O desejo libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo
Resumo
Mesmo depois do termo libertino ter adotado o seu sentido mais moderno designando não mais o intelectual epicurista mas o homem que consagra sua vida ao prazer erótico, os libertinos e os filósofos não se separaram e se auxiliaram mutuamente.
Os filósofos da Ilustração forneceram para os libertinos os argumentos teóricos de que os romancistas libertinos precisavam para justificar a legitimidade do erotismo. E os libertinos retribuíram, funcionando como linha auxiliar na crítica do antigo regime, e difundindo, em suas novelas, as ideias políticas e sociais da Ilustração, principalmente na crítica à religião, no combate ao despotismo, na propagacão de ideias deístas, materialistas e morais dos filósofos.
Parecia completa a harmonia entre a literatura filosófica e a literatura libertina. Porém, essa harmonia é perturbada por Sade que difunde as ideias da Ilustração mas, frequentemente, as perverte. No caso da religião, por exemplo. Para os filósofos, a expulsão de Deus deveria abrir o espaço para a construção de um mundo humano, pela razão. Em Sade, Deus precisa ser eliminado exatamente porque suas leis, sendo justas, estariam em contradição com as leis da natureza.
Apesar de partilhar em grande parte as ideias políticas da Ilustração, Sade propõe que a natureza só quer o prazer individual, por mais criminoso que seja. Qualquer princípio que nos obrigue a respeitar o interesse do próximo é antinatural e o direito ao prazer é absoluto, incondicional e autorizado pela natureza. Em Sade, a violência e o crime são lícitos no prazer amoroso porque foi da natureza que o indivíduo recebeu as inclinações que o impulsionam nessa direção.
Também a igualdade da Ilustração implicava anular as diferenças entre os seres humanos a fim de acolher a todos na grande família de um gênero humano emancipado. Sade imita o mesmo movimento porém modificando sua direção política. Ele ignora as diferenças igualando os homens num estatuto genérico, não é porque todos sejam irmãos, e sim porque todos são igualmente disponíveis para o prazer libertino.
O igualitarismo sexual de Sade também é a inversão radical do feminismo da Ilustração. Para Sade, todos os homens são iguais na medida em que todos têm direito a possuir qualquer mulher e todas as mulheres são iguais no sentido de que todas devem ser submissas ao desejo masculino, o que significa que elas são iguais como objetos e não como sujeitos de prazer.
O hedonismo e o eudemonismo da Ilustração são levados às últimas consequências por Sade e se transformam numa apologia insensata do prazer individual, ignorando de todo os interesses da sociedade.
Mas, em geral, a homologia entre a literatura libertina e o pensamento da Ilustração vinha, simplesmente, do fato de que os autores libertinos eram, ou “espontaneamente” iluministas, quando de origem burguesa, ou iluministas por formação, por convívio mundano ou talvez por cálculo, quando de origem nobre.
O libertinismo de Sade, por outro lado, corresponde à crise do pensamento aristocrático com relação às Luzes. Ele aceita a Ilustração como intelectual mas a rejeita como representante de sua casta.
A literatura libertina clássica foi importantíssima para a irradiação das ideias iluministas corrigindo a seriedade, às vezes asfixiante, do pensamento filosófico.
Sade teve o mérito de mostrar, indiretamente, alguns limites da Ilustração. Poderia ter feito uma crítica das Luzes a partir das Luzes mas fez uma negação das Luzes a partir das Luzes. Com isso, ele criou um mundo libertino radicalmente contra-iluminista.
Já no Iluminismo contemporâneo, o libertino voltou a ser sinônimo de homem livre.
I
No século XVII, o termo libertino designava, simplesmente, o livre pensador. Era o homem emancipado dos preconceitos religiosos, e nesse sentido o termo conservava alguns elementos do libertinus romano, o escravo alforriado. O libertino do grand siècle podia ser um homem de hábitos austeros, mas era um incrédulo, que não aceitava a Revelação, os milagres e a criação ex nihilo . O matemático e astrônomo Gassendi, que teve entre seus discípulos Molière e Cyrano de Bergerac, talvez tenha sido o libertino típico. Materialista, repôs em circulação o atomismo de Epicuro, e argumentou que este era um homem de alta moralidade, que colocava os prazeres da alma em plano mais elevado que os dos sentidos.
No final do século, o termo começou a deslocar-se para o seu sentido moderno. O libertino não era mais um epicurista apenas no sentido filosófico, mas também na acepção vulgar. Era um homem fino e culto, mas também um apreciador do bom vinho e das mulheres amáveis. Saint-Evremond ilustra o novo sentido da palavra. Fixado em Londres, protegido por Jaime II e Guilherme de Orange, escreveu ensaios filosóficos e era leitor de Gassendi, mas era também um epicurista no sentido comum do vocábulo: fundou um salão frequentado por toda a Europa polida, e era um apologista delicado do vinho e do amor.
A síntese se rompeu no século XVIII. Os dois sentidos se dissociam. O saber e o prazer, unidos num libertino como Saint-Evremond, seguem destinos separados. De um lado, a busca da verdade, que competia aos filósofos, do outro, a busca do prazer, reservada aos libertinos. O sentido moderno da palavra se estabiliza: o libertino é um homem dissoluto que consagra sua vida ao prazer, principalmente o prazer erótico.
Mas o antigo vínculo entre a “libertinagem erudita” e a “libertinagem dos costumes” não desapareceu de todo. Surgiu uma literatura que punha em cena personagens libertinos, e que coexistiu harmoniosamente com a literatura filosófica durante quase todo o século XVIII. Segundo Peter Nagy, emergiu mesmo uma relação de complementaridade: uma divisão de trabalho pela qual os filósofos se encarregavam de minar os alicerces políticos do ancien régime, e os autores libertinos seus alicerces morais.
Essa especialização de tarefas não excluía o auxílio mútuo. Os filósofos forneceram os argumentos teóricos de que os romancistas libertinos precisavam para justificar a legitimidade do erotismo, e estes retribuíram o favor, funcionando como linha auxiliar na crítica do antigo regime, e difundindo, em suas novelas, as ideias políticas e sociais da Ilustração.
A contribuição teórica dos filósofos para a literatura libertina foi grande. A ideia da libertação dos sentidos estava na lógica de um movimento para o qual só existiam sensações, redutíveis, no registro prático, às duas sensações fundamentais do prazer e da dor, e que valorizou a vida das paixões como nenhum outro período da história. Só havia um passo, daí, a recomendar a sexualidade livre, como a mais condizente com a natureza passional do homem.
Foi o caso de um filósofo como La Mettrie, o materialista mais radical de sua geração, que escreveu uma ars amatoria com o título eloquente de L’art de jouir. Como bom epicurista, La Mettrie distingue entre volúpia, débauche e prazer. A volúpia é um gozo refinado, que difere da débauche, prazer grosseiro, e do próprio prazer, que é apenas a flor da qual a volúpia é o perfume.
Diderot afirma que, “sem as paixões, nada existe de sublime, nem nos costumes nem na sociedade”. No Supplément au voyage de Bougainville, ele põe em cena um velho taitiano que, num diálogo com o capelão da expedição de Bougainville aos mares do Sul, faz a apologia do amor livre e do incesto. Os hábitos de Taiti são os da natureza, reprimidos pelo europeu. “Existiu antigamente um homem natural; introduziram nele um homem artificial, e surgiu na caverna uma guerra contínua, que dura a vida inteira.” A voz da natureza quer o prazer livre, a voz da sociedade o asfixia. No Rêve de d’ Alembert, o dr. Bourdieu aprova “filosoficamente” o onanismo, a bestialidade e o homossexualismo, embora os reprove “moralmente”.
Não admira, assim, que os próprios filósofos tenham sido, em parte, “autores libertinos”.
É o que acontece com o próprio Diderot, autor do clássico do gênero, Les bijoux indiscrets. Num país oriental que se parece extraordinariamente com a França de Luís XV, o sultão Mangogul recebe de um gênio um anel que dirigido contra uma mulher faz com que o bijou da vítima comece a falar. As vulvas falantes dizem as coisas mais inconvenientes. Elas falam sempre a verdade, ao contrário desse órgão hipócrita que é a boca. A voz dos bijoux é incontrolável, porque é a da própria natureza, abafada pelas convenções: a voz do velho de Taiti, porta-voz do amor livre. O grande romance de Diderot, La religieuse, certamente não é uma novela do mesmo gênero, mas contém cenas de erotismo e lesbianismo que não estariam deslocadas num romance libertino.
Voltaire é autor de um poema obsceno, La pucelle, e muitos dos seus contos são decididamente ousados. Candide começa com uma cena de voyeurismo em que a jovem Cunégonde surpreende o filósofo Pangloss dando aulas de “física experimental” à camareira de sua mãe. A correspondência de Voltaire com sua sobrinha, pudicamente escrita em italiano, contém textos exemplares de pornografia explícita.
Mesmo o virtuoso Rousseau escreve um romance sentimental, La nouvelle Heloïse, com cenas de sedução que os contemporâneos acharam muito repreensíveis. Nas Confessions, Rousseau admite seu onanismo, seu voyeurismo, seu masoquismo, e o livro como um todo tem claros elementos de autodesnudamento exibicionista.
Se os filósofos se interessam pela temática sexual, os autores libertinos são simpatizantes declarados dos objetivos políticos dos filósofos. Eles ajudam o combate filosófico criticando, por um lado, os costumes aristocráticos, principalmente os amorosos, e transformando seus romances em poderosíssimos instrumentos de irradiação das ideias dos filósofos.
No fundo, o trabalho crítico dos escritores libertinos não precisava ir além da descrição fiel dos hábitos da nobreza, em Versalhes e Paris. É exatamente o ambiente desses romances. Lendo os memorialistas da época, não sabemos se estamos diante de um relato histórico ou de uma obra de ficção libertina, de tal modo a ficção adere à realidade.
Como dizem os Goncourt, a volúpia é a grande palavra desse meio. “É seu segredo, seu encanto, sua alma. É o ar que o alimenta e anima.” A volúpia está na pintura, com Boucher, Fragonard, Watteau. É transmitida pela educação, está no teatro, na ópera. Volúpia é guerra, é tática. Ninguém ataca uma mulher sem ter formulado um plano de ataque. O objetivo não é o prazer, é a conquista e a submissão da mulher. A frieza de Valmont, nas Liaisons dangereuses, sua intenção de humilhar e ferir, são um reflexo exato do estilo amoroso desse mundo senhorial. O duque de Richelieu, amante célebre, descreve da seguinte maneira a sua tática para seduzir duas mulheres burguesas: “Eu procurava deixá-las tontas e fazer nascer desejos dos quais eu conhecia a força, afastando delas qualquer reflexão contrária aos meus projetos. O homem hábil que sabe pouco a pouco fazer passar o fogo do amor no sangue da mulher mais virtuosa será brevemente o senhor absoluto do seu espírito e da sua pessoa… Só ele comanda e só ele é escutado”. Richelieu ofende uma duquesa que o amava, e faz as seguintes reflexões: “Eu a conhecia o bastante para saber que ela sofria interiormente… Eu me aplaudia com o sofrimento que lhe causava” . O sadismo estava nos costumes, antes de aparecer nos livros.
A livre circulação das mulheres era a lei dessa sociedade. Nas memórias de Besenval, ele admite que a Regência foi um período de libertinagem desenfreada, mas conclui: “Se os bons costumes perdiam com isso, a sociedade ganhava infinitamente. Desembaraçada do constrangimento que poderia provocar a presença dos maridos, a liberdade era extrema. A coquetterie mútua dos homens e das mulheres sustentava a vivacidade de conversa e fornecia diariamente mil aventuras picantes”. É o mundo da literatura libertina. Um dos romancistas libertinos mais críticos do antigo regime, Duclos, conta a história de um conde que guardou a amante mais tempo do que convinha, recebendo um dia um bilhete indignado de outro pretendente. “Eu estava esperando minha vez; nessa expectativa, rompi com uma amante que eu preferiria ter conservado. O senhor é bem-educado demais para perturbar a ordem da sociedade; devolva-lhe pois o que lhe pertence.” O personagem sente a justiça do pedido, e no mesmo dia devolve à sociedade a sua amante, “como uma mercadoria que se repõe no comércio”, nas palavras sarcásticas de Duclos. É um mundo que poderia ter sido organizado por Lévi-Strauss. O código mundano tem como objetivo principal assegurar a circulação das mulheres. Elas não são qualidades, e sim quantidades. Nem isso, são signos intercambiáveis, suportes abstratos de valor de prazer, como as mercadorias são suportes abstratos de valor de troca.
