2017

Nós, os bárbaros

por Newton Bignotto

Resumo

Os povos que os antigos gregos chamavam de “bárbaros” – denominação documentada pelo menos desde Homero – são de difícil tipificação. Apesar de mencionados na literatura, os escritores helênicos raramente chegavam a uma descrição detalhada sobre os “bárbaros”, denotando certo desinteresse por esses povos e, consequentemente, falta de conhecimento verdadeiro sobre suas culturas. Gregos e romanos, demasiadamente voltados para si, desenvolveram a noção de que as suas culturas seriam superiores, de onde necessitavam apenas de uma noção geral de barbárie para se situarem no mundo, de forma a funcionar como antítese para que pudessem se afirmar. Por isso, temos não mais do que “traços” da visão greco-latina sobre as populações ditas “bárbaras”. Alguns desses vestígios de imagem são: a dificuldade de domínio da língua dos conquistadores (PESCHANSKI) e a percepção de que esses povos encontravam-se “presos no tempo”, sem conhecerem o sentido dinâmico do acúmulo de conhecimento na história. Temos ainda três traços de cunho psicossocial: 1) Na visão dos gregos, os bárbaros eram “escravos por origem”, sem a liberdade e acesso ao logos; 2) Eles não conseguiriam estabelecer relações de igualdade, pois estariam acostumados ao regime despótico; 3) Seriam marcados pela hybris (desmesuramento, arrogância), o que os impediria de viver segundo a razão. Um salto cronológico nos leva à Era Moderna. Num texto dedicado à história moderna do termo civilização, Jean Starobinski percebe um ressurgimento da palavra no século XVIII; sob o impulso otimista do Iluminismo, a modernidade chegou a orgulhar-se de supostamente ter estado em vias de varrer a violência, a ignorância e a intolerância por meio da civilização. Mas se o Marquês de Condorcet assumiu uma postura utópica ao prenunciar uma era de domínio da razão, o “último dos iluministas” afirmou também que essa era estava ainda longe no horizonte da humanidade, diante de horrores praticados no processo de colonização europeia de seu tempo. No século XX, o sociólogo Elias foi um dos poucos a defender com ressalva que houve um “abrandamento dos costumes” a partir do nascimento do Estado moderno. Diante de tantas guerras, genocídios, e toda sorte de violência e corrupção dos séculos XX e XXI, vemos abalados os argumentos que defendiam um processo civilizatório progressivo no sentido moral e ético. Eis que logo depois da Segunda Guerra, Lévi-Strauss sentenciou: “Não há nada demais em reconhecer no comportamento de povos diferentes traços de violência e crueldade que recusamos e criticamos, desde que estejamos dispostos a admitir que somos nós mesmos capazes de atos tão repreensíveis e violentos.” É preciso olharmos para nós mesmos para melhor compreender o outro, na certeza de que não há civilização ou barbárie absolutas.


Em uma urna funerária romana exposta no Palazzo Massimo em Roma, está gravada em baixo-relevo a cena de uma batalha entre os soldados romanos e um exército de bárbaros. Os primeiros ocupam a parte de cima da urna e estão vestidos com uniformes elegantes, espadas e instrumentos de guerra. Na parte de baixo estão os bárbaros, com olhos esgazeados e postura desorganizada. Em uma das cenas, um soldado segura a mão já desarmada de um inimigo e levanta seu rosto como a procurar o segredo de um povo inferior, que, ainda assim, havia tentado desafiar os conquistadores. Essa cena, longe de representar algo especial na cultura romana do século III, fazia parte de uma representação corrente do mundo e da posição ocupada pelos romanos. Ela integrava a ação de busca pela identidade de um império que ambicionava por uma posição que fosse eterna. Para isso, era preciso olhar profundamente os olhos dos inimigos, para talvez descobrir a própria essência do ser romano e daquilo que o negava e ameaçava sua existência. De alguma maneira, continuamos a olhar dentro dos olhos do diferente para afirmarmos nossa identidade e expurgarmos nossos medos. Da Antiguidade até hoje foram muitos os momentos em que precisamos nomear os bárbaros, para podermos encontrar nosso próprio nome.

* * *

Uma das primeiras vezes em que a palavra bárbaro foi empregada na literatura ocidental foi na Ilíada de Homero. Ao descrever os exércitos que combatem, o poeta fala dos “carianos”, conduzidos por Nastés, que tinham “a voz bárbara”[1]. Essa primeira alusão a um povo com uma fala difícil de ser decifrada ainda não implicava a separação radical entre os combatentes, mas fornece uma pista para o que virá depois. Como mostra Jean-François Mattéi: “A linha de separação entre a barbárie e a civilização passa menos entre os povos da Europa e da Ásia e mais entre os que dominam a língua e aqueles que não conseguem dominá-la[2]”. O que já se encena, nesse primeiro momento, é a necessidade de se estabelecer entre os povos uma distância capaz de significar não apenas uma diferença de costumes e de história, mas uma diferença radical, que implica possibilidades diferentes de desenvolvimento e mesmo de identidades incompatíveis.

Como mostra Catherine Peschanski, o processo de afastamento entre gregos e bárbaros foi paulatino, mas resultou na criação de uma tópica que estaria destinada a durar séculos[3]. Para a historiadora, aos olhos dos escritores gregos da Antiguidade, a diferença entre gregos e bárbaros não se deveu a um vício de origem desses. Ao contrário, não é incomum encontrar em autores como Heródoto e Hesíodo referências elogiosas às obras de povos como os egípcios e mesmo a afirmação de que os gregos haviam aprendido algo com outros povos, e que isso havia sido decisivo para seu desenvolvimento. O problema é que esses povos haviam permanecido parados no tempo. Para eles a história não ocorreu, “o tempo congelou[4]”. Essa é a visão que ganha força já em Tucídides e que serviria de base para uma concepção a respeito da natureza do bárbaro que acabaria por ser dominante no Ocidente. Para o historiador grego, os bárbaros serão pouco a pouco associados com a figura do inimigo[5]. Essa guinada foi essencial, pois criou a ideia de uma diferença que não pode ser anulada e se transforma em uma peça-chave da construção da identidade dos gregos e, mais tarde, de outros povos ocidentais.

