato traçou, em particular Otto Weininger, autor desta frase famosa: “O judeu é penetrado por uma feminidade que não é senão a negação de todas as qualidades masculinas”[45]. Poderíamos completar seus retratos pelo de Maurice Sachs, judeu amigo de Cocteau, que acabou por se converter e por entrar na Gestapo. Mas esse ódio de si que Lessing atribuía somente aos judeus estende-se, na verdade, ao conjunto da humanidade. Por uma razão simples evocada tanto por C. Castoriadis[46] quanto pelo autor destas linhas: a impossibilidade, para cada um de nós, de poder realizar plenamente seus desejos e o papel da culpa ou da vergonha (os povos monoteístas são mais imbuídos de culpa, e os orientais, de vergonha) ensinada e inculcada pelos primeiros educadores, que obriga cada um a tomar consciência de seus limites em relação a si mesmo e em relação a outrem. Limites insuportáveis, pois mesmo não admitindo a concepção de Castoriadis segundo a qual existiria uma mônada psíquica que se insurgiria contra a realidade, não há como não verificar a importância das feridas narcísicas que o meio impõe à psique, por mais socializada que seja desde o nascimento. Feridas sempre numerosas, pois a educação é essencialmente violenta e vivida como arbitrária e incompreensível pelo infans. Essas feridas nos remetem à nossa pequenez, à nossa impotência (basta ver a raiva expressa por toda criança pequena quando os pais não cedem à realização imediata de seus desejos ou se opõem a eles), e nos indicam a obrigação de renunciar ou de recalcar nossos desejos, pois existe uma lei mais alta a respeitar.

Cada um, portanto, é movido por um ódio inconsciente de si, pois o si não é admirável, é um anjo decaído por causa dos outros e que sempre pede reparação. Então, quando o outro está ao nosso alcance, quando existe um sistema de tortura ou um sistema concentracionário que enuncia ou eles ou nós, o ódio pode enfim exteriorizar-se, atingir outro objeto, mesmo que este seja um pobre substituto dos objetos-sujeitos que, de maneira fantasmática ou real, nos fizeram mal. O ódio ao outro não é senão o avesso do ódio a si, sempre primeiro, embora sempre tributário da existência do outro.

Sobre esse ponto, Freud hesitou longamente. Enquanto enuncia, em “Pulsões e seus destinos”[47], que o sadismo é originário e precede o masoquismo, em “O problema econômico do masoquismo” ele declara que o masoquismo é que é originário. “É aceito”, ele escreve, “que a pessoa cometeu um crime, indeterminado, que deve ser expiado por todas as formas de dor e de tortura”[48]. Qual é esse crime? Nesse texto, Freud evoca a masturbação, o autoerotismo. Embora a hipótese seja plausível e se possa sustentá-la, ela não é satisfatória. No meu modo de ver, fiel nesse ponto ao Freud de Mal-estar na civilização[49], esse crime tem três origens: por um lado, o assassinato do pai primitivo que, se foi esquecido ou recalcado, persegue sempre os inconscientes (e talvez as consciências). Aliás, não há necessidade de apelar aqui, como o faz Freud, à ideia de que a ontogênese reproduz a filogênese; basta apresentar os princípios educativos que fazem de todo indivíduo um culpado ou um envergonhado em potência, para toda a eternidade. O discurso dos pais veicula preceitos morais, e não há preceito moral sem crime ou tentação de crime, ou sem que a criança tenha o sentimento de dever expiar uma falta, ligada à sua própria existência.

Por outro lado, há o fato de o infans, em seu amor, não saber distinguir o amor do ódio, destruindo o que ele ama. O infans devora e incorpora. Percebe seu ato como um crime que ele deve pagar. Portanto, sempre teme a recusa do amor de seus pais. Seu sentimento de culpa deriva de sua angústia diante da autoridade, angústia alimentada por seus próprios atos. Como não lembrar o que diz Pentesileia, rainha das amazonas, após ter cravado seus dentes no corpo ofegante de Aquiles? “Desejar… despedaçar… isso rima; quem ama pensa numa coisa e faz a outra”[50]. Ou então no verso de Oscar Wilde em “Balada do cárcere de Reading”: “A gente sempre destrói o que ama”[51]. O amor arcaico é devorador. Toda criança o sente, todo homem o experimenta. Mas um dia é preciso pagar a conta. E não se deve omitir a severidade do superego: “Dada a impossibilidade de esconder do superego a persistência de desejos proibidos, a angústia diante do superego leva o sujeito a punir-se”[52]. O masoquismo é o preço a pagar pela violência do desejo; ele conduz ao ódio de si, pois esse desejo é reprimido e o homem sente culpa ou vergonha. Vemos então que, se o masoquismo é primeiro e o sadismo em relação ao outro não é mais que a projeção do ódio de si, a violência do desejo (de devoração) possui em si mesma conotações sádicas. Assim, sadismo e masoquismo não se opõem radicalmente[53]. Apenas levam o homem a desconfiar sempre dos outros, mesmo que os ame. Se a sociedade lhe der alimentos ideológicos para simplesmente odiá-los, a tarefa do sujeito se torna mais fácil. A dor do outro e o prazer de si e sua identidade (seu narcisismo) serão assim glorificados.