É verdade que para Lévi-Strauss as mulheres circulam em consequência do tabu do incesto. O mundo libertino abole esse tabu, nos romances e na vida real. O regente, por exemplo, tinha relações incestuosas com sua filha. Mas o que o incesto tem de autárquico e anti-social é anulado pela regra da infidelidade. O adultério institucionalizado ressocializa o que foi privatizado pelo incesto, repondo em circulação as mulheres, porque também o amante incestuoso está suficientemente compenetrado dos seus deveres sociais para saber que precisa ceder a outros sua filha e sua irmã. O amor é anti-social, mas não a volúpia, e por isso o amor é malvisto, e proscrito pelo código das bienséances mundanas.
Mas as mulheres não são apenas objetos. Elas são parceiras ativas do jogo amoroso. Todas elas têm seu pajem imberbe, seus querubins andróginos, como nas peças de Beaumarchais. Outro amante famoso, o conde de Tilly, conta ter sido abordado na rua por uma grande dama. Terminado o encontro amoroso, ele pergunta o que ela havia procurado. Ela responde com singeleza: o meu prazer. Pensamos imediatamente no personagem da marquesa B., das Aventures du chevalier de Faublas, de Louvet de Couvray, que se disfarça de homem para satisfazer seus caprichos amorosos. Os Kriegsspiele não eram privilégio dos homens. As mulheres também podiam ser friamente calculistas no duelo do amor, e ser sensíveis à perfeição estética de um ataque conduzido segundo as regras da arte militar. De novo, é a literatura libertina que reflete mais de perto essa equiparação do amor à guerra, do ângulo feminino. “Quanto a mim”, escreve Madame de Merteuil a Valmont, “confesso que uma das coisas que mais me lisonjeiam é um ataque bem feito, em que tudo se sucede com ordem e rapidez.” Não são só as mulheres que são “postas no comércio”. Os homens também circulam. Em Faublas, Louvet de Couvray descreve, do ponto de vista da mulher, esse processo de circulação. “Tomar esta semana, distraidamente, um amante que será despedido com mau humor na semana seguinte, romper e reatar compromissos uniformes: eis a eterna ocupação das mulheres nobres. O personagem muda, mas jamais o enredo da intriga, todas dizem e fazem sem cessar a mesma coisa; sempre uma declaração a receber, uma confissão a fazer, alguns bilhetes a escrever, duas ou três cabeças a perturbar, uma ruptura a consumar.” Duclos dizia de uma de suas personagens: “Ela tomava um amante, quem quer que ele fosse… Mas se tivesse dez em seguida, não teria percebido a mudança, desde que eles tivessem se sucedido sem intervalo”. Pensamos involuntariamente em outra figura feminina da literatura libertina, do novelista Andréa de Nerciat. Segundo o autor, ela tivera “4959 amantes, todos repartidos em categorias: nobres, militares, advogados, financistas, burgueses, prelados, homens do povo, criados e negros”. Esse exemplo admirável de democracia libertina nos recorda que o século XVIII foi o século de Lineu, autor de um sistema de classificação das espécies naturais.
Na sociedade aristocrática, os assuntos de Estado eram temas de especialistas, versados em coisas esotéricas como economia política e finanças. Não interessam ao “monde” — eram, portanto, um assunto privado. O que era público era o amor, o comentário amoroso, a informação sobre quem estava dormindo com quem. O próprio amor era socializado pela orgia.
Mas, como nem sempre esse amor podia se dar publicamente, por razões técnicas, alguns refúgios discretos eram às vezes necessários. Era a folie, a petite maison — o lugar de encontro. Cada personagem, grande ou médio, tinha a sua folie, espaço privado transitório em que homens e mulheres se encontravam, antes de ser repostos em circulação, trocando de parceiros. Conhecemos algumas dessas folies por relatórios de polícia, admiravelmente bem escritos. Não resisto a ler uma dessas descrições. “O quarto de dormir é um templo elevado ao sono e ao amor […] A lareira, de porcelana de Sèvres, fantasia de uma delicadeza infinita, é pintada com arabescos, flores, conchas, pássaros e borboletas, agrupados com uma arte infinita […] Respiramos o perfume dessas mentiras, escutamos pássaros que não cantam”. Encontramos esses espaços consagrados à volúpia na maioria dos romances libertinos, mas é preciso convir que o descrito por esse policial letrado é infinitamente mais agradável que os de Sade — castelo de Silling, abadia de Sainte-Marie des Bois, ou mesmo o boudoir de Dolmancé.
Toda essa vida desvairadamente dedicada ao prazer é criticada pelos romances libertinos. O público dessas novelas era em parte composto dos próprios nobres, mas elas eram amplamente difundidas pela burguesia culta. Não há dúvida de que essas novelas contribuíram, por essa via, para completar a denúncia dessa mesma sociedade que os filósofos realizavam por outros meios.
Mas a literatura libertina não se limita a prestar à filosofia esse serviço indireto, contribuindo, pela descrição crítica, para desmoralizar a sociedade feudal. Pois também ela é em parte filosófica.
Muitos autores libertinos eram ligados, por relações pessoais, aos filósofos — o marquês d’ Argens, autor de Thérèse philosophe, é amigo e frequentador de Voltaire. Todos eles se inspiram nos principais pensadores da época, mencionando-os explicitamente.
Mirabeau é voltairiano. Em seu romance libertino, L’éducation de Laure, o personagem masculino principal, pai adotivo da heroína, aconselha a Laure a leitura de Zadig, para familiarizar-se com os princípios do determinismo. Em outra ocasião, sugere a leitura das Lettres persanes, do “presidente Montesquieu” , para que ela se informe sobre os inconvenientes do casamento entre cônjuges com temperamentos incompatíveis.
Rétif de la Bretonne diz que o mundo intelectual contemporâneo era regido por um “quadrunvirato” : Montesquieu, Voltaire, Rousseau e Buffon. Gaudet d’Arras, o monge libertino do Paysan perverti, encarna, desviando-as para seus próprios fins, as ideias da Ilustração. A novela La vie de mon père é rousseauista — um idílio rural claramente inspirado em La nouvelle Heloïse.
Também é em parte rousseauísta a novela libertina de Louvet, Faublas. Entre mil aventuras amorosas, o herói tem um amor puro por uma figura idealizada, Sophie, com traços pré-românticos idênticos aos de Julie, em La nouvelle Heloïse. Rousseauísta, também, é a cena campestre de outra personagem do livro, a condessa de Lignolles, rodeada, em seu retiro rural, de camponeses reconhecidos, como Julie em Clarens. Mas é indiretamente que Louvet faz sua apologia mais eficaz dos filósofos, apresentando um personagem ridículo, evidentemente um marido enganado, que detesta Voltaire, Diderot e Rousseau. Ele fica indignado quando vê alguns desses livros perigosos no quarto de sua mulher, pois eles poderiam ser lidos pelos criados. “Quando vejo entre as mãos dos meus criados Les pensées philosophiques, o Dictionnaire philosophique, o Discours sur l’inégalité parmi les hommes, etc., tenho muito medo, e não me sinto de modo algum em segurança em minha própria casa… Quantos desgraçados dessa classe a filosofia deste século já perverteu! … Todos os vossos empregados vos darão lições; não existe nenhum, tenho certeza, que já não seja filósofo em sua alma; por consequente, vossos lacaios se tornarão bêbados, imundos, insolentes, desastrados; vosso cavalariço estropiará vossos cavalos; vosso cocheiro esmagará os transeuntes; vosso cozinheiro errará os molhos; vossos fornecedores aumentarão os preços; vosso intendente vos roubará; vossas camareiras trairão vossos segredos ou vos caluniarão, e vossa dama de companhia terá um filho em vossa casa.”
A literatura libertina divulga, assim, todas as ideias da Ilustração, que penetram, graças a ela, em todos os salões e em todas as alcovas, nobres e burguesas.
Ela colabora com grande eficácia na crítica à religião, em primeira instância apresentando os padres e freiras como devassos incorrigíveis. Os títulos de alguns romances já são expressivos: Vénus dans le cloître, ou la religieuse sans chemise, de Jean Barrin, e do mesmo autor: Les délices du cloître, ou la nonne éclairée. O marquês d’Argens é autor de Les nonnes galantes. Em todas essas histórias de convento o enredo é sempre o mesmo: noviças seduzidas, monges sodomitas e superioras lésbicas. Em Thérèse philosophe, de d’Argens, o personagem mais odioso é um padre Dirrag, que se especializa em fustigar devotas, familiarizando-as, por antecipação, com os êxtases do paraíso futuro. Em suas obras licenciosas, o novelista Crébillon Filho não poupa a Igreja e as beatas. No romance Le sopha, a alma de um jovem, por castigo, é condenada a encarnar-se em sofás, e torna-se testemunha, nesses lugares privilegiados, das aventuras eróticas de devotas e padres convulsionários. Mas, além disso, os livros expõem sistematicamente as ideias deístas ou materialistas dos filósofos. Entre duas cenas de orgia, há em geral um intervalo pedagógico, em que abades obesos explicam a noviças de camisola as razões pelas quais os cultos religiosos devem ser abolidos. Em Thérèse philosophe, o abade T. explica à sua pupila, Madame C., que todas as religiões foram produzidas pelo medo, levando os homens a inventar seres supra-sensíveis capazes de protegê-los contra os raios e as tempestades. Mais tarde, “homens ambiciosos (…) tiraram partido da credulidade dos povos, proclamando deuses muitas vezes estranhos, fantásticos, tirânicos, fundaram cultos, formaram sociedades das quais pudessem tornar-se os chefes e os legisladores”. Sem dúvida, explica d’Argens, Deus existe, mas ele não tem necessidade de dogmas e cultos. “Antes da criação do mundo, é preciso convir que havia um Deus, mas não havia nenhum culto… Se não existissem homens, haveria sempre um Deus, existiriam criaturas, mas não haveria um culto.” Esse Deus sem igreja e sem culto é o dos deístas — o Deus de Voltaire.
A literatura libertina colabora, também, na divulgação das ideias morais dos filósofos.
É uma moralidade secular, que dispensa qualquer fundamento na religião revelada, e deriva, seja da voz da própria natureza, cujos preceitos invariáveis são gravados em todos os corações, seja das exigências da sociedade.
Os autores libertinos retomam esse tema. A moral não se funda na religião, porque não podemos imaginar que esse Ser augusto e infinitamente distante da mediocridade dos homens venha a preocupar-se com os pecadilhos dos insetos que somos. Ela deriva da natureza, como explica o pai adotivo de Laure. “Meu pai me fazia ler livros de moral, cujos princípios nós examinávamos, não na perspectiva vulgar, mas da natureza. Com efeito, ela precisa ser considerada a partir das leis ditadas por ela, e que ela imprime em nossos corações.” Para outros, a natureza não pode ser invocada como fonte da moral, porque “o homem natural”, explica Gaudet d’Arras, o ex-monge do Paysan perverti, “não conhece outro bem senão sua vantagem e sua conservação, a expensas de tudo o que o rodeia”. A moral vem das necessidades da vida social, que me impedem de praticar ações nocivas ao interesse comum. É a opinião do abade T., em Thérèse philosophe. “O homem não é feito para ser ocioso. É preciso que ele se ocupe com qualquer coisa que tenha por fim sua vantagem particular, reconciliada com o bem geral… Não devemos temer senão os homens e suas leis. Respeitemos essas leis, porque elas são necessárias ao bem público, do qual cada um de nós é parte.”
