Mitos ameríndios e o princípio da diferença
Resumo
Foi no Brasil, em meados da década de 1930, que Claude Lévi-Strauss, reconhecido como um dos maiores pensadores do século 20 no Ocidente, se tornou antropólogo. E é com um mito dos Bororo de Mato Gosso, que visitou numa de suas expedições, que Lévi-Strauss inicia, nas Mitológicas, um vasto percurso de análise de centenas de mitos de povos indígenas das Américas. Na tetralogia das Mitológicas, bem que como em três volumes posteriores, é o espírito humano que, em sua face ameríndia, se revela nos complexos mecanismos do pensamento mítico. História de Lince, publicado em 1991, é a última dessas obras dedicadas à mitologia ameríndia. Seu objeto são mitos de gêmeos, provenientes de diferentes povos e épocas – dos Nez-Percé da costa noroeste do Canadá aos Tupinambá do Brasil seiscentista. Seu tema, as várias formas narrativas que assume, nos mitos, o princípio central do pensamento ameríndio: a ideia de que a dualidade, a diferença, são fundamentos do cosmo e condição de sua existência, em seus vários níveis. Princípio que também se expressa nas formas de organização social e nas formas de relacionamento com a alteridade, sob todos os seus aspectos. Uma filosofia ameríndia que se contrapõe, portanto, ao princípio da unidade e da identidade que norteia o pensamento ocidental, perceptível, simetricamente, no destino reservado aos gêmeos em seus mitos: um deles sempre tem de desaparecer. Contraponto que marcou a história da colonização das Américas, em que uma “abertura para o outro”, característica da filosofia ameríndia, foi submetida a uma vasta empresa de erradicação violenta das alteridades nativas.
Muito antes de esta “quarta parte do mundo” ser batizada de América e, portanto, bem antes de nela ser pensada uma América Latina, já floresciam aqui cosmologias nas quais Claude Lévi-Strauss propôs perceber um princípio comum, por ele chamado de “ideologia bipartite dos ameríndios”.[1] Trata-se de um modo indígena americano de ver e pensar o cosmo e a condição humana, fundado na ideia da diferença, marcado por uma “abertura para o Outro”. Uma filosofia que possui numerosos e diversos representantes nos países latino-americanos e é, nesse sentido, uma visão da América Latina, já que também está nela. Mas que a extrapola, tanto no tempo como no espaço. No tempo, porque a antecede e continua vivendo nela. No espaço, porque seu solo é o continente, do estreito de Bering ao de Magalhães. Na qualidade de filosofia, pode também ser encarada como uma possível visão da América Latina no sentido de visão sobre ela, visto que a tudo, em princípio, pode ser aplicada. Foi a partir de análises de mitos que Lévi-Strauss chegou à ideia da ideologia bipartite dos ameríndios. “O mito é o nada que é tudo”, diz Fernando Pessoa. Histórias impossíveis, pois que nelas tudo é possível, que misturam coisas e entes, passadas num tempo fora do tempo, os mitos começaram a ser matéria de análise já entre os gregos. No século XIX, uma recém-estabelecida ciência dos mitos buscava a razão de ser dessas narrativas “irracionais, ridículas, absurdas e abjetas”.[2] Muito mudou, desde então, na abordagem dos mitos. E não é exagerado dizer que a mudança se deve, em grande parte, ao monumental trabalho de Claude Lévi-Strauss sobre os mitos dos povos nativos americanos. Entre suas grandes contribuições está a demonstração de que os mitos, longe de serem histórias irracionais e absurdas, estão sujeitos a uma lógica estrita que é, em última análise, a que rege o espírito humano, de todos os humanos.[3] Porque todos os humanos pensam do mesmo modo, uma análise dos mitos de outras culturas é possível e pode torná-los compreensíveis. E porque, pensando do mesmo modo, os humanos pensam coisas incrivelmente diversas, essa análise pode nos mostrar princípios diferentes de organização da reflexão.
