O despotismo democrático, sem medo e sem Oriente
por Marcelo Jasmin
Resumo
O medo acompanhou a teoria política ocidental desde, pelo menos, as guerras de religião que resultaram do movimento da reforma protestante. A insegurança generalizada que se seguiu à cisão do Deus até então único espraiou-se na forma da guerra, não mais entre monarcas ou Estados, mas entre seres humanos, crentes, cada um, da verdade de seu Deus. Hobbes expressou com maestria, no âmbito da teoria, tais sentimentos, dando-lhes uma produtividade racional até então inédita. O medo da morte violenta, endêmico ao estado de natureza onde inexiste ordem, leva ao paroxismo o sentimento da insegurança, viabilizando a decisão coletiva da delegação da soberania de cada um para o Leviatã, único garantidor da paz e da tranquilidade social. Diferente dos usos tradicionais do medo pela teoria política – nos quais se opunha à virtude cardeal da coragem –, em Hobbes o medo aparece como um operador positivo, criador da ordem, propulsor de civilidade.
Outro será o juízo de Montesquieu quando impuser ao leitor de O espírito das leis a convicção de que o medo é o princípio que anima o despotismo, forma degenerada, ignorante e imoderada do político. É verdade que, como em Hobbes, o medo está na origem da tranquilidade social despótica em Montesquieu, mas este insiste em distinguir tranquilidade de paz. A tranquilidade social, forma perversa da segurança que oculta a sua fragilidade constitutiva, assegura-se pelo silêncio, pela eliminação da opinião, do saber, do querer saber, da voz. É por isso que Montesquieu, mantendo-se numa tradição que remonta a Aristóteles, trata como exemplares os turcos, os maometanos, os habitantes daquela parte do mundo em que “o despotismo está, por assim dizer, naturalizado, que é a Ásia”, enfim, os Outros do Ocidente grego e cristão. Pois à natureza livre do ocidental não poderia ser adequada a ordem do silêncio.
É dessa certeza que Tocqueville irá duvidar ao propor a novidade ocidental de um despotismo democrático, forma inédita da dominação que associa liberdades civis e governo representativo à tranquilidade e ao silêncio sociais. Aqui, o medo não é aquele do escravo em relação ao poder despótico do senhor, mas é o medo burguês da revolução e da alteração no usufruto regular e satisfeito do bem-estar no âmbito da vida privada. Para Tocqueville, a nova forma da necessidade da segurança intrínseca às sociedades democráticas modernas traz consigo o risco de inverter as tendências até então consideradas naturais pela tradição: o silêncio das cidades se oferece em troca da segurança; e o despotismo pode, então, florescer no Ocidente.
Como o princípio do despotismo é o medo, o objetivo é a tranquilidade, mas isto não é absolutamente uma paz: é o silêncio das cidades que o inimigo está prestes a ocupar.
Montesquieu
Para escapar à barafunda e ao medo que este tema provoca em mim, resolvi abordar aqui o porto que me pareceu mais seguro, mas não menos instigante: a história da teoria política, com a qual venho alimentando minhas fantasias, em parte com certeza para reduzir, na minha pequena morada, o espaço que o medo insiste em ocupar. Falarei a vocês, então, de três momentos significativos dessa história entre os séculos XVII e XIX, e que, acredito, são relevantes para pensarmos o medo hoje: falo das obras de Thomas Hobbes, do barão de Montesquieu e de Alexis de Tocqueville.[1]
Não se trata de um exercício de erudição, nem da tentativa, que embora seja tentadora não me parece crível, de aplicar imediatamente ao mundo contemporâneo as elaborações desses autores já clássicos. Trata-se, certamente, de uma leitura, de uma recepção, de uma apropriação interessada no nosso tempo de agora, e isso me parece inescapável. Mas penso que essas obras nos fornecem menos teorias para serem aplicadas aqui e agora do que argumentos que nos fazem pensar e continuar pensando, aqui e agora como mais adiante. Essas obras também nos constituem como sujeitos contemporâneos, e acho que qualquer exercício hermenêutico ou introspectivo, informado pela tradição, nos levaria a reconhecer que muitas das coisas que consideramos naturais em nós, no mundo à nossa volta e em nossos contemporâneos derivam da rotinização, pelas práticas sociais, institucionais e cotidianas, de algumas dessas formulações.
Esse recorte, como aliás qualquer outro, nos inscreve numa parte específica da discussão. Lido com uma das facetas possíveis do medo, o medo público ou político, no sentido de que vou tratar apenas de medos que foram pensados em suas implicações para a constituição da vida pública, na produção de consequências coletivas e de alcance social. Logo, trata-se de uma redução.
HOBBES E O MEDO RACIONAL
O primeiro desses autores, obras, momentos de reflexão política é Thomas Hobbes. Não vou me estender muito sobre o seu pensamento porque há uma sessão dedicada a ele, especificamente, neste livro. Mas não poderia deixar de me referir, e com ênfase, à sua obra, porque ela é o símbolo da ruptura que a modernidade operou em relação ao tratamento tradicional do medo.[2]
A SAÍDA DO ESTADO DE NATUREZA
O argumento básico de Hobbes é bastante conhecido e parte de um construto teórico que é o estado de natureza, uma metáfora que imagina como seria a vida dos homens se eles não vivessem em sociedade. Em estado de natureza, os homens não estão submetidos a qualquer instituição ou ordenamento superior a si, de modo que são iguais, tanto em força física como em espírito. O que significa também dizer: são igualmente aptos a matar e, por isso mesmo, vivem a ameaça de um estado caótico, de anomia total, de ausência de regras comuns, e cuja expressão mais aguda é a guerra de todos contra todos. Dadas as paixões caracterizam a natureza humana, a cupidez de uns, a insegurança de outros, a desconfiança de muitos em relação aos demais, e o conflito generalizado em contexto de ausência de um poder capaz de estabelecer a ordem nas leis e nos valores, de dizer o que é certo e o que é errado, de legislar e garantir o cumprimento da lei pela força, dada essa situação caótica, a paz social não é possível.
É por isso que, ao se darem conta do perigo comum em que se encontram, os indivíduos tomam coletiva e simultaneamente a decisão racional e unânime de saírem do estado natural para entrarem no estado civil. Para isso, diz Hobbes, torna-se necessária a criação de um poder indivisível que seja capaz de “conter o que há de mais perigoso nas relações humanas”: é o poder do Estado, que receberá o nome bíblico de Leviatã.