A moralidade da Ilustração era em geral francamente eudemonista, e advogava, como vimos, a libertação do prazer nos limites impostos pelo interesse coletivo.
É evidentemente o aspecto do pensamento moral da Ilustração com que os escritores libertinos tinham afinidades mais fortes. Em todos eles, o tema principal é a inocência dos sentidos, a naturalidade do prazer. Cedendo a nossos impulsos, não fazemos outra coisa senão satisfazer paixões e apetites que a natureza colocou em nós. Todas as formas de erotismo são admissíveis, nenhuma é contra a natureza, porque todas derivam de desejos implantados em nossa organização psíquica e física pela própria natureza. Mas também os autores libertinos reconhecem que a auto-realização erótica precisa levar em conta os interesses da sociedade. Basta, para isso, praticar os prazeres discretamente, e não estender a todos os homens direitos que só podem ser exercidos sem consequências anti-sociais por um pequeno número de indivíduos — os “que sabem pensar, e cujas paixões se equilibram de tal modo que não se deixam subjugar por nenhuma”. São naturalmente as palavras do voltairiano d’Argens, que como seu amigo de Ferney hesita em revelar à canaille as verdades da filosofia. Sob essas reservas, todos os prazeres são lícitos. “Concluamos pois, minha cara amiga (diz o abade T. a sua amante e discípula), que os prazeres que gozamos são puros e inocentes, pois não ferem nem Deus nem os homens, pelo segredo e pela decência que pomos em nossa conduta. Sem essas duas condições, admito que causaríamos escândalo, e seríamos criminosos com relação à sociedade: nosso exemplo poderia seduzir jovens destinados, por suas famílias, por seu nascimento, a empregos úteis ao bem público, que eles talvez negligenciassem para seguir unicamente a torrente dos prazeres.”
Enfim, o pensamento moral da Ilustração era parcialmente relativista. Instruídos pela infinita variedade de costumes, os filósofos sabiam que o que é virtude num país pode ser considerado um crime em outro. Mas essa tendência pirronista era corrigida pela tese de que existem certos princípios universais de moralidade — a esfera da natureza, na terminologia de Voltaire — que se superpõem ao pluralismo dos usos e valores — a esfera do costume. À esfera invariável da “natureza” pertencem princípios como a proibição da mentira, a condenação do homicídio, a benevolência, todos sintetizados na “regra de ouro”. Para Voltaire, “a única lei fundamental e imutável dos homens é tratar os outros como queremos ser tratados. Essa é a lei da própria natureza, e não pode ser arrancada do coração humano”. Graças a essa dicotomia, é possível ler os livros de história antiga e as descrições de viagem sem nos sentirmos perturbados com a variabilidade dos usos e costumes, no tempo e no espaço.
Os autores libertinos tiram todas as consequências desse semi-relativismo, para desmoralizar, como simplesmente locais e contingentes, os preceitos morais considerados universalmente válidos. Mas reconhecem, em geral, a existência desse núcleo imutável de invariantes normativos, e a legitimidade universal da “regra de ouro”. É o caso de Laure, cujo pai adotivo reduzia a moral “a esse único princípio, ao qual todo o resto é alheio, mas que tem uma extensão considerável: fazer pelos outros o que gostaríamos que fizessem por nós, sempre que possível; e não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem”. Tranquilizada por esse modesto universalismo, Laure podia ler descrições de viagem sem renunciar à sua crença na validade genérica de determinadas regras. “Eu derivava dos relatos dos viajantes e dos costumes das nações um gênero de instrução que me permitia apreciar melhor a humanidade em geral.”
Os escritores libertinos contribuíram, igualmente, para a divulgação das ideias políticas dos filósofos, principalmente sua condenação do despotismo.
O primado da liberdade, com efeito, foi um traço de união entre todas as correntes iluministas, seja numa forma liberal que não implicasse a participação popular, como em Montesquieu e Voltaire, seja numa forma democrática que fundasse a liberdade na vontade da nação, como em Rousseau. O horror ao despotismo percorre toda a gama do pensamento ilustrado, desde Montesquieu, que no Esprit des lois saiu de sua imparcialidade sociológica para condenar os regimes despóticos, mesmo que eles fossem justificados por circunstâncias climáticas e geográficas, a Holbach e Helvétius, para os quais o despotismo interferia no funcionamento harmonioso da lei do interesse e da utilidade coletiva, a Diderot, que rejeitava até o chamado “despotismo esclarecido”, porque reduziria a nação a um rebanho de carneiros, e Voltaire, cujo entusiasmo por Frederico, o Grande, e Catarina não o impedia de considerar ilegítimos os regimes que não incluíssem um mínimo de garantias liberais, como a liberdade de expressão e a tolerância religiosa.
Os escritores libertinos ecoam essa condenação, apresentando os déspotas como estúpidos e cruéis. Assim como tinham caricaturado os monges para colaborar com a campanha de descristianização, caricaturavam os reis e rainhas para ajudar o combate ao despotismo. Quando queriam atacar os reis da Europa, os filósofos em geral tinham a prudência de substituí-los, metaforicamente, por sultões orientais. A grande voga de literatura oriental que se seguiu à tradução para o francês das Mil e uma noites estava em grande parte a serviço desses fins polêmicos. Foram inúmeros os romances libertinos que seguiram esse modelo, pelas mesmas razões. Já vimos o exemplo de Les bijoux indiscrets, que substitui a França por um país exótico e Luís XV por um sultão. Na literatura propriamente libertina, o melhor exemplo é o de Crébillon Filho, que zomba de todos os déspotas na figura lamentável de Schah Baham, régulo oriental que o autor caracteriza como “um príncipe ignorante e de uma moleza consumada”.
À medida que a Revolução Francesa se aproxima, os ataques ao despotismo se tornam naturalmente mais frequentes e mais diretos. Rétif de la Bretonne atribui, na Anti-Justine, todas as perversões sexuais a Maria Antonieta e a seus próximos. Rétif descreve uma casa pertencente ao conde d’Artois, com crimes de bestialidade e assassinato, “em que se praticam orgias do gênero das descritas por Sade em sua Justine”.
Escrevendo em plena revolução, Louvet pode colocar na boca de um dos seus personagens palavras “proféticas” sobre a queda do despotismo na França. “Um deus consolador oferece aos meus últimos olhares o futuro, o futuro feliz que se aproxima; vejo uma das primeiras nações do mundo sair de um longo sono, e exigir a seus opressores sua honra e seus direitos antigos, seus direitos sagrados e imprescritíveis, os da humanidade. Vejo na capital imensa, por tanto tempo envilecida, desonrada por todas as servidões, milhares de cidadãos se tornarem soldados, e milhares de soldados se tornarem cidadãos. Sob seus golpes repetidos, a Bastilha desaba; o sinal é dado de uma extremidade do império à outra; o reino dos tiranos terminou.”
A circunstância de que tantos escritores libertinos, como Mirabeau, Choderlos de Laclos e o próprio Louvet, tenham desempenhado um papel de destaque na revolução talvez não seja o pior indicador das afinidades entre o pensamento político dos filósofos e o dos romancistas libertinos.
Enfim, os libertinos ajudaram a propagar o pensamento social da Ilustração, em particular seu igualitarismo.
Tão característico das Luzes como o tema da liberdade, esse igualitarismo é perfeitamente expresso na Encyclopédie: “a igualdade é o fundamento e o princípio da liberdade… Posto que a natureza humana é a mesma em todos os homens, é claro que segundo o direito natural cada um deve estimar e tratar os outros como seres que lhe são iguais, isto é, homens como ele”. Duas facetas desse igualitarismo nos interessam especialmente: a igualdade econômica e a igualdade entre os sexos.
A Ilustração foi muito sensível aos males da desigualdade econômica. Alguns filósofos, como Mably e Morelly, para não mencionar Babeuf, foram ao extremo de pregar a abolição da propriedade privada como recurso para reduzir os desníveis de riqueza. Rousseau não pertence a esse número, mas foi ele que disse que, numa sociedade bem organizada, ninguém deveria ser tão pobre que precisasse vender-se, nem tão rico que pudesse comprar os outros. Voltaire talvez tenha sido o menos igualitário dos filósofos, mas estava plenamente consciente de que o embrutecimento mental do homem do povo é consequência de sua miséria. É também o que diz Diderot: “Há poucas almas tão fortes que a miséria não humilhe e não degrade no final… A miséria é a mãe dos grandes crimes; os soberanos criam os homens miseráveis, e responderão neste mundo e no próximo pelos crimes que a miséria houver cometido”.
A desigualdade e a miséria são deploradas por muitos escritores libertinos. A primeira coisa que impressionou o paysan perverti, Edmond, chegando a Paris, foi “a gradação de todas as hierarquias. Que espetáculo para o filósofo o dessa multidão de indivíduos que se tocam, um se contentando de um dia de prazer sobre sete, e outro se divertindo todos os dias e noites, que ainda acha curtos demais!”. Rétif foi certamente o mais radical dos escritores libertinos. Advogava, como Morelly, a abolição da propriedade privada, e ao que parece foi o inventor da palavra comunismo, no sentido moderno. No Thesmographe, escrito para os Estados Gerais, seu tom é incendiário. “Ó meus irmãos, fazei se necessário uma insurreição, para abolir o abominável sistema da propriedade… Flageladores do gênero humano… Vede o homem que governais, cujos interesses vos foram confiados. Olhai-o, se puderdes: ecce homo. É um opróbrio vivo, é vosso irmão, é filho de Adão, é um cristão, é o homem reduzido à lama. Ei-lo, escavando a terra, infeccionando a atmosfera, sujando a luz… Eis aquele que contribui para vosso luxo, para vosso esplendor, cuja casa é habitada por vossos cavalos, vossos cães e vós mesmos.”
Mesmo sem o radicalismo de Rétif, Louvet tem plena consciência dos males da miséria. Faublas ajuda um operário a ponto de morrer de fome, e promete que no futuro tentará, com sua mulher, aliviar a sorte de todos os miseráveis. A pequena condessa de Lignolles elimina a miséria de sua propriedade, deixando de explorar os camponeses. Embora nobre e amante de todas as duquesas, Faublas é profundamente atento a todas as injustiças sociais. Sua chegada a Paris é marcada pelo seu choque com a desigualdade das fortunas, a mesma reação do paysan perverti, de Rétif. “Eu procurava esta cidade soberba (escreve Louvet), da qual tinha lido descrições tão brilhantes. Via feias choupanas… longas ruas muito estreitas, desgraçados cobertos de frangalhos, uma multidão de crianças seminuas. A experiência não me tinha ensinado ainda que em toda parte os palácios escondem palhoças, que o luxo produz a miséria, e que a alegre opulência de um só nasce sempre da extrema pobreza de vários.”
A igualdade entre os sexos foi outra grande bandeira das Luzes. Com a possível exceção de Rousseau, todos os filósofos foram ardentes feministas. Voltaire tinha boas razões para proclamar a igualdade da mulher. Amigo de mulheres excepcionais, como Madame du Deffand, e amante de Madame de Châtelet, matemática e divulgadora de Newton na França, Voltaire afirmava com veemência a toda a Europa que as mulheres devem ser tratadas como seres pensantes. Diderot denuncia a educação embrutecedora dada às mulheres nos conventos, e diz que “foi a tirania do homem que transformou em propriedade a posse da mulher”. Condorcet defendeu os direitos cívicos e políticos das mulheres. Todos negam qualquer diferença de direitos e aptidões entre homens e mulheres, e dizem que a frivolidade e outras características supostamente intrínsecas à mulher são na verdade inculcadas pelo opressor masculino.
Que dizem os escritores libertinos? Com exceção de Rétif, são feministas incondicionais.
