O destino do homem [Hölderlin]
por Antonio Cicero
Resumo
Hölderlin, poeta alemão admirado por Heidegger, teve intimidade com a filosofia, mas dela se distancia por pensar o mundo de modo intuitivo e não discursivo. Num de seus escritos filosóficos, esparsos e pouco conhecidos, ele contesta o “eu absoluto” de Fichte. A consciência sem objeto é inconcebível e todo juízo pressupõe o mundo. Esses princípios teóricos se relacionam com uma filosofia da história que ele divide em três épocas: unidade, cisão e recuperação da natureza (sob a forma da naturalidade da arte). Mas o surgimento mesmo da poesia de Homero, na Grécia que seria a infância da humanidade, já assinala uma disjunção (entusiasmado pelo fogo de Apolo, o poeta toma um gole da água sóbria roubada ao cântaro de Juno). E a cisão, que lança o homem em tantas contradições e desigualdades, como dirá Rousseau, é também condição de liberdade. Hölderlin entende a poesia essencialmente como “contraposição harmônica”, complementaridade entre o eu e o mundo. O divino está no meio dos dois. Ao contrário das proposições unívocas dos filósofos, a poesia possui a densidade contraditória dos organismos. Em seu poema “Metade da vida” ele pergunta: “Onde, se / é inverno, achar as flores, e onde / a luz do sol / e as sombras da terra?” No final restam somente “muros e bandeirolas ao vento”. O próprio poema é metade que não se completa sem o leitor e o mundo. É também incerteza, conforme esta bela imagem da “Canção do destino de Hipérion”: “como água de penhasco / em penhasco lançada / incessantemente no incerto”.
HYPERIONS SCHICKSALSLIED
Ihr wandelt droben im Licht
Auf weichem Boden, selige Genien! Glänzende Götterlüfte
Rühren Euch leicht,
Wie die Finger der Künstlerin Heilige Saiten.
Schicksallos, wie der schlafende Säugling, atmen die Himmlischen;
Keusch bewahrt
in bescheidener Knospe, Blühet ewig
Ihnen der Geist,
Und die seligen Augen Blicken in stiller Ewiger Klarheit.
Doch uns ist gegeben,
Auf keiner Stätte zu ruhn; Es schwinden, es fallen Die leidenden Menschen
Blindlings von einer Stunde zur andern,
Wie Wasser von Klippe Zu Klippe geworfen,
Jahrlang ins Ungewisse hinab.
Hölderlin
CANÇÃO DO DESTINO DE HIPÉRION
Andais lá em cima na luz
Em chão macio, gênios felizes! Cintilantes brisas divinas
Tocam-vos de leve
Como os dedos da artista Cordas sagradas.
Sem destino, qual o lactente Adormecido, respiram os divinos;
Casto, guardado Em botão simples
Floresce-lhes Eterno o espírito
E os olhos felizes Fitam em calma
Eterna claridade.
Mas a nós não é dado
Em lugar algum repousar: Fenecem, caem
Os homens sofredores Cegamente de uma Hora para outra
Como água de penhasco Em penhasco lançada
Incessantemente no incerto.
Tradução de Antonio Cicero
__________
PENSAR O MUNDO E PENSAR SOBRE O MUNDO
Ao falar de poetas que pensaram o mundo, temos em mente, é claro, aqueles que o fizeram como poetas, isto é, nas palavras dos seus poemas. Embora muitos deles — como Dante, Baudelaire, Valéry, Eliot, Goethe, Ponge, Pessoa — também exprimam em prosa as suas concepções do mundo, são os seus poemas que costumam ser objeto de estudos filosóficos, e não — exceto acessoriamente — os seus ensaios, tratados, cartas, anotações ou comunicações orais. Até não muito tempo atrás, esse era o caso de Hölderlin. Foi sobretudo a sua obra poética que interessou a Heidegger, por exemplo. Entretanto, um dado biográfico o distingue dos poetas anteriormente citados: refiro-me à sua intimidade com a grande filosofia e com alguns dos maiores filósofos da sua época, isto é, com os fundadores daquilo que se tornou conhecido como o Idealismo Alemão. Hölderlin tinha relações pessoais com Schiller, com o qual se correspondia. Hegel e Schelling foram seus colegas e amigos no seminário teológico da Universidade de Tübingen e, mais tarde, na Universidade de Jena, ele conheceu pessoalmente Fichte, a cujas preleções assistiu diariamente. Estudos recentes — como os de Dieter Henrich e Violetta Waibel — sugerem que as teses filosóficas de Hölderlin tanto contribuíram decisivamente para a gestação dos pensamentos daqueles quanto provocaram importantes precisões no pensamento deste.
Dado isso tudo, a vida e a obra de Hölderlin ocasionam reflexões não somente sobre a relação entre o pensamento e a poesia, mas também sobre a relação entre esta e a filosofia. Ao afirmá-lo, pressuponho que haja uma diferença entre pensar e filosofar. De fato, é evidente que, embora filosofar seja sempre pensar, pensar nem sempre é filosofar. Mas e quanto a “pensar o mundo”? Pensar o mundo não será sempre filosofar? Em primeiro lugar, é preciso observar que a sintaxe presente na expressão “pensar o mundo” não é corriqueira ou normal. Normalmente dir-se-ia “pensar sobre o mundo”.
Não que seja gramaticalmente incorreto dizer “pensar o mundo”: apenas não se trata de uma construção comum. O verbo “pensar” pode ser intransitivo, transitivo direto ou transitivo indireto. Como transitivo direto, porém, seu objeto é normalmente (1) uma oração substantivada (diz-se, por exemplo, “eles pensam que a terra é plana”), (2) um verbo (“penso sonhar”), ou (3) um nome ou um pronome com função adverbial (“penso isso”, por “penso assim”; “penso o contrário” por “penso de modo contrário”). Em geral, é somente como transitivo indireto que o objeto do verbo “pensar” pode ser um nome, de modo que se diz “penso numa (ou sobre) uma rosa” ou “penso em (ou sobre) Marcelo”, mas raramente, exceto em poesia, dir-se-ia “penso uma rosa” ou “penso Marcelo”.
Na verdade, parece-me que, quando tais construções ocorrem em outros campos discursivos, como no da filosofia, elas são inspira das por paradigmas estrangeiros: mais precisamente, franceses. De fato, em francês é bem mais comum do que em português encontrarem-se títulos de livros ou artigos contendo sintagmas como “penser l’être”, “penser l’homme”, “penser la vie” etc. Observo entretanto que, mesmo em francês, a disseminação de tal regência do verbo penser é fenômeno relativamente recente. Assim, ela não é mencionada senão no final do longo verbete que o dicionário Robert dedica a esse verbo, onde é classificada como um fenômeno tipicamente filosófico ou lite rário. Na versão de 10/12/2002 do monumental Trésor de la langue française, publicado pelo CNRS, também no verbete penser, observa-se que “penser quelque nom ou quelque chose” é usado “sobretudo no domínio da reflexão, do conhecimento científico e filosófico”, e os exemplos aduzidos provêm de textos de Sartre, de Merleau-Ponty e de Alain. Trata-se, portanto, de um uso que, seguindo um vetor anti-saussuriano, propaga-se do espaço literário para o espaço oral e, seguindo um vetor anti-wittgensteiniano, da linguagem filosófica para a linguagem cotidiana.
Ora, não creio que a construção tradicional — em que o verbo “pensar” ao ter por objeto um nome, é transitivo indireto (construção que também se encontra nas demais línguas indo-europeias que conheço) — seja inteiramente arbitrária. Parece-me que lhe subjaz uma concepção do pensamento como, em primeiro lugar, um ato dotado da estrutura de uma proposição, de uma sentença, de um juízo. Nesse sentido, pensar numa coisa ou sobre uma coisa é fazer para si mesmo um juízo simples ou composto a respeito dela: de que ela existe e/ou de que tem tais ou quais propriedades e/ou de que tem tais ou quais relações com tais ou quais coisas. Normalmente concebemos o pensamento, portanto, como primariamente discursivo ou dianoético, como dizia Aristóteles, e não como intuitivo ou noético. As preposições em ou sobre, quando digo “penso numa rosa” ou “penso sobre uma rosa” funcionam como uma marca verbal do caráter mediado da relação do meu pensamento com a rosa. Interpondo-se entre o pensamento e a rosa, ela, por um lado, os separa e, por outro, os reúne. É desse modo que funciona o pensamento filosófico.
Se, portanto, eu tivesse me perguntado se pensar sobre o mundo é sempre filosofar, então eu agora responderia que, sempre que se entende por “mundo” a totalidade do pensável considerada enquanto totalidade, “pensar sobre o mundo” é filosofar. Contudo, o que me perguntei foi se pensar o mundo é sempre filosofar. Ora, nessa pergunta, a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não ficasse sobre, isto é, acima ou, de algum modo, fora do mundo, para pensá-lo. É como se apreendesse o mundo enquanto pensamento. Tal seria um pensamento intuitivo e noético, ou uma intuição intelectual. Nesse sentido, pensar o mundo — que é o que supomos fazerem muitos poetas — afigura-se inteiramente diferente de pensar sobre o mundo e, portanto, de filosofar.
Entretanto, levando em conta que, segundo o que já expus, a construção em que o objeto direto do verbo “pensar” é um nome, como em “pensar o mundo”, parece ser de origem filosófica, poder-se-ia questionar se não será ilusória a distinção que acabo de desenhar. Parece-me que não. Observo que, dos três pensadores citados pelo Trésor, dois — Sartre e Merleau-Ponty — são fenomenólogos.
Ora, já a divisa de Husserl, “Zurück zuden Sachen!” (Voltar às coisas!), representa uma crítica ao que o fenomenólogo vê como a relação excessivamente mediada, estabelecida pela filosofia tradicional e especulativa, entre o pensamento e seu objeto intencional. A redução eidética tem o sentido de preparar metodicamente as condições de possibilidade da Wesenschau, isto é, da intuição direta e pura das essências e das estruturas essenciais. Pois bem, é exatamente essa relação intuitiva do pensamento com o seu objeto intencional que os filósofos em questão pretendem exprimir ao tornar direta a transitivi dade normalmente indireta do verbo “pensar”. Portanto, ainda que originada no discurso filosófico, essa sintaxe foi concebida para exprimir uma ambição cognitiva oposta, de certo modo, à da filoso fia tradicional. De qualquer maneira, independentemente da sua presumível origem fenomenológica, ela me parece admiravelmente apta a exprimir a ambição poética do pensar intuitivo.