Para pensar a natureza do mundo helênico tornou-se importante desvendar a natureza do que parecia ser seu oposto. “Os bárbaros – afirmaPeschanski – são frequentemente apresentados como povos belicosos, até mesmo cruéis[6].” Ao mesmo tempo, alguns autores afirmam que a belicosidade dos bárbaros se funda em sua fraqueza, não apenas espiritual, mas também física. Por isso, era tão comum mostrar o corpo nu e desfigurado dos guerreiros bárbaros derrotados, para que ficasse claro para os soldados gregos, mas também para a população em geral, qual era a natureza dos inimigos vencidos[7]. Esses seres, que pareciam cada vez mais distantes no tempo, se caracterizavam também pela desordem. Incapazes de se organizar para a batalha, acabavam por se comportar como covardes no momento dos combates. Ao lado dos exércitos que se mostravam disciplinados, os bárbaros expressavam o caos em sua formação guerreira e a falsidade natural dos povos que não evoluíram ao longo dos séculos[8]. Como afirma Claude Mossé de maneira resumida, referindo-se ao bárbaro: “O que o distingue inicialmente dos gregos é sua submissão a um poder despótico, aquele do rei, enquanto o grego é um homem livre. Em seguida é sua desmesura, sua hybris, oposta ao sentido da ordem, própria do grego[9]”.

A operação de separar os povos entre bárbaros e civilizados seria completada pelos romanos, que radicalizaram e estabeleceram de forma definitiva a separação entre os dois mundos. Lutando para manter um império que não cessava de se expandir e, ao mesmo tempo, sentindo-se ameaçados por verdadeiras hordas, que resistiam aos conquistadores, os romanos reproduziam a representação grega do mundo, mesmo que, aos olhos dos gregos dominados, o ato de civilizar, que muitas vezes era o resultado da conquista empreendida pelos romanos, fosse na verdade um ato de helenização dos povos. Como mostra Paul Veyne: “Helenizar e civilizar são a mesma coisa, pois que a civilização grega é a civilização por excelência. Os dois sentidos da palavra ‘bárbaro’ convergem aqui: o bárbaro, sendo um não civilizado, quando Roma o civiliza, ela o heleniza, uma vez que o bárbaro é um não grego; civilizado ele se torna grego[10]”.

Pouco importa que a ideia que os gregos tinham deles mesmos durante a ocupação e dominação romanas fosse ingênua e produzisse poucos resultados práticos ao longo dos séculos. Os romanos herdaram a tópica da divisão do mundo entre civilizados e bárbaros e a transmitiram para as sociedades ocidentais que lhes sucederam, sobretudo para as sociedades cristãs. Se a imagem que eles tinham dos outros povos era muito parecida com aquela forjada pelos gregos, a ela eles acrescentaram a distância geográfica. Distantes no tempo, segundo os gregos, os bárbaros também deveriam ser mantidos distantes no espaço. O ato da conquista era assim, ao mesmo tempo, um produto da força e organização superior de seus exércitos contra povos submetidos à hybris, e também o resultado de uma cultura mais elevada que, no limite, conduzia a uma redução da violência, apanágio dos povos não civilizados.

Para nossos propósitos interessa notar que separar o mundo entre civilizados (gregos ou romanos) e bárbaros (o inimigo exterior) é antes de tudo uma operação de criação da identidade interior de um povo. Como observa Peschanski no curso de suas análises, nos textos gregos, “na maioria das vezes, enfim, os bárbaros são apenas um nome[11]”. Ou seja, mesmo que nossa referência sejam os autores da Antiguidade, historiadores ou outros, aprendemos relativamente pouco sobre os povos que não são gregos, pois ao “civilizado” interessa pouco saber como se comportam os outros e quais são seus costumes e saberes. Ao grego, como aos povos que ao longo da história iriam se servir da tópica referida, a presença no horizonte da consciência de um outro, por vezes radicalmente situado nos confins do que se considera como humano, serve para forjar uma imagem do ser civilizado, que está sempre em oposição frontal a uma identidade que só se diz no negativo. Nesse sentido, não se trata de um esforço de comparação que, ao colocar em contato os diferentes, ajuda a criar a identidade dos dois lados. Na lógica da exclusão do bárbaro do mundo grego, tudo se passa como se apenas um dos lados tivesse direito a uma identidade, a uma imagem que se pode refletir e transmitir. Os que se situam do outro lado são apenas negatividades que se esfumaçam num horizonte distante e inacessível. Existem bárbaros, mas não existe conhecimento verdadeiro sobre eles. Ou melhor, tudo o que de interessante se pode saber deles serve apenas na medida em que ajuda na compreensão do ser do civilizado. Com esse procedimento, a diferença se torna incomensurável, pois não se pode comparar o que se situa num horizonte temporal e espacial diferente, e a identidade é única, pois apenas um dos polos pode ser visitado pela razão.

Para resumir numa imagem essa abordagem da questão que nos interessa, poderíamos recorrer à figura de um círculo que se fecha ao mesmo tempo em que expulsa para longe o que lhe parece diferente e incongruente com a identidade que pretende dar de si mesmo. Nessa operação de distanciamento, que isola o outro no tempo, tudo se passa como se o mundo existente no final das raias que se distribuem a partir do centro do corpo político não pudesse ter nenhum contato com o mundo do qual partem as vias que levam ao desconhecido. O primeiro é o mundo do lógos e de suas realizações. O segundo, o mundo do silêncio confuso de uma linguagem que nem parece humana.