As Confessions du comte M., de Duclos, são uma interminável crônica amorosa do personagem, que termina com sua conversão à monogamia, através do amor de uma mulher. O herói se dá conta, finalmente, das injustiças impostas à mulher. Só existe uma moral para os dois sexos, diz ele, e a superficialidade feminina é fruto de uma educação determinada pelo próprio homem. As palavras finais do livro transcrevem um depoimento de Ninon de Lenclos. “Refleti desde minha infância na partilha das qualidades que se exigem dos homens e mulheres. Vi que nos foi confiado o que havia de mais frívolo, e que os homens tinham se reservado o direito às qualidades essenciais. Desde esse momento, eu me fiz homem.” Ela o fez, e fez bem, conclui Duclos.
“Fazer-se homem” foi também a escolha de Madame de Merteuil, nas Liaisons dangereuses. Ela inverte os papéis, e se vinga da opressão masculina recorrendo, como os homens, às armas da perfídia e da sedução calculada. De vítima, ela se transforma em agressora. Choderlos de Laclos simpatiza com sua heroína, mas desaprova a estratégia da inversão. É enquanto mulher que a vítima tem de se salvar, e trocando de posição com o homem, Madame de Merteuil escolhe uma via heterônoma, tão heterônoma como a de Madame de Tourvel, que escolhe o caminho da castidade: ou a heteronomia do mal, ou a da virtude, nos dois casos uma estratégia reativa, reflexa, inautêntica. Qual o caminho autêntico? Choderlos não hesita na resposta: o caminho revolucionário. “Ó mulheres! Vinde aprender como, nascidas companheiras do homem, fostes transformadas em suas escravas; como caídas nesse estado abjeto, acabastes por gostar dele, considerando-o vosso estado natural; como, enfim, degradadas cada vez mais por um longo hábito de escravidão, preferistes seus vícios, aviltantes mas cômodos, às virtudes mais penosas de um ser livre e respeitável. Se esse quadro, traçado com fidelidade, vos deixa de sangue-frio, voltai a vossas ocupações fúteis. O mal é sem remédio, os vícios se transformaram em costumes. Mas se com esse relato de vossas perdas, enrubesceis de vergonha e indignação […] não espereis os socorros dos homens, autores de vossos males. Eles não têm nem a vontade nem o poder de aboli-los… Sabei que não se sai da servidão senão por uma grande revolução. Ela é viável? Cabe a vós responder, porque ela depende da vossa coragem.”
Em geral, a literatura libertina acentua um aspecto específico da opressão sofrida pela mulher: a sexual. O direito ao corpo e ao prazer lhe é negado, e os autores libertinos advogam a equiparação completa entre os dois sexos nesse terreno. Mirabeau resume o pensamento libertino — e iluminista — quando denuncia, em L’ éducation de Laure, o egoísmo sexual dos homens. “Os homens […] só querem permitir-nos os prazeres que eles nos dão. A seus olhos, somos simples escravas, que não devemos receber nada senão da mão que nos subjugou. Tudo é para eles, tudo deve referir-se a eles… Egoístas, eles pretendem sê-lo sós, e não deixam que nós o sejamos.”
Em suma, parece completa a harmonia entre a literatura filosófica e a libertina. Os filósofos defendem o erotismo livre. Os autores libertinos aprovam e divulgam as concepções religiosas, morais, políticas e sociais da Ilustração.
Essa bela harmonia é perturbada por Sade.
II
O “divino marquês” tem uma relação ambígua com todas as ideias da Ilustração. Ele as difunde, como os demais libertinos. Mas, ao contrário dos outros, ele frequentemente as perverte, infletindo seu conteúdo num sentido oposto ao desejado pelos filósofos. Ele investe contra todos os valores do Ancien Régime, e nisso é aliado das Luzes, mas agride, também, todos os valores da Ilustração. Ele subverte a sociedade e subverte a subversão. Esse duplo movimento se dá em todos os temas examinados.
É o caso da religião. Sade também quer écraser l’infâme, como os filósofos. Seguindo o exemplo dos outros escritores libertinos, ele apresenta os monges como devassos e criminosos. Em Justine, são monges os principais perseguidores da heroína, e é numa abadia que se perpretam seus crimes. Em Juliette, aparece o papa Pio VI, que organiza orgias sacrílegas, e oferece um banquete parodiando a Santa Ceia. O altar-mor da basílica de São Pedro é profanado. Um jovem é crucificado de cabeça para baixo, parodiando o suplício de são Pedro.
Como os demais novelistas libertinos, Sade põe em cena personagens que repetem todos os temas da propaganda anti-religiosa dos filósofos, seja numa perspectiva deísta, seja, mais frequentemente, numa perspectiva materialista.
O deísmo é praticado na paradisíaca ilha de Tamoé, em Aline et Valcour. Seu soberano Zamé, a própria encarnação do ideal iluminista do monarca esclarecido, instituiu um culto ao Ser Supremo, celebrado ao ar livre, sem templos e sem dogmas. Não é preciso, explica Zamé, construir igrejas para adorá-lo e servi-lo. Deus fala diretamente a nossos corações.
Mas de modo geral é no ateísmo de Hölbach e não no deísmo de Voltaire e Rousseau que Sade busca inspiração para suas tiradas anti-religiosas. Em La philosophie dans le boudoir, parte, como seu mentor, da epistemologia empirista para provar a inexistência de Deus. Alguns dizem que a ideia de Deus é uma ideia inata. Ora, não existem ideias inatas. Todas as ideias são representações de objetos que afetam os nossos sentidos. Mas, como não percebemos esse objeto, Deus não existe. Os deístas dizem que Deus existe como primus motor da natureza, e que não podemos abrir mão dessa hipótese, porque um relógio sem relojoeiro é inconcebível. Mas se a natureza está em movimento permanente, o movimento é ele próprio material, a matéria só existe em movimento. Por que imaginar um princípio motor externo à matéria, se ela é também motriz, autopropulsora? O Deus dos deístas, conclui Sade, o faz “estremecer de indignação”, devendo ser relegado ao esquecimento do qual o “infame Robespierre” quis retirá-lo. Note-se, de passagem, que o livro foi publicado em 1795, um ano depois da execução do Incorruptível.
Quanto às religiões estabelecidas, Sade repete todos os lugares-comuns da Ilustração. Todos os fundadores de religiões, Numa, Moisés, Cristo, Maomé, foram “grandes patifes, que iludiram o povo crédulo para assegurarem seu poder. Deus foi o produto do medo e da ignorância, e a religião dogmática é invenção de falsos profetas e é perpetuada por padres inescrupulosos. A tirania religiosa sempre foi aliada do despotismo político. Sem extinguir a quimera religiosa, inventada para acorrentar as almas, não é possível quebrar os grilhões temporais. Não nos contentemos em romper os cetros; pulverizemos para sempre os ídolos; só há um passo da superstição à monarquia”. Essa aliança entre padres canalhas e reis despóticos é ilustrada pela antiutopia de Butua, comunidade onde reina o mal, ao contrário da ilha de Tamoé. Butua é mal governada, porque o poder é exercido por uma coligação da casta sacerdotal com uma realeza infame.
Mas existe outro lado do anticristianismo de Sade, que o põe em contradição com o secularismo da Ilustração. Para os filósofos, a expulsão de Deus deveria abrir o espaço para a construção de um mundo humano, regido pela razão e visando a felicidade individual e coletiva. A moral fundada na religião é intolerante e fanática, estimulando a discórdia e o crime. Deus tem de ser abolido para tornar possível a prática racional da virtude. Nada mais alheio ao pensamento de Sade.
Para ele, Deus precisa ser eliminado exatamente porque suas leis, sendo justas, estariam em contradição com as leis da natureza, que querem a injustiça, e, proibindo o crime, transgridem o impulso mais forte da natureza, que é o mal. O grande libertino mata Deus, e se instala em seu lugar. Ele não quer descristianizar o mundo para que o homem se torne mais livre, mas para transformar-se ele próprio em Deus. Eugénie chama seu professor de libertinagem, Dolmancé, de “homem divino”, em La philosophie dans le boudoir. Credes ser homens?, pergunta Juliette a seus mentores. Não, quando dominamos o homem com tanta energia, não podemos ser da raça humana. Ela tem razão, diz um deles, Saint-Fond, somos deuses. O libertino sádico é divino, porque como Deus, é soberanamente livre. Ele se desfez de todos os preconceitos e sacudiu todos os freios. Deus não pode existir, porque para o libertino a existência de um ser mais poderoso seria uma fonte de humilhação, um limite à sua própria onipotência. Por isso, Deus é um “abominável fantasma”, criação doentia de seres fracos, compensação supra-sensível de sua fragilidade real, ao passo que o grande libertino, dotado de energia sobre-humana, nem precisa dessa compensação nem pode tolerar sua existência. Homem-Deus, ele quer ser dotado do poder que os deístas atribuem a Deus: o de criar um movimento eterno. Daí a fantasia de Clairwill, personagem feminina de Juliette, que sonha com um crime tão forte que possa continuar agindo para sempre, mesmo depois de sua morte: motu perpetuo do mal.
Se Deus existisse, ele seria um Deus sádico, consagrando ao mal toda a sua onipotência, como o Deus imaginado por Saint-Fond. Ele imagina esse Deus, no Juízo Final, zombando do homem por não ter compreendido que a essência divina é uma essência criminosa. “Tendo visto os infortúnios permanentes com que povôo a terra”, diz ele, “como não concluíste que só amo o crime, que era necessário destruir tudo? Imbecil, por que não me imitaste?” A imitatio dei, para o libertino, é a imitação desse ser imaginário que se existisse não se distinguiria de Lúcifer. O princípio dualista do cristianismo é substituído pelo monismo do mal. O homem sádico é esse Deus-Lúcifer. No auge do gozo, Dolmancé exclama: “Lúcifer, só e único Deus da minha alma, inspira-me algo mais, oferece-me novas perversões, e verás como mergulharei nelas! ”
Mas o libertino não quer fundar o culto de Lúcifer. Seria reentronizar Deus, e não existe outro Deus senão o próprio libertino. De certo modo, é uma reflexão melancólica. Porque a morte de Deus priva o libertino de pelo menos um prazer: o da blasfêmia, no momento do orgasmo. Racionalista demais, o libertino sabe que profanar a hóstia e o crucifixo é tão insignificante como seria, para o cristão, profanar uma estátua pagã. É uma pena. Mas nem o libertino é perfeitamente coerente, e ele prefere contradizer seus princípios a renunciar a um prazer. Por isso, ilogicamente, ele blasfema no instante do gozo. “Um dos meus maiores prazeres é insultar Deus quando estou excitado. Parece-me que meu espírito, mil vezes mais exaltado, odeia e despreza bem melhor essa repugnante quimera; eu gostaria de encontrar um meio de invectivá-la melhor, de ultrajá-la mais; e quando minhas malditas reflexões me convencem da nulidade desse desprezível objeto do meu ódio, eu me irrito, e gostaria de poder reedificar imediatamente o fantasma, para que minha raiva visasse alguma coisa.” É preciso convir que não foi exatamente no mesmo espírito que Voltaire disse que, “se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”.
Sade parece coincidir, igualmente, com as três características do pensamento moral da Ilustração.
Primeiro, a moral iluminista era secular, mas achava possível salvaguardar a maioria dos preceitos tradicionais, fundando a virtude, seja na natureza, seja no interesse coletivo. Conscienciosamente, Sade acolhe a tese da natureza como legisladora suprema, e diz que suas leis “são tão sábias quanto simples (…) elas estão escritas no coração de todos os homens, e basta interrogar esse coração para compreender o que o impulsiona”. Com a mesma fidelidade, Sade perfilha a segunda vertente, baseada na utilidade coletiva. É preciso, diz ele, substituir as “tolices deíficas” por excelentes princípios sociais, demonstrando que o egoísmo bem compreendido exige a prática, por interesse, de todas as virtudes comunitárias.