Pensar o mundo, portanto, é o que alguns poetas fazem nos seus poemas. Nesse caso, pode dizer-se que Hölderlin tanto pensou o mundo, enquanto poeta, quanto pensou sobre o mundo, enquanto filósofo. Como, no Brasil, graças à circulação de traduções dos poemas de Hölderlin e das obras que Heidegger lhes dedicou, são mais correntes as interpretações da sua poesia do que as da sua filosofia, que é praticamente desconhecida, optei por tratar desta, isto é, por tratar do que Hölderlin pensa sobre o mundo: o que, evidentemente, inclui também o que ele pensa sobre a poesia.
A título propiciatório, porém, antes de entrar no pensamento filosófico, citarei o primeiro poema que li, ainda adolescente, de Hölderlin. Na época, eu não lia em alemão, quando deparei com o poema “Hälfte des Lebens”, em tradução de Manuel Bandeira, e fiquei maravilhado:
Metade da vida
Peras amarelas E
rosas silvestres
Da paisagem sobre a Lagoa.
Ó cisnes graciosos, Bêbedos de beijos, Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!
Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as Flores?
E aonde
O calor do sol
E a sombra da terra? Os muros avultam
Mudos e frios; à fria nortada Rangem os cata-ventos.*[1]
Aliás, anos depois, lendo o maravilhoso “Itinerário de Pasárgada”, de Bandeira, deliciei-me com uma passagem em que ele relata um problema ocorrido na impressão da primeira e da segunda edição das suas traduções de Hölderlin:
Foi num dos nove poemas de Hoelderlin, que traduzi a pedido de Oto Maria Carpeaux (uma das maiores batalhas que já pelejei na minha vida de poeta…). A estrofe inicial do poema “Metade da vida” é
Peras amarelas E rosas silvestres
Da paisagem sobre a Lagoa
Provavelmente o linotipista não acreditava que se pudesse misturar peras a rosas e imaginou que devia ser “heras” e não “peras”. Assim que, todos os que essas insossas memórias estiverem lendo, fiquem cientes que não escrevi nem jamais escreveria aquele horrendo verso “Heras amarelas”…[2]
Os textos filosóficos de Hölderlin
Voltemos à filosofia. Na verdade, Hölderlin não deixou obra filosófica. As únicas coisas que existem, nesse sentido, são trechos de cartas e anotações, a mais extensa das quais consiste num manuscrito de duas páginas, batizado postumamente de “Juízo e ser” e publicado em 1961. Outro texto pequeno, designado como “O mais antigo programa do sistema do idealismo alemão”, tem a autoria em disputa: pode ter sido escrito por Hegel, por Schelling ou por Hölderlin; ou por dois deles; ou pelos três: o que talvez seja o mais provável. É somente a partir desses escritos e de alguns outros, dedicados principalmente à poesia, que se pode tentar inferir o pensamento filosófico de Hölderlin.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o grande nome da filosofia alemã no final do século XVIII é Kant. “Kant”, diz Hölderlin, em carta ao irmão, “é o Moisés de nossa nação, que a conduz da dormência egípcia ao deserto livre e solitário da especulação e traz do monte
sagrado a lei enérgica”.[3] Fichte era discípulo de Kant. Entretanto, ele (como, antes dele, Reinhold, outro discípulo de Kant) considerou necessário, tanto como uma exigência da razão quanto para evitar determinados impasses a que a doutrina kantiana tal como apresentada pelo mestre parecia levar, descobrir um fundamento único, sobre o qual todo o edifício crítico pudesse se sustentar. “Fundamento da inteira doutrina da ciência”, o título da obra em que Fichte primeiro expõe o seu princípio, já revela essa ambição.
Como chegar a tal princípio? O método de Fichte — não o método de exposição com que abre o Fundamento, mas o seu método efetivo de investigação, exposto, por exemplo, na segunda parte desse livro, é tomar um fato da consciência e dele abstrair tudo o que possa ser abstraído. O que fica é o eu puro, que Fichte chama de Tathandlung, isto é, ato-fato.
Sem pretensão maior do que minimamente contextualizar a crítica que Hölderlin faz a Fichte, farei uma sinopse do argumento que se encontra no princípio do Fundamento. Para começar, Fichte escolhe um fato da consciência aceito por todos: a proposição “A é A” ou A = A. Cada qual deve reproduzir por si próprio essa mesma experiência. Ao ler a palavra “eu”, por exemplo, o leitor deve referi-la a seu próprio ser. Cada qual deve dizer a si próprio as palavras que lerá em seguida. Comecemos agora: afirmo que A = A. Quando digo “A = A”, não estou afirmando “A”. “A” seria um conteúdo. O que estou afirmando é puramente formal, isto é, que se “A”, então “A = A”, seja lá o que for “A”. O que estou afirmando então como absolutamente certo é que há uma conexão necessária entre esse “se” e esse “então”; é essa relação que afirmo de modo absoluto. Chamemo-la de “X”. Mas posso perguntar: sob que condições A existe? A relação X existe ao menos em mim, e através de mim, que a afirmo. Eu a reconheço como uma lei. Ora, essa lei não me foi dada de fora. Sou eu que afirmo que A = A, e afirmo que A = A é absolutamente certo, sem que ninguém precise mandar-me fazer isso. Mas já que a relação X é posta por mim e em mim, e X é uma relação entre um A que ocupa o lugar de sujeito e um A que ocupa o lugar de objeto, então, ao menos na medida em que X é posta por mim e em mim, A é posto por mim e em mim. Mas se o A que ocupa o lugar de sujeito é posto, então o A que ocupa o lugar de objeto é posto de modo absoluto. Posso então dizer: se A é posto em mim, ele é posto: ele é. Assim, afirmo, através de X, que A existe de modo absoluto para mim; e isso simplesmente porque A foi posto por mim como tal. Isso quer dizer que em mim — afirmando, pondo ou julgando — há algo que é sempre o mesmo; de modo que o X que afirmei de modo absoluto pode ser expresso como eu = eu: “eu sou eu”. Ora, não posso deixar de pôr a mim. Assim chego à proposição “eu sou”, como um fato.
Fichte mudou inúmeras vezes o modo de exposição do seu primeiro princípio, e o seu significado exato — por exemplo, se consiste num princípio prático (no sentido kantiano) ou teórico ou ambos é, até hoje, objeto de ferrenhas e interessantes discussões. Entretanto, o que realmente me interessa aqui é a interpretação hölderliniana desse princípio. Por isso, vou citar, em primeiro lugar, uma carta a Hegel em que Hölderlin conta que está lendo escritos de Fichte que interessariam muito ao amigo, e os descreve e critica, de modo muito sucinto:
Seu eu absoluto [= substância de Spinoza] contém toda realidade; é tudo, e fora ele nada há; não há portanto objeto algum para esse eu absoluto, pois de outro modo toda realidade não estaria nele; ora, uma consciência sem objeto não é concebível, e se eu mesmo for esse objeto, então, como tal, sou necessariamente limitado, ainda que apenas no tempo, logo, não sou absoluto; portanto nenhuma consciência é concebível no eu absoluto; enquanto eu absoluto não tenho consciência e, na medida que não tenha consciência, nada sou [para mim]; logo o eu absoluto nada é [para si].[4]
Hölderlin supõe que o eu absoluto representa, para Fichte, o que a substância representa para Spinoza. Por ora, não interessa investigar se essa suposição (também feita, na mesma época, por Jacobi, Schiller, Novalis, Friedrich Schlegel e Niethammer, por exemplo)[5] é correta. Tudo o que ele diz em seguida é uma crítica à afirmação de que o eu absoluto, como a substância de Spinoza, contém toda realidade. Em primeiro lugar, ele mostra que, se o eu absoluto contém toda realidade, nada existe fora dele e, se nada existe fora dele, ele não possui objeto fora de si; ora, são inconcebíveis tanto um eu sem consciência quanto uma consciência sem objeto.[6] A alternativa seria que o eu absoluto, mesmo não possuindo objeto fora de si, tomasse a si próprio como objeto; entretanto, segundo Hölderlin, nesse caso ele não seria absoluto, pois todo objeto é limitado, ao menos temporalmente. Penso que aqui ele tem em mente as condições a priori da objetividade, no sentido kantiano, segundo as quais não há objeto que não se dê necessariamente através da forma pura da intuição temporal. Todo objeto se dá ao menos no tempo, se não no espaço. Portanto, o eu absoluto não pode ter objeto algum; logo, já que não há consciência sem objeto, não pode ter consciência; ora, não há eu sem consciência: um eu sem consciência nada seria para si. Consequentemente, o eu absoluto nada é para si: o eu absoluto nada é.
Passo ao texto denominado “Juízo e ser”. Trata-se de um texto curto, escrito numa única folha de papel. Por comodidade expositiva, subdivido o texto em seis segmentos, e omito apenas um parágrafo, que trata de questões de modalidade, cuja articulação com a questão que me interessa não é nem óbvia nem indispensável para a sua com preensão.[7]
JUÍZO E SER (URTEIL UND SEYN)
(1) Juízo é, no sentido mais elevado e forte, a separação original (die urs prüngliche Trennung) do objeto e sujeito mais intimamente unido [sic] na intuição intelectual, aquela separação através da qual tornam-se em primeiro lugar possíveis objeto e sujeito, a separação original (die Ur Teilung). (2) No conceito da separação já se encontra o conceito da relação recíproca de objeto e sujeito um com o outro e a pressuposição necessária de um todo do qual objeto e sujeito são as partes. (3) “Eu sou eu” é o exemplo mais adequado desse conceito do juízo (Urteilung) enquanto juízo teórico, pois no juízo prático ele se opõe ao não-eu, não a si próprio.
[…]
(4) Ser (Seyn) exprime a ligação do sujeito e objeto.
(5) Onde sujeito e objeto é unido [sic] de modo absoluto, e não apenas parcial, unido de tal maneira que nenhuma separação pode ser pretendida sem ferir a essência daquilo que se pretenda separar, nesse caso e em nenhum outro pode falar-se de um ser de modo absoluto, como é o caso ao se dar a intuição intelectual.
