O desejado
Resumo
O sebastianismo é um dos grandes “mitos culturais” portugueses, e Antônio Vieira foi o primeiro, no século XVII, a dar-lhe um gênio artístico através do que escreveu sobre o desejo em seus Sermões. Para Vieira, se o desejo tivesse de ser representado por uma figura, só o círculo o poderia fazer convenientemente, “porque a figura circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno”. Desejo é movimento livre (livre-arbítrio) da alma em direção a Deus, mas também instância possível de pecado. Sempre implica certa ausência de conhecimento: “Nenhum homem há neste mundo (…) que saiba o que deseja, nem o que pede”, diz Vieira. E o que chamam de amor é uma doença da imaginação, “perpétua suspeita”. Mas a finalidade última do desejo é “desejar ser” à imagem do Ser primeiro, orientando-se por aquilo que é sinal ou vestígio da Providência no mundo. Pois há um ocultamento da substância divina, como mostram os mistérios litúrgicos. Encobrir-se seria uma forma eficaz de negar e manter vivo o desejo. Ao mesmo tempo, a via oculta do sacramento favorece a identidade fraternal dos que desejam o mesmo. Como o parto do Cristo, o Desejado seria o esperado parto do desejo comum. Assim o movimento do desejo para o Ser não se esgota numa imagem coletiva virtual. É preciso também suscitar o nascimento feliz do Desejado que conciliaria o desejo de todos com a providência divina e teria o mesmo papel de eleito do mítico Rei Encoberto. É nesse ponto que intervêm os conteúdos nacionais das ideias de Vieira.
A questão do desejo está explicitamente colocada no cerne dos dois maiores “mitos culturais”[1] mais que temas literários, da tradição portuguesa: a “saudade” e o “sebastianismo”, que, de resto, sob certos aspectos, têm muito em comum. O século XVI assistiu ao aparecimento do gênio articulador do primeiro mito, o alentejano Bernardim Ribeiro, autor da espantosamente original História de menina e moça; o século seguinte vai ser teatro de Antônio Vieira, em sua representação única do segundo. Claro, não é Vieira o fundador da ideia sebastianista, de origem naturalmente difusa, mas cuja expressão fundante em Portugal cabe historicamente às trovas do sapateiro de Trancoso, Gonçalo Annes, o Bandarra, compostas por volta de 1530. É Vieira, porém, o primeiro a dar gênio artístico à ardência visionária e nacionalista do Bandarra. Reconhece-o, em primeiro lugar, Fernando Pessoa, e ninguém melhor do que ele, pois ele só terá calibre comparável ao do jesuíta na complexização totalizante do mito, incluída aí a sua configuração estética.
Entretanto, corretas ou não, isso são apenas generalizações. Será preciso evitar o sedutor delas e recuar até o meio movediço dos escritos de Antônio Vieira, especialmente de seus sermões, para tentar localizar lá um percurso possível da inteligência vieiriana à roda do desejo. À roda, sim, porque se o desejo tivesse de ser representado por uma figura, para Vieira, só o círculo o poderia fazer convenientemente:
A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura. Os egípcios, nos seus hieroglíficos, e antes deles os caldeus, para representar a eternidade pintaram um 0, porque a figura circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno.[2]
E prossegue, sonorizando a imagem:
O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afeto rompeu o silêncio, e do coração passou à boca, o que pronunciam é Ó.[3]
E depois, para aperfeiçoar essa figura do desejo, a Vieira basta imprimir-lhe movimento:
Se acaso ou de indústria lançastes uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que essa perturbação se sossegou, e a pedra ficou dentro no mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo perfeito, e logo outro círculo maior, e, após este, outro e outros, todos com a mesma proporção sucessiva, e todos mais estendidos sempre, e de mais dilatada esfera.[4]
Tem-se aí a figura, mas qual pode ser o exato percurso que lhe dá substância?
Um sermão de 1643, o “Sermão de Todos os Santos”, talvez possa dar a partida. Nele Vieira caracteriza como próprio da natureza do homem, isto é, como móvel permanente de suas ações,[5] o “desejar ser”. A fórmula atende a uma perspectiva cristã, de matriz tomista, em que um Ser singular, perfeito e infinito seria causa exclusiva de todos os demais seres, que apenas o são, em diferentes níveis, sempre limitados, por tê-lo como causa — vale dizer, por ter uma “participação criada” no Ser original.[6] Nesse sentido, toda criatura teria seu ser não só dependente da “expansão”[7] do Ser que o criou, como seria imperfeita “imitação”[8]: sua, tal como o pode ser, na leitura tomista, o efeito de sua verdadeira causa. O desejo de ser teria de ser interpretado, assim, como um desejo perfeitamente natural de participar mais intensamente dessa causa — não obviamente no sentido pagão do termo participação, de “fazer parte”, de “identificar-se” , mas na sua significação, delineada pela tradição cristã, de aproximar-se “analogamente” , como “imagem e semelhança” da Causa Primeira.[9]
Entretanto, nesse sermão, quando Vieira expõe a questão do desejo de ser, ele não está simplesmente pensando em afirmar um paradigma tomista. Da maneira como faz a citação, ele coloca em confronto o desejo natural com o que ele chama de “apetite”, o resultado já de operações deformantes da natureza conduzidas pelos seres. Descrito como “apetite”, não é o desejo natural de ser, mas sua deformação em “tentação” que é trazida ao primeiro plano. O desejo, aí, deixa de afirmar-se como ponto de fortalecimento analógico do Ser Primeiro, para tornar-se “paixão” e, como tal, autocentrada e indiferente a toda relação que defina sua substancial dependência do Ser. Nesse sentido precisamente é que, numa perspectiva cristã, o desejo passaria a ter um caráter pecaminoso, isto é, relativo a um “ato desordenado”, contrário à “ordem” da natureza instituída por Deus.[10] Quando Vieira diz: “A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser”,[11] o que ele está afirmando é que, degenerado em impulso passional, o que era da natureza mesma dos seres passaria a negá-la e, em consequência, negar a sua própria semelhança com o Ser. A “tentação”, cujo modelo o demônio se encarregaria de fornecer, seria justamente essa forma degenerada de desejo que, em vez de orientar-se para o Ser, encerra-se na negação dele: “o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, senão também o ser”.[12] Qualquer outro ser que não se defina em analogia com o Ser de Deus, como diz Antônio Vieira, “por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não-ser”.[13]
Para entender esse risco de não-ser a que o desejo se expõe ainda será preciso considerar que, numa perspectiva cristã como essa, o “mal”, o “pecado”, ou, se se quiser, o “não-ser”, apenas pode ser definido no interior das “operações”[14] que o homem, enquanto ser contingente, é obrigado a realizar e nas quais se conduz por escolhas próprias. O desejo, nesse contexto, não operaria jamais mecanicamente.., ele supõe uma vontade livre — o “livre-arbítrio” —, imagem da liberdade divina e análoga a ela. O ato mesmo do arbítrio seria busca já da comunhão com o Ser que é Deus e que não pode ser buscado fora da liberdade em que existe.[15] O livre-arbítrio seria, portanto, ao mesmo tempo, condição da analogia com a perfeição divina e instância possível do pecado, isto é, ao mesmo tempo, desejo natural de ser e tendência do contingente ao não-ser.