Para compreender de que modo uma análise dos mitos pode levar a uma filosofia, será preciso retomar alguns pressupostos da análise estrutural. Mitos não refletem o real, nos ensina Lévi-Strauss. Refletem acerca do real. São reflexão, e não reflexo. Imaginemos, por exemplo, uma sociedade em que o casamento só pode se realizar entre pessoas de aldeias diferentes, e na qual, depois de casado, o rapaz se muda para a aldeia da moça.[4] Imaginemos também que nessa cultura se conte um mito em que pessoas da mesma aldeia se casam, ou em que é a mulher que vai morar na casa do marido. O mito é diferente — oposto até — à prática real. Muitas análises, supondo nos mitos o reflexo do real, um condensado de regras fundamentais da sociedade, diante dessa incongruência proporiam costumes antigos, de que só o mito guardaria a lembrança. E na falta de dados, inventariam a história. Outra opção possível, nesse caso, seria supor que o mito tivesse sido tomado emprestado de algum povo em que isso realmente ocorresse. Se a primeira opção exige a suposição de formas passadas e de suas transformações ao longo do tempo, das quais não se possuem evidências, essa última exige a suposição de uma população que teria criado o mito e de relações históricas entre essa e aquela que conta o mito, para dar conta do alegado empréstimo. Casos de mitos que não correspondem ao que se observa são muito frequentes e constituíram, durante muito tempo, um problema, pois que pareciam representar uma contradição. A análise proposta por Lévi-Strauss permite escapar desse que aparece, afinal, como um falso problema. Conceber o mito como reflexão, e não reflexo, permite pensar que o mito é, justamente, um modo de pensar a sociedade em outros termos, de pensar acerca dela, explorando possibilidades alternativas. O importante, nessa perspectiva, é que os mitos são experiências do pensamento sobre o cosmo e a condição humana, em todos os seus aspectos. Tanto podem explicar por que as coisas são como são como explorar o que poderiam ter sido. Mas se as grandes questões pensadas nos mitos são compreensíveis para humanos de culturas diversas daquelas que contam os mitos, e se os mitos não refletem as culturas em que se inserem, eles tampouco são universais. As “coisas” que agenciam para pensar são retiradas de um conjunto de “coisas” postas pelo lugar do planeta em que a cultura que os conta se situa — elementos do meio ambiente, por exemplo —, e pelas “coisas” postas por essa cultura particular — instituições, classificações, cosmologias, etc. No exemplo que inventei, a questão da regra de casamento e de residência remete, por inversão, a algo que é próprio daquela cultura particular.[5] “Os mitos nos dizem muito acerca das sociedades de onde provêm, ajudam a expor os mecanismos internos de seu funcionamento.”[6] Porque os mitos não são independentes da cultura que os conta, é possível ver, a partir da comparação entre mitos ameríndios, um princípio filosófico próprio dos povos indígenas das Américas, diferente de outros. Um princípio que estrutura suas cosmovisões. Diante da questão que se coloca a todos os humanos, da relação entre a identidade e a diferença, entre o eu e o outro, entre princípios opostos, não há apenas uma resposta possível. As diferenças podem ser anuladas, pela obliteração de um polo, pelo englobamento, pela hierarquia, pela diluição. Ou podem ser mantidas, amplificadas, multiplicadas, e seus movimentos recíprocos ser considerados mola mestra de tudo, condição de existência de tudo. Os ameríndios optaram por essa última possibilidade lógica. Elegeram a diferença, ou, melhor dizendo, a diferenciação, como princípio.[7] A ideia da ideologia bipartite dos ameríndios aparece, na obra de Lévi-Strauss, ao cabo de um longo périplo de décadas, realizado nos volumes das Mitológicas. É em História de lince, seu último livro dedicado à mitologia ameríndia, publicado em 1991, que a análise de vários mitos cujos protagonistas são um par de personagens lhe dá a ocasião de mostrar essa filosofia em operação.