Segundo, a moral da Ilustração era eudemonista, e advogava a libertação dos sentidos, nos limites compatíveis com o interesse social. Sade advoga, naturalmente, a libertação total do prazer erótico, e, no melhor espírito do utilitarismo da Ilustração, explica por que essa liberdade não contraria os interesses sociais.
Terceiro, a moral da Ilustração pregava um relativismo mitigado, pelo qual a variedade dos usos e costumes era limitada por certos princípios universais, sintetizados na “regra de ouro”: tratar os outros como gostaríamos de ser tratados. Repetindo quase literalmente uma frase de Voltaire, Sade faz uma profissão de fé relativista: “tudo é função de nossos costumes e do clima em que habitamos; o que é crime aqui é muitas vezes uma virtude algumas léguas adiante”. Ao mesmo tempo, como Voltaire, corrige esse relativismo com a “regra de ouro”. No folheto “Français, encore un effort”, Sade diz que a “felicidade consiste em tornar os outros tão afortunados quanto nós mesmos desejamos sê-lo”.
Mas, de novo, atrás dessa convergência aparente há uma contradição profunda com a filosofia moral da Ilustração.
A natureza não é, para Sade, a fonte do bem e do mal, a voz soberanamente justa que na intimidade de nossa consciência nos permite distinguir as ações boas e as más. Ele fez essa afirmação, mas num panfleto para uso público, e, como outras teses convencionais contidas no mesmo panfleto, ela possuía a função tática de tornar mais aceitáveis outras teses, muito menos ortodoxas. Na alcova de Dolmancé, essa natureza revela seu verdadeiro rosto — é, literalmente, um rosto sádico. A natureza não quer o bem, quer a crueldade. Ela é o primeiro sentimento que a natureza imprime em nós. A criança quebra seu brinquedo, morde o seio de sua ama, estrangula um pássaro. A crueldade está nos animais, é habitual nos selvagens. Ela subsiste, ainda, entre alguns homens enérgicos, não corrompidos pelo estado de civilização. A natureza não nos recomenda a benevolência, mas o egoísmo. “O que nela reconhecemos de mais claro é o santo e imutável conselho que ela nos dá de deleitar-nos, não importa a expensas de quem.”
Mas com isso cai por terra, também, o segundo fundamento da moralidade, para a Ilustração: a utilidade coletiva. Se a natureza só quer o prazer individual, por mais criminoso que seja, qualquer princípio que nos obrigue a respeitar o interesse do próximo é antinatural. A máxima de que o prazer de um homem deve ser sacrificado à utilidade de todos, ou de um grande número, é perniciosa e contrária à natureza. “Não há medida comum entre o que sentem os outros e o que nós sentimos; a mais forte dose de dor, nos outros, é seguramente nula para nós, e a mais ligeira cócega de prazer que experimentamos nos afeta; devemos portanto, a qualquer preço, preferir essa ligeira cócega que nos deleita a essa soma imensa de infortúnios alheios, que não podem nos atingir.”
Essa reflexão já basta para desativar a reserva sob a qual a moral da Ilustração proclamava o direito ao prazer e à felicidade: a exigência de que não fosse lesado o interesse do nosso semelhante. Sade radicaliza o direito à auto-realização erótica, e não aceita quaisquer limites. Meu direito ao prazer é absoluto e incondicional, e ele é autorizado pela natureza, “nossa mãe comum”. A violência e o crime são lícitos, no prazer amoroso, porque foi da natureza que o indivíduo recebeu as inclinações que o impulsionam nessa direção. No uso dos meus direitos naturais ao prazer, estou justificado em “preferir essa dor alheia que nos diverte, à ausência dessa dor, que se tornaria uma privação para nós”. Se não preciso preocupar-me com a dor que meu prazer inflige a outro indivíduo, não preciso tampouco preocupar-me com seus efeitos disfuncionais sobre a sociedade como um todo, e nisso, como em tantas outras coisas, Sade se distancia dos demais autores libertinos.
Enfim, a tese relativista é aceita por Sade, sem a limitação a que ela estava sujeita na Ilustração. A “regra de ouro”, que, como vimos, restringia esse relativismo, para Voltaire e para escritores libertinos como Mirabeau, é para Sade uma ficção. Sem dúvida, ele a proclamou, no folheto “Français, encore un effort”, inserido no livro La philosophie dans le boudoir. Mas já vimos que grande parte do que está contido nesse folheto é para uso externo. É intra muros que é preciso interrogar o verdadeiro pensamento de Sade, entre as paredes do boudoir do libertino. Vale a pena citar na íntegra a passagem em que Dolmancé contradiz ponto por ponto o que havia afirmado, no folheto, sobre a regra de ouro. “Fala-se com uma voz quimérica dessa natureza, que nos manda não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fosse feito. Mas esse conselho absurdo só nos veio dos homens, e dos homens fracos. […] Foram os primeiros cristãos que diariamente perseguidos por seu estúpido sistema, gritavam a quem queria escutá-los: a natureza diz que não é preciso fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fosse feito. Imbecis! Como poderia a natureza, que nos aconselha sempre a deleitar-nos, […] poderia, por uma inconsequência sem exemplo, assegurar-nos, no momento seguinte, que não podemos deleitar-nos se isso prejudicar os outros?” O relativismo de Sade é, portanto, integral. O relativismo dos filósofos, corrigido pela regra de ouro, visava o fim polêmico de mostrar o caráter contingente das instituições do Antigo Regime, à luz de determinados padrões universais de justiça. O relativismo integral de Sade visa demolir não só as normas europeias, mas a totalidade dos valores morais, mostrando que todos eles são relativos a circunstância de tempo e lugar. É graças a esse relativismo que o renegado Sarmiento, na infame tribo de Butua, justifica o canibalismo e outros costumes do país. “A virtude é relativa… Não há outras virtudes que as convencionais. Todas são locais, e a única respeitável, a única que pode fazer o homem feliz, é a do país em que se está. Acreditas que o habitante de Pequim possa ser feliz em seu país com uma virtude francesa, e inversamente, que um vício chinês dará remorsos a um alemão?” É com base nesse relativismo que Dolmancé prova a legitimidade do roubo, do assassinato, do incesto. Pois “não há horror que não tenha sido divinizado, não há virtude que não tenha sido estigmatizada. Dessas diferenças puramente geográficas, nasce a pouca importância da estima ou do desprezo dos homens, e devemos preferir sem hesitação esse desprezo, quando as ações que o suscitam são capazes de produzir em nós alguma volúpia”.
Armado com esses princípios, Sade pode tranquilamente destruir em sua totalidade a moral leiga que os filósofos tinham querido preservar. Quais são, com efeito, os elementos dessa moral?
Em primeiro lugar, os deveres com relação a Deus, que pelo menos os filósofos deístas ainda consideravam necessários. Mas, se Deus não existe, esses deveres são fictícios, e crimes como impiedade e sacrilégio são imaginários.
Em segundo lugar, os deveres com relação a nossos semelhantes, como a proibição da calúnia, do roubo, do impudor ou do assassinato. Mas a calúnia não é um mal, porque, se ela atinge o homem realmente perverso, é justa, e, se atinge um homem inocente, é útil, porque ele se tornará mais virtuoso, para defender sua reputação. O roubo? Ele era encorajado em Esparta, e é útil num governo republicano, porque é um meio de corrigir as injustiças da fortuna, permitindo ao pobre apropriar-se do supérfluo do rico. O pudor? Nada é ilícito em questões sexuais. A prostituição era honrada entre os tártaros, os babilônios, e continua a sê-lo entre os esquimós. Ela deve ser encorajada, pela criação de estabelecimentos especiais. Todos são tiranos no amor, e um harém público poderá facilitar a todo homem exercer seu despotismo privado, sem ambicionar o despotismo público. A sodomia era universal na Grécia, em Roma, e é comum entre os indígenas americanos. O assassinato? Ele não é um crime à luz da natureza, porque esta supõe o movimento, a destruição e a reconstrução perpétua, e, matando, estamos pondo à disposição da natureza os elementos orgânicos do cadáver, de que ela precisa para criar. Não é um crime à luz da política, porque ele é admitido na guerra, e graças ao homicídio legal instituído pela revolução a França tinha se tornado livre. Não é um crime à luz da sociedade, porque do ponto de vista dos interesses sociais, algumas vidas a mais ou a menos não fazem qualquer diferença. E não é um crime, especificamente, numa sociedade republicana, porque essa sociedade, ameaçada por seus vizinhos, tem de ser belicosa, e nada melhor que o homicídio e a necessidade de proteger-se contra ele para estimular as virtudes guerreiras.
Em terceiro lugar, a moral leiga menciona os deveres com relação a nós mesmos, que se reduzem à condenação do suicídio. É um preceito absurdo, contrário à liberdade individual, e de resto legitimado pelos gregos e romanos, como no caso do suicídio de Sêneca.
Pelo que sabemos de Sade, é improvável que essa gigantesca obra de demolição de todos os preceitos morais tenha sido uma simples manifestação de humor negro. Ela representa, isso sim, a destruição metódica de todos os elementos da moralidade secular que constituía um dos temas centrais da construção iluminista.
Quanto às ideias políticas da Ilustração, é inegável que Sade as partilha em grande parte. Também para ele o despotismo é uma abominação. Como os outros escritores libertinos, Sade pinta os reis e rainhas sob as cores mais sombrias. O rei de Nápoles e Catarina da Rússia não são poupados. Sua aversão ao despotismo se manifesta na figura abjeta do rei antropófago de Butua. Mas Zamé, rei de Tamoé, é o antidéspota, consagrado inteiramente à felicidade do seu povo. É um monarca à Helvétius, que, em vez de punir os seus súditos com leis desumanas, tenta influenciá-los para a prática do bem utilizando os dois mecanismos fundamentais do prazer e da dor, isto é, oferecendo recompensas e incentivos morais, por um lado, e, por outro, expondo-os à censura da opinião. Zamé é o mais democrático dos reis. Seu governo paternal tinha como objetivo preparar o seu povo para “as doçuras de um regime livre e republicano”.
Em seus escritos “revolucionários” o despotismo não é mais objeto de alusões indiretas, e sim chamado por seu verdadeiro nome: o despotismo do Antigo Regime, encarnado em Luís XVI. Numa carta publicada em junho de 1791, dias depois da fuga e captura da família real — “Adresse d’un citoyen de Paris au roi des français” —, Sade lamenta “as vítimas do despotismo […] que uma única assinatura […] arrancava ao seio de suas famílias em prantos, para os precipitar eternamente nas masmorras dessas terríveis bastilhas de que o reino estava repleto” e faz um hino à liberdade: “a palavra liberdade é o grito nacional; o desejo de desfrutá-la eternamente é unânime; esse voto sagrado é o da razão e da sabedoria”. Se nessa carta Sade ainda se confessa monarquista, como quase todos os franceses nessa época, sua conversão à República é rápida, e, depois de ter sido secretário de uma das seções de Paris, durante o Terror, é como republicano convicto que ele escreve, em 1795, o folheto “Français, encore un effort”, ataque veemente contra o despotismo político e suas coadjuvantes — a tirania religiosa e moral. O horror de Sade ao despotismo parece sincero, e o credencia como representante legítimo dos ideais políticos da Ilustração.
Mas em seus textos especificamente libertinos não há vestígios desse amor à liberdade. No fundo, o grande libertino é apolítico, coerentemente com seu desprezo pelo interesse coletivo. Na Sociedade dos Amigos do Crime, em Juliette, há um artigo que manda observar a ordem vigente. É que a liberdade sádica é a liberdade de submeter todos ao seu prazer. Ora, a liberdade de um sobre todos chama-se despotismo. O libertino não se dá ao trabalho de combater as leis e as instituições humanas, porque está acima delas. Não se interessa pelo poder político, porque ele acabaria por escravizá-lo. A liberdade dos libertinos paira sobre todos esses limites, porque tende a algo mais — a soberania. A mais perfeita e irrestrita de todas, a que advém do caráter ilimitado das suas paixões. O poder absoluto que ele deseja é sobre seu parceiro, e a soberania consiste em não ser cerceado na busca do seu prazer. Mas o poder soberano que consiste em escravizar todos os homens ao seu prazer é frágil, objeta Eugénie a Dolmancé. E se os outros se vingarem? Tanto pior, responde seu mentor. O mais forte sempre tem razão. Mas é uma resposta insatisfatória, hobbesiana demais.