No interior dessas operações dos seres contingentes, em que o desejo pode tornar-se apetite, é que Vieira começa a firmar as suas considerações sobre a questão do desejo. A mais imediata delas é que o desejo, na formulação contingente que invariavelmente recebe, a única em que seria possível, sempre implicaria certa ausência de conhecimento — mais precisamente, certo engano na definição que faz de seu próprio objeto. Quase todos os seus “Sermões da terceira quarta-feira da Quaresma”, relativos em geral aos “pretendentes”, cuja matriz nas Escrituras seria dada pela “mãe dos Zebedeus” , tratam justamente dessa ignorância essencial do desejo. Num desses sermões, o de 1669, Vieira diz expressamente: “Nenhum homem há neste mundo, falando do céu abaixo, que saiba o que deseja, nem o que pede”.[16] E afirma: “Tão errados são os pensamentos e desejos humanos, e tão certo é que no que pedimos com maiores ânsias não sabemos o que pedimos”[17]. E é exatamente como sinal desse desconhecimento humano do próprio desejo que Vieira vai interpretar a “sentença verdadeira” do Faetonte fabuloso cujo desejo de dirigir a majestosa carroça do pai havia de fulminar-lhe os ossos, ou a desgraçada cegueira de que não pôde esquivar-se o robusto Sansão face ao seu próprio desejo da filisteia. O que esses exemplos afirmariam é que o desconhecimento suposto no desejo pode conduzi-lo a um falso objeto, cuja posse terminaria por destruir ou afastar o bem desejado, em vez de atualizá-lo.
E o que parece ressaltar desse confronto entre o desejo e o conhecimento é que, para Vieira, sem alguma experiência antecipada do objeto do desejo e de seus efeitos haveria sempre o forte risco de um direcionamento paradoxal desse desejo, em que o que se alcança é a impossibilidade mesma do bem que se procura. E, jogando um pouco mais com as noções parentes da de desejo no esboço “grammatical”[18] que se tenta aqui, o que se pode dizer é que, sem o conhecimento de seu objeto em alguma forma de experiência antecipada do seu bem, o próprio “amor”, tomado como desdobramento fecundo, natural e desinteressado do desejo na fruição da presença do bem, seria implausível. Isso, claro, porque o objeto a que se chega não seria o mesmo que o desejo supõe, e, ainda mais que isso, porque esse falso objeto não teria ser, condição irredutível de todo amor.[19]
Em termos mais próprios de Antônio Vieira ainda é possível dizer que o amor mais comum, no âmbito mundano dos desejos, significaria sobretudo uma espécie de hipertrofia da imaginação, em que o desejo, longe do conhecimento, distende-se progressivamente pelo irreal. No “Sermão da primeira sexta-feira da Quaresma”, pregado em Odivelas no ano de 1644, Vieira afirma o seguinte: “Isto que no mundo se chama amor é uma coisa que não há nem é. É quimera, é mentira, é engano, é uma doença da imaginação”.[20] Doença caracterizada, aliás, na sobreposição de um duplo engano: enquanto objeto imaginário (ou ser imaginário de um objeto trocado, diferente do que se supunha) não só deixaria de cumprir amorosamente o que o desejo promete, pois, sendo imaginário, não poderia presentificar-se (apresentar-se), como, além disso, por sua ausência de ser, ele ainda tenderia a desdobrar-se sem resistência nas figurações sem fundo e sem fim das inevitáveis suspeitas. Nesse momento, o tormento seria acrescentado ao nãoser (como a dor ao calafrio e à febre). O tormento pessoal seria efeito real e tradução afetiva da ausência de ser que o desejo ignora e que, assim, impossibilita o gozo amoroso.
A rigor, nessa perspectiva, toda forma de amor humano e, de maneira exemplar, o amor sensual, teria, na origem, um objeto de desejo, de uma só vez, vazio de ser e assediado pela fantasia. As formas imaginárias daí resultantes, sem sustentação ontológica, logo romperiam nos costumeiros horrores: “Pode haver maior tormento que amar, quando menos em perpétua dúvida, amar em perpétua suspeita…?”[21] E, mais declaradamente:
[…] o amor desta vida e deste mundo é uma morte que só tem precitos, e não tem predestinados; é uma morte pela qual sempre se vai ao inferno e nunca ao paraíso. O paraíso do amor — se o houvera — havia de ser amar e ser amado, e amado com certeza de nunca ser aborrecido. Mas como não há, nem pode haver no mundo, nem este amor, nem esta certeza, senão as dúvidas, os escrúpulos, as desconfianças, os receios e as suspeitas de se me amam ou não me amam, ou de que já me ama menos que dantes, ou que trocam o meu amor por outro, ou de que outrem pretende o que eu amo, em que consiste por vários modos o tormento crudelíssimo do ciúme, este ciúme sempre duvidoso, sempre crédulo, sempre fixo na imaginação, e nunca satisfeito, este é o inferno inevitável e sem redenção a que todos os que amam se condenam, e em que são atormentados duramente, sem fim e sem remédio.[22]
Os ciúmes, as dúvidas sobre a correspondência, o tormento amoroso, enfim, seria efeito justamente da evolução (ou distorção) imaginária do desejo incapaz de conhecimento do seu objeto, e, assim, incapaz de orientá-lo para o ser. Nesse circuito, o amor, que “essencialmente é união”,[23] ficaria irrealizado.