Não é necessário prosseguir. O resto é uma decorrência. Na psique jaz e atua o desejo de ser único, de não ser tocado, de ser um Narciso sem rugas e triunfante. É possível, então, submeter-se às ordens mais terríveis, à ideologia mais coercitiva, vivendo apenas num estado de agente, segundo a expressão de Milgram[54], e participando da zona cinzenta de que fala Primo Levi, se o narcisismo não for atingido e se, principalmente, for possível chegar ao gozo e sentir-se um mestre. Não é preciso ser um grande mestre, um grande carrasco; ser um pequeno carrasco tranquilo, que não pensa demais, pode fornecer satisfações intensas. Claro que nem todo mundo é assim e alguns são capazes de resistir. Mas, como diz Milgram: “Os humanos são levados ao assassinato sem grande dificuldade”[55]. Para terminar, é preciso esclarecer que essas razões diferenciadas que isolamos e tipificamos para a comodidade da análise interagem umas com as outras, sobrepõem-se para formar nós que permitam pegar o homem na armadilha de seu desejo. O indivíduo é ao mesmo tempo único, membro de um ou de vários grupos, da sociedade inteira e pertence ao gênero humano. É o que o torna tão maleável. Ele sempre pode encontrar boas (ou más) razões para suas ações. Deve encontrar sua identidade, ou admirar seu chefe, ou agradar seus companheiros, ou ser racional etc. Por isso os assassinos, mesmo se a culpa ou a vergonha estão na origem do desenvolvimento da humanidade, não se sentem culpados ou envergonhados por seus atos. Muito pelo contrário. É o caso de um dentista (cujo nome esqueci), auxiliar de Mengele em Auschwitz, que declarou há poucos meses, num jornal alemão, que havia encontrado condições ótimas de trabalho em Auschwitz, onde seu trabalho (!) consistia em injetar pus nas gengivas dos prisioneiros, e que ele não precisou mais que alguns dias para se adaptar totalmente a esse lugar, onde sabia muito bem que milhares de judeus (“verdadeiros ratos”, ele disse) eram levados às câmaras de gás. Um criminoso solitário e com apenas uma ação criminosa em seu ativo pode sentir remorsos; um serial killer, mais raramente, pois a realização de seu fantasma relança sua propensão a matar[56]; mas um participante de assassinatos coletivos ou aqueles que os decidiram, praticamente nunca. A maioria deles mata a emoção, se a emoção ainda existe. Os processos Eichmann, Barbie, Touvier, Papon[57] apenas confirmam essa ausência de remorsos. Eles fizeram seu trabalho. Poderiam dizer: seu trabalho civilizador. Do que se pode acusá-los?