O homem que sucumbe é um fraco. O herói sádico, enquanto soberano, não pode fracassar. A verdadeira resposta é que o libertino verdadeiramente soberano não pode perder. Ele ganha mesmo quando perde, porque goza quando é agredido e morto. O homem soberano é inacessível ao sofrimento, pois como homem de todas as paixões não pode deixar de ter a mais importante delas, a de ter prazer com a dor física e com a própria morte. Quando dizem a um conspirador, em Juliette, que ele corre o risco de ser executado, ele responde: é meu desejo mais ardente. Uma das heroínas encontra um libertino e diz: jura-me que serei tua vítima — ser a ocasião de um crime, ao morrer, me enlouquece de prazer. Blanchot resume essa análise numa fórmula: se o herói faz mal aos outros, que prazer! Se os outros lhe fazem mal, que volúpia! Ele é, portanto, inacessível aos outros — o invulnerável, o único, o soberano. Mas, se minha soberania vem do meu poder sobre os outros, não dependo dos outros? Por mais que eu torture o meu parceiro, meu prazer terá um fim com a morte da vítima, e nesse caso desaparece o meu prazer. Resposta de Sade: é preciso substituir a qualidade pela quantidade. É preciso matar muitos, matar infinitamente, e com isso o meu poder não terá limites. Até a extinção da espécie humana? Sim, explica Dolmancé a Eugénie. É nossa arrogância que nos faz atribuir tanta importância à sobrevivência da espécie. Ela é indiferente à natureza, que já engendrou outras espécies além da humana, e engendrará outras depois que a humanidade estiver extinta.
Mas, mesmo levando o crime aos confins do impossível, o supremo libertino não é ainda verdadeiramente soberano se for um escravo de suas paixões. Por isso, ele é o homem do cálculo, da razão fria, a mesma que o leva a escrever regulamentos para a organização racional das orgias, no castelo de Silling, em Os 120 dias de Sodoma, a mesma que faz dele de algum modo um precursor do executivo moderno, segundo Adorno, planejando todos os movimentos, orquestrando as atividades de todos os parceiros, preenchendo todos os orifícios. Ele não pode deixar-se arrastar pelo frenesi, pois o delírio acaba interferindo na própria paixão. Por isso, ele é um estóico: para levar a paixão ao ponto extremo de sua intensidade, lembra Blanchot, é necessário um momento de frieza, de insensibilidade, que Sade chama de apatia. O verdadeiro estoico visava essa mesma apatia, mas como ponto terminal de um processo de libertação interior. Para o estoicismo sádico, a apatia é apenas um meio para atingir um redobramento da paixão, mas é uma etapa indispensável. Juliette incendeia uma casa, e enquanto ela arde, incinerando um casal e várias crianças, Juliette e uma criada, enlouquecidas de prazer, se satisfazem sexualmente. Juliette conta essa proeza à sua educadora, Clairwill, e, em vez do elogio esperado, recebe uma severa repreensão. Não, Juliette era ainda uma aprendiz, uma libertina principiante, porque tinha cometido o erro imperdoável de ter se deixado dominar pela paixão. Uma libertina competente deveria manter o sangue-frio, permitir que o marido e uma das crianças se salvassem do incêndio, acusar do crime o homem, levá-lo à forca, e violar a criança sobrevivente, no momento da execução do pai. Recordamo-nos da descrição do cortesão, que segundo Walter Benjamin é obrigado a reprimir suas próprias paixões para melhor dominar os outros, o que lhe dá traços de santidade. Disciplinando suas paixões, também o libertino é uma espécie de santo.
Mas, em vez de se deixar subjugar por Deus, esse santo subjuga o parceiro, negando-lhe o direito ao prazer recíproco. O prazer libertino é essencialmente assimétrico, e por isso Sade o assimila ao despotismo. “Que queremos nós quando gozamos?”, pergunta Dolmancé. “Que tudo o que nos cerca só pense em nós, só cuide de nós. Se os objetos que nos cercam gozarem, estarão mais preocupados consigo que conosco, o que diminui o nosso gozo. Não há homem que não queira ser déspota quando está excitado: parece ter menos prazer quando os outros o tiverem tanto quanto ele… Não há prazer em dar prazer aos outros… Fazendo mal, ao contrário, experimenta todos os encantos de um indivíduo nervoso ao fazer uso de suas forças: ele domina então, torna-se um tirano.” Estamos longe das declamações contra o despotismo. A liberdade converte-se em seu contrário, e se confunde com a liberdade de oprimir.
Quanto ao igualitarismo social da Ilustração, Sade parece, em alguns textos, ser tão radical quanto Rousseau, ou mesmo Mably e Morelly. O virtuoso rei Zamé percorreu em sua juventude vários países da Europa, e escandalizou-se com as diferenças sociais. “Em toda parte, vi o homem reduzido a duas classes, as duas dignas de lástima; numa, o rico, escravo dos seus prazeres; em outra, o infortunado, vítima da sorte… Vi sempre a classe mais opulenta aumentar seus ferros, dobrando os seus desejos; e a mais pobre, insultada, desprezada pela outra, sem receber sequer o encorajamento necessário para sustentar o peso do fardo. Reclamei a igualdade, disseram-me que ela era quimérica; percebi logo que os que a rejeitavam eram os que deviam perder com ela. Neste momento, percebi que ela era possível.” Ascendendo ao trono, Zamé estabelece a igualdade sonhada. Elimina o luxo, abole a propriedade privada, e os bens, todos pertencentes ao Estado, são distribuídos igualmente entre todas as famílias.
Aline et Valcour, em que está intercalado o episódio da ilha de Tamoé, talvez não seja a mais típica das novelas libertinas de Sade, mas encontramos opiniões semelhantes numa das mais características, La philosophie dans le boudoir. O cavaleiro de Mirvel, irmão de Eugénie e participante das orgias organizadas por Dolmancé, tem uma reação inesperada de indignação quando Dolmancé termina a leitura do panfleto “Français, encore un effort”. O cunhado pode dar-se ao luxo de defender princípios tão imorais, exclama o cavaleiro, porque é proprietário de uma fortuna imensa, que lhe permite satisfazer todas as suas paixões. E os outros, os miseráveis? “Lança um olhar de piedade sobre eles… Quando teu corpo, fatigado unicamente de volúpias, repousa languidamente sobre leitos de paina, vê o deles, esmagado pelos trabalhos que te fazem viver, recolher apenas um pouco de palha para se protegerem do frio da terra; lança um olhar sobre eles, quando rodeado de pratos suculentos […] esses infelizes disputam aos lobos, nos bosques, a raiz amarga de um solo ressequido.” É a linguagem dos filósofos mais igualitários do século XVIII — e de alguns dos libertinos mais “subversivos”, como Rétif de la Bretonne.
Mas em geral essas considerações filantrópicas são alheias ao universo libertino de Sade. A libertinagem é jogo de aristocratas, de altos prelados, as duas primeiras ordens do reino. No máximo, como em Os 120 dias de Sodoma, participam do jogo grandes burgueses, fermiers genéraux e parlamentares. É um universo hierárquico, uma grande oligarquia do prazer, à qual não têm acesso as classes inferiores. De um lado, a cúpula, do outro, a massa, o mundo das vítimas. Mas as próprias vítimas são de preferência bem-nascidas. Há um prazer especial em torturar a filha de um alto magistrado, em sodomizar o filho de um nobre de província. O povo está excluído, é desprezado. Juliette define o povo como “essa classe vil e desprezível que só pode viver à força de sofrimentos e suores”. E acrescenta que “tudo o que respira deve coligar-se contra essa classe abjeta”. Saint-Fond, em Juliette, é insuperável. “O povo será mantido numa escravidão que o impedirá de atentar contra a dominação dos ricos.” E ainda: “tudo o que se chama de libertinagem não será punido senão nas castas escravas”. Ocasionalmente o homem do povo é convidado a participar do jogo libertino, como o jardineiro Augustin, em La philosophie dans le boudoir. Mas esse igualitarismo tem seus limites. O folheto “Français, encore un effort” contém ideias perigosas demais para um jardineiro. Iniciada a leitura, Augustin recebe ordens de se retirar. “Sai, Augustin, isto não foi feito para ti; mas não te afastes; tocaremos a campanhia quando tiveres de reaparecer.”
E, no entanto, há uma estranha mobilidade vertical nesse universo hierárquico. A mulher do povo Dubois, em Juliette, se torna baronesa, nobres se fazem donos de hospedaria, para melhor poderem envenenar e roubar os viajantes. Os pobres podem ascender — não pelo trabalho, como recomendariam os filósofos, mas pela infâmia. Vimos que Sade faz a apologia do roubo, como uma forma de reduzir os desníveis de renda. O mesmo vale para todos os outros delitos. O crime é a compensação da injustiça e a revanche do indigente.
É porque as linhas hierárquicas do universo sádico não coincidem necessariamente com as hierarquias sociais. A grande partilha é entre os grandes libertinos, que podem tudo, porque são soberanos, e o resto da humanidade, que tem de se submeter aos primeiros. Por isso, subsiste, apesar de tudo, um certo igualitarismo. Homens e mulheres do povo podem ascender ao topo da pirâmide libertina, se forem suficientemente enérgicos para isso.
Em que consiste, então, a igualdade? Sade pode, em parte, aceitar a formulação da Encyclopédie: é verdade que, à luz da natureza, todos os homens são iguais. Mas não se segue, daí, que eu precise ser justo com os meus semelhantes, e sim que estou autorizado a cometer todas as injustiças. A argumentação de Dolmancé é impecável. “Para considerar criminosa uma ação que me seja útil, lesando o próximo, seria preciso demonstrar que o ser lesado é mais precioso à natureza que o ser que se beneficia; ora, todos os indivíduos sendo iguais aos olhos da natureza, essa predileção é impossível; logo, a ação que beneficia a um, lesando outro, é de uma perfeita indiferença aos olhos da natureza.” Em outras palavras, o princípio da igualdade não funda, como para os filósofos, uma ética da tolerância e do respeito mútuo, mas uma antiética da injustiça legítima, fundada na própria natureza: seria ferir o princípio da igualdade de todos os homens dar preferência aos interesses de quem é lesado sobre os interesses de quem lesa.
Mas, no fundo, mesmo essa concepção rigorosamente egoísta da igualdade é inaceitável para o grande libertino. Ela supõe que todos os homens têm direitos iguais na busca do seu prazer. Ora, o prazer do grande libertino está em negar o prazer do outro. O igualitarismo sádico desloca-se então do sujeito para o objeto: todos são iguais diante do desejo do libertino, todos devem estar permanentemente disponíveis como objeto do seu prazer. É a igualdade das vítimas, a igualdade na abjeção, a igualdade dos súditos num Estado tirânico, uniformemente sujeitos à vontade absoluta do déspota.
A igualdade da Ilustração implicava anular as diferenças entre os seres humanos, considerando-as contingentes e superficiais — as baseadas na religião, na raça, no sexo —, a fim de acolher a todos na grande família de um gênero humano emancipado. Sade imita o mesmo movimento, modificando sua direção política. Também Sade ignora as diferenças, igualando os homens num estatuto genérico mas não é porque todos sejam irmãos, e sim porque todos são igualmente disponíveis para o prazer libertino. A Ilustração anulava as particularidades para equiparar todos os homens na universalidade dos direitos; Sade anula as particularidades para equiparar todos os homens na universalidade da escravidão: igualdade dos súditos, e não dos sujeitos.