(6) Mas esse ser não deve ser confundido com a identidade. Quando digo: eu sou eu, o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão tão unidos que nenhuma separação possa ser pretendida sem ferir a essência daquilo que se pretenda separar; ao contrário: o eu só é possível através dessa separação entre eu e eu. Como posso dizer: eu! sem autoconsciência? Mas como é possível a autoconsciência? Através do fato de que me oponho a mim próprio, separo-me de mim, mas, independentemente dessa separação, reconheço-me como o mesmo no oposto. Mas em que medida o mesmo? Posso, devo perguntá-lo; pois, por outro ponto de vista, ele é oposto a si. Logo, a identidade não é uma união de objeto e sujeito que se encontre de modo absoluto, logo a identidade não é = ser absoluto.[8]
A palavra alemã para “julgar” é urteilen e a palavra para “julgamento” ou “juízo” é Urteil. Esses vocábulos surgiram, na verdade, como variantes do verbo erteilen, que significa “distribuir”, e do substantivo Erteil, que significava originalmente “aquilo que se distribui” e, consequentemente, “a sentença que o juiz distribui”. Moderna mente, urteilen passou a significar “julgar”, e Urteil, “juízo”, no sentido de “proposição”.[9] Inflamado, porém, pelo fato de que, normalmente, o prefixo intensificador ur tem o sentido de “original” ou “primitivo” e a raiz Teil tem o sentido de “parte”, e olvidado de que, no caso em questão, o ur de Urteil não passa de uma variante do er de Erteilen, Fichte, em notas para um curso que ministrou em 1795 e que foi, sem dúvida, assistido por Hölderlin, observa: “julgar: separar originalmente; e é verdade: uma separação original o fundamenta”.[10] É claro que nada impede que uma falsa etimologia exprima uma intuição verdadeira. De todo modo, também para Hölderlin a palavra “juízo” (Urteil) remete à noção de “separação primitiva”. Mas releiamos o texto de Hölderlin, segmento por segmento:
1) Juízo é, no sentido mais elevado e forte, a separação original (die urs prüngliche Trennung) do objeto e sujeito mais intimamente unido [sic] na intuição intelectual, aquela separação através da qual tornam-se em primeiro lugar possíveis objeto e sujeito, a separação original (die Ur-Tei lung).
Para que o juízo, isto é, o conhecimento humano discursivo, dianoético, seja possível, é necessário em primeiro lugar que o sujeito (que julga) e o objeto (que é julgado) tenham sido separados. No próprio objeto, é preciso também que o sujeito do juízo tenha sido separado do objeto do juízo. O juízo, portanto, separa o que estava originalmente unido na intuição intelectual. Que é a intuição intelectual? A intuição sensível ou empírica é a sensação. Intuição intelectual seria um conhecimento intuitivo, um conhecimento imediato, não-discursivo, não-dianoético, mas noético. Fichte dizia que “o sujeito absoluto, o eu, não é dado pela intuição empírica, mas pela intelectual”.[11] O leitor se lembrará que a expressão “pensar o mundo” sugere justamente o conceito de intuição intelectual.
2) No conceito da separação já se encontra o conceito da relação recíproca de objeto e sujeito um com o outro e a pressuposição necessária de um todo do qual objeto e sujeito são as partes.
Na verdade, isso consiste num desdobramento analítico daquilo que foi afirmado na proposição anterior. O que diz é que o próprio juízo já pressupõe uma unidade, um todo, anterior a ele; uma unidade de sujeito e objeto, que é por ele separada.
3) “Eu sou eu” é o exemplo mais adequado desse conceito do juízo (Urteilung) enquanto juízo teórico, pois no juízo prático ele se opõe ao não-eu, não a si próprio.
A distinção entre juízo teórico e prático faz parte do horizonte kantiano do pensamento tanto de Fichte quanto de Hölderlin. Para Kant, o juízo teórico diz respeito ao que é; o prático, ao que deve ser, à liberdade, em oposição ao que é. O que deve ser, em última análise, é a própria liberdade. O eu prático, o eu livre, que se confunde com a própria liberdade, opõe-se a tudo o que se opõe à liberdade. É nesse sentido que ele se opõe ao não-eu.
Entretanto, o que está em jogo aqui é o juízo teórico. Por que diz Hölderlin que “eu sou eu” é o seu exemplo mais adequado? Porque nesse juízo se manifesta a natureza mesma do juízo teórico. Ele é, como foi dito, a separação original mediante a qual se tornam em primeiro lugar possíveis objeto e sujeito. Assim, separa-se o eu num eu sujeito e num eu objeto, o que se manifesta na duplicação da palavra “eu”. Por outro lado, a identidade do primeiro eu com o segundo eu, posta pela identidade das duas instâncias da palavra “eu”, manifesta a pressuposição necessária de um todo do qual objeto e sujeito são as partes. Nas palavras de Henrich, “o estabelecimento dos diferentes é pensado em relação imediata com o estabelecimento da unificação (da identificação) dos diferentes”.[12]
4) Ser (Seyn) exprime a ligação do sujeito e objeto.
Ser é a ligação de sujeito e objeto anterior à sua separação original. “Sujeito e objeto” é, como sua ocorrência a seguir e as ocorrências de “objeto e sujeito” anteriores, de número singular. É como se Hölderlin tivesse escrito “sujeito-e-objeto” e “objeto-e-sujeito”.
5) Onde sujeito e objeto é unido [sic] de modo absoluto, e não apenas parcial, unido de tal maneira que nenhuma separação pode ser pretendida sem ferir a essência daquilo que se pretenda separar, nesse caso e em nenhum outro pode falar-se de um ser de modo absoluto, como é o caso ao se dar a intuição intelectual.
Supõe-se aqui que duas modalidades de unidade de sujeito e objeto são concebíveis: na primeira, eles são unidos de tal modo que não podem ser separados: separá-los destruiria a unidade de ambos; na segunda, eles são unidos, mas podem ser separados sem que se destrua a sua unidade.
6) Mas esse ser não deve ser confundido com a identidade. Quando digo: eu sou eu, o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão tão unidos que nenhuma separação possa ser pretendida sem ferir a essência daquilo que se pretenda separar; ao contrário: o eu só é possível através dessa separação entre eu e eu. Como posso dizer: eu! sem autoconsciência? Mas como é possível a autoconsciência? Através do fato de que me oponho a mim próprio, separo-me de mim, mas, independentemente dessa separação, reconheço-me como o mesmo no oposto. Mas em que medida o mesmo? Posso, devo perguntá-lo; pois, por outro ponto de vista, ele é oposto a si. Logo, a identidade não é uma união de objeto e sujeito que se encontre de modo absoluto, logo a identidade não é = ser absoluto.
A unidade absoluta do sujeito e objeto não é a da relação da identidade. O texto que o demonstra é extremamente claro. A palavra “eu” exprime a autoconsciência. Quem diz “eu” fala de si próprio: é um sujeito que toma a si próprio como objeto. Ele se divide, portanto, em sujeito e objeto: opõe-se a si enquanto, de um lado, sujeito e, de outro lado, objeto. No entanto, ele se reconhece como idêntico ao seu oposto. De certo ponto de vista ele é, portanto, diferente de si; de outro, ele é idêntico a si. Que significa isso? Que ele é relativamente diferente de si e relativamente idêntico a si. Logo, sua identidade não é a unidade absoluta do ser. O eu não somente pode como necessita separar-se de si: e tal coisa, longe de ferir a sua essência, é o que a realiza.
Há aqui, evidentemente, uma crítica ao princípio de Fichte. Ela se deixa enunciar em poucas palavras. O eu é necessariamente autoconsciência; a autoconsciência é cindida e se manifesta necessariamente como o juízo de identidade “eu sou eu”. Implicitamente, portanto, o eu já contém um juízo, um Urteil, uma separação em si mesmo. Sendo inerentemente separado de si próprio, o eu não pode, portanto, ser o ser, o Seyn, absoluto: logo, não pode ser o princípio absoluto.
Além de criticar Fichte, porém, Hölderlin afirma que o ser absoluto somente poderia ser objeto da intuição intelectual, mas não de conhecimento discursivo — e, portanto, de conhecimento filosófico — algum. Separando o indissociável sujeito-e-objeto, o juízo filosófico, por sua própria natureza, fica sempre em torno do ser, mas não é capaz de apreendê-lo.
Apesar disso, tal apreensão constitui, como Hölderlin afirma em carta a Schiller, uma “exigência incontornável que precisa ser feita a todo sistema [filosófico]”.[13] Este ponto é crucial. Conhecer o absoluto é uma exigência incontornável da própria razão porque, dado que esta, em última análise, se identifica, desde Kant, com a liberdade, ela se recusa a aceitar qualquer limite dado, isto é, qualquer limite que não tenha sido estabelecido por si mesma. Ora, o conhecimento do absoluto é o conhecimento dessa unidade inalcançável pelo juízo. Claramente, há aqui uma aporia: a filosofia faz a si própria uma exigência que, por sua própria natureza, não é capaz de cumprir. Na carta a Schiller, Hölderlin conclui que tal exigência “só pode ser atendida esteticamente, na intuição intelectual, mas, no que diz respeito à teoria [isto é, à filosofia e à ciência] só através de uma aproximação infinita, como a aproximação do quadrado ao círculo”.[14] No texto “O mais antigo programa do sistema do idealismo alemão”, cuja autoria, como já observei, pode ser de Hegel, de Schelling ou de Hölderlin, ou dos três, ou de dois deles, a aporia se desfaz quando a poesia herda a missão da filosofia: “A poesia adquire desse modo uma honra mais alta, ela se torna no fim novamente o que era no princípio: mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, só a poesia sobreviverá a todas as demais ciências e artes”.[15] Por outro lado, o juízo e o pensamento filosófico, embora não possam alcançar o absoluto, são condições não apenas da ciência e da filosofia, mas do desenvolvimento pleno da razão e da liberdade. Por quê? Porque a razão e a liberdade não se reconhecem como tais antes de se dar a autoconsciência pela qual se tornam críticas e se separam das condições finitas (limitadas) em que contingentemente se exercem. Paradoxalmente, portanto, a razão que reúne e a crítica que separa são diferentes modos ou expressões da mesma liberdade.