É incontestável que uma sociedade na qual se espalharam os geno-

cídios, as purificações étnicas, a mortandade tornou-se uma sociedade indiferente. Há crimes demais para se ficar sensibilizado. No entanto, a violência se mostra cada vez mais nítida. Violência nos filmes americanos (sempre de grande sucesso), violência na televisão e em outros meios de comunicação, violência na internet e nos jogos eletrônicos nos quais se pode matar à vontade, violência no cotidiano que faz crescer o sentimento de insegurança, mas que também faz as pessoas se acostumarem com a violência. Se nas nações ocidentais (Estados Unidos, Canadá e Europa ocidental) os assassinatos coletivos desapareceram, os assassinatos indi-viduais e os assassinatos psíquicos aumentaram. A guerra econômica se alastra. A violência sutil da empresa substituiu a exploração brutal, mas continua sendo insuportável para muitos. A desigualdade aumenta, cresce o número de miseráveis. Poucas pessoas ainda são capazes de reagir a essa tendência, embora pesquisadores e atores sociais busquem definir novos caminhos. Seja como for e apesar da literatura abundante sobre os assassinatos de massa, não parece que as sociedades e os sujeitos humanos tenham tomado consciência da amplitude das transformações. O arrependimento está na ordem do dia, mas não faz senão alimentar (mesmo sendo de boa-fé) a boa consciência e permitir que numerosos grupos ou organizações se redimam ou mostrem um rosto mais acolhedor e benevolente. O egoísmo, o cinismo (no sentido vulgar do termo), o ceticismo e o relativismo prosperam. As pessoas se perguntam cada vez menos como prosseguir a busca da verdade e cada vez mais como se safar e sobreviver. O politicamente correto, que tinha fundamentos humanistas evidentes, acabou se tornando uma acepção frouxa de todas as diferenças e de todas as opiniões. Os homens de convicção são raros, enquanto os bons e os maus administradores pululam. As pessoas apenas se aceitam, toleram-se, sem se amar. Se o crime passional diminui, diminui também o amor. Nossas sociedades vivem um deficit de libido. Assim, cada um pode não se comprometer e se proteger. Os homens vivem no efêmero e os projetos de longo prazo são desprezados. O desejo de revolução se extinguiu, quando se perceberam os danos causados pelas sociedades que quiseram refazer tudo desde a base. Os movimentos sociais radicais se debilitam.

Os indivíduos são agora mais átonos, mais transparentes, quase diáfanos, sem espessura. Quanto ao aparelho psíquico, se naturalmente continua o mesmo, ele funciona em baixa rotação. O eu adaptativo e adaptado é o objeto de todos os cuidados. Os ideais do eu assustam, as pulsões são canalizadas, asseptizadas; quanto ao superego, desde que foi comparado a um policial na cabeça, está desqualificado. Assim vemos surgirem muitas interdições repressivas e poucas interdições estruturadoras. Os educadores não sabem mais os limites e as exigências que devem impor. A referência à lei organizadora do social não está mais em uso. Pequenos e grandes delinquentes se multiplicam, pois nada é mais belo e mais esportivo do que contornar e ridicularizar a lei e as leis. Aliás, cada um se vê como vítima (da sociedade, dos capitalistas, dos imigrantes, dos delinquentes). O grande termo em moda é o sofrimento. Entramos numa civilização da queixa. Não se trata mais de lutar por suas ideias, pela democracia, de enfrentar os problemas e os obstáculos, mas de apontar a causa do mal, de exigir seu desaparecimento, de obter reparação[58]. Uma vítima não precisa de superego, de instância de interdição. Precisa apenas ser escutada, confortada, submetida a uma terapia, se necessário. Assim o mundo se divide. De um lado os dominadores, os capitalistas, os tubarões das finanças (os paranoicos e os apáticos) que exigem a submissão de outras vítimas, e no meio os trabalhadores sociais, os psicólogos, os psicanalistas, os sociólogos, os animadores de rua, os educadores etc., cujo papel é limitar as perdas e ajudar as vítimas. Mas, já que todo mundo pode um dia ser vítima, é necessário, como já indiquei, que cada um assegure para si a posse de um eu sólido, flexível, adaptável, que lhe permita fazer os esforços necessários para acompanhar as transformações econômicas e sociais. Ele não se sente mais portador da Kulturarbeit, do destino da civilização, da evolução social nem da violência do mundo. Quer a paz e quer consumir os objetos e os signos. Essa constatação pode parecer sinistra. Penso, porém, que deve ser feita. Aliás, o pior nem sempre é certo, e é no momento em que a esperança desaparece que surgem o imprevisto e a novidade. Esse imprevisível nos anuncia uma melhora da situação ou uma catástrofe suave. Sinto-me incapaz de enunciar uma hipótese. A única possibilidade que me resta é querer, apesar de tudo, continuar a pensar e a agir com outros, a reconhecê-los, a amá-los se possível. Se a aurora surgir, tanto melhor. Senão, o labor terá que prosseguir tranquila e pacientemente. Afinal, Moisés nunca viu a terra prometida e os hebreus tiveram que errar quarenta anos no deserto. Não temos razão alguma para acreditar que eles pagaram suficientemente por nós e que eram mais fortes e resistentes que nós. O caminho deve ser retomado. Cada época tem uma tarefa a cumprir.