O QUE APRENDEMOS COM OS ANTIGOS

À luz dessa imagem vale a pena retornar por um instante ao mundo antigo e interrogar um tempo que de alguma maneira também viveu o fracasso da divisão do mundo entre duas metades antagônicas. Analisando a obra de Heródoto, François Hartog afirmou que “sem gregos, nada de bárbaros[12]”. Essa afirmação decorre do fato de que, segundo ele, Heródoto tomava a separação entre gregos e bárbaros como algo natural sobre o que não cabia se interrogar. Ao mesmo tempo, no entanto, o historiador grego admitia não apenas que se podia aprender com os chamados bárbaros, mas que eles possuíam ideias que normalmente eram associadas aos gregos. Hartog dá o exemplo do debate entre Otanes, Megabizo e Dario sobre qual forma política deveria ser adotada depois que haviam derrotado o poder dos magos. Para ele, esse debate é a confirmação de que os bárbaros tinham acesso à razão e à especulação. Ora, como afirma Heródoto, Otanes profere “um discurso que alguns gregos não acreditarão ter sido de fato pronunciado, mas que de fato o foi[13]”. A estranheza

está em que Otanes diz explicitamente que o poder deveria ser entregue ao povo persa, para que ele pudesse governar a si mesmo. Na sequência do discurso, Otanes faz a crítica da tirania de uma forma muito próxima daquela que se tornaria a marca do pensamento grego. Falando do tirano que se opõe ao “regime dos iguais” (isonomia), ele diz: “Ele odeia de forma ciumenta ter de ver, dia após dia, viver as pessoas de bem; só os piores sem-vergonha lhe interessam. Ele adora acolher a calúnia[14]”. Essa descrição é muito próxima daquela que os gregos faziam do tirano, e é por isso que Hartog afirma que, do ponto de vista de Heródoto, Otanes “fala grego[15]”. Do ponto de vista da civilização grega, os bárbaros só sabem viver sob um governo despótico, que tem os traços da tirania.

Pouco importa, no fundo, se a fala de Otanes é verdadeira, como pretende Heródoto. O importante é que ele acredita que a fronteira entre gregos e persas (bárbaros) é porosa e que a língua na qual a civilização se expressa extravasa para outros territórios, tornando-os parte da humanidade que é capaz de falar a língua da razão. Curiosamente, essa percepção seria deixada de lado por um bom número de escritores gregos e dos que os sucederam, para os quais importa antes de tudo marcar uma diferença que não pode ser reduzida. Tudo se passa como se, na luta pela identidade da cultura grega e, mais tarde, romana, fosse essencial manter fechadas as fronteiras entre civilizados e bárbaros, para que o rosto dos primeiros não aparecesse contaminado pelo olhar desvairado dos segundos.

Radicalizando a constatação de Hartog de que não há bárbaros sem gregos, num sentido que talvez nos distancie da intenção original de seus propósitos, acreditamos ser uma via fecunda usar da tópica civilização e barbárie como de um lugar do qual se pode compreender alguns aspectos importantes tanto das civilizações antigas quanto das nossas atuais. Essa estratégia de análise nos conduz a deixar de lado a investigação da barbárie dos povos distantes e desconhecidos, para nos concentrar em nossa própria barbárie. Dizendo de outra forma, partimos do pressuposto de que aprendemos mais sobre nós mesmos quando falamos dos bárbaros do que sobre aqueles que nomeamos dessa maneira. Retomando o olhar de Heródoto, interessa abrir as fronteiras para que possamos nos compreender em toda a nossa miséria.

Um exemplo do que estamos pretendemos dizer quando operamos a inversão da tópica nos foi dado por Nicole Loraux em um texto consagrado à tragédia grega. A autora lembra que Frinício foi multado pela cidade porque sua peça A captura de Mileto teria levado os ouvintes às lágrimas, quando se deram conta da extensão e do significado da derrota dos gregos[16]. Ao contrário, a representação de Os persas de Ésquilo teve uma outra recepção. Como afirma a historiadora: “Se Os Persas foram, ao contrário, um grande êxito, é que, diz-se, a situação aí era inversa, tendo os gregos, e muito especialmente Atenas, triunfado dos bárbaros. Assim, costuma-se afirmar que só os infortúnios de outrem podem prestar-se a uma encenação trágica, sobretudo quando o outro é bárbaro e foi Atenas que o venceu[17]”. Loraux aposta, no entanto, que, mesmo com o regozijo dos cidadãos atenienses em ver a derrota dos bárbaros, a tristeza de ver o olhar dos derrotados não é sem efeito sobre os que venceram. “Algo que chamarei de o humano: o sentimento, embora confuso em cada um, de que é irrevogavelmente tocado por outrem[18].” É nessa brecha de humanidade que pretendemos nos infiltrar para usar a imagem do bárbaro como algo que reflete nossa própria imagem. Para isso, vamos sistematizar alguns traços que aparecem mais ou menos dispersos em um grande número de fontes do passado para depois compormos nosso próprio retrato: aquele de uma civilização que não consegue fugir de seu ódio ao outro e da procura intensa do próprio rosto.

Seguindo as sugestões de Jean-François Mattéi, gostaríamos agora, antes de seguirmos nosso caminho argumentativo, de resumidamente destacar três traços sobre os quais falamos e que são atribuídos aos bárbaros. Eles podem nos ajudar a traçar o perfil de nossa civilização técnica atual. Esses traços não compõem um quadro completo da figura do bárbaro, mas permitem visualizar a brecha pela qual olhamos nosso próprio tempo e que foi aberta pelos próprios gregos quando concederam a palavra aos bárbaros, ainda que de forma limitada. O primeiro traço que gostaríamos de recordar e que é atribuído aos bárbaros é sua condição servil. Assim, afirma o estudioso: “Mas há um ponto sobre o qual ele não transige: a submissão servil da barbárie. O que distingue o bárbaro do grego é a dependência do homem de seu caos interior, que afeta o déspota assim como seus súditos e lhes interdita o acesso à liberdade[19]”. Prisioneiro de sua incapacidade de aceder plenamente ao lógos, o bárbaro é capaz de operar com ferramentas e mesmo de ter uma vida religiosa, mas não pode ser livre. Ele é escravo por sua origem e aí deve permanecer.