O esboço de uma filosofia da história
Na versão definitiva do Hipérion ou O eremita na Grécia, a certa altura Hölderlin — inspirado sem dúvida em Schiller, que, numa conferência, comparara a plenitude do homem primitivo à de uma planta[16] — fala da Pflanzenglück, isto é, da felicidade vegetal dos primeiros homens:
Da felicidade vegetal começaram os homens e cresceram e cresceram até amadurecer; daí em diante continuaram incessantemente a fermentar, por dentro e por fora, até que hoje a raça humana, infinitamente dispersa, se dá como um caos, de modo que todos os que ainda sentem e vêem são acometidos pela vertigem; mas a beleza foge da vida dos homens para o espírito; torna-se ideal o que era natureza e, enquanto por baixo a árvore como que está seca e carcomida, dela ainda surge um cimo fresco, que verdeja ao brilho do sol, como outrora o tronco nos dias da juventude; ideal é aquilo que foi natureza. Ali, nesse ideal, nessa divindade rejuvenescida, reconhecem-se os poucos e se fazem um, pois neles há uma unidade e dela, dela começa a segunda idade vital do mundo.[17]
“Torna-se ideal o que era natureza”: essa sentença traz à mente outra, de Schiller, poeta que Hölderlin admirava e conhecia pessoalmente. Referindo-se à beleza que se encontra nas coisas naturais, o autor de Poesia ingênua e sentimental dizia que “elas são o que fomos; são o que devemos novamente ser”; e explica:
Fomos natureza, como elas, e nossa cultura deve, pelo caminho da razão e da liberdade, levar-nos de volta à natureza. Elas são também a representação de nossa infância perdida, que eternamente nos será o que nos é mais caro; por isso nos enchem de certa nostalgia. Ao mesmo tempo, são representação de nossa mais alta realização no plano ideal, de modo que nos transportam a uma sublime emoção.[18]
Duas coisas decorrem dessas afirmações de Schiller e de Hölderlin. A primeira é a importância da categoria “natureza”; a segunda um deslizamento — que traz à mente as concepções de Hegel e de Schelling — do esquema do processo de reflexão transcendental de Urteil und Seyn para o esboço de uma filosofia da história.[19]
Excurso
Para compreender corretamente esse passo, é preciso em primeiro lugar tomar algumas precauções. Quando se diz que o juízo, por destruir a intuição da unidade do ser, não é capaz de conhecê-lo, o que se está efetivamente afirmando não diz respeito senão ao juízo: diz respeito, é claro, a todo e qualquer juízo, mas nada diz sobre a intuição intelectual ou estética não-judicativa. Dizer que juízo algum é capaz de nos dar a conhecer o ser não significa que não seja possível conhecer-se o ser por outros caminhos, como pela intuição intelectual ou estética. Não significa, portanto, que, a partir do primeiro juízo pronunciado por um sujeito — seja ele a humanidade, seja uma cultura particular, seja um indivíduo particular —, esse sujeito deixe de ser capaz do conhecimento intuitivo e não-judicativo e passe a ser capaz somente do conhecimento judicativo e não-intuitivo.
Entretanto, embora seja assim em princípio, é importante reconhecer que o fato de que a infância — tanto a individual quanto a coletiva — seja necessariamente um estado intuitivo porém não-judicativo, pois não-verbal,[20] implica a anterioridade cronológica da intuição em relação ao juízo e, particularmente, em relação ao conceito; logo, ao conhecimento conceitual. Já essa constatação é capaz de sugerir uma divisão rudimentar da história — pelo menos da história do pensamento ou do conhecimento — em duas grandes épocas: em primeiro lugar, a época primitiva, pré-judicativa, exclusivamente intuitiva, e, em segundo lugar, a época subsequente, em que se dá também o pensamento judicativo e conceitual. Esta última, por sua vez, pode ser subdividida em diferentes períodos, segundo a relação entre o modo de pensamento intuitivo e o modo de pensamento judicativo: seja que se encontrem em estado de equilíbrio relativo, seja que um predomine relativamente sobre o outro, seja que o modo de pensamento judicativo se torne exclusivo.
Pois bem, penso que é de fato mais ou menos por esse caminho que corre o pensamento de Hölderlin. Às duas épocas mencionadas, ele adiciona uma terceira, que se situa no futuro. A primeira é a do pensamento intuitivo, em que o homem se integra com o ser ou a natureza; a segunda, a da modernidade, em que o pensamento judicativo que cinde o ser ou a natureza, acaba por predominar sobre o pensamento intuitivo e desprezá-lo a tal ponto que praticamente o sufoca, de modo que este apenas subsiste entre poucos, particularmente entre poetas e artistas em geral; a terceira, futura, em que o ser humano realiza uma integração superior com a natureza, sem abdicar da razão e da liberdade conquistadas através da cisão produzida pelo pensamento judicativo. Se a primeira época é anterior à cisão judicativa, a segunda surge em consequência dessa cisão. A cisão, como se disse, ocorre necessariamente — e apenas — no pensamento judicativo. Contudo, como, tendo em mente as importantes consequências que atribui ao predomínio contemporâneo desse modo de pensamento, Hölderlin, por comodidade expositiva, isto é, por uma questão de abreviação, ênfase e generalização, exprime-se frequentemente como se a época moderna mesma fosse cindida e como se nela a humanidade se houvesse separado ou se perdido do ser ou da natureza etc.; e embora, pela mesma comodidade, também eu adote, no que se segue, esse modo de falar, advirto o leitor a levar em conta as ressalvas feitas neste excurso.
Fim do excurso
No prefácio à penúltima redação do Hipérion, lê-se:
[…] nós todos percorremos uma estrada excêntrica, e não há outro caminho possível, da infância à maturidade. A unidade sagrada, o ser, no único sentido da palavra, perdeu-se para nós, e tínhamos que perdê-lo, se devíamos esforçar-nos por ele e conquistá-lo. Arrancamo-nos do hen kaí pan pacífico do mundo para produzi-lo por nós mesmos. Desintegramo-nos da natureza e aquilo que uma vez, como se pode crer, foi um, opõe-se agora a si, e senhoria e escravidão alternam-se em ambos os lados. Muitas vezes para nós é como se o mundo fosse tudo e nós, nada; e outras vezes, como se fôssemos tudo e o mundo, nada. Terminar essa oposição entre o nosso eu e o mundo, restaurar a paz de todas as pazes, mais alta do que toda razão, reunir-nos com a natureza numa totalidade infinita, essa é a finalidade de todo nosso esforço, quer o entendamos quer não. Mas nem o nosso conhecimento, nem a nossa ação, atinge qualquer período da existência em que toda oposição cesse, em que tudo seja um; a linha determinada se reúne com a indeterminada somente numa aproximação infinita.[21]
Nesse texto, distinguem-se claramente as três épocas que mencionei: (1) a da unidade original (“unidade sagrada”), que fica no passado; (2) a da perda da unidade, que fica no presente; e (3) a da unidade recuperada, que fica no futuro.
Contrariando a suposição corrente de que Schiller tenha influenciado Hölderlin no que toca a essas questões, Violetta Waibel sustenta o oposto, isto é, que Hölderlin influenciou Schiller. Em apoio a essa tese, cita um trecho do chamado “Fragmento de Thalia”, do Hipérion, publicado no final de 1794 (quando o trecho citado de Schiller foi publicado entre 1795 e 1796), em que se lê: “A simplicidade e a inocência dos primeiros tempos morreram para voltar com a educação consumada, e a paz sagrada do paraíso afundou para que o que era apenas dom da natureza refloresça, como propriedade conquistada pela humanidade”.[22]
Na verdade, penso que a questão de prioridade é atualmente indecidível e, no fundo, irrelevante, pois o esboço da filosofia da história que aqui se enuncia já constituía uma das possibilidades combinatórias presentes no horizonte intelectual descortinado por Kant, que, na sua Ideia de uma história geral, do ponto de vista cosmopolita, admite três condições (Zustände) sucessivas da humanidade: uma condição primitiva de selvageria, no passado; uma condição de antagonismo dos homens na sociedade, no presente; e, finalmente, uma condição de uma constituição civil perfeita, no futuro. “Pode considerar-se a história do gênero humano grosso modo”, diz ele, “como a realização de um plano oculto da natureza para produzir uma constituição estatal internamente — e, para isso, também externamente — perfeita, como a única condição em que possa desenvolver plenamente todas as suas disposições na humanidade.”[23]
Do estado de natureza selvagem passa-se, segundo ele, através de uma condição histórica em que “a natureza humana sofre o pior mal, sob a aparência ilusória de bem estar externo”,[24] para um estado que realiza um plano oculto da própria natureza, que, assim, se vê mais plenamente realizada, no fim da história. Se, portanto, alguém tem precedência na autoria dessa concepção da história, cuja origem última, contudo, é sem dúvida neoplatônica, não é Hölderlin nem Schiller, nem Hegel, nem Schelling, mas Kant.
Entretanto, apesar de comum a todos esses autores, a concepção tripartite da história se manifesta de modo diferente, incorporando diferentes elementos, adquirindo diferentes funções e integrando-se de modo diferente no pensamento sistemático de cada um deles. Dito isso, é preciso reconhecer que Schiller e Hölderlin encontram se bastante próximos, nesse ponto.
Em relação a este último, Konrad, na sua interpretação do texto “Sobre o modo de proceder do espírito poético”, assim determina essas três épocas, ou, como diz Hölderlin, “estados” (a palavra que ele emprega é a mesma de Kant: Zustände) do percurso de formação do espírito:
O estado da infância da vida ordinária é o estado excessivamente objetivo da pura entrega. A criação do espírito poético é nele genial, dirigido pelo instinto.
O estado da juventude, o estado intermediário excessivamente subjetivo é caracterizado como o estado da perda do mundo, do puro estar-em-si do espírito. Sua atividade criativa é dirigida pelo juízo, livremente determinada pelo eu, artificial. É o estado do dilaceramento entre tendências contraditórias.