Trata-se de um cálculo: como ninguém se sente seguro na igualdade da capacidade de matar e do risco iminente de morrer pela violência alheia, todos abrem mão de sua liberdade natural — vale dizer, de sua soberania — e a trocam pela segurança do Leviatã. Poderíamos, certamente, nos perguntar se não há nuanças nessa igualdade, pois, afinal, nem todos são igualmente iguais no estado de natureza: os que têm a perder outros bens e afetos além da própria vida parecem ter especial interesse nessa segurança e nessa proteção. Mas isso nos levaria longe pelas ricas possibilidades da interpretação e preferimos nos restringir ao argumento mais universal que coloca no centro da decisão a paixão natural da autopreservação da vida.
O MEDO RACIONAL
No centro dessa construção metafórica do nascimento do Estado ou da revitalização da ordem política encontramos, então, o medo. Mas vamos com calma aqui. Como esclarece Renato Janine Ribeiro,[3] em argumento apresentado em outro seminário organizado por Adauto Novaes, o medo no Leviatã de Hobbes não é um só, são muitos. Pelo menos três tipos de medo se distinguem na obra do inglês: o medo da morte violenta no estado de guerra generalizada (o medo que temos uns dos outros quando não há poder capaz de manter todos em respeito); o medo em relação ao poder do Estado instituído (o medo que os súditos têm do governante quando este edita leis e dá ordens que devem ser cumpridas); e o medo da morte, mesmo a natural, sempre misturado ao medo do que vem depois da morte (e que engendra a religião).
Interessa-nos aqui o primeiro, o medo da morte violenta, do assassinato causado pela ausência de impedimento à ação desejosa, cúpida ou criminosa. Porque, para Hobbes, é esse o medo que permite a saída da barbárie e a entrada na civilização. Note-se que não se trata de uma paixão irracional que, tomando a multidão em pânico, produz a loucura, a histeria ou outras formas de comportamento coletivo temerário, como aqueles que encontramos narrados por Georges Lefebvre no seu clássico livro O grande medo.
UMA SOLUÇÃO PARA ALÉM DO PLURALISMO MORAL
Pelo contrário. Trata-se de um medo produtor de racionalidade, de um impulso que, ao colocar em xeque um bem essencial, a vida, leva os indivíduos a ultrapassar as suas divergências morais e religiosas para fundar uma ordem política que garanta a todos a sobrevivência. Não esqueçamos que estamos numa época em que a massificação da morte violenta pelas guerras de religião impõe a reflexão sobre a autopreservação. Notem ainda que estamos em contexto moderno, quando a cisão e a pluralização do Deus católico prenuncia ou já manifesta a impossibilidade crescente de produzir acordo racional sobre os fundamentos da ordem moral. O certo e o errado, do ponto de vista da religião, foram obscurecidos e estão impedidos de universalidade. Os pensamentos não se congraçam na verdade; a guerra entre as perspectivas divergentes sobre a verdade tornou-se endêmica. Mas o genial Thomas Hobbes encontra numa paixão a potencialidade — a necessidade mesmo — que impulsiona os indivíduos a concordar entre si, por recurso à razão, sobre a melhor alternativa para a paz, a despeito de todas as suas demais divergências acerca do bem e do mal. De modo tal que é o medo da morte violenta, do risco da guerra de todos contra todos o que constitui o estado civil. É o medo o que se encontra na origem da garantia da ordem social e da proteção pública da vida.
E é por isso que Hobbes é tão revolucionário. Se a tradição política clássica concebera o medo como paixão degenerada associada à covardia, oposta às virtudes cardeais da coragem e da fortaleza, Hobbes confere-lhe uma dignidade racional superior que é a de condição necessária e propulsora da vida civilizada, ordenada, regulada por leis. Sem o medo não se poderia viver em sociedade, não haveria garantias legais, não haveria proteção, não haveria paz.
A SOBERANIA ÚNICA
Entretanto, essa positividade racional do medo não elimina, a meu ver, o caráter temerário e intrigante da teoria política de Hobbes. Especialmente se nos lembrarmos que o contrato social hobbesiano exige que todos os indivíduos abram mão da soberania que lhes era própria no estado de natureza para delegá-la, conjuntamente e de uma só vez, ao Leviatã. Troca-se a soberania natural pela segurança social; transfere-se para o governante a responsabilidade de ditar os destinos públicos de cada um. O quadro torna-se ainda mais agudo quando lembramos que Hobbes defende uma noção forte ou da soberania única, de modo que cabe ao governante, como soberano exclusivo, a condução das almas naquilo que diz respeito ao público, ao bem comum. Como afirma o conhecido emblema hobbesiano, é a força do soberano que é capaz de produzir a lei, a definição pública do certo e do errado.
MONTESQUIEU E O MEDO COMO A PAIXÃO DO DESPOTISMO
Muita coisa se disse sobre aquilo que Hobbes realmente pretendeu fazer com a sua teoria, com o seu Leviatã. Mas, a despeito de outras leituras possíveis, a defesa da exclusividade da soberania pelo governante fez com que a tradição política ocidental reservasse ao autor do Leviatã o título de principal teórico do absolutismo. E, por um conjunto de operações e deslocamentos de leitura e de recepção da sua obra, a associação intrínseca entre medo e poder político tornou-se o fundamento essencial de sua teoria.
A REDUÇÃO DO MEDO NO POLÍTICO: O ISOLAMENTO NO DESPOTISMO
Ora, é justamente essa conexão entre a paixão anteriormente denegrida, e agora regenerada em sua racionalidade, e a imagem de um poder político absoluto, isto é, sem limites senão a própria vontade do governante, que será objeto da crítica política de Montesquieu em O espírito das leis.[4] Para o aristocrata francês, é verdadeira a afirmação de que há uma conexão efetiva entre o medo e o poder absoluto, assim como também considera verdadeiro que boa parte da população mundial viva sob uma relação política dessa natureza. Mas Montesquieu operará uma virada decisiva na interpretação do medo.