Nessa condição, o segundo traço que deve ser remarcado é o fato de que seu acesso parcial à razão faz com que ele não consiga estabelecer relações de igualdade nem viver plenamente em sociedades livres. Por isso, desde Heródoto, a tirania era considerada como o regime por excelência dos bárbaros. Isso se deve a um retardo no tempo, mas, sobretudo, ao fato de que um povo bárbaro é também aquele no qual as pessoas são prisioneiras de seu próprio caos interior. Com isso, o regime do senhor da casa, o despotés, é o melhor para controlar uma população que não consegue fugir da própria desmesura.

O último traço do qual vamos lançar mão que compõe a figura do bárbaro é a hybris. Caótico interiormente, ele torna o mundo à sua volta caótico e violento. Por isso afirma Mattéi: “Se compreendemos por barbárie as forças caóticas que ameaçam a ordem da cidade no desencadeamento das pulsões de violência, reconheceremos o esforço constante da civilização em reduzir as manifestações da barbárie[20]”. O resultado de um caos invasivo só pode ser a violência e seu cortejo de males. Uma sociedade civilizada deveria ser aquela na qual os níveis de violência tendem a desaparecer ou se restringir a esferas limitadas da vida em comum. Apenas aqueles que cedem à hybris contaminam o corpo político, impedindo-o de viver apenas segundo a razão.

À luz das três características sintéticas que definem a barbárie, resta-nos perguntar por nossa própria civilização, assumindo que nenhum povo nomeia a si mesmo como bárbaro e que essa designação é sempre a criação de um negativo capaz de fazer luzir o retrato dos que acreditam serem os filhos do progresso e da razão. Se não podemos, no espaço de um texto,

apresentar um painel completo de quais seriam as principais características do que nomeamos barbárie e seu contrário, resta-nos perguntar se os progressos inegáveis da ciência e da técnica nos libertaram do território de sombras no qual pareciam habitar os povos bárbaros da Antiguidade até os dias mais recentes. Para abordar essa questão, vamos assumir que o nível de violência de uma sociedade, tanto interno quanto externo, é um parâmetro razoável para tentar entender sua identidade mais profunda. Se evidentemente esse não pode ser o único indicador do estado de um agrupamento humano, é razoável supor que o fato de que os gregos associavam a barbárie à crueldade, à violência e ao despotismo pode ser uma indicação de um caminho analítico para julgarmos a nós mesmos. A pergunta que fica é se, de fato, a fronteira continua a existir, como sonhavam os antigos, e se, mesmo supondo que algum dia ela teve um sentido, ainda podemos separar bárbaros e civilizados de forma radical num tempo de domínio da técnica e da ciência e de existência de uma sociedade planetária que vincula por seus atos, cada vez mais, um número imenso de países em sua dinâmica de destruição de si mesmos. Nossa suspeita decorre do fato de que, se em vários setores da vida nas sociedades ditas civilizadas o nível de violência se reduziu ao longo dos séculos, estamos muito longe de poder afirmar que ela deixou de fazer parte do cotidiano das pessoas, ou mesmo que deixou de ser o meio por excelência para reduzir ao silêncio os que ameaçam a tranquilidade de nossa imagem de seres civilizados.

OS MODERNOS E A CIVILIZAÇÃO

Na verdade, a tópica da civilização e da barbárie, longe de ter permanecido fechada nos horizontes mentais da Antiguidade, ou mesmo do cristianismo medieval, foi um dos pilares sobre o qual se ergueu a modernidade ocidental. Starobinski, em um texto dedicado à história moderna do termo civilização, observa que a ressurgência do vocábulo no século XVIII se deu ao mesmo tempo em que o desenvolvimento das ciências, as novas descobertas e a afirmação do domínio europeu sobre várias partes do planeta se tornou um fato[21]. Fazendo uma leitura da ressurgência do termo a partir de fontes como os dicionários da época, o autor nos expõe um percurso que está longe de ser importante apenas para os linguistas. Referindo-se ao fato de que na França o marquês de Mirabeau foi um dos primeiros a recuperar o termo para as línguas modernas e deu início a um recurso que vai galvanizar a atenção de pensadores como Condorcet ou, mais tarde, Benjamin Constant, o historiador afirma: “Reconhecida como um valor, a civilização constituiu uma norma político-moral: ela é o critério que permite julgar e condenar a não civilização, a barbárie. Por outro lado, utilizada para designar a organização presente nas sociedades europeias, a palavra civilização não é mais do que um termo sintético que designa um fato coletivo, que julgamos apelando para outros critérios[22]”.

Decorre dessas afirmações que a nomeação do civilizado e do bárbaro é uma operação de busca da identidade, que precisa de um polo negativo para poder funcionar, tal como acontecera na Antiguidade. Tudo se passa como se o início de uma época de domínio da razão – e a modernidade foi pródiga em pensar a si mesma como uma nova época na qual as características mais terríveis da história humana, como a violência, a intolerância e a ignorância, seriam varridas para sempre das instituições humanas – devesse ao mesmo tempo nomear claramente o que devia ser recusado, ainda que ao preço da exclusão de uma parte importante da humanidade.

Ao final do texto citado, Starobinski comenta um conto de Borges (História do guerreiro e da cativa) no qual o autor coloca em cena a figura de um “bárbaro” e a de uma inglesa. O primeiro, encantado com as belezas de Ravena, mudara de lado ao participar do cerco da cidade; a segunda, um jovem bem-educada, raptada por “selvagens da América Latina”, acaba por se converter aos seus costumes e se tornar um deles. Para terminar, Borges afirma: “As histórias que contei são talvez uma só história. A face e o reverso da medalha são, por Deus, idênticos”. O comentador se mostra surpreso com essa conclusão, pois, de alguma maneira, ela coloca em xeque a separação sobre a qual se ergueu uma parte importante de nossa civilização e que desde a Antiguidade exigiu o traçado de uma fronteira. Mas, sensível ao gênio do escritor, ele mesmo conclui, referindo-se ao escrito borgiano: “A oposição da civilização e da barbárie se resolve em

um quietismo desesperado. Isso não o conduz a renegar a civilização, mas a reconhecer que ela é inseparável de seu inverso[23]”.