Para Antônio Vieira, portanto, o desejo, para ser fecundo, teria de fundar-se sobre um conhecimento efetivo de seu objeto, capaz ao menos de garantir a sua realidade, pois apenas a sua existência real, e não virtual ou imaginária, permitiria a pretendida dissolução do desejo na forma superior do gozo unitivo. Sem esse conhecimento, com a vontade subjugada pela “tentação”, o desejo acabaria tomando as formas penosas já citadas, cuja natureza ao mesmo tempo exaltada e falta de ser definiria a irracionalidade em seu âmbito. É por isso que, num “Sermão do mandato”, o do ano de 1645, Vieira comenta que, finalmente, chegou a “acertar a causa” da representação infantil de Eros (depois de julgar erroneamente, de início, que isso se dava apenas porque “nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho”).[24] Diz ele:
Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar.[25]
E diz ainda:
[…] tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo.[26]
De maneira ainda mais direta, para acentuar a relação entre o irracional do amor vulgar e a ausência de conhecimento que o presidiria, Vieira afirma o seguinte: “isto, que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor”.[27] E lapidar, como ele só, arremata:
Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinquente. Quem ignorando amou, em rigor não é amante.[28]
A irracionalidade desse amor que desconhece o ser de seu objeto impediria a sua existência mesma: “amar ignorando não é amar, é não saber”.[29]
Em resumo, pode-se dizer que a perspectiva adotada por Vieira na questão do desejo faz predominar a ideia de que a ignorância mais ou menos inevitável na qual ele se formula, uma vez que existiria exclusivamente na contingência dos seres criados, teria de ser balizada ou orientada por alguma espécie de ciência do ser, para evitar, assim, a sua cristalização nas formas estéreis e atormentadas do “apetite”. Ou seja, o desejo teria de movimentar-se segundo um parâmetro ordenado que permitisse ou proporcionasse a ele a sua consumação na união amorosa que exige o ser. Vieira destaca igualmente que, desse ponto de vista, especialmente nocivo a isso que se chamou de “ciência do ser” seria a fermentação fantástica, ou fantasiosa, dessa ignorância inevitável do desejo. Isso porque tal fermentação poderia paralisar o desejo no seu salto para o ser. A fantasia ou a imaginação poderia conduzir o voluntário do desejo não à glória cristã da livre obtenção do bem, mas ao cerceamento desse desejo numa virtualidade ou potência, para usar o jargão aristotélico importante aqui, cada vez mais distante de sua resolução em ato; isso significaria perder de vista a finalidade última do desejo, que não é desejar, mas ser (“desejar ser”) à imagem do Ser primeiro.
Em outros termos, o perigo da projeção imaginária do não-ser seria justamente a renúncia irracional e moralmente má à comunhão com aquilo cujo maior bem, antes de ser qualquer coisa, tem de ter uma essência particular, é justamente ser —[30] e que, a rigor, só é desejável porque verdadeiramente é. Ou seja, só o amor do que tem realidade e cuja natureza admite a existência seria amor real. Eis como Vieira coloca as coisas, chamando a atenção para o falso amor do que não é:
os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam, ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima, e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os homens não amam o que cuidam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não há, porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina e não é, não o há no mundo.[31]
E reitera:
Os homens amam muitas coisas, que as não há no mundo. Amam as coisas como as imaginam, e as coisas como eles a imaginam, havê-las-á na imaginação, mas no mundo não as há.[32]
O reconhecimento do real — entendido não como abstração ou virtualidade, mas como horizonte que se define no efetivo plano da existência — seria, portanto, condição da realidade do amor. Ou, para dizer de outra maneira, a existência do amor decorreria da realidade concreta de seu objeto: só o amor do real permitiria realmente amar. Só a incidência, buscada livremente pela razão, da ordem do desejo sobre a de um plano em que o Ser se manifestasse sensivelmente, no mundo, poderia significar uma aproximação amorosa do bem desejado.
Cabe agora precisar algumas das afirmações anteriores. De início, como já se frisou, para o desejo manter-se como busca do Ser, que é Deus, ele teria igualmente de manter-se no horizonte real do mundo, evitando assim as fantasias irracionais e o tormento inevitável decorrente delas. Mas deve ficar claro também que, para Antônio Vieira, o Ser buscado pelo desejo não é idêntico ao estado do mundo tal como se configura num determinado instante ou ao longo de sua história até o presente — na verdade, dificilmente o realismo peculiar de Vieira poderia ser traduzido convincentemente por qualquer gênero de panteísmo. Segundo o que se pode depreender do seu raciocínio, o desejo, para não se perder em falsas representações do Ser, teria de evitar tanto o desregramento irreal da fantasia quanto a sua diluição no estado particular das coisas do mundo. O desejo existiria no mundo, é certo, mas não poderia orientar-se senão por aquilo que nele é sinal ou presença de uma substância divina que o funda, sustenta e está ao fim dele, transcendendo-o. Ou seja, se a fantasia não responde ao desejo de participação no Ser de Deus, porque ignora a sua manifestação viva no real e concreto, também o mundo tal-com– o-está não o poderia fazer. E isso por duas razões. Ern primeiro lugar, porque considerado em um momento particular o mundo representaria sempre um estado decaído, excessivamente distante da comunhão com Deus, fruto dos sucessivos enganos e tentações da história humana. Em segundo lugar, porque o desejo se orientaria pelo real para chegar a participar da finalidade de sua criação, o desejo rastrearia em meio ao efeito do Ser o fim pretendido por ele. Logo, não seriam nunca estados circunstanciais do mundo, mas o seu movimento providencial para o Ser que responderia positivamente ao desejo natural. Ele se caracterizaria, assim, sempre de maneira finalista e teleológica, a pautar-se pelo real para chegar ao seu futuro e destino, não para esgotar-se antes dele.