Em primeiro lugar, insistirá que a presença do medo como fundamento do poder político é apenas uma possibilidade entre três. Para isso, Montesquieu retoma a clássica separação entre as formas de governo e produz uma nova teoria que afirma existirem três formas básicas: a república, a monarquia e o despotismo. Essas formas distinguem-se tanto por sua natureza como por seu princípio. A natureza é compreendida como a relação entre o número dos que governam e sua submissão ou não submissão à força das leis. Assim, a república é uma forma de governo segundo as leis, que pode ser tanto o governo de todos — a democracia — ou o de muitos — a aristocracia. A monarquia é a forma do governo de um, sob as leis. E o despotismo, o poder arbitrário e exclusivo de um só.
Mais importante, entretanto, é que Montesquieu atribuirá a cada uma dessas formas o que ele chamará o seu princípio, que é uma espécie de anima, daquilo que a faz viver e mover-se. A república é animada pela virtude cívica, pelo amor da pátria, e sem ela não pode sobreviver, pois se corrompe. A monarquia, por sua vez, anima-se pela honra, pelo amor próprio, de cunho aristocrático. E o despotismo está fundado no princípio do medo, no amor de si, que se associa à autopreservação. Aqui encontramos a primeira parte da operação teórica de Montesquieu, que isola o medo como princípio de apenas uma entre as formas possíveis do governo, o despotismo, forma caracterizada pelo poder absoluto de um só. Diferentemente de Hobbes, que considerava estar o medo na origem de todo poder político, Montesquieu faz dele o fundamento teórico de apenas uma forma específica.
O ISOLAMENTO ASIÁTICO
Mas há uma segunda operação de especificação que é ainda mais interessante para o nosso tema. Remontando a uma tradição que é pelo menos aristotélica, Montesquieu atribuirá ao despotismo uma base histórica e geográfica, dita genericamente “o Oriente”. Quer dizer, há uma segunda operação de isolamento do medo — geográfica e cultural — que suplementa a primeira (teórica), e que resulta na afirmação de que o medo, como fundamento do poder político, só existe em uma das três possibilidades de ordenamento estatal e que esta possibilidade se realiza historicamente no mundo dos turcos, ou dos chineses, do grão-mongol, dos persas etc.; enfim, genericamente, no que foi chamado “a Ásia”. Dito em negativo, o medo não é o princípio de qualquer forma ocidental de governo.
O PROJETO CIENTÍFICO
Para que essas duas operações sejam compreendidas em sua gravidade, quero acrescentar o dado fundamental de que o que a teoria de Montesquieu busca é estabelecer as relações necessárias entre a natureza e o princípio das formas de governo. Em outras palavras, não se trata de verificar as possibilidades da vontade e da decisão humanas na escolha da sua forma de governo, mas de afirmar, com um ar científico, que a existência de determinada forma de governo depende da presença de um espírito que a anima naturalmente, isto é, não está ao alcance dos homens escolhê-lo ou rejeitá-lo livremente. O espírito está lá, dado, constituído pela geografia e pelas condições de vida de um povo, de tal modo que o dispõe a se comportar de certos modos e não de outros e o faz “tender naturalmente” para certas formas de governo e não para outras. Há em Montesquieu um determinismo novo, científico, de vocação “newtoniana”, de encontrar as causas, as leis que regem o universo político. E leis aqui no sentido de “relação necessária entre a natureza das coisas”, que é a própria definição que Montesquieu nos dá da lei; não como a lei-mandamento, a lei do legislador, mas a lei do físico, do cientista. Do mesmo modo que Newton foi capaz de formalizar a lei da gravidade, que estabelece que os corpos se atraem na proporção direta das suas massas e na proporção inversa de sua distância independentemente da vontade desses corpos, Montesquieu parece querer encontrar as leis inescapáveis que explicam a conformação da vida política e social.
O DILEMA ENTRE CIÊNCIA E ÉTICA
Sei bem que estou forçando as tintas para uma das possibilidades interpretativas da obra do barão, e sei também que o seu projeto não é tão claro e sem tensões como o estou expondo aqui. Mas o que me interessa nesse viés é justamente sublinhar a novidade da sua teoria política: a relação entre o medo e o despotismo é da ordem das razões naturais, o que equivale a dizer que a forma despótica encontra a sua legitimidade científica, embora não moral, no seu fundamento necessário. Aqui se explicita uma tensão no interior mesmo do conceito de razão: por um lado, o despotismo pode ser visto como racional na medida em que corresponde a uma necessidade do real e, nesse sentido, estaríamos operando uma aproximação com a futura concepção de Hegel, um século após, de que o real é racional; mas, por outro lado, a razão iluminista se recusará a considerar racional uma forma que se caracteriza pela arbitrariedade do senhor, aproximando-a das noções de obscurantismo, irracionalidade ou fundamentalismo, como diriam hoje os detratores do Islã. Se há racionalidade causal no âmbito dos fatos, quer dizer, da relação entre despotismo e medo, não há racionalidade moral, espiritual, normativa, numa forma despótica.
O SUBSTANTIVO DESPOTISMO: ARISTÓTELES E O DÉSPOTA
Veremos já como Montesquieu tenta resolver esse dilema. Mas antes quero chamar a atenção para algo que até aqui está desapercebido. Estamos falando de despotismo, assim no substantivo, como se essa fosse uma palavra frequente e comum na tradição. Mas não o era: denominar com o substantivo despotismo uma forma de governo é outra novidade da teoria de Montesquieu. Pois em Aristóteles, e nas concepções dele derivadas até o século XVIII, fala-se de poder despótico para referir-se a uma deformação do poder político que trata os súditos como escravos.
Sabemos que Aristóteles separara, na Política, as formas do poder pela sua diferença específica: o poder dos magistrados, do rei, do pai de família e do senhor de escravos. E é a este último que o adjetivo despótico se impôs originalmente. O déspota é o senhor de escravos. Mas não há o substantivo despotismo, muito menos referido a uma forma política estável. Vale lembrar que o senhor de escravos, na teoria aristotélica, está associado ao domínio doméstico, ao oikos, e não ao âmbito politico, à polis. Pois só há relações propriamente políticas entre homens livres na cidade, e a relação despótica entre senhor e escravos é marcada pela assimetria entre um que é livre e os demais que são privados de liberdade. Nesse sentido, o poder despótico é, por natureza, doméstico. “É claro”, diz Aristóteles no livro I da Política, “que o poder despótico e o poder político não são a mesma coisa e que […] os poderes não se confundem com um só: um diz respeito aos homens livres, o outro a escravos por natureza”.[5]
Seria aqui impossível mostrar o que Aristóteles supõe quando diz “escravos por natureza”. Mas podemos reter a noção básica de que ser algo por natureza significa que se o é independentemente de se saber que é. Ou, dito de modo mais formal, que o saber não produz diferença no que se é. Isto é importantíssimo se quisermos compreender as novidades trazidas por Montesquieu e também por Tocqueville um século depois.