Um desses mitos de gêmeos considerados foi registrado pela primeira vez no século XVI, entre os tupinambás da costa brasileira. Conta que Tamendonare e Aricoute eram irmãos. Um era filho de Maíra-Atá, o grande herói-civilizador; o outro, de um homem chamado “Gambá”, que engravidou a mãe, já grávida do primeiro filho. Os dois nascem, crescem mais depressa do que as crianças normais. Filhos de pais pertencentes a planos diferentes, os gêmeos são opostos por suas características e habilidades. Juntos, eles se envolvem em várias aventuras. Mas sempre se distinguem um do outro. O filho de Maíra-Atá, por exemplo, é mais forte, e sempre ajuda o irmão, que várias vezes é comido ou reduzido a pedaços pelos inimigos. Em todos os gestos e aventuras dos gêmeos, o mito explora suas diferenças radicais sob diversas formas. Algumas versões desse mito, contado pelos vários povos de língua tupi, indicam que os gêmeos são associados ao Sol e à Lua, respectivamente.[8] Lévi-Strauss refere-se diversas vezes, para efeito de comparação, a um famoso mito de gêmeos, o mito grego dos dióscuros Castor e Pólux. Conta esse mito, em uma de suas versões, que Zeus, sob a forma de um cisne, engravidou Leda, mulher do rei de Esparta, Tíndaro. Leda deu à luz quatro filhos: dois filhos de Zeus, Helena (de Tróia) e Pólux, e dois mortais filhos de Tíndaro, Castor e Clitemnestra. Embora filhos de pais diferentes e por isso inicialmente opostos, os gêmeos Castor e Pólux são extremamente unidos, e juntos têm várias aventuras. Até que um dia, numa briga entre os dois e seus primos, Castor foi mortalmente ferido. Pólux conseguiu vingar o irmão e, não querendo aceitar separar-se dele — Castor era mortal e Pólux, imortal —, pediu a Zeus para compartilhar com ele sua imortalidade. Zeus então fez com que ambos, a partir de então, alternassem estadias no Hades, reino dos mortos, e no Olimpo, morada dos deuses. Outra versão conta que foram transformados por Zeus na constelação que leva seu nome. São mitos notavelmente paralelos em sua trama: mesma mãe, engravidada por um imortal/”deus” e um mortal/humano, dá à luz dois gêmeos cuja origem diversa se manifesta em habilidades distintas. Mas, a partir desse mesmo pano de fundo, o mito tupi e o mito grego se afastam, pensam a questão da gemelaridade de modos opostos: as diferenças entre os gêmeos tupis são continuamente enfatizadas, inclusive sob a forma de oposição aberta (briga entre eles), ao passo que as diferenças originais entre os dióscuros vão-se apagando, eles são extremamente unidos (brigam juntos contra outros), suas aventuras têm a marca da cooperação. No final do mito, Aricoute e Tamendonare se opõem radicalmente, enquanto Castor e Pólux se tornam iguais. Gêmeos imperfeitos na origem em ambos os casos, tornam-se cada vez menos “gêmeos” na reflexão tupi, cada vez mais “gêmeos” na grega. A formulação em código astronômico, como diria Lévi-Strauss, é cristalina neste sentido: os gêmeos tupis serão Sol e Lua, sempre desunidos no tempo e no espaço, e os dióscuros, compondo uma única constelação, estarão sempre juntos. Consideremos um outro exemplo de mito ameríndio de “gêmeos”. Contam os craôs que, antigamente, Pud e Pudleré eram dois amigos que andavam sós pelo mundo afora. Competiam e provocavam um ao outro, um criava um bicho, o outro criava outro. Pud mexia com fogo, e incendiou o mundo. Pudleré mexia com água, e provocou um dilúvio. Pud era mais forte, e sempre salvava Pudleré das enrascadas em que se metia, mesmo quando era ele próprio que causava o problema: uma vez, por exemplo, Pud criou a cobra que picou Pudleré, mas ficou com pena do amigo e o curou da picada. Pudleré era malandro, e ficava tentando enganar Pud e se aproveitar das coisas que ele criava, como a primeira mulher. Mas Pud também enganava Pudleré, e ria dele. Nas suas discussões e oposições, eles foram criando várias coisas do mundo e muitas regras da cultura, como a necessidade de trabalhar muito nas roças e a forma de enterrar os mortos.[9] Com as mulheres criadas por Pud, os dois combinaram ter filhos, que nasceram e ficaram adultos no mesmo dia. A aldeia ficou grande, e Pud e Pudleré foram para o céu. São Sol e Lua.[10]