A dúvida quanto à própria identidade do civilizado se dá em um contexto no qual o bárbaro não está mais separado por uma barreira temporal, mas sim geográfica. Como observa Marcelo Jasmin:

Afinal, o que distinguiu o moderno conceito de progresso de outras formas de consciência da melhoria ou do desenvolvimento humanos foi justamente a crença na consciência e na permanência do avanço da humanidade que se ancorava na suposição da existência de um motor imóvel que a fazia mover-se numa dada direção, que não só a trazia do passado ao presente, mas também continuaria a promover a sua caminhada em direção a um futuro luminoso[24].

Se para os gregos, como vimos, os bárbaros eram aqueles que haviam permanecido parados no tempo, na modernidade eles passam a ser aqueles que, no interior de um processo inelutável em direção a formas avançadas de civilização, estavam em descompasso com a evolução dos saberes. Nasce dessa constatação a ideia presente nos movimentos de colonização de que uma das missões dos povos civilizados é a de levar “luzes” para os que se demoraram no passado. Há evidentemente aqui não apenas a percepção de que há um atraso nos povos bárbaros, que deve ser reduzido, mas também de que as novas ferramentas fornecidas pelo progresso da técnica são as mais adequadas para executar essa tarefa. A posição de retardo no tempo é, aos olhos dos colonizadores, uma justificativa suficiente para a empresa de transformar vastos territórios ao redor do mundo em laboratório de propagação da razão.

Ainda no século XVIII, alguns pensadores, como Condorcet, desconfiaram do caráter dessa missão civilizatória. Em seu livro Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, ele adota a ideia do progresso, fazendo dela o centro de sua interpretação da marcha da história. Ao discorrer sobre a décima época, ele se permite dizer: “Chegará então esse momento no qual o Sol só iluminará sobre a Terra povos livres, que reconhecerão como mestre somente a razão[25]”. Mas, olhando para seu tempo, o pensador sabe que o que ele espera para o futuro estava longe de descrever o que acontecia nas terras conquistadas pelos europeus. Diz ele:

Percorram a história de nossas empresas, de nossos estabelecimentos na África ou na Ásia e vocês verão nossos monopólios de comércio, nossas traições, nosso desprezo sanguinário pelos homens de outra cor ou de uma outra crença, a insolência de nossas usurpações, o extravagante proselitismo ou as intrigas de nossos padres destruir esse sentimento de respeito e consideração que a superioridade de nossas luzes e as vantagens de nosso comércio tinham obtido inicialmente[26].

O “último dos iluministas” seria ele mesmo tragado pelo vórtice do terror que se abateu sobre a França e que custaria a vida de milhares de pessoas[27]. A violência exercida contra outros povos era também empregada para resolver problemas de política interna. O povo civilizador estava longe de ser capaz de resolver suas diferenças apenas pelo recurso à razão. Condorcet não viveu tempo suficiente para ver que o que ele enxergava em seu tempo seria a marca do período colonial em toda a sua duração. Violência, escárnio, mentira e preconceito estiveram no centro da viagem que tantos povos europeus fizeram aos confins do que acreditavam ser seu outro. O fracasso da “nova era da razão” foi tamanho que podemos nos perguntar se ainda vale a pena recorrer à tópica da civilização e da barbárie para compreender nosso tempo.

Na modernidade que vê no desenrolar da história um movimento que porta nele mesmo um sentido, expresso pela razão nas muitas filosofias da história forjadas pela esperança de que havíamos entrado em uma época de progresso contínuo da civilização, a velha imagem do bárbaro vivendo nos confins da Terra não serve mais. Agora é preciso pensar numa linha do tempo que afeta de forma diferente o espaço. Por isso, ao mesmo tempo em que se radicaliza a ideia de que é possível “helenizar” todos os povos, é preciso estar seguro de que isso só ocorrerá numa longa linha temporal se o processo for conduzido pelos que agora manejam a nova razão das ciências modernas. O bárbaro ainda não tem a palavra plena, mas poderá um dia tê-la se até lá aceitar as violências que contra ele são praticadas em nome da civilização. Liberto de um tempo pensado como um círculo, ele é de novo afastado do centro por uma linha na qual ocupa sempre o último lugar na pretensa “evolução” que deverá um dia suprimir a violência que continua a reger a relação entre povos e culturas diferentes.

A HYBRIS DO NOSSO TEMPO

Como já sublinhou Francis Wolff, a barbárie, como a civilização, se diz de muitas maneiras. Segundo o filósofo, a civilização se associa à ideia de civilidade e polidez, ao progresso das ciências e a “tudo aquilo que, nos costumes, em especial nas relações com outros homens e outras sociedades, parece humano, realmente humano – […] em oposição ao que se supõe natural ou bestial, a uma violência vista como primitiva ou arcaica, a uma luta impiedosa pela vida[28]”. A barbárie como seu oposto é o lugar da negação dos traços positivos da humanidade para se constituir como o lugar da exacerbação do inumano. Alguns escritores contemporâneos, na esteira talvez dos sonhos alimentados pelos iluministas do século XVIII, imaginaram que haveria uma linha de progressão dos costumes, que implicaria uma redução contínua dos comportamentos grosseiros e agressivos e um processo contínuo de troca dos elementos das pulsões primitivas presentes nos atos mais desmedidos por costumes mais doces e regulados. Talvez o maior pensador a seguir essa via tenha sido Norbert Elias, que em seu livro hoje clássico persegue o caminho que liga o nascimento do Estado moderno ao processo de abrandamento dos costumes. Mesmo ele, no entanto, depois de uma longa análise desse processo de “civilização” afirma:

Só quando essas tensões entre e dentro de Estados forem dominadas é que poderemos esperar tornarmo-nos realmente mais civilizados. No presente, muitas das regras de conduta e sentimentos implantados em

nós como parte integral da consciência, do superego individual, são resquício de aspirações ao poder e ao status de grupos tradicionais e não têm outra função que a de reforçar suas chances de obter poder e manter a superioridade de status[29].