Para Aristóteles, seria impróprio falarmos rigorosamente de um poder político despótico, mas a eventual transposição do adjetivo despótico para o campo do político pôde se fazer para denunciar situações anômalas. A mobilização analógica do adjetivo do campo do oikos para o da polis se fez justamente para criticar a deformação de um poder que, embora se apresente como político, opera apenas para o bem-estar do governante, isto é, privadamente. Afinal, esta é uma característica do senhor que goza do seu poder sobre os escravos em benefício próprio. Diz o mesmo Aristóteles: “A tirania é uma monarquia governada no interesse do monarca, a oligarquia é governada no interesse dos ricos, e a democracia no interesse dos pobres; mas nenhum desses regimes se ocupa do bem comum”.[6] Estas são formas despóticas, degeneradas do político que nelas é tratado como se fosse doméstico.
Embora o substantivo despotismo aqui não apareça, a noção de poder despótico está sempre associada à corrupção do político, ao tratamento dos súditos pelo governante como análogo àquele dos escravos pelo senhor. Por isso mesmo, o despotismo como uma forma estável do político, como tirania pura, digamos assim, não é concebível para Aristóteles, pois nesse caso estaríamos falando do apolítico, do não-político ou mesmo do contrário à natureza do político. A tirania pura pode existir como fenômeno, mas não há mais nada de político aí.
A NATUREZA SERVIL DO ORIENTE: JUSTIFICATIVA DO DESPOTISMO
Resta, contudo, outra possibilidade para se pensar um poder despótico na Política de Aristóteles: ela está em se demonstrar que a escravidão é a natureza própria de certos homens. E é justamente isto o que Aristóteles supõe encontrar entre povos da Ásia, que, por seu caráter servil, aceitariam o poder despótico “sem nenhuma vergonha”.[7] Aqui se enuncia a ideia do despotismo asiático, embora o conceito não esteja presente: aqueles povos, incapazes do político, vivem sob relações domésticas mesmo quando fora do estrito domínio do privado. “As populações asiáticas [embora] finas e industriosas [são] desprovidas de coragem [e por isso] passam a sua vida na dependência e na escravidão”.[8]
É essa noção que será recuperada pelo século XVI ocidental para referir-se ao Império Otomano. É o grão-turco que Jean Bodin vai se referir para falar de uma monarquia de natureza senhorial. É “nele que Montesquieu pensará – como representativo por excelência dos regimes da Ásia – ao introduzir o substantivo ‘despotismo’ no Espírito das leis para designar uma forma específica de governo “.[9]
De fato, há certa continuidade entre a perspectiva aristotélica e a forma pela qual Montesquieu resolverá aquele dilema anteriormente referido entre uma necessidade dos fatos que legitimaria o despotismo como forma de governo e a resistência ética e política em aceitá-lo como tal. A natureza humana, como pensada no Ocidente, de gregos a franceses, foi sempre considerada livre. Por isso mesmo, as formas despóticas do poder político foram encaradas como provisórias, temporárias, interregnos entre os momentos de liberdade, estes sim considerados verdadeiramente políticos. Mas ao encontrarem uma natureza humana modificada em relação a essa definição tradicional, tanto Aristóteles como Montesquieu acabam explicando, e justificando teoricamente, a presença do despotismo.
Tal continuidade, porém, tem limites: para Aristóteles há escravos por natureza; para Montesquieu só os há por razões naturais, na verdade físicas, o que não é a mesma coisa. Para Montesquieu, e para o iluminismo em geral, a escravidão é anti-natural. Nesse registro do século XVIII europeu, pensava-se a natureza humana como universalmente dotada de liberdade e de perfectibilidade, de tal modo que a qualquer membro da humanidade seria facultada a possibilidade de ultrapassar, pela via da razão, as origens corporais e instintivas da paixão. No entanto, há determinações físicas outras que, não sendo intrínsecas à natureza humana, operam efetivamente no mundo, limitando, dispondo, impondo comportamentos e circunstâncias aos homens, como é o caso, por exemplo, do clima e de sua influência nefasta no mundo asiático de Montesquieu.
Uma citação do extraordinário livro de Alain Grosrichard A estrutura do harém é muito útil aqui. Diz o autor:
De fato, enquanto em outros lugares o medo, como toda paixão, arraigado num instinto físico, tende continuamente a superar essa origem puramente física, na Ásia, ao contrário, toda paixão continua sendo essencialmente física, o que não significa natural. Como o amor, por exemplo: “Nos climas do norte, o aspecto físico do amor se manifesta discretamente; nos climas temperados, o amor se cerca de mil acessórios, torna-se atraente através de coisas que, não sendo ainda o próprio amor, dão a impressão, inicialmente, de sê-lo; nos climas mais quentes, ama-se o amor pelo próprio amor, como única causa de felicidade, ele é a vida”. Nestes últimos climas, “onde a emoção da alma é intensa por tudo o que se relaciona com a união dos dois sexos”, onde “tudo conduz a este fim”, a poligamia é uma instituição que se explica “por razões naturais”, visto que multiplica as possibilidades do homem satisfazer esta paixão. Ora, é isto justamente o que a destrói ou até chega a corrompê-la, pervertendo-a radicalmente: “A pluralidade de mulheres, quem o diria!, conduz a esse amor que a natureza rejeita […]”. A prova? “Na revolução de Constantinopla, quando o sultão Achmet foi deposto, os relatos diziam que ao saquear a casa do chiaya o povo não encontrou uma só mulher. Dizem que em Argel se chegou a tal ponto que a maioria dos serralhos não têm mulheres.” Uma dissolução, comenta Montesquieu, “leva sempre a uma outra”. Abandonada a si mesma, a paixão física conduz ao despotismo de um sexo sobre o outro e termina se corrompendo e se transformando em indiferença pelo outro sexo, e depois amor antinatural pelos objetos do mesmo sexo.