Se a fantasia é, como se disse, uma hipertrofia do desejo à margem do real, os objetos do mundo seriam, de certa forma, sem a consideração da Providência, uma paralisia do real na sua matéria, uma deformação do movimento desejante para o Ser em uma etapa ainda aquém de sua substância. A rigor, um e outro, o imaginário e o estado do mundo teriam muito em comum: a irrelevância frenética das paixões pessoais ampliar-se-ia na vanidade injusta dos estados do mundo. O não-ser do primeiro tenderia a sedimentar-se no segundo. Quer dizer, para cumprir-se o desejo seria preciso ultrapassar tanto o imaginário vão quanto o engano da matéria, o irreal da fantasia como o sub-real do mundo. E a razão, isto é, o juízo necessário para o discernimento do horizonte real do objeto de) desejo, seria, nesse sentido, tão importante para impedir o descolamento da fantasia do real quanto o enrijecimento pontual deste na sua matéria.
Neste ponto, parece correto considerar que a questão do desejo, tal como se dá a conhecer em Vieira, torna necessária a introdução de uma dimensão do real capaz de responder a ele, de fornecer aquilo que se chamou anteriormente de experiência antecipada de seu objeto. Nos termos mais gerais, tal dimensão seria aquela em que o Ser de Deus se manifestaria sensivelmente (no seio das coisas do mundo, portanto), ao mesmo tempo que preservaria a sua substância além de toda precariedade material. Nesse sentido, algumas perguntas impõem-se ime diatamente, todas elas em torno da definição possível dessa dimensão ou plano do real na qual se afirmaria com eficácia a busca da participação no Ser que é a essência mesma do desejo. Como Vieira especificaria, afinal, esse real que insistina em atualizar-se no mundo e, concomitantemente, diferir dele a cada momento? E, se há aí, como parece, um traço fortemente paradoxal, em que o Ser se manifesta no real, mas não se identifica com ele, em que o real se refere concretamente ao mundo, mas não a qualquer parte estanque dele ou fora de uma finalidade inscrita nele, qual poderia ser exatamente a “anatomia”[33] desse paradoxo? E ela admitiria gradações, ou etapas mais ou menos privilegiadas? Perguntas como essas são inevitáveis na direção proposta por este ensaio.
De qualquer maneira, é certo que, para Vieira, o que quer que respondesse positivamente ao desejo, em seu caminho para a participação no Ser, teria de ordenar-se por essa natureza peculiar, que se poderia chamar de sacramental ou de encoberta, segundo se pretendesse ressaltar o aspecto litúrgico ou o profético que ela contempla. No interior dessa natureza, o Ser divino — que, por princípio, numa perspectiva tomista, está além de toda determinação — obrigar-se-ia a determinar-se a fim de tornar-se objeto possível (sensível) do desejo humano. E determinar-se, aqui, significaria antes de mais nada uma acidentalização do Ser, um ocultamento de sua substância infinita e indivisível nas espécies particulares existentes no mundo. Nada mais vieiriano que a investigação, e o investimento intelectual e retórico maciço, em torno desses lugares em que convivem misteriosamente a presença do Ser de Deus e a matéria comum do mundo.
Pois bem, pensando do mais geral para o mais particular, o plano sacramental poderia incorporar, até onde o raciocínio de Vieira permite supor, pelo menos três instâncias principais distintas. Uma primeira em que a acidentalização do Ser se encontraria manifesta em. todo o universo, uma vez que este, não sendo autônomo, mas criado, sustentado e dirigido pelo Ser divino, guardaria necessariamente em suas múltiplas circunstâncias os vestígios[34] daquele que o fabricou do nada. O que há nas variações do mundo e da história, e ainda mais o que nelas falta estaria impregnado do Ser que é causa delas. Uma segunda destacaria o lugar privilegiado dos mistérios litúrgicos — o da Eucaristia, sobretudo: “o mais alto de todos os mistérios”,, “o mais alevantado de todos os sacramentos”, “soberano mistério”[35] nessa presentificação do Ser sob a capa das espécies do mundo. Uma terceira, enfim, a mais autenticamente portuguesa, em que o ocultamento , inevitável na determinação que sofre o divino quando se apresenta no mundo, far-se-ia mediante a instituição da figura pessoal de um eleito, de um favorito da Providência, destinado a ter uma atuação decisiva no desfecho da história humana.
Tratando-se de Antônio Vieira, apenas nessa última instância seria justo dizer que o Ser buscado pelo desejo tomaria definitivamente a forma e o nome do Desejado. Isto é, a ideia do Desejado só se colocaria de maneira adequada quando a comunhão com o Ser de Deus, que o desejo busca, aparecesse mediada pela de um Predestinado capaz de conduzir a história do homem (e não apenas a existência particular de cada um deles) a um ajuste com seu desejo comum. O. desejo apenas resvalaria pelo Desejado quando o Ser se traduzisse em uma escolha divina que assinalasse um somente entre todos os homens e, entretanto, que este homem único, este “Vice-Cristo”[36] fosse o meio pelo qual se cumprisse todo desejo humano de Ser.
Aí estariam resumidamente as três etapas fundamentais do plano sacramental, esta via segura para o cumprimento do desejo; mas, antes de avançar, é importante notar que Vieira, no que tem de mais particular e original, pensa sobre as formas de articulação e analogia entre essas instâncias, sobretudo as duas últimas. Tomadas em separado, elas referem-se, grosso modo, a pontos conhecidos, seja da ortodoxia (na formulação predominante, mas não exclusiva, do tomismo), seja do sebastianismo da Restauração portuguesa, de que os jesuítas foram os mais insistentes propugnadores.[37] O que parece realmente esclarecer a maneira própria de Vieira tratar o tema do Desejado seria o modo como ele vai aproximando-o, sem perder a carga fortíssima que recebe do imaginário nacional da Restauração, de temas exclusivos da ortodoxia e, mais particularmente, da liturgia católica. Pode-se dizer com absoluta segurança que o tema do Desejado, em Antônio Vieira, responde tanto ao entendimento que ele tem do sentido do Sacramento na vida humana, quanto ao papel do mítico Rei Encoberto encravado no destino português. Por isso, sobretudo, parece importante falar em uma natureza, via ou plano sacramental, eixo de suas preocupações mais obsessivas, cujas características anatômicas precisam ser descobertas a fim de se entender um pouco mais das estranhas equações que permite. Este ensaio procurará ater-se a duas dessas características, dois movimentos importantes envolvidos nessa, por assim dizer, via sacramental do desejo para sua participação no Ser.