Como os gêmeos tupis, os “gêmeos” craôs se opõem continuamente. O mesmo pode ser observado em muitos outros mitos ameríndios, em que dois personagens “candidatos à união”, como diz Lévi-Strauss, são, ao contrário, reiteradamente afastados. O pensamento ameríndio se recusa a emparelhá-los,[11] e é a oposição, o afastamento, a diferença, o fundamento de tudo o que fazem e, consequentemente, do mundo em que vivem os humanos, que nasce nesse tempo “antes do tempo” em que transcorrem as aventuras dos personagens do mito e pelo qual são eles, em grande parte, os responsáveis. O princípio da diferença tem várias manifestações nas cosmologias ameríndias, e não apenas nos mitos “de gêmeos”. O mundo, contam os matsiguengas do sopé dos Andes, no Peru, deve sua forma atual ao encontro e à oposição entre dois princípios criadores, o “sopro todo poderoso do alto” e o “sopro todo poderoso de baixo”. A terra onde vivem os humanos, intermediária, resulta do choque entre os dois: o do alto, do céu, empurrava para baixo, enquanto o de baixo, subterrâneo, empurrava para cima. Por isso, no patamar humano, as valências se invertem: as montanhas são ligadas ao “de baixo”, e a bacia fluvial onde vivem os matsiguengas, ao “de cima”.[12] O jogo entre esses princípios fez o mundo, e continua a movê-lo. Exemplos como esse poderiam ser multiplicados. Porque a diferença é o princípio e mola mestra de tudo quanto no mundo existe, a filosofia ameríndia se caracteriza, mostra Lévi-Strauss, por uma “abertura para o outro”. Lévi-Strauss observa “a facilidade com que tribos afastadas, sem relação entre si, integraram os brancos em sua mitologia, e quase nos mesmos termos”.[13] As características dos próprios mitos e sua evidente pertença a conjuntos de variantes que se espalham por vastos territórios indicam que não se trata de invenções geradas exclusivamente pela “novidade” europeia. Isso só pode ser explicado, diz ele, se admitirmos
[…] que o lugar dos brancos já se encontrava marcado em vazio em sistemas de pensamento baseados num princípio dicotômico que obriga a desdobrar os termos a cada etapa; de modo que a criação dos índios pelo demiurgo tornava necessário que ele tivesse criado também não-índios.[14]
Tomemos, novamente, o exemplo dos matsiguengas. Entre eles, os brancos entram na categoria dos incas, opostos aos povos da floresta. Consistentemente, são denominados viracochas, na língua dos incas — que, segundo certas versões, são os responsáveis por seu surgimento —, e no alto das montanhas cavam a terra em busca de ouro, pois que as montanhas estão, como vimos, ligadas ao mundo subterrâneo. Mas podem também ser situados na categoria dos “mortos-vivos” e, nessa condição, são o oposto dos matsiguengas e ao mesmo tempo seu destino.[15] Várias outras cosmologias ameríndias desenvolvem a ideia de que o outro é destino do eu, seu oposto e seu futuro, instituindo equivalências entre mortos, inimigos, deuses, brancos, fundadas na relação de oposição. O que é mais um modo de afirmar que são as relações entre diferenças que fazem o cosmo, a vida, a condição humana, e de pensar a diferenciação como processo fundante. As diversas cosmologias ameríndias operam com variados gradientes de alteridades; a que os brancos representam foi situada num lugar lógico pré-existente, lugar necessário de “outros”. De um lado, os europeus, no início, duvidavam da humanidade dos índios, e mais tarde, classificavam-nos como representantes do passado de uma humanidade única. Do outro lado, os ameríndios incluíam os europeus como uma forma possível de outro. Parte-se da identidade, num caso. Da alteridade, no outro. Projeta-se para a unidade num caso e para a multiplicidade no outro. O dualismo como princípio, que os mitos exploram, pode-se realizar em outros planos das culturas ameríndias, como a morfologia social ou o sistema de parentesco.