Acontece exatamente o mesmo com o medo, essa outra paixão fundamental. Se o medo se corrompe continuamente na Ásia, não é devido à coragem natural dos asiáticos. O clima, que esmorece as suas fibras, os torna, ao contrário, “tímidos como velhos”, exageradamente sensíveis à mínima ameaça de perigo. Assim, são naturalmente feitos para serem escravos. A escravidão lhes é tão natural que o déspota já não precisa mais do medo para ser obedecido. O hábito é suficiente, prolongando em apatia uma educação que, servindo-se inicialmente do medo físico, reduz-se às simples técnicas do adestramento animal: corrupção da paixão em apatia.[10]
É curioso observar que mesmo uma paixão tida como degenerada, como é a paixão do medo, também se corrompe e acaba substituída por uma forma de apatia, a tal ponto que se torna supérfluo à dominação despótica o princípio que a animava. Daí a tranquilidade do déspota que pode reinar sobre o silêncio dos súditos. Mas não se trata de um mundo de paz social, de satisfação de todos ou de muitos; trata-se de um silêncio derivado da repressão de si, da desistência, da fadiga do medo já extenuado. Como resume o próprio Montesquieu no texto que serve de epígrafe para a nossa palestra: “Como o princípio do despotismo é o medo, o objetivo é a tranquilidade; mas isso não é absolutamente uma paz: é o silêncio das cidades que o inimigo está prestes a ocupar”.
TOCQUEVILLE E O DESPOTISMO SEM MEDO NO OCIDENTE
Aqui se enuncia uma relação interessantíssima entre despotismo, apatia e silêncio que eu gostaria de sublinhar, dado que permanecerá ativa na imaginação oitocentista do marasmo asiático e será apropriada de um modo totalmente novo pelo nosso terceiro autor, Alexis de Tocqueville.[11]
A PERMANÊNCIA DO IMAGINÁRIO “ORIENTAL” DO DESPOTISMO
Sem dúvida, o mesmo pano de fundo clássico que associa despotismo e Oriente continua informando a obra de Tocqueville, e o viés oriental do despotismo tocquevilleano pode ser apreendido claramente em uma das mais belas páginas que encontramos em suas notas sobre a Argélia, escritas em 1841, e que peço licença para citar integralmente:
Aspecto geral do país — 7-5-1841
Os franceses [colonizadores] substituem as pequenas ruelas tortuosas dos mouros pelas grandes ruas com arcadas. É uma necessidade da nossa civilização. Mas eles [os franceses] também substituem a arquitetura dos mouros pela sua, e fazem mal. Pois a arquitetura moura é muito apropriada à necessidade da região e, ainda por cima, é charmosa. A mais bela casa moura apresenta em seu lado de fora apenas um muro, sem qualquer outra abertura senão uma pequena porta com arco de abóbada.
Essa porta conduz a um vestíbulo sustentado por colunetas. Nesse vestíbulo temos uma escada que leva a um pátio quadrado cercado de galerias que são, por sua vez, sustentadas por colunas e arcadas. E o mesmo se repete em cada andar.
Todos os quartos dão para esse pátio cujo aspecto é tão arejado e elegante que eu não saberia descrevê-lo. Em todas as casas um pouco mais cuidadas as colunetas são de um mármore branco curiosamente esculpido, as bordas das arcadas também, e ornadas como grinaldas de renda.
O todo apresenta o aspecto da vida interior no seu mais alto grau. A arquitetura pinta as necessidades e os costumes: ela não é apenas o resultado do calor do clima; ela representa maravilhosamente o estado social e político das populações muçulmanas e orientais: a poligamia, o isolamento forçado das mulheres, a ausência de qualquer vida pública, um governo tirânico e suspicaz que força a esconder a vida [pública] e transfere todas as afeições do coração para o lado interior da família.[12]
Além do encanto arquitetônico com as casas mouras, é genial a percepção tocquevileana da arquitetura como tradução ou representação de aspectos centrais da vida social em que se inscreve. Como se vê, permanece a noção de que nesse “Oriente”, nesse mundo definido negativamente como não-cristão, a vida pública desapareceu ou nunca houve. As causas desta ausência também são atribuídas às especificidades dos costumes muçulmanos. O silêncio das ruas e das praças contrasta com a animação da vida privada confinada no interior dos pátios residenciais. Não é nas ruas, no espaço público, que se revela a vitalidade da vida social, mas no interior, no íntimo, no círculo traçado pelos muros da privacidade.
A CRÍTICA À TEORIA DO DESPOTISMO DE MONTESQUIEU
Certamente, encontramos nessas imagens os ecos das leituras de Montesquieu. Mas, para a nossa reflexão neste momento, interessa ainda mais chamar a atenção para as divergências entre os dois autores na caracterização do que anima o despotismo oriental. Segundo Tocqueville, Montesquieu cometia um erro não desprezível ao supor que o despotismo podia durar por uma capacidade sua, própria, de impor o medo e mantê-lo. Para o autor da. Democracia na América, esta suposição implicava o equívoco de prestar ao despotismo uma homenagem não merecida. Lê-se na Democracia: “O despotismo, por si só, nada mantém de durável. Quando olhamos de perto, vemos que foi a religião e não o medo o que permitiu que governos absolutos prosperassem por longo tempo”.[13] Tocqueville estava convencido de que não era o espírito do medo, mas o espírito de conformidade o elemento definidor tanto do que ele supunha ser o “estado estacionário do espírito humano”, como da fraqueza política e militar das civilizações orientais quando comparadas às europeias. Uma conformidade que não era derivada daquela rotinização do despotismo que, para Montesquieu, gerava apatia. Eram as características culturais das religiões do Oriente que forneciam, segundo Tocqueville, os elementos explicativos dessa forma específica da resignação: a imobilidade que acreditava existir na Índia adviria das leis religiosas do hinduísmo, e os seus estudos sobre o Corão faziam-no acreditar que o Islã estaria irremediavelmente petrificado por seu fatalismo religioso.