O primeiro movimento que importa acentuar refere-se primordialmente ao sacramental litúrgico, cuja forma básica seria dada pela Eucaristia. Aí, pela presença do Ser divino encoberto sob as espécies materiais do pão e do vinho, haveria, de acordo com a ortodoxia católica (que recusa o meramente simbólico dessa presença), uma “comunhão” do homem que as recebe com Deus, uma comunicação “abreviada”, para usar o termo vieiriano, do Ser.[38] Mas, aqui, o que interessa a Antônio Vieira não é apenas discutir a natureza dessa comunicação: ele pretende igualmente ressaltar as razões para que ela se fizesse pela via sacramental, isto é, como presença encoberta na matéria. E, quanto a isso, pelo menos duas razões precisariam ser citadas como características da maneira vieiriana de pensar a questão. A primeira delas refere-se à ideia de que a presença explícita do Ser divino, quer dizer, dada diretamente à vista sem a mediação das espécies sacramentais, tenderia paradoxalmente a fazer com que o desejo, vista a imperfeição humana em que se formula, fosse diluído no plano exclusivamente material dos sentidos. Considerada a ignorância do homem, a vista direta de Deus no mundo tenderia a restringir o desejo do Ser ao âmbito imediato do visível, excluindo dele, desgraçadamente, sua substância e fim.[39] Para Vieira, se, por um lado, como se viu, o desejo humano não se dá fora de sua condição corpórea, sensível, por outro, se os sentidos forem satisfeitos neles mesmos, eles tenderão a romper com qualquer finalidade substancial do desejo. O Deus que se encobre nas espécies sacramentais seria, nessa perspectiva, previdente em relação à natureza frágil dos sentidos, cuja satisfação imediata conduziria à paralisia do desejo no campo dos sentidos mesmos e ao consequente abandono de seu encaminhamento pleno para o Ser.
Encobrir-se seria, portanto, uma forma particularmente eficaz — pelo que nega ao desejo — de mantê-lo vivo e ainda apurá-lo, o que implica mantê-lo insatisfeita com a matéria e estado do mundo.[40] Assim é que Vieira afirma constantemente coisas como: “amam os homens mais finamente a Cristo desejado por saudades, do que gozado por vista”[41] ou então: “o amor de Cristo desejado por saudades é muito mais eficaz nesta parte, ou mais afetuoso, ou mais impaciente, que o mesmo amor de Cristo gozado por vista”[42] em que o “desejo por saudades” especifica-se justamente em relação à propriedade encoberta do Ser no Sacramento. De maneira ainda mais direta, Vieira afirma:
E como a Cristo lhe vai melhor com as nossas saudades que com os nossos olhos, por isso se quis deixar em disfarce de desejado, e não em trajos de visto. Descoberto para os olhos, não; encoberto sim para as saudades. Conheça logo a nossa devoção que é fineza, e não implicação do amor de Cristo, o deixar-se invisível naquele mistério […].[43]
Além da de impedir a satisfação exclusiva no visível, haveria pelo menos mais uma razão importantíssima para a manifestação encoberta do Ser divino na sua comunicação com o homem: é que a via sacramental, segundo se depreende de Vieira, multiplicaria a presença de Deus no meio humano, tornaria presente em muitos lugares, ao mesmo tempo, esse “viático de caminhantes”[44] que os manteria fiéis ao desejo legítimo do Ser. Eis como Antônio Vieira apresenta a questão, relacionando a presença multiplicada no Sacramento às muitas estrelas que, à noite, fariam as vezes do sol:
Não debalde instituiu Cristo o Divino Sacramento de noite, quando, por uma presença que nos levou da vista nos deixou muitas à fé. Mete-se o sol no ocidente, escurece-se o mundo com as sombras da noite, mas se olharmos para o céu, veremos o mesmo sol multiplicado em tantos sóis menores quantas são as estrelas sem número, em que ele substitui a sua ausência, e não só se retrata, mas vive. Assim se ausentou Cristo de nós sem se ausentar, deixandose abreviado sim no Sacramento, mas multiplicado em tantas presenças quantas são as hóstias consagradas em que o adoramos e temos realmente conosco.[45]
Na verdade, portanto, a partir daí, o que se vê é que a forma encoberta do Sacramento seria duplamente eficaz: uma vez, como maneira de intensificar o desejo pelo que lhe nega de satisfação no plano dos sentidos, e, uma segunda vez, como maneira de disseminar nas espécies sensíveis as presenças reais do Ser único Uma vez como afirmação do subjacente essencial à matéria, outra vez como indi cação das marcas sensíveis e materiais do Ser essencial; uma vez para impedir a totalização do desejo na matéria, a vez segunda para cumprir a condição sensível de formulação do desejo.