Notas

  1. A tradução do presente ensaio, incluindo as citações de obras feitas pelo autor, é de Paulo Neves. Este texto foi originalmente publicado em: “L’esprit du meurtre”, Innactuel, Paris: 1999, n. 2. No Brasil, também foi publicado em: História e Debate, Curitiba: 2001, n. 35, tradução de: Marion Brephol de Ma- galhaes e Rafael de C. Beltrame.
  2. Cf. especialmente Eliette Abécassis, Petite Métaphysique du meurtre (Pequena metafísica do assassinato), Paris: PUF, 1998.
  3. Edgar apud Barbara Michel, Figures et métamorphoses du meurtre (Figurações e metamorfoses do assassinato), Paris: PUF, 1991.
  4. Eugène Enriquez, De La Horde à l’État, Paris: Gallimard, 1983. Edição brasileira: Da horda ao Estado, Rio de Janeiro: Zahar, 1990; Les Figures du maître, Paris: Arcantère, 1991. Edição brasileira: As figuras do poder, São Paulo: Via Lettera, 2007.
  5. Esse ponto será retomado mais adiante.
  6. Cf. Sigmund Freud, Totem et tabou (1913), Paris: Gallimard, 1993. Edição brasileira: Totem e tabu: contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  7. Georges Bataille, L’Érotisme, Paris: Minuit, 1951. Edição brasileira: O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  8. Roger Caillois, L’Homme et le sacré, Paris: Gallimard, 1938. Edição em português: O homem e o sagrado, Lisboa: Edições 70, 1988.
  9. Mais recentemente, alguns sociólogos da nova Escola de Chicago e certo número de psicossociólogos sociais experimentais dizem que as condutas dos grupos derivam da própria maneira com que estes foram designados, estigmatizados ou qualificados.
  10. Marcel Mauss apud Alfred Metraux, “Rencontre avec les ethnologues” (Encontro com etnólogos),

    Revue critique, Paris: 1963, n. 195/196.

  11. George Bataille, op. cit.
  12. Pierre Clastres, La Société contre l’État, Paris: Minuit, 1974. Edição brasileira: A sociedade contra o Estado, São Paulo: Cosac Naify, 2012.
  13. Nathalie Zaltzman, De La Guérison psychanalytique (A cura psicanalítica), Paris: PUF, 1998.
  14. Cf. Barbara Michel, op. cit.
  15. Georges Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, Paris: Agora/Pocket, 1995. Edição brasileira:

    Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss, Campinas: Papirus, 1989.

  16. Eugène Enriquez, De La Horde à l’État, op. cit.
  17. J. Wolfgang Goethe, Conversations avec Eckermann (Conversas com Eckermann), Paris: Gallimard, 1949.
  18. Emmanuel Lévinas, Humanisme de l’autre homme, Paris: Livre de Poche, 1987. Edição brasileira: Humanismo do outro homem, Petrópolis: Vozes, 1993.
  19. Lucien Scubla, “Ceci n’est pas un meurtre” (Isto não é um assassinato), em: Françoise Héritier (org.),

    De La Violence ii (Da violência ii), Paris: Odile Jacob, 1999.