A RUPTURA COM A TRADIÇÃO
É fato que um tal distanciamento crítico em relação à teoria do medo de Montesquieu por si só não excluía a reflexão tocquevilleana do quadro tradicional que associava despotismo e Oriente. Mas sinalizava para uma ruptura teórica com o pensamento anterior. Pois, mesmo mantendo uma referência a esse imaginário “orientalizado”, Tocqueville teve a ousadia de propor que um quadro análogo — despotismo, apatia, silêncio e conformação — estava prestes a se realizar no universo cristão. E nisso, creio, está uma de suas principais conquistas teóricas: é o primeiro autor a formular explicitamente a viabilidade do despotismo como uma forma estável de dominação adequada ao Ocidente, àquele mundo até ali tido como o lugar da liberdade e da impossibilidade de uma tirania estável. E, para acentuar o caráter inédito dessa forma de opressão Tocqueville cunhou o provocativo termo despotismo democrático, aparentemente uma contradição em termos, mas que indicava, conscientemente, o caráter igualitário e não-livre da construção política que vislumbrava.
O novo despotismo não derivava do medo da morte violenta e da reação racional de uma natureza humana universal, tal como concebera Hobbes. Também não era fruto de condições climáticas ou físicas que conformariam a cultura política de um povo, como pensara Montesquieu. Para Tocqueville o novo despotismo seria produto das condições históricas e sociológicas particulares à modernidade que fazia dos indivíduos seres industriosos e ativos na sua vida privada, mas politicamente pusilânimes e ausentes da esfera pública, conformando-se ao comando de qualquer senhor que lhes prometesse a segurança e o usufruto tranquilo de seu bem-estar privado.
DEMOCRACIA E ARISTOCRACIA
Para compreendermos tal argumento seria necessário refazer o diagnóstico tocqueviliano da modernidade democrática, que reconstruo, a seguir, apenas em linhas gerais.[14]
Em primeiro lugar, devemos notar que o pensamento de Tocqueville opera sempre a partir da oposição conceitual entre democracia e aristocracia. Com o termo aristocracia, Tocqueville se refere às sociedades fundadas na desigualdade hierárquica de condições, aquele tipo de desigualdade de caráter orgânico, permanente e difuso que estrutura toda a vida social de modo irrevogável.[15] É o caso das sociedades escravistas ou da servidão medieval, em que as condições sociais de senhores e escravos, ou de nobres e plebeus, jamais se confundem. No polo conceitual oposto à aristocracia está a democracia, não como forma de governo como usualmente a concebemos, mas como uma forma de sociedade fundada no princípio da igualdade de condições sociais. Trata-se de uma sociedade na qual todos os postos e benesses são, ao menos teoricamente, acessíveis a qualquer um de seus membros.[16] Há desigualdades aí, mas elas devem ser ditas assim no plural para indicar que, diferentemente daquela desigualdade aristocrática, singular e estruturante, na democracia as desigualdades são revogáveis, temporárias ou específicas e podem ser modificadas pela ação dos indivíduos.
A oposição entre aristocracia e democracia indica também o sentido da história contemporânea. O século XIX — e lembremos que Tocqueville escreve, sempre, sob o impacto da Revolução Francesa, que destruiu parte de sua família e produziu consequências duradouras no seu espírito — vivenciava a ultrapassagem definitiva da sociedade das três ordens por um mundo novo no qual todos são, querem ser ou acreditam ser iguais. Trata-se de um processo histórico de longo curso, uma revolução democrática que reduz, progressivamente, a distância entre as condições sociais de nobres e plebeus. A sua expressão mais nítida estaria na nova sociedade que se desenvolveu na Nova Inglaterra e na qual a igualdade entre os imigrantes puritanos ingleses esteve presente desde o início da colonização, permanecendo visível na organização comunal. Há aí um “mundo inteiramente novo”, uma experiência histórica inédita na qual todos os membros da comunidade comportam-se, vêem-se e são vistos como iguais entre si. Uma tal igualdade não existira jamais: a polis grega, por exemplo, estava baseada na escravidão; as repúblicas florentinas excluíam mais do que incluíam as camadas pobres da população. Na avaliação do autor da Democracia na América, as comunas da Nova Inglaterra constituíam a primeira experiência de fato democrática, isto é, igualitária, da história conhecida.[17]
O INDIVIDUALISMO DEMOCRÁTICO
Mas essa igualdade de condições, no contexto da destruição dos corpos intermediários que caracterizavam a aristocracia, trazia consigo efeitos não desejáveis ao olhar do pensador. É o tema central do individualismo democrático, um fenômeno novo, particular ao contexto da modernidade e distinto do tradicional egoísmo. ParaTocqueville, o egoísmo se encontra em todas as épocas e manifesta uma corrupção do espírito pessoal, uma preferência de si sobre todas as coisas — é um sentimento depravado e, por isso, moralmente condenável. Já o individualismo não decorre do caráter de tal ou qual personagem, mas sim das condições objetivas da existência no mundo da igualdade democrática em que o corpo social se encontra fragmentado numa pluralidade de indivíduos independentes que, em última instância, contam apenas consigo mesmos para dar conta do que fazer em suas vidas.
Tocqueville concebia o indivíduo democrático moderno como uma nova espécie histórica e sociológica à qual ele se referiu, simbolicamente, como cartesiana. Em sua concepção, a igualdade moderna corroía as bases em que se legitimavam as autoridades tradicionais, exigindo que cada indivíduo submetesse à dúvida e ao crivo exclusivo de sua razão toda e qualquer informação ou proposição disponível. É certo que existem os pais, os professores, os padres e os pastores, os mais velhos, etc., lugares tradicionais de referência e aconselhamento, mas a sua autoridade foi modificada pelo processo de equalização que destruiu a hierarquia aristocrática. Pode-se reconhecer, em condições igualitárias, que um ou outro desses personagens tenha uma experiência maior nisso ou naquilo, que possa estar mais bem qualificado para responder a essa ou àquela demanda. Mas a igualdade de condições obriga os indivíduos a se comportar em relação a esses mesmos personagens como iguais, de modo que, se a palavra de uma autoridade qualquer pode ser respeitosamente recebida, ela não se confunde com a verdade antes de ser submetida à crítica e ao reconhecimento da razão individual.
Por isso mesmo o indivíduo democrático é tomado por um tipo também historicamente particular de angústia. Por um lado, dele é exigido, cotidianamente, um esforço racional extraordinário para dar conta do amplo conjunto de dúvidas morais e existenciais que se the impõem. O certo e o errado, o bom e o ruim, a palavra de Deus, não estão dados nem podem ser fornecidos, a priori, por ninguém, e a opinião sobre as muitas coisas da vida deve estar sempre fundamentada pela razão de cada um. O conhecimento da história e os acontecimentos da Revolução Francesa levam a crer que as certezas morais de hoje, não sendo mais as de ontem, não serão as mesmas de amanhã. A ruptura com a autoridade do passado e a incerteza que dela decorre não são desejos de Tocqueville, mas fatos do mundo cuja dramaticidade foi celebrizada em uma de suas mais conhecidas afirmações: “Quando o passado não ilumina o futuro, o espírito humano vagueia na escuridão”.