O estabelecimento dessas duas razões, ou dessa dupla eficácia, ainda não resolveu inteiramente o que se chamou, mais atrás, de primeiro movimento da via sacramental do desejo; falta ainda discutir o entendimento que tem Vieira da “comunhão” proporcionada pelo Sacramento, o que, a seu ver, responderia pelo essencial do mistério. De imediato, será preciso dizer que, para ele, o sentido da comunhão com o Ser divino, através do Sacramento Eucarístico, não se esgotaria na ideia de um contato direto do homem e seu Deus. O contato com o divino, por meio do encoberto sacramental, far-se-ia essencialmente de modo a colocar em uma particular relação de identidade todos aqueles que igualmente o desejam. Num “Sermão do Santíssimo Sacramento”, do ano de 1662, Vieira expõe assim essa questão:
[…] pergunto: que quer dizer comunhão? O nome comunhão — communio — não é inventado por homens, senão imposto por Deus, e tirado das Escrituras Sagradas em muitos lugares do Testamento Novo. E que quer dizer communio? Quer dizer communis unio: união comum. Assim explicam sua etimologia todos os intérpretes. De maneira que dando Cristo nome à Comunhão, não lhe pôs o nome da união particular que temos com ele, senão da união comum que causa entre nós. A união que cada um de nós tem com Cristo no Sacramento é união particular; a união que mediante Cristo temos todos entre nós é união comum, e esta união comum, como efeito principal e ultimadamente pretendido por Cristo, é a que dá o Ser e o nome à Comunhão: communio: communis tinjo.[46]
E, um pouco mais adiante:
Assim como os acidentes sacramentais são composição de muitas coisas unidas em uma, assim, o efeito do Sacramento é união de muitos homens entre si.[47]
Resultaria do Sacramento, portanto, antes de mais nada, a identidade fraternal dos que desejam o mesmo. O Sacramento, no que diz respeito à comunhão, proporcionaria o reconhecimento de uma substância comum e ordenada para o Ser presente no desejo humano, e não simplesmente o contato individual e vertical entre cada homem e Deus. A presença divina, encoberta e multiplicada nas espécies sacramentais, permitiria a descoberta do real — não individualmente delirado, nem institucionalmente decaído —, definido no âmbito comum dos desejos humanos.
O movimento do desejo, descrito aqui em sua instância mais próxima do litúrgico, destacaria, portanto, sobretudo, o reconhecimento da existência de uma relação analógica essencial entre o Ser único que se encobre nas espécies materiais do Sacramento Eucarístico e a identidade que o desejo comum de participar desse Ser estabelece entre os homens: no comum do desejo humano revelar-se-ia uma imagem confiável do Ser que se busca.
Reconhecida a identidade comum dos desejos humanos, o movimento seguinte para a efetiva participação dela no Ser implicaria a sua parturição na figura do Desejado — um movimento que, em Vieira, tem muitas nuances, mas que aqui não será tratado senão em seus aspectos mais gerais. E o mais geral deles todos seria justamente, como se anunciou, relativo a uma espécie de desdobramento do desejo de Ser, revelado anteriormente em sua dimensão coletiva pelo Sacramento, em uma existência particular. Na verdade, mais que particular: uma existência assinalada que corresponderia, ao mesmo tempo, ao desejo comum dos homens e à destinação dele traçada pela Providência. Quer dizer, o desejo teria um momento de comunhão universalmente humana em torno da presença divina encoberta no Sacramento, mas teria em seguida, a fim de cumprir-se inteiramente, um momento de indicação de uma forma externa àquela que subjaz a essa comunhão coletiva, capaz de exprimi-la sim, mas inegavelmente distinta dela.
À identificação do desejo comum a todos, seguir-se-ia a identificação de uma pessoa, completamente real, única, e, mais do que isso, “maravilha fatal”, que pudesse responder tanto à esperança humana de participação no Ser, quanto aos desígnios intocáveis do Ser para suas criaturas. Num primeiro momento o desejo rastrearia o que houvesse de mais substancial em sua manifestação humana, o que implicaria caminhar na direção de sua formulação coletiva como imagem possível do Ser divino que se busca; num segundo momento, ou movimento, essa imagem ganharia vida autônoma, fora do desejo coletivo, pois, além de ser correlata dele, teria de ser também manifestação da vontade soberana do Ser que está ao fim e além do desejo. O Desejado comporia, portanto, numa existência humana única, o que houvesse de mais fundo no desejo — a sua substância coletiva — com o que fosse já ato de eleição divina, ato de escolha exercida por Deus sobre tal substância. Ou seja, quando a comunhão entre os homens fosse capaz de reconhecer seu desejo essencial do Ser, este providenciaria a existência capaz de conduzi-lo ao seu legítimo destino.
Assim como o parto do Cristo encoberto no ventre de Maria — para usar uma imprescindível referência vieiriana — é ansiosamente esperado por ela, e, tanto mais ansiosamente quanto mais se aproxima a hora (“quanto o bem desejado está mais vizinho, tanto é maior o desejo”),[48] o Desejado seria o esperado parto do desejo comum. E, assim como o Cristo não é simples fruto do desejo de Maria, o Desejado não se poderia confundir com um produto exclusivo do desejo humano (o que implicaria obviamente recair na tentação irrealista do imaginário). A ideia de Antônio Vieira seria a de que, quando a natureza comum desejante se revelasse, na clareza possível, como imagem do Ser de que se quer participar, ela como que seria fecundada por ‘um ato do Ser que a faria gerar, no plano próprio da existência, externamente, portanto, à comunhão dos desejos, o verdadeiro Desejado. A presença divina na imagem comum teria, num determinado momento, de tomar a forma de um corpo real distinto, autônomo em relação ao desejo. Ou, para usar uma expressão vieiriana, o desejo teria de sofrer uma certa ausência para chegar ao seu objeto. A esse respeito, em especial, Antônio Vieira destacaria algumas páginas daquele que é, com certeza, um dos mais belos de todos os seus sermões, o “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, de que foi palco a Ajuda da Bahia, ainda em 1640 — ano inspiradíssimo! Aí, discorrendo sobre a aparentemente estranha natureza do desejo, que nem sempre se desfazia na presença de seu objeto, ele diz: “a presença, para ser presença, há de ter alguma coisa de ausência”,[49] e, um pouco depois, reafirma: “a presença, para ser presença, não há de passar a ser íntima, nem há de estar totalmente unida, senão, de algum modo, distante”.[50]
A imagem do Ser, ainda internalizada no desejo comum, nesse sentido, ensejaria uma queixa semelhante àquela que Vieira identifica em Narciso, uma queixa “com verdadeira razão, em história fabulosa”:
O que desejo, tenho-o em mim; e porque o tenho em mim, careço do que tenho. — Pois, que remédio? Votum in amante novum: o remédio é um desejo novo, qual nunca desejou quem amasse. E que desejo é esse? Velle quod amamus abesse: desejar que o que amo se ausente e se aparte de mim.[51]
Queixa também semelhante à da Virgem, com o Cristo ainda em seu ventre, que Vieira comenta assim:
Carecia do mesmo bem que tinha, porque o tinha dentro em si. Por isso suspirava e desejava com ânsia vê-lo já fora.[52]
O movimento do desejo para o Ser, portanto, não se esgotaria na imagem coletiva virtual que se pudesse ter dele, mas exigiria uma manifestação externa ao conjunto dos seres que o desejam. Se o movimento inicial, discutido em torno do encoberto eucarístico, representaria uma internalização coletiva da presença divina (“dando-nos Cristo sua própria carne no Sacramento, encarnou em todos os homens, que somos nós, os que a comungamos”;[53]“unindo-se Cristo por meio de sua carne a cada um de nós, todos como membros seus ficamos um só corpo”[54], etc.), o movimento seguinte seria o do desdobramento dessa presença, a partir do desejo comum que ela suscita e sustenta, no nascimento feliz do que se chamaria legitimamente de Desejado.