Crueldade, violência generalizada, ausência de linguagem, adoção de regimes políticos despóticos, esses são alguns dos traços que desde a Antiguidade definem a barbárie, como já vimos. Esses são os traços que definem muitas das experiências de vida em comum na contemporaneidade. Para refletir sobre essa proximidade entre a imagem do bárbaro e nosso próprio tempo, vamos partir de um relato que, de maneira direta e clara, nos coloca diante de uma apresentação sintética das profundas contradições que atravessam um tempo em mutação, mas que conserva em si mesmo os traços mais profundos de um estado de violência que teima em não se afastar de nossas vidas.

O relato do qual vamos nos servir foi recolhido por Ilya Ehrenbourg e Vassili Grossman, que, ao final da Segunda Guerra Mundial, elaboraram um documento contendo o testemunho das vítimas, em sua maioria judeus, que sofreram com a violência desmedida dos conquistadores alemães do Leste Europeu. O conjunto desses documentos recebeu o nome de Livro negro e deveria ter servido à acusação no julgamento de Nuremberg, mas acabou não podendo ser usado pois Stálin considerou que ele dava ênfase excessiva à morte da população judaica e que isso não era prioridade para o Estado soviético. Vamos reproduzir o texto em sua integridade para depois refletirmos sobre seu conteúdo.

Lioubov Mikhaïlovna Langman, ginecologista, vivia em Sorotchistsy. Era amada pela população e pelas camponesas, que a esconderam muito tempo dos alemães. Sua filha de 11 anos vivia com ela. Um dia, enquanto Langman estava no vilarejo de Mikhaïlovka, uma parteira veio ao seu encontro para lhe dizer que a mulher do estaroste estava tendo um parto difícil. Langman explicou à parteira o que deveria fazer, mas o estado da parturiente piorava a cada momento. Fiel ao seu dever, Langman foi à casa do estaroste e salvou a mãe e a filha. Depois disso, o estaroste informou aos alemães que havia uma judia em sua casa. Os alemães levaram a mulher e a criança para executá-las. Inicialmente Langman implorou: “Não matem a criança”, mas em seguida cerrou a criança contra o peito e disse: “Atirem! Não quero que ela viva com vocês”. Mãe e filha foram mortas[30].

Num primeiro olhar, somos levados a identificar na figura do chefe da comunidade e dos soldados alemães os bárbaros, e na figura das vítimas, as pessoas civilizadas. Essa identificação é possível porque nos servimos dos termos como metáforas e designamos como bárbaros os que se servem da violência de forma desmedida. Nesse sentido, não resta dúvida de que o emprego da metáfora é adequado. Mas será que ela nos livra do significado inteiro do acontecimento?

Em primeiro lugar, podemos de fato identificar a médica ginecologista como a encarnação de alguns dos traços mais salientes do que acreditamos que deveria ser a civilização: solidariedade, compaixão, saber científico que se sobrepõe mesmo aos saberes tradicionais da parteira, senso de dever. Do outro lado, a traição, o desrespeito pelo outro, o preconceito e a violência. Se nosso desafio fosse estabelecer um quadro de valores morais capaz de dar conta da situação narrada, sem dúvida encontraríamos nos termos sugeridos um indicativo interessante de como julgar o ocorrido. Ocorre que esse seria um ponto de vista parcial, que esconderia parte do verdadeiro drama que se desenrola por trás da morte da mãe e de sua filha.

A postura do estaroste está longe de ser uma exceção durante a invasão do Leste Europeu pelas tropas nazistas. Mesmo depois de terminada a guerra, sobreviventes do Holocausto foram massacrados quando retornaram para suas antigas casas na Polônia[31]. Mas o caso das camponesas que protegeram até então a médica e sua filha também não foi mera exceção. Muitos judeus foram salvos pelo sentimento de piedade e de solidariedade de pessoas que corriam riscos elevados para se manterem fiéis a seus princípios. O que ressalta do comportamento abominável do estaroste não é o caráter de um povo bárbaro, mas sim o caráter criminoso de um homem incapaz de reger sua vida pelos valores que supostamente regulam a civilização à qual ele pretende pertencer. Em um mesmo espaço e tempo

encontramos as duas faces da tópica que estamos analisando entrelaçadas. O divisor de águas parece ser o recurso à violência e à crueldade, sem que possamos atribuir isso à essência de uma sociedade ou de um povo.

Do lado dos alemães, a eliminação pura e simples de dois seres inocentes não colocava problema algum para o exército que executava no Leste Europeu uma guerra total pela construção de um império da raça superior. A eliminação da “vida judaica” era apenas um passo na afirmação da civilização da raça superior. No limite, no interior do credo nazista, não se tratava nem mesmo de eliminação de dois seres humanos, pois os judeus ocupavam na hierarquia dos seres vivos o mesmo lugar das bactérias, muito abaixo de quase todas as formas de vida, aí incluídos os animais em geral[32]. Essa mesma suposta civilização fora capaz de forjar obras de alta cultura e uma ideologia baseada na ideia insensata da superioridade de uma determinada raça.

Por fim, Langman reflete o sentimento de muitos de nós quando confrontados com situações como as que foram descritas: vale a pena viver numa pretensa civilização que gera comportamentos tão abjetos? É claro que não podemos generalizar a resposta dada pela mãe aos soldados sem cair em uma forma extrema de niilismo, mas é possível aprender com ela. Se o humano pode significar o elevar-se aos céus por suas realizações artísticas e outras, pode ao mesmo tempo e no mesmo lugar gerar o que há de mais desprezível, a ponto de nos fazer duvidar da possibilidade de vivermos juntos sem a presença constante da violência.