[16] Pode-se manifestar em eventos históricos, ou cotidianos, como uma conversa que presenciei numa aldeia craô, belo exemplo da distância entre nossos modos de conceber o mundo e os deles, em relação ao estatuto das diferenças. Os craôs, que contam o mito de Pud e Pudieré e que se encontram no norte de Tocantins, são uma das sociedades que realizam sociologicamente o dualismo: dividem-se em metades,[17] que remetem aos princípios cósmicos de oposição e complementaridade, para dizer as coisas de modo muito simplificado. No final de cada caçada, eles fazem corridas de toras: a uma certa distância da aldeia, alguns caçadores cortam troncos de buriti e fazem duas toras. Divididos segundo seu par principal de metades, os corredores partem em direção à aldeia numa corrida de revezamento, carregando as toras nos ombros.[18] Certa vez, no final de uma dessas corridas, um paulista de passagem na aldeia dirigiu-se a dois homens maduros, pertencentes à mesma metade, dizendo: “Ei! sua metade é a melhor”. Um deles respondeu placidamente, mencionando o nome do corredor que tinha chegado em primeiro: “ele é o melhor corredor da aldeia”. O paulista, certamente pensando como um torcedor, em times adversários, insistiu: “Mas ele é da metade de vocês!” Então, o outro homem, respirando fundo, com aquele misto de generosidade e condescendência com que costumam responder às nossas ignorâncias, foi ao fundo, para eles óbvio, da questão: “Sem a outra metade não haveria corrida”. A lição não poderia ser mais clara, e mais contrária ao que estamos acostumados a pensar. As duas respostas encaravam a pergunta sob aspectos diferentes e ambas remetiam ao princípio dual: a primeira retomava o conjunto da aldeia, dividida em metades, e a segunda reafirmava que a diferença entre as metades era o que, além de constituir a própria aldeia, permitia a existência da corrida de toras. Sem a diferença, expressa aqui nas metades, nada existiria: nem aldeia, nem ritual, nem vida social, nem nada. E se pode nos parecer que, afinal, a diferença entre as metades craôs não é assim tão grande, já que ambas são, afinal, craôs, é sempre bom lembrar que a diferença tem graus — que o pensamento ameríndio explora, aliás, consistentemente —, de modo que um mínimo afastamento basta para não haver identidade. Além disso, as metades em questão, longe de corresponderem a um afastamento mínimo, expressam uma oposição diametral que, como mencionado antes, remete a princípios cósmicos de oposição, traduzíveis em várias outras relações de oposição, como entre homens e mulheres, Sol e Lua, dia e noite etc.
A alternância entre dia e noite é, aliás, um dos elementos com que vários mitos ameríndios operam e constitui certamente uma via privilegiada para nos aproximar da filosofia ameríndia — pois que esse código é mais facilmente acessível do que outros, cuja compreensão exige um mergulho aprofundado nas cosmologias. Opostos, dia e noite se alternam e é preciso que mantenham sua oposição e sua alternância, para o bom andamento do mundo. Não se pode, assim, estabelecer uma hierarquia entre os dois. Mitos do Brasil central contam, por exemplo, que no início só havia o dia. O Sol, escaldante, impedia a existência das plantas, porque inviabilizava a permanência da água. Aí a Lua foi criada. A terra pode esfriar durante a noite, a água parou de ser exaurida pelo calor, os humanos puderam descansar, as plantas puderam crescer.[19] Ou seja, esses mitos pensam como seria impraticável um mundo sem essa alternância, sem essa oposição, sem essa diferença. No norte da Amazônia, mitos oiampis tomam a questão “pelo outro lado”: no início, era uma noite sem fim, até que o céu fosse empurrado para cima e, no intervalo, o dia pudesse surgir.[20] Entre os caxinauás, encontramos ainda uma outra possibilidade, sempre utilizando o mesmo código: antigamente, antes de o mundo existir, o dia e a noite existiam fechados, cada um em sua caverna, não havia tempo e nada mudava, até que os seres primordiais abriram as duas cavernas, liberando dia e noite, que passaram desde então a se alternar.[21] Considerando a mesma questão e empregando o mesmo código, esses mitos apresentam vários modos possíveis de afirmar a necessidade da alternância entre oposições, expressando o “modelo do dualismo em perpétuo desequilíbrio”.