Mas esse desdobramento, é preciso ficar claro, não se poderia fazer, para Vieira, sem um ato fundamental de eleição por parte de Deus: a figura externa do Desejado seria gerada pela vontade divina sobre a condição da comunhão dese-jante dos homens. Também deve ficar claro que apenas nesse momento, quando a história assistisse já à existência do Desejado, estaria segura a evolução do desejo para o Ser e superados os riscos sempre iminentes de sua degeneração nas fantasias do não-ser. O Desejado, e apenas ele, para Antônio Vieira, conciliaria o desejo de todos com a Providência divina: piloto da nau humana a acertar finalmente com o sopro de Deus.
Além daqui, restaria precisar os conteúdos nacionais dos movimentos discutidos, o mar português onde vai essa nau — mas isso terá de esperar o tempo certo.
[1] Uso a expressão “mito cultural” pensando na acepção que lhe tem sido dada por Eduardo Lourenço… refere-se a uma estrutura persistente de crenças que, aparentemente aberrante e “sem lugar no discurso histórico”, é elemento constitutivo importante de uma “auto-imagem” nacional capaz de reagir à história vivida. No caso particular do “sebastianismo”, Eduardo Lourenço entende que já Oliveira Martins revelara plenamente sua condição culturalmente relevante. Para uma breve discussão a respeito, eu citaria “Sebastianismo: imagens e miragens”, introdução que E. Lourenço faz às Origens do sebastianismo, de Costa Lobo (Lisboa, Rolim, 1982).
[2] Todas as citações de Vieira são feitas na edição paulista dos Sermões da Edameris (195759). O trecho em particular aparece à página 103 do volume VI, correspondente ao início da quinta parte do “Sermão de Nossa Senhora do 60”, pregado em 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Salvador.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, p. 111-2.
[5] A concepção de natureza, aí, é a mesma que Etienne Gilson identifica como predominante entre os filósofos medievais cristãos: natureza é a essência (causa) de uma operação que produz regularmente um fenômeno. Ver a respeito o L’esprit de la philosophie médiévale do próprio Gilson (2 ed., 4 tiragem, Paris, Vrin, p. 83).
[6] A noção de “participação”, de inspiração platônica, permanece atuante entre os filósofos cristãos, mesmo tomistas, embora profundamente alterada: ela serve sobretudo para acentuar o elo não-casual entre o Criador e as criaturas. O termo criada, que especifica a “participação”, pretende deixar claro que, do ponto de vista cristão, as criaturas apenas num sentido “analógico” podem chegar a assemelhar-se ao Ser de Deus. Aqui, como ao longo de toda essa primeira parte do ensaio, sigo muito de perto a interpretaçã9 de Gilson dos desdobramentos medievais de algumas noções da filosofia grega, tal como se mostra no seu L’esprit de la philosophie médiévale.
[7] Na perspectiva cristã é que, pela primeira vez, segundo Gilson, as criaturas são concebidas como tendo uma “contingência radical”: não apenas elas poderiam ser de uma forma diferente da atual, como poderiam mesmo não ser. Tudo o que não é Deus deve a ele a sua existência. O capítulo do L’esprit de la philosophie médiévale dedicado à discussão dos “seres e sua contingência” é especialmente importante para a compreensão desse ponto no sentido em que se toma aqui.
[8] Mais um termo que descreve a relação “analógica” entre o Criador e a criatura. Há analogia entre a causa e o efeito, isto é, toda causa Produz um efeito que lhe parece. O capítulo de Gilson sobre as noções cristãs de “analogia, causalidade e finalidade” é o que, em sua obra citada, trata de forma mais direta dessa questão.
[9] Um outro texto de Etienne Gilson particularmente importante para a compreensão do sentido ortodoxo do conceito de particip– tiçd’o intitula-se justamente “Causalidade e participação” e encontra-se em seu livro Introduction a la philosophie chrétienne (Paris, J. Vrin, 1960). A ideia mais geral é de que “a relação do participado ao participante” deve ser entendida como uma “relação ontológica da causa ao efeito”. Cada ser particular, uma vez que é ser, participa da “natureza do Ser divino”, não como “a parte participa do todo”, mas como “o efeito participa de sua causa eficiente”.
[10] Mais uma vez, apóio-me inteiramente na leitura feita por Gilson do conceito cristão de “lei” e “moral”. O capítulo 16 do L’esprit de philosophie médiévale é justamente dedicado a esse tema. Gilson mostra aí como santo Tomás, apoiando-se na definição aristotélica de que um ato é moralmente bom quando concorre para a realização da natureza essencial daquele que o cumpriu, considera o “pecado” exatamente como um ato desordenado, contrário à “natureza” (ver nota 5), pois esta, uma vez criada por Deus, inscreve-se no interior da lei divina.
[11] “Sermão de Todos os Santos”, in Sermões, p. 227.
[12] Idem, p. 228.
[13] Idem, ibidem.
[14] Retorno ao capítulo de Gilson a propósito da contingência dos seres, presente no citadíssimo L’esprit de la philosophie médiévale: o movimento é que caracteriza os seres contingents.
[15] Ainda de acordo com a sistematização gilsoniana do pensamento cristão consolidado na Idade Média, o que se pode dizer é que, para ser capaz de buscar a plenitude de Deus, o homem teria de possuir liberdade de vontade. Não poderia haver vontade real do bem, se não houvesse possibilidade de erro.