O estado da maturidade não é nem excessivamente subjetivo nem excessivamente objetivo, pois nele a contraposição harmônica entre o sujeito e o objeto é reconhecida e está disponível. A criação do espírito poético é nesse estado a consumação do gênio e da arte, reúne a verdade de ambos os modos de criação e se libera assim da sua unilatera lidade e imperfeição.[25]
A unidade original (natureza)
Consideremos a primeira época. “Unidade sagrada”, “ser” (Seyn), hen kaí pan, “natureza”: todas essas expressões são equivalentes, nesse contexto. A cada uma delas se opõe a primeira pessoa do plural, isto é, “nós”: a unidade sagrada se perdeu para nós; o ser se perdeu para nós; nós nos arrancamos do hen kaí pan; nós nos desintegramos da natureza. Quem somos nós? Evidentemente, a humanidade tal como se encontra hoje: tanto Hölderlin quanto eu e o leitor, todos os que vivemos na modernidade. O ser que é a unidade sagrada é aquele a que se refere o segmento (4) de “Juízo e ser”, isto é, o que exprime a ligação do sujeito e objeto, anterior a qualquer cisão. É por termos noção desse ser que somos capazes de almejar reconstituí-lo, tentando reunir a natureza (objeto) a nós (sujeito). Entretanto, é fundamental entender que, para Hölderlin, o conceito de “natureza” não se reduz ao de objeto. A natureza se apresenta como objeto somente para o sujeito que dela já se separou.
É por meio do pensamento de Spinoza que “ser” (Seyn) passa a ser tomado como equivalente a “natureza”. Seyn é a grafia do século XVIII para sein. Hölderlin, seguindo Friedrich Jacobi, que, no final do século XVIII, havia posto em voga a filosofia de Spinoza,[26] empregava a palavra Seyn tencionando designar aquilo que o autor da Ética chamava de substantia.[27] Spinoza fala de Deus sive substantia e de Deus sive natura, locuções que resultam no lema Deus sive substantia sive natura: “Deus, isto é, a substância, isto é, a natureza”. É dessa forma que o ser (o Seyn de Urteil und Seyn) se identifica, para Hölderlin, com a natureza. Isso nos traz à locução hen kaí pan. Em Tübingen, ela era o moto dos três amigos, Hegel, Schelling e Hölderlin. Trata-se de uma frase grega que significa “um que é também tudo” (possivelmente derivada do trecho do fragmento B 10,[28] de Heráclito, que diz “e de todas as coisas uma e de uma todas as coisas”) que, segundo Jacobi, era um dos modos pelos quais Lessing exprimia o seu panteísmo spinozista. É importante lembrar, porém, que, para Spinoza, não é a natureza simpliciter que se identifica com a substância ou Deus, mas só a que ele denomina natura naturans (“natureza naturante”) em oposição à que denomina natura naturata (“natureza naturada”). A primeira é a natureza considerada como os atributos que exprimem uma essência eterna e infinita, ou como uma causa livre, isto é, como causa de si mesma. A segunda é a natureza tomada como o conjunto dos efeitos da primeira, o conjunto dos modos finitos e temporais dos atributos de Deus.[29]
O conceito de “natureza” de Hölderlin é também devedor de uma linha de pensamento vitalista e organicista que, vinda do neoplatonismo da Renascença, em particular de Giordano Bruno, resplandece em Shaftesbury, passa por Diderot e Herder, e estimula o Kant da Terceira Crítica.
Contra o dualismo cartesiano de pensamento e extensão, Shaftesbury, à maneira de Aristóteles, toma a alma como a forma, isto é, como o princípio da unidade, da atividade e da finalidade do corpo. Ele o faz porém de maneira tão radical que, no fundo, reduz a diferença entre corpo e alma a uma distinctio rationis. Cada corpo constitui um sistema organizado pela sua forma. Cada sistema finito constitui um subsistema de um sistema que o abarca. Segundo essa concepção, o universo é — a formulação é de Richard Glauser — “um sistema completamente harmônico de um número indefinidamente grande de subsistemas estratificados, teleologicamente estruturados e relativamente harmônicos”,[30] desde Deus, que é a forma do sistema onicompreensivo, isto é, segundo a descrição de Herder,[31] “die Urkraft aller Kräfte, Organ aller Organe” (a força primordial de todas as forças, o órgão de todos os órgãos), até uma pedra, que já constitui um subsistema complexo. A fórmula de Schelling segundo a qual “a natureza deve ser o espírito visível, o espírito, a natureza visível”[32] exprime essa ideia.
Para Shaftesbury, a beleza, que percebemos em ordem, proporção, harmonia, é a verdade. Pois bem, podemos perceber harmonia em qualquer coisa: por exemplo, numa escultura. Para Shaftesbury, não é, evidentemente, a matéria de que é feita a escultura que possui harmonia ou beleza, mas a forma. Ora, o que deu forma à escultura foi a arte que a produziu. Isso quer dizer que, na verdade, aquilo que possui beleza — sendo, por isso, capaz de conferi-la à matéria de que é feita a escultura — é a arte. Essa constatação lhe permite afirmar que “the art is that which beautifies” (a arte é aquilo que embeleza).[33] O passo seguinte generaliza essa declaração com uma proposição que ficou famosa: “So the beautifying, not the beautified, is the really beautiful” (portanto o embelezante, não o embelezado, é o realmente belo).[34] Assim, “o belo, o bonito, o formoso nunca estiveram na matéria mas na arte e no desígnio, nunca no corpo mesmo, mas na forma ou no poder formativo”.[35] Finalmente, de todas as formas, as mais belas são as que têm o poder de fazer outras formas, que ele chama de “forming forms” (formas formativas).[36]
Com base em tais considerações, Shaftesbury estabelece uma hierarquia da beleza tal que, quando plenamente desdobrada, chega a compreender sete graus.[37] Entretanto, os três graus que ele cita em The Moralists bastam para dar uma noção de suas ideias. São eles: (1) o grau das formas mortas, que são apenas formadas, porém não são formativas; (2) o das formas formativas finitas que formam as formas mortas, e, finalmente, (3) o da forma formativa infinita, que forma as formas formativas finitas. Prima facie, o ser humano consiste numa forma formativa finita, já que ele forma, como foi dito, obras de arte. Isso significa que ele pode aspirar à beleza do segundo grau. Todavia, as coisas não são tão simples, pois, enquanto a beleza do corpo humano pertence ao primeiro grau, a da alma pertence ao segundo. Mas, além de produzir obras de arte, o ser humano é capaz de educar a si próprio e ao outros seres humanos: é capaz de se fazer virtuoso e de encaminhar outros à virtude. Nesse sentido, ele mesmo forma formas formativas finitas, de modo que é capaz de participar da beleza do terceiro grau.
Assim como, para Platão, a contemplação da beleza das coisas materiais é apenas o preâmbulo para a contemplação da beleza em si, para Shaftesbury passa-se do entusiasmo pela beleza das formas materiais e criadas ao entusiasmo — isto é, ao deixar-se possuir — pela forma formativa infinita, que é a força criativa. Identificando-se com ela, como diz Cassirer, “o gênio artístico não imita a natureza feita, mas o gênio criador do universo mesmo”,[38] pois “a verdade da natureza não se alcança na imitação, mas na criação; porque a natu reza mesma, em seu mais profundo sentido, não é o nome coletivo do criado, mas a força criadora de que manam a forma e a ordem do universo”.[39]
Em um livro cuja ambição sintética se manifesta no próprio título— Gott: Einige Gespräche über Spinoza’s System nebst Shaftesbury’s Naturhymnus (Deus: alguns colóquios sobre o sistemade Spinoza ao lado do Hino à natureza de Shaftesbury) —, Herder identifica essa força orgânica suprema com a natura naturans de Spinoza, manobra pela qual esta última adquire uma dimensão vitalista, criativa e teleológica. Com isso, a figura do gênio recebe um fundamento ontológico: no mundo em que os seres humanos se separaram da natureza, o gênio é aquele que com ela mantém uma relação privilegiada: ele é a manifestação e o instrumento da natura naturans.
Kant, mais sóbrio, não especula sobre força suprema alguma. Para ele, “o gênio é a disposição mental inata (ingenium) através da qual a natureza dá a regra à arte”.[40] A relação privilegiada do gênio com a natureza se limita, desse modo, ao fato de que ele é inato, e não aprendido. O gênio é um resultado de fatores como a potência e a disposição das faculdades humanas, em particular da imaginação e do entendimento, e da relação que elas mantêm umas com as outras. Ele apreende e exprime ideias estéticas, isto é, ideias “que dão muito a pensar, sem que no entanto nenhum pensamento determinado, isto é, nenhum conceito, possa ser-lhes adequado”.[41] O campo de atuação do gênio é, por isso, o das belas-artes.
De modo semelhante, embora não idêntico, quando Schiller afirma que “todo verdadeiro gênio deve ser ingênuo, do contrário não é gênio”,[42] o que está dizendo é que o gênio é natural, isto é, produto da natureza, e não da arte: e que também aquilo que o gênio produz é natural e não artificial, no sentido de ser espontâneo e não afetado. Kant já havia afirmado que “no que diz respeito a um produto das belas-artes, deve-se estar consciente de que é arte, e não natureza; no entanto, a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre quanto se fosse um produto da pura natureza”.[43]
Assim, Kant já anuncia o passo que viria a ser dado por Schiller. Para este, já não é propriamente a natureza o princípio do gênio que produz as belas-artes, mas a naturalidade. Ora, a naturalidade — que produz a graça — já não se encontra necessariamente no estado de natureza enquanto tal, mas antes na harmonia espontânea entre o ser humano e a natureza, o artificial e o cultural. Essa harmonia ele descobre, em primeiro lugar, na Grécia antiga.
É essa mesma idealização da Grécia antiga — que, na Alemanha, remonta ao historiador da arte Johann Winckelmann — que leva a um desdobramento curioso do esboço da filosofia da história de Hölderlin. Já vimos que, para ele, a natureza corresponde ao ser primordial, anterior à cisão constitutiva do sujeito e do objeto: anterior, portanto, à linguagem conceitual. Dado isso, seria de esperar que a época concreta da história da humanidade que a representasse fosse a do ser humano primitivo e inarticulado. Tratar-se-ia de um estado que, a rigor, seria mais bem classificado de “pré-história” do que de “época” histórica. Na realidade, porém, tanto para ele quanto para Schiller, é a Grécia antiga que proporciona o modelo do estado da infância da humanidade. É que, segundo ambos pensavam, a Grécia antiga representa o momento de harmonia entre o ser humano e a natureza, o momento em que o ser humano, em vez de se opor antagonicamente à natureza, compraz-se em dela fazer parte. Sendo assim, o mundo helênico oferece ao mundo moderno, dilacerado pelas dicotomias entre cultura e natureza, mente e corpo, intelecto e sensibilidade, liberdade e necessidade etc., um contraponto muito mais fecundo do que o estado de selvageria.