[22] Dizem, todos, que é preciso haver dia e noite, e que é preciso que se alternem. Pois é a relação entre os opostos, aqui sob a forma da alternância, o fundamental. A filosofia ameríndia não parte do princípio de que basta haver diferenças, e isso diz claramente o mito caxinauá: no princípio, dia e noite existiam, mas não se relacionavam na alternância. É preciso que diferenças existam e que se relacionem, mas é também preciso que se mantenham diferentes, pois é a distância entre opostos, seu potencial de diferença, que constitui o mundo. Pode‑se ver, no mito oiampi, esse necessário afastamento lógico expresso em termos espaciais: foi preciso empurrar o céu, diferenciando-o da terra, e é nesse espaço diferencial que se instala a alternância entre opostos, sem a qual o mundo não seria o que é. Não é a diferença representada por um determinado diferente que está em jogo, mas a relação diferencial e o processo de diferenciação. E, entre os opostos assim relacionados, geram-se formas intermediárias — como “madrugadas” e “crepúsculos”, para manter o mesmo código — que são graus de diferenciação, constantemente repostos.
Em História de lince, a análise de mitos ameríndios de gêmeos demonstra o caráter fundamental desses princípios e permite sua comparação com as formas ocidentais de encarar as diferenças. Os mitos de gêmeos da tradição que chamamos, por comodismo, de ocidental “resolvem” logicamente a questão da diferença inicial por meio de sua obliteração, seja com o desaparecimento de um dos gêmeos, seja com a progressiva anulação das diferenças iniciais entre eles no correr do relato, como no caso dos dióscuros. Aqueles contados por povos ameríndios, ao contrário, desenvolvem sempre a ideia do jogo das diferenças, exploram diversas modalidades de afastamento e geram novas diferenças a cada estágio da narrativa. Os mitos ameríndios de gêmeos fazem da diferença, e da multiplicação de diferenças, o eixo de sua reflexão. Não é dialética, pois não há síntese, mas alternância constante, movimento recíproco em que o afastamento diferencial, longe de ser anulado, é intensificado, multiplicado, reposto. A ideologia bipartite dos ameríndios afirma a diferença como essencial e fundante, mola do universo e força geradora, sob todas as suas formas. E correlativamente afirma que a identidade é estéril, que um mundo sem diferenças seria um mundo inerte, morto.
No continente americano, encontraram-se, ou melhor, desencontraram-se modos radicalmente diversos de conceber o mundo. E foi neste continente que ocorreu o maior genocídio de que se tem notícia. Não por acaso, se considerarmos o que nos mostra Lévi-Strauss, os europeus desde o início se propuseram, de várias formas e com graus diversos de violência, a erradicar a diferença indígena. Quando encarada como um problema, a diferença tem de ser eliminada, e os índios tinham de deixar de ser não-brancos. E isso não é apenas parte de nosso passado: ecoa no presente, de formas não menos violentas, diga-se de passagem. Também não por acaso, os ameríndios, ao contrário, mostraram-se, desde os primeiros contatos, interessados na diferença dos europeus, abertos, como sempre, para mais essa figura da alteridade e para o poder gerador de seus afastamentos diferenciais. A diferença é, para eles, tudo menos um problema a ser anulado ou superado.
Mas, felizmente, nenhum dos projetos de transformação dos índios ou, diríamos, de erradicação das diferenças que representam se realizou por completo. Mitos gerados pelo princípio do dualismo fundante, da diferença fértil, da oposição geradora são ainda contados nas mais de cem línguas indígenas faladas atualmente em território brasileiro, que ecoam outras dezenas e dezenas de culturas indígenas na América. Os ameríndios nos oferecem um modo outro de ver o mundo e de estar nele. Para além do valor intrínseco que qualquer forma cultural humana possui — e que faz das visões ameríndias patrimônios da humanidade que como tal devem ser respeitados e protegidos por cada um de nós —, essas visões encerram uma lição. Latinos na América, podemos pensar a diferença como um problema, ou como potencial gerador, na figura de Castor e Pólux, ou na figura de Tamendonare e Aricoute. Ainda bem, nos ensina a filosofia ameríndia, que não estamos reduzidos ao um.