Em muitos textos, as opiniões de Sade sobre a igualdade entre os sexos não se distinguem das expressas pela Ilustração. Seu feminismo é exemplar. Sade condena, como Diderot e Voltaire, a tirania das famílias, que colocam a menina num convento, de onde ela sairá mais ignorante que antes, e a entregam em seguida a um homem mais velho, não escolhido por ela. E, como os filósofos, condena a dupla moralidade, a obrigação de virtude e castidade imposta às mulheres. É preciso que ela quebre os seus grilhões, rejeitando todos os preconceitos, e reivindicando energicamente seus direitos — o direito ao corpo e ao prazer. “Não é num século em que a extensão dos direitos humanos foi aprofundada com tanto cuidado”, diz Madame de Saint-Ange em La philosophie dans le boudoir, “que as moças devem continuar sendo as escravas de suas famílias, quando é evidente que os poderes dessas famílias sobre elas são absolutamente quiméricos… Esperemos que os olhos se abram, e que assegurando a liberdade de todos os indivíduos, não se esqueça a sorte dessas infelizes moças; mas se elas forem esquecidas, devem colocar-se por sua própria iniciativa acima dos preconceitos, espezinhando ousadamente os ferros vergonhosos com que se pretende subjugá-las.” Em outro trecho, Sade diz que “é tão injusto possuir uma mulher como possuir escravos, jamais um ato de posse pode ser exercido sobre um ser livre”. É quase a paráfrase da frase de Diderot, segundo a qual “foi a tirania do homem que transformou em propriedade a posse da mulher”.
Mas esse feminismo modelar se torna um pouco mais problemático quando examinamos mais de perto a teoria e a prática da libertinagem sádica. No folheto “Français, encore un effort”, Sade explica a verdadeira significação da máxima de que nenhum homem tem direito de propriedade sobre a mulher. Ela significa, simplesmente, que todos os homens têm direito a possuir qualquer mulher, desde que não converta essa posse em propriedade. E, correlativa a esse direito, existe a obrigação por parte da mulher de submeter-se ao desejo de qualquer homem. Assim como não tenho direito à propriedade de uma fonte que encontro em meu caminho, mas tenho o direito de usá-la para satisfazer minha sede, não tenho direito à propriedade de nenhuma mulher, mas tenho direitos incontestáveis à sua posse, e posso obrigá-la a ceder a meu capricho, qualquer que seja a razão invocada para justificar a recusa. Sade propõe, para o exercício desse direito ilimitado de posse, a criação de estabelecimentos especiais, para a qual será intimada (sommée) qualquer mulher que qualquer homem deseje possuir. “Sob a salvaguarda das matronas desse templo de Vênus, ela lhe será entregue para satisfazer, com tanta humildade como submissão, todos os caprichos que possa ter, por mais estranhos e irregulares que sejam, porque estão todos na natureza, todos são sancionados por ela.” Nesses estabelecimentos, “a mais ligeira recusa será punida arbitrariamente por quem a tiver experimentado”. Mas essa obrigação não poderá comprometer a saúde de certas mulheres, quando elas forem muito jovens, por exemplo? “Essa objeção não tem nenhum valor; se tenho direito ao gozo, esse direito independe dos efeitos que esse gozo possa produzir; pouco importa que ele seja vantajoso ou prejudicial ao objeto que se submete a ele… No momento em que uma preocupação desse tipo destruísse ou enfraquecesse o gozo de quem o deseja, e que tem direito de se apropriar dele, a consideração da idade se torna nula, porque não se trata de modo algum do que possa sentir o objeto condenado pela natureza e pela lei à satisfação dos desejos do outro; só importa, nesse exame, o que convém ao homem que deseja.”
A igualdade sexual, para Sade, significa assim, por um lado, a igualdade dos direitos de todos os homens à posse da mesma mulher. Estarei violando o direito de outro homem se não o autorizar a dormir com a mulher que possuo, qualquer que seja o título alegado, jurídico ou qualquer outro. Condenando o ciúme e o exclusivismo sexual masculino, essa máxima é compatível com o feminismo das Luzes. Mas a igualdade sexual significa, por outro lado, que todas as mulheres podem ser objeto do meu desejo. É a fórmula do igualitarismo libertino, que, como vimos, desloca a igualdade do sujeito para o objeto, da igualdade dos direitos de todos para a igualdade de todos perante o poder de quem deseja. O igualitarismo sexual de Sade quer dizer, portanto, que todos os homens são iguais na medida em que todos têm direito a possuir qualquer mulher, e todas as mulheres são iguais no sentido de que todas devem ser submissas ao desejo masculino, o que significa que elas são iguais como objetos e não como sujeitos de prazer. É a inversão radical do feminismo da Ilustração. A mulher não é emancipada, e sim coagida. Não é ela que adquire seu direito ao corpo, e sim o homem que adquire um direito ilimitado ao corpo da mulher. É verdade que Sade sente a necessidade de restabelecer o equilíbrio, acrescentando, quase como um post-scriptum, que também a mulher tem o direito de possuir qualquer homem. Mas como pode ela exercer seu direito, se ela não tem a capacidade física de coagir, de “punir arbitrariamente a mais ligeira recusa”? E como pode ela ser igual ao homem, se ela tem de se abster de qualquer gozo, para não diminuir o gozo do homem?
Nesse ponto, como em tantos outros, o verdadeiro pensamento de Dolmancé está em sua alcova, e não num folheto destinado ao público. Ele deixa bem claro que essa simetria é fictícia, e parte inequivocamente da superioridade do homem. “Se a intenção da natureza não fosse que o homem tivesse essa superioridade, ela não teria criado mais fracos que ele os seres que ela lhe destinou para essas ocasiões. Essa debilidade a que a natureza condenou as mulheres prova incontestavelmente que sua intenção é que o homem, que goza nesse momento mais que nunca do seu poder, o exerça com toda a violência que quiser, por suplícios mesmo, se assim o entender.” O que resta, então, das declamações dos feministas? “Que me importam esses imbecis? Não é para eles que falo. Banais adoradores das mulheres, eu os deixo, aos pés de sua insolente dulcineia, esperar o suspiro que os tornará felizes, e baixamente escravos do sexo que deveriam dominar, prefiro abandoná-los ao encanto ignóbil de carregar os grilhões que a natureza lhes dá o direito de impor aos outros.” É por isso que o personagem feminino mais típico de Sade não é Eugénie, que tem a extravagância de partilhar os prazeres que ela oferece, mas Justine, vítima de atrocidades que ela abomina, e que nesse sentido ilustra perfeitamente a tese sadiana do prazer assimétrico.
Em suma, em todos os grandes temas da Ilustração, Sade é aliado e adversário dos filósofos.
Seu combate parece ser o mesmo dos filósofos, porque está a favor da descristianização, da implantação de uma moralidade secular baseada na natureza e na utilidade, do estabelecimento de um Estado livre, da redução das desigualdades sociais, da emancipação da mulher.
Ao mesmo tempo, ele sabota esse combate, solapando, pela hipérbole, pela inversão e pela paródia, todos os ideais das Luzes.
Pela hipérbole, ele exagera e radicaliza determinados temas, reduzindo-os ao absurdo. O hedonismo e o eudemonismo da Ilustração são levados às últimas consequências, e se transformam numa apologia insensata do prazer individual, ignorando de todo os interesses da sociedade. O relativismo atenuado dos filósofos converte-se num pirronismo integral, afirmando que todos os valores são condicionados no tempo e no espaço. O utilitarismo das Luzes é redefinido sob a forma de um egoísmo radical, que exclui qualquer consideração que não seja a busca do próprio interesse.
Usando a tática da inversão, Sade metamorfoseia a igualdade em hierarquia, a liberdade em dominação.
Enfim, ele parodia alguns dos temas mais importantes da Ilustração, desmoralizando-os. Ele parodia o ideal pedagógico da Ilustração, cristalizado em livros como o Émile, escrevendo não “romances de formação” inofensivos, do gênero de L’éducation de Laure, em que se tratava simplesmente de educar uma jovem para os prazeres de uma sexualidade livre, mas verdadeiros Bildungsromane do crime, como La philosophie dans le boudoir e Juliette, em que as discípulas são educadas para a crueldade e para o assassinato. Ele parodia o conceito rousseauísta de soberania, transferindo todos os seus atributos — unidade, indivisibilidade, indelegabilidade — para um único indivíduo ou grupo de indivíduos, os libertinos soberanamente enérgicos. Ele parodia o culto iluminista da natureza, aceitando-a como ideal e como modelo, mas faz dela uma natureza malevolente. Ele parodia a tese feminista de que nenhum homem pode pretender à posse exclusiva de qualquer mulher, transformando-a na tese de que todos os homens têm direitos iguais a todas as mulheres. Ele parodia, enfim, a própria autocrítica da Ilustração, pela qual Rousseau condena a civilização à luz da virtude natural, condenando essa mesma civilização à luz da naturalidade do crime.
III
Assim, a literatura libertina em geral mantinha com o pensamento da Ilustração uma relação de congruência. Esse vínculo foi substituído, em Sade, por uma disjunção parcial. Por que essa congruência e por que essa disjunção?
A resposta a essas duas perguntas exige uma digressão sobre a natureza sociológica da literatura libertina.
Para a maioria dos autores, ela é um fenômeno essencialmente aristocrático. Suas raízes estariam no ambiente senhorial e palaciano que descrevi antes — o mundo dos amores frívolos, dos adultérios elegantes, das pequenas e grandes crueldades —, o mundo de Versalhes, do Marais e do Faubourg Saint-Germain. São nobres os personagens, nobre o meio em que circulam, nobres seus valores e estilo de vida. Por isso, Mauzy afirma, em L’idée du bonheur au 18ème siècle, que não pode haver um libertinismo burguês. “Um burguês libertino é um burguês irremediavelmente decaído.”
Starobinski está menos convencido dessa tese. Para ele, existem duas literaturas libertinas, uma consagrada ao prazer “auroral”, burguês, e outra ao prazer “crepuscular”, aristocrático.
É verdade que o meio descrito é em geral aristocrático. Mesmo nos romances libertinos do burguês Rétif, lado a lado com amores proletários e pequeno-burgueses, circulam, invariavelmente, marqueses e marquesas. Além disso, não acho muito útil a distinção entre prazer auroral e crepuscular. O primeiro está presente tanto em Thérèse philosophe, do marquês d’Argens, como no Faublas, do burguês Louvet. E nada mais “crepuscular” que o ambiente de romance negro do Paysan perverti, escrito por um tipógrafo.
E, no entanto, creio que no conjunto Starobinski tem razão. Sua tese é mais fiel à realidade que a de Mauzy. Pois ela faz justiça ao fato óbvio de que os autores libertinos não eram apenas nobres, como d’Argens, Mirabeau e Choderlos de Laclos, mas burgueses, como Louvet, Duclos, Crébillon Filho e Rétif.
Podemos partir dessa dualidade para responder às perguntas que acabo de formular.
Para os autores libertinos de origem burguesa, a relação com as ideias da Ilustração era natural e espontânea. Ela era, simplesmente, a ideologia de sua classe. Incorporando essas ideias em seus romances, os autores eram impulsionados por “afinidades eletivas” praticamente irresistíveis.
Mas a absorção desses valores por parte dos autores libertinos de origem aristocrática não tinha, tampouco, nada de extraordinário. Toda a nobreza letrada da Europa era iluminista, em maior ou menor grau. O século XVIII foi a época em que Voltaire era amigo de duques, como d’Argenson, e conselheiro de reis, como Frederico; em que Diderot se correspondia com Catarina; em que Rousseau era comensal do duque de Luxemburgo e objeto de um culto religioso por parte do marquês de Girardin. Era um mundo em que todos os grandes (ou quase) eram livres pensadores, e todos os filósofos (ou quase) frequentavam salões aristocráticos.
Nossa primeira pergunta está respondida, com uma singeleza suspeita. A homologia entre a literatura libertina em geral e o pensamento da Ilustração vinha, simplesmente, do fato de que os autores libertinos eram, ou “espontaneamente” iluministas, quando de origem burguesa, ou iluministas por formação, por convívio mundano ou talvez por cálculo, quando de origem nobre.