[16] “Sermão da terceira quarta-feira da. Quaresma”, pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1669, in Sermões, v. I, p. 240.
[17] Idem, p. 242.
[18] Emprego o termo em seu sentido wittgensteiniano, como relativo ao esforço de estabelecimento de uma “visão sinótica ” de usos linguísticos que apresentam “semelhanças em família”. Obviamente aqui não se vai chegar a estabelecer nenhuma visão importante do conjunto das noções que Vieira emprega em situações significativas aproximadas da de desejo.
[19] Na sistematização gilsoniana da questão ressalta a ideia de que o amor, entendido como ato divino ou participação humana nele, refere-se sempre à “generosidade do Ser”.
[20] “Sermão da primeira sexta-feira da Quaresma”, pregado no convento português de Odi-velas, no ano de 1644, in Sermões, v. VI, p. 173-4.Idem, p. 174.
[21] Idem, p. 174.
[22] Idem, p. 174-5..
[23] Idem, p. 174.
[24] “Sermão do mandato”, pregado na Capela Real de Lisboa em 1645, in Sermões, v. III, p. 364.
[25] Idem, p. 364-5.
[26] Idem, p. 365.
[27] Idem, p. 365.Idem, ibidem.
[28] Idem, ibidem.
[29] Idem, p. 367.
[30] Remeto aqui à concepção tomista do Ser divino como “ato puro de ser” (esse), anterior a qualquer delimitação essencial. A essência divina, nessa concepção, seria seu próprio ser. Gilson, a propósito, diz o seguinte: “0 ato de ser existe e atualmente em si e à parte, na pureza metafísica absoluta daquilo que não tem nada, nem mesmo essência, porque ele é tudo aquilo que se pudesse qúerer atribuir-lhe”; de forma ainda mais sintética, “Ser Que É” (“Aquele que é”, in Introduction a la philosophie chrétienne).
[31] “Sermão do mandato”, in Sermões, v. III, p. 378.
[32] Idem, p. 379.
[33] O termo anatomia é usado pelo padre Antônio Vieira em relação à sua discussão das potências envolvidas no afeto da “esperança”; tal sentido pareceu-me bastante oportuno para a descrição do exame feito por este ensaio dos movimentos mais gerais nos quais se caracteriza o desejo vieiriano.
O sermão de Vieira em que ele dá destaque ao termo é o “Sermão do Santíssimo Sacramento”, de 1669, pregado no Convento da Esperança (ver Sermões, v. IV).
[34] Como já se colocou, na perspectiva cristã, há analogia entre causa e efeito. O universo criado seria análogo, portanto, ao Criador. A causalidade física (entre os seres criados, portanto) seria um desses vestígios, elemento analógico do Ser que é Causa. Gilson discute essa questão de maneira brilhante no capítulo do L’ esprit de la philosophie médiévale dedicado à discussão das noções de “analogia, causalidade e finalidade”. Pode-se dizer que o mundo cristão tem um “caráter sacramental” justamente porque tudo o que nele há se orienta pelo e para o Ser que o cria.
[35] Citações de termos empregados no “Sermão do Santíssimo Sacramento”, pregado em Santa Engrácia, em 1645; in Sermões, v. I, p. 134.
[36] O eleito é assim descrito por Vieira no “Sermão de ação de graças pelo nascimento do príncipe d. João (palavra de Deus desempenhada)”, Bahia, 1688: “0 Filho do homem é Cristo; o quase Filho do homem é o quase Cristo, ou Vice-Cristo. De sorte que, assim como o primeiro vigário de Cristo, que é o sumo pontífice, pela jurisdição universal que tem sobre toda a Igreja, se chama Vice-Cristo no império espiritual, assim o segundo vigário do mesmo Cristo, pelo domínio universal que terá sobre todo o mundo, se chamará também no império temporal Vice-Cristo: Quasi Filius hominis”. A esse eleito caberá, então, efetivar o paraíso terreal que Vieira identifica como sendo o “V Império” (após o de assírios, persas, gregos e romanos): “E este é o império quinto e último, que se há de levantar depois da extinção do turco, não na pessoa de Cristo imediatamente, senão na de um príncipe seu vigário” (in Sermões, v. XXI, p. 416-7).
[37] Sobre a participação jesuítica na elaboração e divulgação do sebastianismo da Restauração há muitos textos importantes. Cito dois muito conhecidos: A literatura autonomista sob os Filipes, de Hernâni Cidade, e, “A Companhia de Jesus e a restauração de Portugal”, de Francisco Rodrigues, publicado no volume VI dos Anais dedicado ao “Ciclo da Restauração de Portugal” (Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1942).
[38] “Cristo ao Sacramento tem abreviada e estreitada sua grandeza” (“Sermão do Santíssimo Sacramento”, pregado no Convento da Esperança em 1669, in Sermões, v. IV, p. 93).
[39] O meu ensaio anterior preparado para a Funarte é inteiramente dedicado a essa questão; restrinjo-me, portanto, aqui, à formulação mais conclusiva.
[40] Quanto a esta questão, das relações entre o desejo e o encoberto do mistério, dediquei um ensaio particular: “O mistério eficaz”, in Estudos portugueses e africanos, Unicamp, 1987, n. 10.
[41] “Sermão do Santíssimo Sacramento”, de 1645, in Sermões, v. I, p. 175-6.
[42] Idem, p. 176.
[43] Idem, ibidem.
[44] “[…] o Sacramento é viático de caminhantes, em que somente se nos dá Cristo enquanto dura a peregrinação e passagem desta vida” (“Sermão do Santíssimo Sacramento”, de 1669, in Sermões, v. IV, p. 93).”
[45] Idem, p. 101.
[46] “Sermão do Santíssimo Sacramento” pregado em Santa Engrácia no ano de 1662, in Sermões, v. XV, p. 282.
[47] Idem, p. 286.
[48] “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, in Sermões, v. VI, p. 119.
[49] Idem, p. 121.
[50] Idem, p. 122.
[51] Idem, ibidem.
[52] Idem, ibidem.
[53] “Sermão do mandato”, de 1655, in Sermões, v. VII, p. 100.
[54] Idem, p. 101.