De todo modo, o fato é que se nota certa indecisão — tanto de Schiller quanto de Hölderlin — em relação a essa questão. Konrad observa que à primeira vista há, por parte deste último — pelo menos no texto “Sobre o modo de proceder do espírito poético” —, inconsistência na determinação do primeiro estado do percurso de formação do espírito, isto é, do estado em que “o espírito vem a si no outro (no mundo, na natureza): do estado excessivamente objetivo”.[44] É que, por um lado, Hölderlin o caracteriza como o estado em que o ser humano “era idêntico ao mundo” e, por outro lado, como o estado em que o ser humano “quer se colocar” como idêntico ao mundo.[45] Ora, pergunta Konrad, como é possível que o homem queira se colocar como idêntico a sua esfera objetiva, no momento em que ele já é idêntico a ela?[46] Sua resposta é que
o estado excessivamente objetivo é o estado da autoconsciência nascente. Na medida em que a autoconsciência ainda deve nascer, o ser humano não tem autoconsciência, ainda é idêntico ao mundo. À medida, porém, que a autoconsciência surge, surge a oposição entre a vida e a personalidade; ambos os lados se reúnem no ato da entrega à vida objetiva, da “acomodação”.[47]
A entrega “pressupõe a oposição entre sujeito e objeto; pois, quando sujeito e objeto são um só, o sujeito não pode entregar-se ao objeto”.[48] Sendo assim, podemos dividir o estado da natureza entre, por um lado, aquele em que sujeito e objeto não se diferenciaram — que seria aquele em que o homem selvagem conhece a “felicidade das plantas” de que fala Hölderlin, e, por outro, aquele em que, já se tendo separado sujeito e objeto, o ser humano, no entanto, se identifica voluntariamente com a natureza, à qual se entrega. Se o primeiro é o estado da natureza propriamente dito, de modo que pertence à pré-história, o segundo seria o que poderíamos chamar de estado de naturalidade, e foi encarnado historicamente pela Grécia antiga.
Creio ser exatamente essa diferença que permite entender um trecho muito controverso de uma carta de Hölderlin a Böhlendorff. Cito-o:
Nada aprendemos com mais dificuldade do que a usar livremente o nacional. E, segundo penso, precisamente a clareza da exposição é-nos originalmente tão natural quanto aos gregos o fogo do céu. Exatamente por isso, estes serão superados antes na bela paixão […] do que na presença de espírito e na capacidade expositiva de Homero.
Parece paradoxal. Porém o reafirmo e submeto a teu exame e tua disposição: com o progresso da educação, o nacional autêntico torna-se a menor vantagem. Por isso os gregos são menos magistrais no páthos sagrado, já que lhes é inato, e, ao contrário, são excelentes na capacidade expositiva, desde Homero, pois esse homem extraordinário foi bastante vital para roubar a sobriedade junônica ocidental para o seu reino de Apolo e assim verdadeiramente apropriar-se do alheio.
Mas o próprio tem que ser tão bem aprendido quanto o alheio. Por isso os gregos nos são indispensáveis. Porém no que diz respeito ao que nos é próprio, nacional, não os alcançaremos, pois, como foi dito, o uso livre do próprio é o mais difícil.[49]
O “fogo do céu” é o sol, o reino de Apolo. O nascimento da tragédia não tendo ainda sido escrito por Nietzsche, que ainda demoraria cinquenta anos para nascer, ainda não eram considerados opostos Apolo, como principium individuationis, e Dioniso, como a dissolução desse princípio. Para Hölderlin, Apolo também ignora essa oposição, entusiasmando e pondo fora de si, num pathos sagrado, os seus profetas. Até há pouco tempo supunha-se — talvez por que, na Ilíada, ele seja aliado dos troianos — que Apolo fosse de origem oriental, provavelmente da Lícia. O efeito do fogo de Apolo, deus da música, não é, aqui, diferente do efeito do vinho de Dioniso. Assim como este, também aquele representa a comunhão com a natureza, anterior à cisão. Esse pathos sagrado é, para Hölderlin, o estado natural dos gregos anteriores a Homero, isto é, anteriores à poesia e à arte. Tais são os gregos do primeiro estado da natureza.
Quanto a Juno, ou Hera, ela foi não só inimiga dos troianos mas de Dioniso, tendo arquitetado a morte da mãe dele, Sêmele. Peter Szondi observa que, no Gründliches Lexicon Mythologicum utilizado por Hölderlin, Juno representa a sobriedade.[50] Mas Hölderlin talvez tivesse em mente a Juno Ludovisi, uma colossal cabeça de mármore esculpida na Antiguidade, que se supunha pretender retratar a esposa de Júpiter. Schiller exaltou a graça, a dignidade e a auto-suficiência da sua expressão, e Herder “a majestade, o esplendor e a grandeza do seu rosto sereno”,[51] atributos sem dúvida opostos aos de quem se entrega ao pathos sagrado.
Hölderlin, em carta a Steinkopf, afirma que a poesia “não deve ser apenas explosão apaixonada e caprichosa, nem deve ser uma peça de arte forçada e fria, mas deve surgir ao mesmo tempo da vida e do entendimento ordenador, da sensação e da convicção”.[52]
Isso explica por que, segundo ele, Homero, para fazer seus poemas, “roubou a sobriedade junônica ocidental para o seu reino de Apolo”. A sobriedade representa uma primeira separação entre sujeito e objeto, ser humano e natureza. Ao mesmo tempo, porém, ela é a con dição para a produção dos poemas. O poeta compõe seus poemas quando, entusiasmado pelo fogo de Apolo e das Musas, toma um gole da água sóbria que roubou ao cântaro de Juno. Com esse gole, ele se separa de si apenas o suficiente para poder deleitar-se com sua própria imagem, contraposta a si. Na arte, como diz Hölderlin no Hipérion, “rejuvenesce e retorna a si mesmo o ser humano divino. Ele quer sentir-se, por isso contrapõe sua beleza a si. Dessa maneira o ser humano deu-se a si próprio os seus deuses. Pois no princípio o ser humano e os seus deuses eram um só, quando era desconhecida de si própria a beleza eterna”.[53]
É assim que o autor da Ilíada transporta a Grécia do estado da natureza para o estado da naturalidade.
A perda da unidade (história)
A segunda época da história é a da unidade perdida, a época em que já se cindiu a unidade primordial. Ela tem início com o helenismo alexandrino ou o cristianismo e abarca a nossa modernidade. Por direito, trata-se, é claro, de uma etapa intermediária, oposta tanto à primeira e “sagrada” unidade, que se encontrava no passado, quanto à segunda, recuperada, que se encontrará (talvez) no futuro. Vivemos no mundo que já se cindiu e que ainda não se reunificou. Embora essa cisão tenha sido a condição da liberdade, o mundo cindido é um mundo infeliz. O absoluto original, a unidade primordial do ser ou da natureza já se perdeu. Cada um de nós se toma como sujeito e toma a natureza, da qual se separou, como objeto. Cada um de nós toma o outro ser humano, do qual se separou, como objeto e é tomado como objeto por ele. Cada um de nós se cinde em mente (sujeito) e corpo (objeto). Ao mesmo tempo, o próprio sujeito, ao refletir sobre si mesmo, cinde-se em sujeito e objeto do pensamento; e o próprio sujeito do pensamento, ao refletir sobre si mesmo, volta a se cindir, incessantemente, sem repouso. Assim, o ser humano continuamente se aliena tanto da natureza externa quanto da natureza humana e mesmo da natureza interna a si próprio. O resultado concreto disso tudo é que o mundo moderno consiste “numa monstruosa multiplicidade de contradições e contrastes”, como diz Hölderlin, em carta a Johann Gottfried Ebel:
Velho e novo! Cultura e brutalidade! Maldade e paixão! Egoísmo em pele de cordeiro, egoísmo em pele de lobo! Superstição e descrença! Escravidão e despotismo! Inteligência irracional, racionalidade sem inteligência! Sentimento sem espírito, espírito sem sentimento! História, experiência, tradição sem filosofia, filosofia sem experiência! Energia sem princípios, princípios sem energia! Força desumana, humanidade sem força! Gentileza hipócrita, impudência desavergonhada! Jovens precoces, homens tolos! Poder-se-ia continuar a ladainha do nascer do sol até a meia-noite sem nomear nem um milésimo do caos humano.[54]
Esse retrato da modernidade deve sem dúvida algo ao Schiller das Cartas sobre a educação estética da humanidade, que afirmava: “Assim vê-se o espírito da época oscilar entre a perversão e a brutalidade, a desnaturação e a pura natureza, a superstição e a descrença moral, e é só o equilíbrio do mal que ainda, ocasionalmente, estabelece-lhe limites”.[55]
Tais textos lembram — e sem dúvida repercutem — as devastadoras diatribes de Jean-Jacques Rousseau. Para dar uma ideia da força — e da desconcertante atualidade — dessas condenações da modernidade, permito-me citar um trecho relativamente longo do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:
Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova: entretanto o homem é naturalmente bom, creio tê-lo demonstrado: o que é então que pode tê-lo depravado a esse ponto, senão as mudanças ocorridas na sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Admire-se tanto quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela leva necessariamente os homens a se entre detestarem à proporção que seus interesses se cruzem, a se prestarem mutuamente serviços aparentes e a se fazerem efetivamente todos os males imagináveis. Que pensar de um comércio em que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um lucra com a infelicidade de outro? Não há talvez nenhum homem rico a quem herdeiros ávidos, e às vezes seus próprios filhos, não desejem secretamente a morte; nenhum navio ao mar cujo naufrágio não seja uma boa notícia para algum negociante; nenhuma casa que um devedor de má-fé não queira ver queimar com todos os papéis que contém; nenhum povo que não se alegre com os desastres de seus vizinhos. É assim que achamos nossa vantagem no prejuízo de nossos semelhantes e que a perda de um faz quase sempre a prosperidade do outro. Mas o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas constituem a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem doenças, outros a mortalidade, outros a guerra, outros ainda a fome… Se me respondem que a sociedade é constituída de tal modo que cada homem ganha ao servir os outros, replicarei que isso seria muito bom, se ele não ganhasse ainda mais ao prejudicá-los. Não há lucro tão legítimo que não seja ultrapassado pelo que se pode fazer ilegitimamente e o mal feito ao próximo é sempre mais lucrativo que os serviços. Não se trata, portanto, senão de achar os meios de se garantir a impunidade, e é nisso que os poderosos empregam todas as suas forças e os fracos toda a sua astúcia.[56]
Também o diagnóstico de Rousseau, segundo o qual os males crescem à medida que os homens se afastam do estado de natureza, pôde, até certo ponto, ser aceito tanto por Schiller quanto por Hölderlin.