  20. René Girard, La Violence et le sacré, Paris: Grasset, 1968. Edição brasileira: A violência e o sagrado, São Paulo: Paz e Terra, 2008.
  21. Roger Caillois, Bellone ou la pente de la guerre (Belona ou a inclinação para a guerra), Paris: A. G. Nizet, 1936.
  22. March Bloch, L’Étrange défaite (1940) (Estranha derrota), Paris: Gallimard, 1990.
  23. Christopher Browning, Ordinary Men: Reserve Police Batallion 101 and the Final Solution in Poland (Homens ordinários: 101° Batalhão de Polícia de Reserva e a Solução Final na Polônia), New York: Harper-Collins, 1992.
  24. Micheline Enriquez, Aux Carrefours de la haine: paranoia, masochisme et apathie, Paris: Épi, 1984. Edição brasileira: Nas encruzilhadas do ódio, São Paulo: Escuta, 2000.
  25. Micheline Enriquez, op. cit.
  26. Georges Devereux, Essais d’ethnopsychiatrie générale (Ensaios de etnopsiquiatria geral), Paris: Gallimard, 1973.
  27. Claude Lanzmann, “Les non-lieux de la mémoire” (Os não lugares da memória), em: Jean-Bertrand Pontalis (org.), L’Amour de la haine (O amor do ódio), Paris: Gallimard, 1986.
  28. Hannah Arendt, Eichmann à Jerusalem, Paris: Gallimard, 1966. Edição brasileira: Eichmann em Jerusalém, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  29. Florence Burgat, “La logique de la légitimation de la violence” (A lógica da legitimação da violência), em: Françoise Héritier (org.), op. cit.
  30. Eugène Enriquez, De La Horde à l’État, op. cit.
  31. Cristopher Browning, op. cit.
  32. Georges Bensoussan, Auschwitz en héritage (Auschwitz de herança), Paris: Mille et Une Nuits, 1998.
  33. Cf. Eugène Enriquez, “Le lien groupal” (O lugar grupal), Bulletin de Psychologie, n. 360, 1960.
  34. Didier Anzieu, Le Groupe et l’inconscient (O grupo e o inconsciente), Paris: Dunod, 1975.
  35. Eugène Enriquez et al., La Formation psychossociale dans les organisations (A formação psicossocial nas organizações), Paris: PUF, 1971.
  36. Georges Devereux, op. cit. Grifo do autor.
  37. Cf. Didier Anzieu, Le Moi-peau, Paris: Dunod, 1985; e Didier Anzieu et al., Les Envelopes psychiques, Paris: Dunod, 1987.
  38. Sigmund Freud, “Psychologie des foules et analyse du moi” (1921), em: Essais de psychanalyse, Paris: Payot, 1985. Edição brasileira: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  39. James George Frazer, Le Rameau d’or, Paris: Laffont, 1983, col. Bouquins. Edição brasileira: O ramo de ouro, Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Sobre o sacerdote de Nemi, cf. o artigo de L. Scubla, op. cit., e os textos do Collège de Sociologie reunidos por Denis Hollier, Le Collège de Sociologie, Paris: Gallimard, 1985
  40. Cf. Eugène Enriquez, “Imaginaire social, refoulement et répression dans les organisations” (Imaginário social, repulsão e repressão nas organizações), Connexions, Paris: epi, 1972, n. 3, retomado em Les Jeux du pouvoir et du désir dans l’entreprise (Os jogos de poder e de desejo nas empresas), Paris: ddb, 1997.
  41. Ibidem.
  42. Sigmund Freud, “Psychologie des foules et analyse du moi”, op. cit.
  43. Citado num programa da televisão francesa, Profession tortionnaire (Profissão torturador).
  44. Theodor Lessing, La Haine de soi (O ódio de si), Paris: Berg International, 1970.
  45. Otto Weininger apud Eugène Enriquez, Les Figures du maître, op. cit.
  46. Cornelius Castoriadis, “Notes sur le racisme” (Notas sobre o racismo), Connexions, Paris: epi, 1987, n. 49.
  47. Sigmund Freud, “Pulsions et destins des pulsions”, em: Métapsychologie, Paris: Gallimard, 1968. Edição brasileira: As pulsões e seus destinos, Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  48. Idem, “Le Problème économique du masochisme”, em: Neurose, psychose et perversion, Paris: PUF, 1973. Edição brasileira: “O problema econômico do masoquismo”, em: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  49. Idem, Malaise dans la civilisation, Paris: PUF, 1967. Edição brasileira: O mal-estar na civilização, São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2011.
  50. Heinrich von Kleist, Penthesilee, Paris: José Corti, 1954.
  51. Oscar Wilde, A balada do cárcere de Reading, São Paulo: Nova Alexandria, 1997.
  52. Sigmund Freud, Malaise dans la civilisation, Paris: PUF, 1971.
  53. Cf., a esse respeito, Jean-Pierre Winter, “Tentative de ‘viologie’” (Tentativa de “viologie”), em: Françoise Héritier (org.), op. cit.
  54. Stanley Milgram, Soumission à l’autorité, Paris: Calmann-Lévy, 1974. Edição brasileira: Obediência à autoridade, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
  55. Ibidem.
  56. Sophie de Mijolla-Mellor, “Le Meurtre: entre fortune et réalité” (O assassinato: entre fortuna e realidade), em: Violences: lieux et cultures (Violências: lugares e culturas), Association Rénovations, 1997.
  57. Os três últimos foram colaboracionistas na França ocupada durante a Segunda Guerra. [n.t.]
  58. Cf. Antoine Garapon, Le Gardien des promesses, Paris: Odile Jacob, 1996. Edição brasileira: O juiz e a democracia: o guardião das promessas, Rio de Janeiro: Revan, 1999; e Mireille Cifali, “Entre Psychanalyse et éducation: influence et responsabilité” (Entre psicanálise e educação: influência e responsabilidade), Revue Française de Psychanalyse, Paris, 1999, pp. 1011-20.

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