Mas a aliança intelectual da aristocracia culta com a burguesia filosófica dependia em grande parte das relações materiais que a sustentavam: uma coligação de fato entre as duas classes. Num certo momento, com efeito, parecia haver uma comunhão de interesses entre a burguesia e uma parte da nobreza, unidas contra um inimigo comum: o poder absoluto do rei, que impedia ambas de exercer qualquer influência efetiva na direção do Estado.
Na primeira fase da revolução, essa solidariedade parecia mais forte do que nunca, o que explica a enorme participação da nobreza no início do processo revolucionário. Lafayette e o duque d’Orléans ajudaram a preparar a revolução. Dos 54 presidentes da Constituinte, 33 pertenciam à nobreza. A presidência do clube dos jacobinos foi exercida por um duque d’Aiguillon, um Alexandre de Bauharnais, um Victor de Broglie.
Porém, na hora da verdade — a segunda fase da Revolução, que não se limitou a atacar o centralismo de Versalhes e o “despotismo ministerial”, mas destruiu a própria base do sistema de privilégios — as duas classes seguiram caminhos separados. Os duques voltairianos foram ser voltairianos em Coblença e Londres, e os burgueses que tiveram prudência de não se envolver nem com a Gironda nem com a Montanha ficaram na França, administrando os bens nacionais confiscados aos duques voltairianos.
A crise da aliança social entre as duas classes repercutiu diferentemente na atitude de suas camadas cultas com relação às ideias da Ilustração.
Os intelectuais burgueses, e os que desde o início se identificaram sem reservas com o Terceiro-Estado, como Condorcet, viram na Revolução a concretização de todos os ideais iluministas. Sua fidelidade ao pensamento das Luzes se tornou ainda mais apaixonada.
O mesmo não ocorreu nos de origem aristocrática. Sua relação com as Luzes desde sempre esteve atravessada por uma tensão latente, porque, afinal, a pregação iluminista, por mais sedutora que fosse, correspondia a uma visada de classe e a um projeto político que podiam coincidir conjunturalmente com os interesses da nobreza, mas não eram os da nobreza. Com a revolução, essa latência se atualizou. O processo revolucionário não destruiu os vínculos intelectuais que uniam a aristocracia culta à Ilustração, mas os perturbou. Ela não podia nem negar as ideias das Luzes, porque tinha se formado nelas, nem aceitá-las, porque tinham se encarnado numa revolução que a expropriava, condenando-a à guilhotina e ao exílio. Essa ambivalência se manifesta num nobre emigrado como Chateaubriand, por um lado contrário às ideias que tinham influenciado os “regicidas”, e por outro lado adepto de Rousseau e conhecedor razoável da literatura política do século XVIII, o que explica as posições parcialmente liberais que ele assumiria durante a Restauração.
As mesmas influências agiram sobre os autores libertinos.
Nos de origem burguesa, os nexos com a Ilustração se reforçaram no período revolucionário. É um nexo fortíssimo em Louvet, cujo Faublas, publicado em 1790, contém elogios exaltados da filosofia das Luzes, e em Rétif, cujas Noites revolucionárias são inteiramente impregnadas pelas ideias políticas do seu século. O mesmo se aplica ao nobre déclassé de Aix, Mirabeau, totalmente identificado com a causa burguesa, que publicou um ano antes dos Estados Gerais um romance libertino classicamente iluminista — L’ éducation de Laure.
O libertinismo de Sade, por outro lado, corresponde à crise do pensamento aristocrático com relação às Luzes. Sua ambivalência é a exata expressão da ambivalência dos estratos cultos da nobreza. Ele aceita a Ilustração como intelectual, porque ela era o ar que se respirava em toda a Europa civilizada. Mas a rejeita como representante de sua casta, que a Ilustração ajudara a destruir, instilando na Revolução os seus ideais igualitários.
Podemos agora responder à nossa segunda pergunta. A disjunção parcial que caracteriza o libertinismo “sádico” traduz o dilema de uma nobreza culta que passou pela experiência da Revolução, e que não pode nem renunciar aos modelos intelectuais da Ilustração nem endossar seus ideais. Mais sensível que outros aristocratas, Sade antecipou os riscos da filosofia das Luzes ainda antes da Revolução, pois os 120 dias de Sodoma foram escritos na Bastilha, nos últimos espasmos do antigo regime. Mas é característico que todas as suas grandes obras, nas quais transparece sistematicamente sua atitude ambígua com relação às Luzes, tenham sido publicadas depois da Revolução: Justine em 1791, Aline et Valcour e La philosophe dans le boudoir em 1795, e Juliette em 1797.
Dito isto, é preciso relativizar imediatamente essa interpretação. Como tantas outras explicações sociológicas, esta atinge muito cedo os seus limites. Ela explica o porquê, mas não o como. Deixa sem resposta duas perguntas: por que Sade precisava apoiar as Luzes dessa maneira, e por que precisava combatê-las dessa maneira.
Ele apoiou a Ilustração com uma intensidade sui generis , superior à da maioria dos intelectuais da nobreza. Talvez haja para isso uma simples razão biográfica: ele detestava o antigo regime, porque fora ele que o tinha aprisionado em Vincennes, na Bastilha e em Charenton, e por isso ele aderiu, em parte, à Revolução. Suas afinidades com as Luzes são assim sobredeterminadas: como outros nobres ele as valorizava porque lhes devia sua formação intelectual, e as valorizava, como indivíduo, porque tinham ajudado a preparar a queda do regime odiado. Nisso seu itinerário se parece com o de Mirabeau, cuja aversão ao despotismo e cujo entusiasmo pelas ideias iluministas podem dever-se em parte à circunstância de que também ele foi uma vítima frequente das lettres de cachet.
Igualmente sui generis foi a violência com que Sade combateu as Luzes. Sabemos, pela explicação sociológica, por que ele precisava rejeitar a Ilustração. Mas não sabemos por que ele precisava rejeitá-la assim: advogando a crueldade, a tortura, o assassinato.
A psiquiatria pode ajudar-nos, em parte, a preencher essa lacuna: Sade era um doente mental, vítima da enfermidade a que ele deu seu nome.
Mas essa explicação não diz por que Sade tinha que exercer essa violência no plano do pensamento, e não apenas nas catacumbas de um castelo feudal. A única explicação válida teria que ser interna, evitando os dois reducionismos, o sociologista e o psicologista.
Creio que a resposta teria de ser mais ou menos a seguinte: Sade, homem das Luzes, negou as Luzes dessa maneira, precisamente por ser um homem das Luzes. Sendo um homem das Luzes, não podia recorrer, em sua negação, a recursos extraídos do passado medieval e do dogmatismo religioso, como o tradicionalista Joseph de Maistre. Ele só podia agredir a Ilustração recorrendo aos argumentos racionalistas da Ilustração. Ele não tinha o recurso de atacar a moralidade da Ilustração dizendo que toda moral precisa de fundamentos religiosos. Em consequência, ele a atacou a partir dos próprios pressupostos seculares da Ilustração, numa reductio ad absurdum do eudemonismo, do relativismo e do utilitarismo das Luzes. Ele não podia refutar o ideal da liberdade da Ilustração recorrendo à teoria do direito divino. Por isso, ele o refutou a partir de uma concepção puramente humana de liberdade, embora não fosse uma liberdade para todos, e sim para os indivíduos excepcionais: os libertinos soberanos. Não podia rejeitar o igualitarismo da Ilustração invocando velhos modelos hierárquicos de sociedade: ele o rejeita aceitando o princípio iluminista de que à luz da natureza todos os homens são iguais, mas extraindo dele a consequência de que, todos os homens sendo iguais, nenhum deles pode alegar qualquer privilégio ou imunidade diante do poder.
Podemos refutar uma certa concepção de virtude, igualdade e liberdade, sem com isso negar a virtude, a igualdade e a liberdade, se dispusermos de outra concepção, radicada em outro quadro de referência. Sade não dispunha de nenhum quadro de referência externo à Ilustração. Em consequência, negando a maneira pela qual a Ilustração concebia esses valores, ele negava os próprios valores — porque não havia outra maneira de concebê-los. Aplicada a si mesma, a Ilustração se autocancela. A autonegação da virtude é o crime, a autonegação da igualdade é a hierarquia, a autonegação da liberdade é a tirania. Terminada a guerra de extermínio, conduzida com uma implacabilidade verdadeiramente sádica, pela qual a Ilustração aniquila a Ilustração, só restam, no campo de batalha, cadáveres e torsos mutilados. Os valores da Ilustração, destruídos por ela mesma, se transformam em antivalores: são os de Sade.
IV
Qual o balanço desses cruzamentos entre a literatura libertina e a filosófica?
A literatura libertina clássica foi um valiosíssimo instrumento de irradiação das ideias iluministas. Sem a colaboração dos autores libertinos, nobres e burgueses, é possível que a batalha da Ilustração não tivesse sido ganha.
Mas a novela libertina não teve apenas essa função utilitária. Ela corrigiu, com sua ligeireza, a seriedade às vezes asfixiante do pensamento filosófico. A Ilustração tinha tanta pressa de mudar o mundo, que às vezes não compreendia a necessidade de mudar a vida. No parque geométrico da Ilustração, com seus jardins de Le Nôtre e seus severos bustos de mármore, os libertinos criaram, no meio do lago, uma ilha de Citera, com ninfas eternamente disponíveis e fontes de leite e de mel que não cessavam de jorrar. O parque é necessário, porque sem ele não podemos refletir, mas a ilha não deve ser destruída, porque sem ela não podemos viver. Em sua simbiose com a Ilustração, a literatura libertina mostrou que nenhuma reconstrução futura do Iluminismo pode abrir mão da unidade do saber e do prazer. Em sua aderência obstinada ao século XVIII, no qual ela se movia com soberana desenvoltura, a literatura libertina acaba transcendendo esses limites temporais, transformando-se numa utopia, ainda válida para nosso presente: a utopia do mundo pacificado, où tout est luxe, calme et volupté.
Sade teve o mérito nada negligenciável de mostrar, indiretamente, alguns limites da Ilustração. Sua igualdade era formal, e sua liberdade não era para todos. As monstruosas fantasias hierárquicas e totalitárias do universo de Sade de certo modo caricaturam essas insuficiências. São um espelho deformante estendido a Ariel para que ele se reconheça como Calibã. Se ele tivesse se limitado a esse gesto, poderia ser incluído, apesar de tudo, na tradição iluminista. Teria confrontado a Ilustração com seus pressupostos universalistas, demonstrando que ela não poderia, sem contradizer-se, visar a uma emancipação apenas parcial do gênero humano. Teria feito uma crítica das Luzes a partir das Luzes. Em vez disso, fez uma negação das Luzes a partir das Luzes. Com isso, ele criou um mundo libertino radicalmente contra-iluminista.
Também esse mundo aponta além dos seus limites. É o mundo da regulamentação total, em que as unidades de prazer são tão quantificáveis como as unidades de energia, em que todos os homens são subjugados pelos aparelhos, em que todos os aparelhos obedecem ao desejo de um só: o mundo do Estado onipotente, o mundo de Auschwitz. Conhecemos o soberano, de Sade, e conhecemos suas vítimas. Somos contemporâneos dos seus massacres. O castelo de Silling, com seus calabouços e suas câmaras de tortura, ainda não foi demolido. Também o universo de Sade sai do século XVIII, e nos confronta com uma porno-utopia, a utopia negativa do terror contra-iluminista.
O Iluminismo contemporâneo acolhe a utopia do prazer e rejeita a do poder. Seu verdadeiro modelo é o libertinismo integral, anterior à dispersão que o conceito sofreu no século XVIII: a unidade da razão e da paixão, um Eros sábio, um logos apaixonado. O libertino volta a ser sinônimo de homem livre, e o libertinismo se confunde com o Iluminismo, que significa liberdade — liberdade da razão, do sentimento e dos sentidos.