A radicalidade da cena que estamos analisando pode nos levar a crer que se trata de um exemplo raro e vinculado a um momento histórico específico do século XX. O interesse da narrativa da morte da médica reside no fato de refletir uma possibilidade do humano que não pode ser localizada em apenas um momento da história. Quando vemos que 60 mil pessoas são mortas por ano no Brasil de forma violenta, o destino de imigrantes que se jogam ao mar tentando salvar suas vidas, as muitas guerras civis que devastam várias partes do planeta, somos levados a concluir que estamos muito longe de poder traçar com nitidez uma fronteira entre o mundo civilizado e o mundo dos bárbaros. É claro que podemos simplesmente dizer que a presença da violência nas sociedades humanas é algo do qual não podemos nos livrar. Mas essa naturalização da violência, longe de resolver o problema da fronteira entre a civilização e a barbárie, apenas o relega ao passado das noções que um dia estruturaram nossa maneira de pensar nossa condição.

* * *

Como sugeriu Borges em seu ensaio, o bárbaro e o civilizado são um único e mesmo personagem. A barbárie só pode ser nomeada lá onde também se nomeia a civilização. Se ainda podemos falar de uma fronteira, ela se situa no interior de nosso tempo e de cada sociedade que recorre a essa separação, e não nos confins de um território iluminado pela razão com o qual sonhava Condorcet. Para dizer de outra maneira: não existe uma civilização em estado puro, como não há bárbaros senão como o outro de um povo que se vê como civilizado. Se, como quer Wolff, podemos diferenciar entre comportamentos bárbaros e civilizados[33], isso se deve, a nosso ver, ao fato de que toda barbárie é o fruto de uma ação e de uma nomeação e não pode ser descrita apenas apontando-se para a particularidade do ator que a pratica. Se o que interessa de forma prioritária ao filósofo francês é a recusa do relativismo cultural e a possibilidade de apontarmos para a diferença entre práticas sociais, que não são todas iguais, para nós, o que interessa é que a tópica da civilização e da barbárie seja usada como uma ferramenta para a elucidação da condição do homem contemporâneo em uma época de mutações. Voltando à fórmula de Hartog, segundo a qual “sem gregos, nada de bárbaros”, podemos dizer que ela deve ser desdobrada para elucidar nosso tempo na fórmula “sem bárbaros, nada de gregos”. Nesse sentido, a tópica não serve para descrever nem mesmo a diferença entre povos, mesmo que ela exista de fato e possa ser estudada por outras vias, pois descreve um processo circular e interior a cada sociedade que quer varrer para fora de si a imagem de violência, crueldade e limitação. O bárbaro, sendo um ente negativo e abstrato, não serve para produzir a condição de pluralidade que, segundo Arendt, funda a relação política entre diferentes no interior do corpo político. Ao contrário, a operação de nomeação dos bárbaros é uma experiência de anulação da diferença interior, o processo de busca de uma unidade absoluta que, no lugar de abrir a sociedade para o reconhecimento das diferenças e do conflito, a fecha na busca de uma identidade unitária que, ao atribuir os traços negativos dos bárbaros a todos os diferentes, acaba por servir de justificativa para todas as violências praticadas em nome da razão.

Em nosso tempo, a mônada social se vê cada vez mais ameaçada pela presença dos bárbaros no interior mesmo do território que gostaria de demarcar apenas para os eleitos da raça, da história ou da razão. A imagem de um círculo que se fechava para deixar fora o diferente e para expulsá-lo para longe não contenta mais os que pretendem criar uma identidade pura num mundo diverso. Por isso, as fronteiras são agora interiores e criam as condições para que fenômenos como o racismo, a homofobia, a violência contra as mulheres e tantas outras formas de violência não apenas sobrevivam no interior das sociedades que se veem como civilizadas, mas determinam o comportamento de grupos cada vez mais fechados em suas ideologias do extermínio e da exclusão.

* * *

Os soldados da urna funerária exposta no Palazzo Massimo olham com curiosidade para os que massacram, mas não conseguem perceber que estão olhando para um espelho, pois simplesmente não existe nenhum povo na Terra que se representaria como os guerreiros que estão sendo derrotados na cena à qual aludimos. Para que a tópica do civilizado e do bárbaro possa nos ensinar algo sobre nossa condição talvez seja necessário colocar-nos no lugar dos que são massacrados, para reconhecer que também estamos em uma posição especular em relação aos vencedores. Podemos talvez continuar a sonhar e a esperar por dias melhores se, ao contrário do que fizemos até hoje na cultura ocidental, reconhecermos que somos nós os bárbaros.

No museu Cernuschi em Paris, dedicado à arte dos povos do Oriente, há várias estatuetas de terracota representando bárbaros (yeman de) de épocas diversas da arte chinesa. Há figuras de guerreiros bárbaros produzidas durante a dinastia dos Sui (581-618) que lembram guerreiros ocidentais, figuras de comerciantes de outras paragens da Terra e mesmo simples cavalariços da época da dinastia dos Tang (618-907). Esse foi o período de fortalecimento do poder central chinês, marcado não apenas pela expansão das fronteiras do império, mas também por sua organização interna segundo os preceitos de Confúcio. Trata-se de um período de grande prosperidade da civilização chinesa e de reforço de sua autoimagem como Império do Meio. Nesses termos, Confúcio e seus discípulos e continuadores contribuíram em muito para o processo de consolidação da identidade dos chineses enquanto povo destinado a grandes feitos e capazes de organizar sua vida de forma racional. Para o filósofo Xun Zi (310-235 a.C.), os bárbaros, como em Homero, falavam uma língua difícil de ser compreendida, semelhante a gritos de crianças, e adotavam comportamentos bizarros e pouco racionais[34]. Vários outros pensadores próximos da tradição confucionista se expressaram da mesma maneira. Meng Zi afirma sem ambiguidade que a conquista dos povos bárbaros pelos exércitos chineses é algo benéfico para eles, assim como os impérios coloniais ocidentais acreditavam no século XVIII[35].