Estranhamente, apesar da letra de tantos textos do próprio Hölderlin, Peter Szondi nega — num livro em todo caso admirável — que o poeta acreditasse haver uma diferença de princípio, tal como a que aqui delineei, entre a Antiguidade grega e a modernidade. Segundo ele, Hölderlin — ao contrário, por exemplo, de Schlegel, que concebia a formatividade moderna como artificial, em oposição à formatividade natural dos antigos — pensa que toda arte, antiga e moderna, procede do “fundamento comum originário”[57] mencionado pelo poeta no fragmento conhecido como “O ponto de vista a partir do qual temos que olhar a Antiguidade”. Esse fundamento seria o impulso à formatividade. Szondi sustenta que, para Hölderlin, o que realmente opõe os modernos aos antigos é o fato de que estes, apresentando-se a nós como uma coleção de obras terminadas e paradigmáticas, obstam ao “nosso impulso original que se dirige a formar o informe, a aperfeiçoar o originalmente natural”.[58] Hölderlin estaria, portanto, defendendo os direitos da vida “contra a superioridade opressiva do positivo”.[59]
Ora, é inegável que no texto citado Hölderlin se preocupa expressamente com a opressão que o positivo, inerte, morto, exerce, na época moderna, sobre a ambição formativa, criativa, vital do ser humano. Entretanto, não se vê por que razão o reconhecimento da vigência dessa opressão teria que ser incompatível com a tese, que Hölderlin manifestamente defende em tantos outros textos, de que há uma diferença de princípio entre a Antiguidade e a modernidade. Parece-me, ao contrário, que é precisamente essa diferença que permite compreender a importância que aquela opressão assume na modernidade. Para Hölderlin, como vimos, a perda da unidade original — ocorrida em consequência das cisões constitutivas da modernidade — reparte tanto a natureza quanto o ser humano, seu cosmo, sua cultura, sua história, em duas esferas mutuamente excludentes: por um lado, na da subjetividade formal — e negativa — e, por outro lado, na das objetividades naturais e artificiais: e positivas. Lembremo-nos de que ele afirmava que, em tal situação, “desintegramo-nos da natureza e aquilo que uma vez, como se pode crer, foi um, opõe-se agora a si, e senhoria e escravidão alternam-se em ambos os lados. Muitas vezes para nós é como se o mundo fosse tudo, e nós nada; e outras vezes, como se fôssemos tudo, e o mundo nada”.[60]
É porque é na modernidade — entendida no sentido amplo em que a defini — que verdadeiramente constituem-se tanto o sujeito (o negativo) quanto o objeto (o positivo), que este pode oprimir aquele (ou vice-versa).
A explicação alternativa — sugerida, sem dúvida, pelo texto do fragmento “O ponto de vista…” — seria a tese de que a modernidade é o estado em que, num mundo desde sempre, ou seja, a-historicamente, dividido entre um polo negativo (e subjetivo) e um polo positivo (e objetivo), uma mudança meramente quantitativa, a saber, uma acumulação excessiva de positividades paradigmáticas, tenha, com a passagem do tempo, acabado por alterar o equilíbrio em benefício do segundo e, correlativamente, em detrimento do primeiro. Essa hipótese me parece insustentável por duas razões. Em primeiro lugar, se, de acordo com ela, o mundo é desde sempre dividido num polo negativo e num polo positivo, então toda natureza e toda cultura também constituem conjuntos de positividades. Se fosse assim, porém, não haveria por que pensar que nos defrontamos com mais positividades paradigmáticas do que os gregos, que certamente conheciam positividades de outra natureza e de outras culturas (até mesmo asiáticas e africanas) que hoje ignoramos. Em segundo lugar — e mais fundamentalmente —, dado que o polo subjetivo-negativo é incomensurável com o polo objetivo-positivo, a oposição entre um e outro é, desde sempre, absoluta. Ora, ela assim seria ainda que houvesse apenas uma positividade no mundo: consequentemente, no que diz respeito a tal oposição, o número de positividades efetivamente existentes não pode fazer diferença alguma.
Em vista tanto dessa conclusão quanto do fato de que a hipótese em questão não é coerente com as teses desenvolvidas por Hölderlin em outros textos, parece-me plausível considerar o fragmento em que ela se apoia (“O ponto de vista…”) como uma anotação esporádica. A própria problemática da positividade talvez seja resultado da influência de Hegel, que, na época — presumivelmente entre 1798 e 1799 —,[61] convivia com ele, em Frankfurt, onde se dedicava — como se observa nos “Manuscritos de Frankfurt” — precisamente à crítica da religião positiva. Seja como for, a conjectura de Szondi, embora compreensível como uma tentativa de obviar a certas notórias apropriações reacionárias do pensamento de Hölderlin, parece-me desprovida de fundamento.
A unidade recuperada (utopia)
A época infeliz em que o ser humano se opôs à natureza — tanto à interna quanto à externa a si próprio — foi necessária para que ele reconhecesse o seu caráter de ser livre e racional, e, portanto, ético. O ponto alto desse reconhecimento é a afirmação da autonomia ética, que já se anunciara em Shaftesbury, mas que adquire formulação definitiva na Crítica da razão prática, de Kant. A importância do reconhecimento da autonomia ética se encontra no fato de que, com ela, destroem-se as principais racionalizações dos autoritarismos político e religioso, que são: a pretensão do último de ser a única fonte dos mandamentos morais, e a do primeiro de ser o zelador dessa moral heterônoma. Hölderlin é plenamente consciente disso; em carta ao irmão, datada de 1793 — logo, um ano após a abolição da monarquia na França e oito meses após o guilhotinamento de Luís XVI —, ele declara:
Amo a geração do próximo século. Pois a minha esperança mais sagrada, a crença que me mantém forte e ativo é a de que nossos netos serão melhores do que nós; a liberdade deve enfim chegar e a virtude prosperará mais à luz sagrada e ardente da liberdade do que na zona gélida do despotismo. Vivemos numa época em que tudo prepara melhores dias. Essa semente do iluminismo [Aufklärung], esse calmo desejo e esforço de alguns para a educação do gênero humano será expandido e fortalecido, e dará frutos gloriosos.[62]
Em síntese, pode-se dizer que a aspiração de Hölderlin é de que a liberdade, a racionalidade e a autonomia ética descobertas pelo iluminismo possam realizar-se e expandir-se em todo o mundo, e de que, ao mesmo tempo, sejam superadas as cisões pelas quais elas foram descobertas. A segunda parte dessa aspiração se encontra expressa em inúmeros textos de sua autoria, como, por exemplo, no Hipérion:
Eles virão, os teus homens, Natureza! Um povo rejuvenescido rejuvenescer-te-á e serás como sua noiva e a antiga aliança dos espíritos renovar-se-á contigo. Haverá de ser uma única beleza; e a humanidade e a natureza haverão de reunir-se em uma divindade onicompreensiva.[63]
Assim também, ao cabo do prefácio, anteriormente citado, à penúltima redação do Hipérion, Hölderlin afirma que
não teríamos nenhuma noção daquela paz infinita, daquele ser no único sentido da palavra, nem sequer tentaríamos reunir a natureza a nós, não pensaríamos e não agiríamos, não haveria absolutamente nada [para nós], nós mesmos não seríamos nada [para nós] se não fosse dada aquela unidade infinita, aquele ser no único sentido da palavra. Ele é dado: como beleza. Ele aguarda, para falar como Hipérion, um novo reino em nós, em que a beleza é rainha.[64]
Conservando a liberdade conquistada, terminar a oposição entre nós e o mundo é portanto a finalidade ideal de nossa vida, o ponto para onde convergem as de nossas ações que, talvez, não possa ser jamais alcançado. Entretanto, ele é dado e se oferece como finalidade ideal na beleza.
Num ensaio célebre, Schiller havia feito uma distinção entre poesia ingênua e poesia sentimental. Notoriamente inadequadas, essas expressões prestam-se a incontáveis mal-entendidos, de modo que, para captar o que significam nesse contexto, recomenda-se pôr entre parênteses os sentidos convencionais das palavras “ingênuo” e “sentimental”. O que Schiller quer dizer é que o poeta ou é natureza ou busca a natureza. “Aquele é o poeta ingênuo; este, o sentimental.”[65]
Assim, o poeta ingênuo é, em primeiro lugar, o poeta grego, como Homero, que se separa da natureza em que se encontrava imerso, mas o faz apenas para poder namorá-la. O poeta sentimental, de outro modo, é o poeta moderno, que já sofreu a cisão, mas cuja poesia é capaz de, “pelo caminho da razão e da liberdade, levar-nos de volta à natureza”,[66] isto é, a uma nova unidade, posterior à cisão. É assim que o que era natureza, para o poeta antigo, torna-se, para o poeta moderno, ideal. De qualquer maneira, o poeta moderno busca a natureza porque, de algum modo, já tem com ela uma relação — que se manifesta também como saudade, nostalgia ou anelo (Sehn sucht) — privilegiada. Nesse anelo fundem-se origem e destino.
“Sempre no ser humano”, diz Wilhelm von Humboldt, cujas ideias sobre a Grécia inspiraram Schiller, “aquilo que é o mais consumado liga-se imediatamente ao mais originário, do qual é como que só uma descrição ou tradução mais clara”.[67] Schiller parece pensar até que mesmo o poeta moderno e sentimental é, de certo modo — quando genial — ingênuo, quando diz que “todo gênio verdadeiro é necessariamente ingênuo, ou não é gênio”.[68]
Essa relação privilegiada com a natureza é expressa por Hölderlin na primeira estrofe de um poema dedicado ao jovem Napoleão quando este, aos olhos do poeta, encarnava a também então jovem república revolucionária que surgira da Revolução Francesa:
Buonaparte
Vasos sagrados são os poetas
Em que o vinho da vida, o espírito
Dos heróis se preserva,
Mas o espírito desse jovem,
O rápido, não explodiria
Qualquer vaso que quisesse contê-lo?