Por uma parte, a instabilidade social, característica da mobilidade inerente a esse mundo novo, acentua a incerteza em relação à história de vida de cada indivíduo. Em contraste com o que sugeria o modelo tocqueviliano de sociedade aristocrática, no mundo igualitário o nascimento não garante a segurança nem mesmo no futuro próximo: a primazia da riqueza móvel torna fluida a estabilidade econômica das famílias e das pessoas, as profissões e os ofícios não são mais monopólios de tais ou quais estamentos, o que num dado presente garante uma posição econômica e social respeitável pode vir a ser, logo adiante, uma condição em extinção. Comparada aos lugares estáveis do mundo aristocrático, qualquer posição confortável será sempre precária em condições igualitárias. A velocidade do novo tempo se revela na transformação incessante das bases de sustentação da riqueza e do status social, provocando incerteza e insegurança crônicas.
OS MEDOS DEMOCRÁTICOS
É desse quadro de instabilidade estrutural que se alimenta o medo nas sociedades democráticas de Tocqueville. Além do medo da morte natural que não é específico ao contexto moderno, são basicamente dois os medos que aterrorizam o indivíduo democrático. O primeiro deles é o do isolamento em relação à maioria dos iguais. Privado dos laços estáveis característicos da hierarquia aristocrática, o indivíduo democrático vive o contexto da fragmentação e do isolamento social. Embora zele pela sua independência individual, a dificuldade de cumprir factualmente a suposição “cartesiana” o dispõe a aderir às opiniões majoritárias de modo não crítico. Sendo o enfrentamento da dúvida sem descanso uma opção terrível e afeita aos poucos espíritos capazes de suportar uma angústia permanente, a adesão às correntes majoritárias de opinião, à moda, às vogas e padrões estéticos e intelectuais é o caminho preferido pela maioria dos mortais, pois oferece uma sensação de pertencimento à comunidade mais ampla, reduz o isolamento e a pressão moral sobre a razão individual e, consequentemente, a angústia democrática. Mas dessa adesão excessiva deriva a força inédita que a opinião pública, como opinião da maioria, tem nessas sociedades, o que põe em risco a independência intelectual dos indivíduos sob a pressão da massificação.
O segundo medo, de consequências políticas desastrosas para as virtudes cívicas necessárias à alternativa da liberdade, é o medo da instabilidade social, em particular o da perda de posição e de status dos indivíduos em relação aos seus semelhantes. Tocqueville acreditava que a revolução democrática constituía uma sociedade de classe média, formada por pequenos proprietários e, tradicionalmente, apegada a seus bens materiais. No entanto, no contexto crônico da instabilidade democrática essa atitude tradicional sofria de exacerbação. Além de se apegarem de modo obsessivo aos seus bens pessoais, os indivíduos democráticos dedicam-se à ampliação de sua fortuna e de seu bem-estar material, sem saciedade. Em sua tradução psicológica, o argumento mais geral de Tocqueville estabelecia que não é a posse pacífica de um objeto precioso o que mobiliza mais fortemente o coração humano, mas o “desejo imperfeitamente satisfeito de possuí-lo e o medo incessante de perdê-lo”.[18] O mesmo vale para a posição social: a extrema instabilidade democrática impede a satisfação com a posição já atingida e, enquanto houver um vizinho, que é um igual, em melhor situação, o desejo de equiparação não arrefece. Por isso a inveja é um sentimento democrático por excelência. Mas a consequência mais relevante da obsessão da classe média pelo seu bem-estar material é política: a preponderância do desejo de ordem pública e do horror radical às turbulências sociais torna a sociedade democrática especialmente conservadora e avessa a qualquer movimento que traga alterações na sua rotina.
O DILEMA TOCQUEVILLIANO: LIBERDADE E SERVIDÃO
Essa sociologia do individualismo e dos seus limites políticos dá suporte ao segundo nível do sistema conceitual de Tocqueville que opõe liberdade a servidão para se referir às duas formas possíveis de ordenar a vida pública na modernidade. Diz Tocqueville: só há “duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: dar os direitos a cada cidadão, ou não dá-los a ninguém”.[19] A primeira alternativa, exigente da participação cidadã, se regulada por leis que protejam os direitos individuais e das minorias, constitui a liberdade. A segunda alternativa, a servidão, é marcada pela ausência do espaço público e da anima da cidadania, e deixa ao Leviatã o monopólio do trato do bem comum.
As preferências políticas de Tocqueville são evidentes e se conformam à tradição: a liberdade é superior à servidão. Mas o diagnóstico das determinações sociológicas do mundo moderno impõe ao autor uma pergunta-chave: como realizar a liberdade se esta depende da vitalidade de um certo conjunto de valores e de práticas sociais de cidadania que tendem a ser inviabilizadas nas disposições intrínsecas ao igualitarismo moderno? Num contexto em que os indivíduos estão prioritariamente dedicados a manter a sua posição econômica e social para reduzir ao máximo a incerteza, em que a luta pela acumulação de riquezas e pela ampliação do bem-estar material é incessante, como se poderá exigir que estejam disponíveis para decidir, com a regularidade necessária, as questões relevantes ao mundo à sua volta? A base social individualista, ao confinar os homens no círculo da privacidade, destrói as paixões públicas, a participação cívica, enfim, o Homem Político. Eis, então, em forma reduzida, o dilema tocqueviliano: embora a igualdade exija que os indivíduos decidam por si o conjunto das coisas que lhes dizem respeito, tanto no âmbito privado como no público, a sua disposição e a sua disponibilidade para o que é comum tende a ser mínima, tornando fragilíssima a alternativa da liberdade. É mais provável que os indivíduos prefiram trocar a sua liberdade política pela segurança, como advertira Hobbes, e que optem pela tranquilidade do silêncio das cidades de que nos falava Montesquieu.