Diante do fato inequívoco da existência da tópica civilização e barbárie em várias épocas e culturas, talvez valha a pena voltar nosso olhar para um belo texto de Lévi-Strauss que, depois da Segunda Guerra Mundial, procurou servir-se das armas da antropologia para combater os efeitos devastadores que a crença na superioridade de raças e culturas pode provocar na história. Em um primeiro momento, ele reconhece que a experiência da diversidade é natural aos homens e faz parte da história dos mais diversos povos, na medida mesma em que buscar compreender-se é algo constituidor de todas as culturas. Nessa linha de raciocínio, Lévi–Strauss constata:

E, no entanto, parece que a diversidade das culturas raramente surgiu aos homens tal como é: um fenômeno natural, resultante das relações diretas ou indiretas entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo contrário, uma espécie de monstruosidade ou de escândalo; nestas matérias, o progresso do conhecimento não consistiu tanto em dissipar esta ilusão em proveito de uma visão mais exata como em aceitá-la ou em encontrar o meio de a ela se resignar[36].

A operação de constituição da própria identidade passa pelo reconhecimento das diferenças. Até aí não há nada de nocivo. O problema surge quando no interior mesmo dessa operação identitária nos recusamos a ver, ao lado do que nos separa, o que nos aproxima de outras culturas, e, ainda pior, quando acreditamos que a desqualificação do outro e até sua eliminação são parte necessária da construção de nosso olhar sobre nós mesmos. Não há nada demais em reconhecer no comportamento de povos diferentes traços de violência e crueldade que recusamos e criticamos, desde que estejamos dispostos a admitir que somos nós mesmos capazes de atos tão repreensíveis e violentos. Nomear a barbárie é nomear antes de tudo nós mesmos e nossos defeitos e vícios mais terríveis. Que eles também se encontram em outros povos, não muda em nada o fato de que a barbárie é antes de tudo interior. Diante da recrudescência de fenômenos como o racismo, a discriminação cultural, o abandono de populações inteiras à própria miséria, é fundamental lembrarmos os resultados nefastos que acompanharam a crença na superioridade de raças e culturas e que são parte de nossa identidade civilizacional tanto quanto as obras de arte maravilhosas que tantas culturas foram capazes de criar. Nesse sentido, vale concluir com Lévi-Strauss quando ele afirma: “Recusando a humanidade àqueles que surgem como os mais ‘selvagens’ ou ‘bárbaros’ dos seus representantes, mais não fazemos que copiar-lhes suas atitudes típicas. O bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie[37]”.

Notas

  1. Homero, L’Iliade, Paris: Garnier-Flammarion, 1965, v. 867, p. 59.
  2. Jean-François Mattéi, “Barbarie”, in: Michela Marzano (ed.), Dictionnaire de la violence, Paris: puf, 2011, p. 130.
  3. Catherine Peschanski, “Os bárbaros em confronto com o tempo”, in: Barbara Cassin; Nicole Loraux; Catherine Peschanski, Gregos, bárbaros, estrangeiros, Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, pp. 56-74.
  4. Ibidem, p. 63.
  5. Ibidem, p. 65.
  6. Ibidem, pp. 67-8.
  7. Ibidem, p. 68.
  8. Ibidem, p. 69.
  9. Claude Mossé, Dictionnaire de la civilisation grecque, Paris: Éditions Complexe, 1998, p. 89.
  10. Paul Veyne, L’Empire gréco-romain, Paris: Éditions du Seuil, 2005, p. 243.
  11. Catherine Peschanski, op. cit., p. 70.
  12. François Hartog, O espelho de Heródoto, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, p. 326.
  13. Hérodoto, L’enquête, Paris: Gallimard, 1985, Livre III, 80, p. 313.
  14. Ibidem.
  15. François Hartog, op. cit., p. 329.
  16. Nicole Loraux, “A tragédia grega e o humano”, in: Adauto Novaes (org.), Ética, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 19.
  17. Ibidem.
  18. Ibidem, p. 20.
  19. Jean-François Mattéi, op. cit., p. 131.
  20. Ibidem, p. 134.
  21. Jean Starobinski, “Le mot civilisation, In: J. Starobinski et al., Le Temps de la réflexion, Paris: Gallimard, 1983, IV.
  22. Ibidem, pp. 4-47.
  23. Ibidem, p. 51.
  24. Marcelo Jasmin, “A moderna experiência do progresso”, in: Adauto Novaes (org.), Elogio à preguiça, São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2012, p. 457.
  25. Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Paris: Garnier-Flammarion, 1988, p. 271.
  26. Ibidem, p. 268.
  27. Patrice Gueniffey, La politique de la Terreur, Paris: Gallimard, 2000.
  28. Francis Wolff, “Quem é bárbaro?, in: Adauto Novaes (org.), Civilização e barbárie, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 23.
  29. Norbert Elias, O processo civilizador: formação do Estado e civilização, vol. 2, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 273.
  30. Ilya Ehrenbourg; Vassili Grossman, Le Livre noir, Paris: Actes Sud, 1995, p. 100.
  31. A esse respeito, cf. Jan T. Gross, La Peur: L’Antisémitisme en Pologne après Auschwitz, Paris: Calmann-Lévy, 2006.
  32. Johann Chapoutot, La Loi du sang: Penser et agir en nazi, Paris: Gallimard, 2014, p. 43.
  33. Francis Wolff, op. cit., p. 43.
  34. Xun Zi, in: Charles Le Blanc; Rémi Mathieu (eds.), Philosophes confucianistes, Paris: Gallimard, 2009, p. 695 (i, 2); p. 1.249 (XXVII, 330).
  35. Meng Zi, in: Charles Le Blanc; Rémi Mathieu (eds.), op. cit., p. 566 (VII, b-4).
  36. Claude Lévi-Strauss. Raça e história, São Paulo: Editora Abril, 1980, p. 53.
  37. Ibidem, p. 54.

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