* Agradeço a Dominique Gallois, Márcio Ferreira da Silva e Renato Sztutman, por seus comentários a versões anteriores deste artigo.
Notas
[1] Claude Lévi-Strauss, Histoire de Lynx (Paris: Plon, 1991).
[2] Sobre o nascimento da ciência dos mitos ou mitologia comparada, ver, por exemplo, Marcel Detienne, L’invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981).
[3] Contrariando uma longa tradição de análises baseadas na ideia de um pensamento “primitivo”, pré-lógico e fundamentalmente diverso do que opera entre “civilizados” ou “modernos”, Lévi-Strauss apresenta, ao longo de sua obra, numerosos exemplos da unidade do pensamento humano, o “espírito humano” compartilhado e presente em todas as obras humanas, passadas e presentes. Em várias formulações, Lévi-Strauss reafirmou que o homem sempre pensou e pensa igualmente, e igualmente bem, o que muda são os objetos com os quais o espírito trabalha e a variedade de arranjos possíveis que se manifesta na diversidade cultural. Essa contribuição fundamental à reflexão antropológica ainda não parece ter sido incorporada no exterior da disciplina, uma vez que o senso comum, como os antecessores de Lévi-Strauss, costuma expressar a crença numa diferença qualitativa entre as formas de pensar “primitivas” e “civilizadas”.
[4] A linguagem antropológica utilizaria aqui os termos “exogamia” e “residência uxorilocal”. Concebido para um público de não-especialistas, este texto abre mão tanto da terminologia quanto de referências à bibliografia especializada e do aprofundamento da análise em relação às sociedades e cosmologias ameríndias, que, caso contrário, seriam indispensáveis.
[5] E que uma análise que buscasse interpretações universais tomaria, por isso mesmo, como um detalhe irrelevante.
[6] Claude Lévi-Strauss, Mythologiques IV: L’homme nu (Paris: Plon, 1971), p. 571.
[7] Antes de prosseguir explorando a “filosofia ameríndia” a partir das ideias de Lévi-Strauss, cabe fazer uma observação, já que a proposta de um princípio comum a todos os povos nativos da América pode evocar a ideia corrente, e equivocada, de uma semelhança entre as centenas de culturas ameríndias. A ideologia bipartite ameríndia de que fala Lévi-Strauss conversa diretamente com um princípio de pensamento próprio aos indo-europeus, proposto por Georges Dumézil. Para chegar à ideologia tripartite (“ideologia das três funções”) que seria compartilhada pelos indo-europeus, Dumézil também analisa mitos provenientes de vários povos, como romanos, iranianos, indianos, escandinavos e turcos. Ver Georges Dumézil, Mythe et épopée (Paris: Gallimard, 1968). A unidade indo-europeia e a unidade americana que esses autores propõem situam-se num nível profundo, sendo extremamente diversas as formas culturais que tais princípios fundamentais assumiram e assumem, bem como o plano em que podem realizar-se de modo mais manifesto. Ou seja, entre si, os povos indígenas americanos não são mais semelhantes, nem menos, do que vikings e hindus.
[8] Alfred Métraux, A religião dos tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis, capítulo 2 (24 ed. São Paulo: Nacional/Edusp, 1979).