UM DESPOTISMO OCIDENTAL
Mas não há a violência do déspota absoluto nem o medo da morte violenta, pois um governo democrático deve corresponder à ambiguidade inescapável da condição dos seres igualitários. Por um lado, ao se emanciparem dos laços de dependência pessoal, os indivíduos querem ser livres, julgar e agir segundo a sua própria razão e obedecer apenas a si mesmos. Por outro lado, o isolamento e a privatização das relações sociais os transformam em ignorantes da coisa pública, dificultando a realização do desejo de autonomia. O despotismo democrático resolve essa luta entre as paixões conflitantes do homem moderno — o desejo de independência e a necessidade de ser conduzido — pela via da adoção da escolha sazonal de representantes. Por isso, na sua forma mais acabada o novo poder é brando, regrado por leis, e seus ocupantes são escolhidos em eleições periódicas.
Contudo, no contexto de alienação cívica tal como o descrito, o que significam as eleições senão um ritual periódico de lembrança da delegação da soberania em troca de segurança? Dado que o espaço público se esvazia e que o medo da intranquilidade acaba por preferi-lo inócuo, a capacidade cidadã de determinar o bem público e por ele se mobilizar se atrofia. As eleições e as liberdades políticas liberais fazem crer aos indivíduos que são livres, mas elas constituem o que Tocqueville denomina as formas exteriores da liberdade, formas desprovidas da anima cívica que Montesquieu exigia para caracterizar a república.
O que há na nova forma de organizar o poder político no mundo burguês é a resignação à condição do individualismo, é a conformação a um poder estatal que, se presume, garantirá o usufruto do bem-estar privado de cada um e dispensará os indivíduos do aborrecimento das coisas públicas. Em troca, esses lhe oferecem a sua soberania, esvaziando a praça pública e silenciando a sua voz. O diagnóstico tocquevilliano indica que no mundo democrático poderá prevalecer aquela associação nefasta entre a apatia e o silêncio público que caracterizava a rotinização do despotismo oriental de Montesquieu. Não é, pois, olhando para a natureza do senhor que vamos encontrar o fundamento despótico do novo poder, mas para o espírito dos súditos, para o princípio de conformação e de desistência políticas que (des)anima a cidadania.
Na distância que separa o indivíduo do cidadão, nasce um novo despotismo, sem medo e sem Oriente. No silêncio das cidades, na tranquilidade que denuncia a ausência de paz pública verdadeira; resta saber que inimigos virão nos conquistar e como faremos para combatê-los.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WOLIN, Sheldon S. Tocqueville between two Worlds. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2001.
Notas
[1] Para lembrar: Thomas Hobbes, inglês, 1588-1679, cujas principais obras são De cive (1647), Leviatã (1651) e Behemoth (1679); Charles de Secondat, barão de Montesquieu, francês de Bordeaux, 1689-1755, escritor das notáveis Cartas persas (1717-1721) e Do espírito das leis (1748); Alexis de Tocqueville, francês da Normandia, 1805-1859, escreveu Da democracia na América (1835-1840), O Antigo Regime e a Revolução (1856) e Lembranças de 1848 (escritas entre 1848-1852 e publicadas nos anos 1890). Todos os textos têm edições em português.
[2] A literatura sobre Hobbes é extensíssima e disponível. Minhas principais referências neste artigo são, além do Leviatã, os textos de Reinhart Koselleck e Renato Janine Ribeiro listados da bibliografia.
[3] Renato Janine Ribeiro, “Medo e esperança em Hobbes”, em Adauto Novaes (org.), A crise do Estado-nação (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003), p. 142.
[4] Para o que se segue, minhas fontes principais são, além de Do espírito das leis, os livros de Alain Grosrichard e Louis Althusser citados nas referências bibliográficas.
[5] Aristóteles, Política, Livro 1(1255), pp. 15-20. Reproduzo as traduções da edição brasileira do livro de Alain Grosrichard, A estrutura do harém, que me serve de guia nesta leitura de Aristóteles.
[6] Aristóteles, Política, Livro III (1279), pp. 25-39.
[7] Ibid., Livro 14 (1285), pp. 6-7
[8] Aristóteles, Política, Livro VII (1327), pp. 24-33.
[9] Alain Grosrichard, A estrutura do harém: despotismo asiático no Ocidente clássico (São Paulo: Brasiliense, 1988), p. 28.
[10] Ibid., pp. 58-59 (grifos meus).
[11] Minhas referências principais para a análise de Tocqueville aqui apresentada são, além de Da democracia na América, os textos de Ernst Vollrath e Melvin Richter citados na bibliografia. Tratei o tema com o vagar necessário em Marcelo Gantus Jasmin, Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política (Rio de Janeiro: Access, 1997).
[12] Alexis de Tocqueville, “Notes du Voyage en Algérie de 1841”, em J.-P. Mayer (org.), Oeuvres complètes, tomo V, vol. 2 (Paris: Gallimard, 1951-1958), p. 192 (grifos meus). As traduções neste texto são minhas, a partir dessa edição.
[13] Alexis de Tocqueville, “De la démocratie en Amérique”, em J.-P. Mayer (org.), Œuvres complétes, cit., p. 94.
[14] Para a exposição sistemática do argumento tocqueviliano, remeto o leitor aos capítulos 3 e 4 de Marcelo Gantus Jasmin, Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política, cit.
[15] Michael Burrage, “On Tocqueville’s Notion of the Irresistibility of Democracy”, em Archives Européennes de Sociologic, 13(1), pp. 152-155.
[16] Raymond Aron, As etapas do pensamento sociológico (São Paulo/Brasília: Martins Fontes/Universidade de Brasília, 1982), p. 209
[17] Para não haver dúvidas, Tocqueville conheceu e abominou a escravidão que marcou a colonização dos Estados Unidos da América, em particular no sul do país. A consideração sobre a igualdade refere-se exclusivamente às colônias que se desenvolveram com o povoamento na costa nordeste e que, segundo o autor, obrigariam à abolição da escravidão em todo o território norte-americano. A permanência da resistência do sul escravista à revolução democrática, segundo as suas previsões, levaria uma guerra civil, o que, de fato, aconteceu na Guerra de Secessão.
[18] Alexis de Tocqueville De la démocratie en Amérique, vol. 2, cit., p. 134.
[19] Alexis de Tocqueville. De la démocratie en Amérique, vol. 1, cit., p. 52.