[9] Pud e Pudleré resolveram preparar roças. Cada um escolheu um pedaço de mata longe do outro. Pud ensinou às ferramentas como trabalhar sozinhas. Enquanto as ferramentas faziam a derrubada, Pud descansava. Enquanto isso, Pudleré trabalhava muito. Todos os dias, os dois saíam para trabalhar, mas na roça de Pud tudo crescia e se colhia sem o menor esforço. Enquanto Pud estava colhendo, Pudleré ainda estava semeando. Pudleré achou estranho que na roça do compadre tudo crescesse e amadurecesse tão depressa, mas Pud disse que tinha plantado antes. No ano seguinte, Pud fez a mesma coisa. Pudleré desconfiou e foi espiar a roça de Pud. Quando chegou, facão e machado caíram no chão, paralisados. E não havia meios de fazê-los trabalhar novamente; nem Pud conseguiu. Se Pudleré não tivesse ido ver a roça de Pud, os índios de hoje não precisariam trabalhar tanto para preparar suas roças. O modo de enterrar os mortos foi determinado por eles num contexto de oposição. Pud fez Pudleré adoecer e morrer. Pud enterrou-o, encostando-o num tronco e cobrindo-o com folhas. Logo depois, Pudleré acordou e saiu andando de volta para a aldeia. Aí foi a vez de Pudleré fazer Pud ficar doente. Pud morreu. Pudleré cavou uma sepultura e o enterrou, cobrindo-o com madeira e folhas. De tarde, Pud acordou e saiu da sepultura, mas foi difícil. Quando chegou, reclamou muito com Pudleré. Ficou combinado, desde então, que os mortos seriam enterrados dessa maneira. Ver Harald Schultz, “Lendas dos índios Krahó”, em Revista do Museu Paulista, vol. IV, São Paulo, 1950, pp. 55-71.
[10] Harald Schultz, “Lendas dos índios Krahó”, cit., pp. 55-71.
[11] Claude Lévi-Strauss, Histoire de lynx, cit., p. 268.
[12] France-Marie Renard-Casevitz, “L’histoire ailleurs”, em L’Homme, nil.’ 106-107, Paris, 1998, p. 214.
[13] Claude Lévi-Strauss, Histoire de lynx, cit., p. 292.
[14] Ibidem. Exemplos de formas de incorporação dos brancos pelas cosmologias ameríndias podem ser encontrados em Bruce Albert & A. Ramos (orgs.), Pacificando o branco. Cosmologias do contato no norte amazônico (São Paulo: Unesp/ Imprensa Oficial do Estado, 2000).
[15] France-Marie Renard-Casevitz, “L’histoire ailleurs, cit. pp. 217-222.
[16] “Povos que ocupam uma área geográfica certamente imensa, mas circunscrita, escolheram explicar o mundo a partir do modelo de um dualismo em perpétuo desequilíbrio, cujos estados sucessivos se embutem uns nos outros: um dualismo que se exprime coerentemente ora na mitologia, ora na organização social, ora em ambos ao mesmo tempo” (Claude Lévi-Strauss, Histoire de lynx, cit., p. 316). De fato, sociedades ameríndias que não se organizam segundo esse princípio, como os tupis, apresentam-no em operação nos mitos e em outras esferas, como o parentesco. Ver, a esse respeito, Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (São Paulo: Cosac & Naify, 2002), pp. 436 e ss.
[17] No caso dos craôs, trata-se, na verdade, de vários pares de metades, constituídos por princípios diversos que não se sobrepõem, cuja complexidade, encontrada igualmente em outras populações indígenas, não é aqui o caso de aprofundar.
[18] Essas corridas são uma das marcas culturais dos craôs — Pud e Pudleré já corriam com toras — e de alguns outros povos linguística e culturalmente próximos. Os leitores talvez as conheçam pelos jornais, já que uma corrida de toras foi recentemente realizada, por representantes dos craôs e dos xavantes, na avenida Paulista, em São Paulo.
[19] Claude Lévi-Strauss, Mythologiques I: Le cru et le cuit (Paris: Plon, 1964).
[20] Dominique Gallois, O movimento na cosmologia wayãpi: criação, expansão e transformação no universo, tese de doutorado (São Paulo: FFLCH-USP, 1988).
[21] Elsje Maria Lagrou, Caminhos, duplos e corpo: uma abordagem perspectivista da identidade e da alteridade entre os Kaxinawá, tese de doutorado (São Paulo: FFLCH-USP, 1998).
[22] Claude Lévi-Strauss, Histoire de lynx, cit., p. 316.