Que o poeta o largue intacto como o espírito da natureza,
Em tal matéria torna-se aprendiz o mestre.
No poema ele não pode viver e ficar;
Ele vive e fica no mundo.**
Os poetas são vasos sagrados porque neles o vinho da vida, o espírito dos heróis é preservado. O vinho da vida é identificado ao espírito dos heróis. O vinho representa a unidade do espírito e da matéria, pois, vindo da uva, que vem da vinha, que vem da terra, torna os homens espirituosos. Dioniso, filho de Zeus e de Sêmele, uma mortal, é o deus do vinho e da vinha. Também os heróis são rebentos do casamento de deuses com mortais. São, portanto, a unidade de natureza e divindade: a natureza divina ou a divindade natural, isto é, a natureza original. Os poetas preservam em si esse vinho, o espírito dos heróis, e o transmitem aos seus poemas. Os poemas, então, guardam esse vinho ou espírito, que é experimentado pelo leitor. Platão, no diálogo Íon, diz que as Musas entusiasmam o poeta, que entusiasma o seu poema, que, por sua vez, entusiasma o rapsodo, que, finalmente, entusiasma a audiência; tudo mais ou menos como um ímã atrai um anel de ferro que atrai um segundo, e assim por diante. Aqui, o que Hölderlin chama de “espírito da natureza” entusiasma o herói, que entusiasma o poeta, que entusiasma o seu poema, que entusiasma o leitor. Bonaparte, porém, parece a Hölderlin um herói moderno, que não apenas restaurará a unidade perdida, mas ao mesmo tempo instaurará a liberdade no mundo. É em virtude dessa missão manifesta que ele não pode nem deve ser contido no poema, que, no entanto, o invoca e é por ele, como pelo espírito da natureza, inspirado.
Poesia
Não seria aqui o lugar para recapitular — ou melhor, para tentar restaurar — todas as obsessivas classificações ou seguir todos os meandros do raciocínio de Hölderlin tal como se apresenta nas suas anotações inéditas, fragmentárias e inconclusas intituladas “Sobre o modo de proceder do espírito poético”. Remeto o leitor interessado em destrinçar esse texto difícil porém instigante a duas obras previamente citadas: à de Konrad, já clássica, e à de Waibel, contemporânea. Limito-me a dizer algumas palavras sobre ele, apenas suficientes para chegar ao conceito que me interessa, que é o de contraposição harmônica.
Uma vez que, como se viu em “Juízo e ser”, a teoria e o conceito não são capazes de apreender o ser, só a intuição estética, que se dá como beleza, pode fazê-lo. Lê-se no Hipérion que
a primogênita da beleza humana, da beleza divina é a arte. Nela rejuvenesce e retorna o próprio ser humano divino. Ele quer sentir-se, por isso contrapõe a si a sua beleza. Assim deu-se o ser humano os seus deuses. Pois no princípio o homem e seus deuses eram um, quando era desconhecida de si própria a beleza eterna.[69]
A beleza eterna é desconhecida de si própria exatamente por que ainda não se contrapõe ao ser humano: confunde-se com ele, como ele se confunde com a natureza; confunde-se com o ser. Ela não se apresenta, portanto, enquanto tal. Para fazê-lo, ela tem de se separar do ser humano e este tem de contrapô-la a si. Só então pode ela ser a manifestação do ser — do ser absoluto, não cindido — no ente particular.[70] Isso ocorre na obra de arte que, por isso, é a primogênita da beleza divina. Contudo, para contrapor-se, como ente particular, ao ser humano, é necessário que este já se tenha constituído enquanto sujeito: é necessário, portanto, que já tenha tido lugar, para ele, a cisão constitutiva tanto do sujeito quanto do objeto. É somente então que a arte pode dar-nos o conhecimento do ser, que o discurso conceitual da filosofia não é capaz de atingir.
Em “Sobre o modo de proceder do espírito poético”, Hölderlin diz que o poeta deve compreender que “surge uma oposição entre a exigência mais original do espírito, que é a de comunidade e simultaneidade de todas as partes, e a outra exigência, que lhe impõe sair de si e, em belo progresso e alternância, reproduzir-se em si mesmo e em outros”.[71]
A comunidade e a simultaneidade de todas as partes do espírito é o que ele experimenta com a intuição imediata da unidade do ser: é a que ele experimenta enquanto natureza. Como artista, porém, ele tem necessidade de reproduzir essa intuição em outro, isto é, na obra. O artista, ou melhor, o poeta — para falarmos à maneira de Hölderlin —, se vê portanto entre dois polos: o da intuição imediata da unidade do ser, que é o polo da natureza, e o da mediação entre sujeito e objeto, isto é, o da elaboração da obra, que é o polo da arte. Mais fundamental do que esta última mediação, que se dá somente no polo da arte, é a mediação entre cada um dos dois polos mencionados: o da natureza e o da arte.
Em “Fundamento ao Empédocles”, texto que se refere à tragédia inconclusa que Hölderlin escreveu sobre o filósofo grego Empédocles, ele classifica o pólo da natureza de aórgico[72] e o polo da arte de orgânico.[73] Longe de ser entendida no sentido convencional, esta última palavra deve ser remetida ao significado etimológico de “instrumental”, enquanto a primeira deve ser entendida como a significar “não-instrumental”. O aórgico é tido por Hölderlin como o natural, o inconceitualizável, o incompreensível, o insensível, o ilimitável, o universal, o infinito, o indefinido etc.; em contraposição a ele, o orgânico é o artificial, o conceitualizável, o compreensível, o sensível, o limitado, o particular, o finito, o definido etc. Com razão, Salvatore Lo Bue considera o primeiro como o inconsciente e o segundo como o consciente.[74] A não-instrumentalidade da natureza implica que ela é não somente origem, mas também fim. A arte, por outro lado — e aqui esta palavra não significa a obra de arte, mas a atividade que a produz —, é o instrumento pelo qual se atinge esse fim.
Pois bem, a questão determinante dos escritos sobre a poesia de Hölderlin diz respeito às condições de possibilidade da mediatização do aórgico pelo orgânico e vice-versa. Não se trata, portanto, apenas de instrumentalização do orgânico pelo aórgico, mas também do aórgico (logo do ininstrumentalizável) pelo orgânico (ou de com preensão do incompreensível, de sensibilidade do insensível, de limitação do ilimitável etc.), de modo que, sem que nenhum deles deixe de ser o que é, consigam, por meio dessa mediatização recíproca, dar nos a conhecer aquilo que a filosofia não alcança: o ser absoluto.
A solução para esse problema — que não é desprezível — passa por Fichte. Sabe-se que Hölderlin escreveu “Sobre o modo de proceder do espírito poético” sob o impacto da leitura do parágrafo 4 dos Fundamentos da inteira doutrina da ciência, que trata da imaginação.[75] A própria ideia de “espírito poético” é sem dúvida inspirada na concepção fichtiana de espírito. Em que consiste o espírito, para Fichte? Em última análise, ele parece identificá-lo com a faculdade de imaginação criativa.[76] A imaginação é a faculdade que flutua (- schwebt) entre esferas aparentemente inconciliáveis – o eu e o não-eu, o sujeito e o objeto, a intuição e o intuído, o finito e o infinito — mediatizando umas pelas outras e sintetizando-as. Em relação a essa alternância do eu entre esferas opostas, Fichte desenvolveu o conceito de determinação alternante (Wechselbestimmung). Em suas palavras: “Posso partir de qualquer dos contrários que quiser e toda vez, mediante uma ação de determinação, ter determinado também o oposto. Essa determinação mais determinada pode-se apropriadamente denominar determinação alternante”.[77] E, um pouco adiante, no mesmo texto: “Determinar e ser determinado são, por meio do conceito de determinação alternante, uma e a mesma coisa; assim como o eu põe um determinado quantum de negação em si, põe simultaneamente um determinado quantum de realidade no não – eu e vice-versa”.[78]
É esse conceito que permite a Hölderlin substituir a intuição imediata da unidade do ser por uma relação de complementaridade. “Inicialmente, a beleza era para ele integração inconcebível”, comenta Dieter Henrich; “depois tornou-se-lhe a alternância dos seus momentos”.[79] No “Fundamento ao Empédocles”, ele aplica a determinação alternante aos conceitos de orgânico, por um lado, e de aórgico, por outro. Como vimos, um é o oposto complementar do outro. Hölderlin concebe essa oposição de modo dinâmico, que lembra as operações da dialética de Hegel. Cada um dos termos se torna mais definidamente o que é à medida que se opõe ao outro. Justamente ao fazê-lo, porém, dá-se um processo de fusão de um com o outro. Por exemplo, por meio da sua oposição ao orgânico, levada às últimas consequências, define-se o aórgico, que seria o indefinível, e se torna indefinido o orgânico, que seria o definido.
Desse modo, diz Hölderlin em “Fundamento ao Empédocles”, que
a natureza e a arte se opõem na vida pura somente de modo harmônico. A arte é a flor, a consumação da natureza, a natureza somente se torna divina pela articulação com a arte, diferente, porém harmônica. Quando cada qual é totalmente o que pode ser e uma se articula com a outra e supre a deficiência que a outra necessariamente tem para ser inteiramente o que é, para ser o que, enquanto particular, é capaz de ser, então a consumação lá está, e o divino está no meio de ambas.[80]
No texto “Sobre o modo de proceder do espírito poético”, Hölderlin caracteriza a tarefa do poeta como a produção daquilo que chama de das Harmonischentgegengesetzte — que se pode traduzir como “o harmonicamente contraposto”.[81] Ele formula essa exigência nas seguintes palavras, por exemplo:
O problema de ser livre como um jovem e viver no mundo como uma criança, de ter a independência de um homem culto e a acomodação de um homem comum soluciona-se na observação da seguinte regra: põe-te, por escolha livre, em contraposição harmônica a uma esfera externa, assim como estás, por natureza, em contraposição harmônica em ti mesmo, mas de modo irreconhecível enquanto permaneceres em ti mesmo.[82]
Uma esfera externa é uma parte do mundo. Contrapor-se tout court a uma esfera externa é ou bem isolar-se dela ou bem lutar com ela, de modo a transformá-la e/ou ser por ela transformado. Nessa luta, ora o ser humano é vitorioso ora vencido; ora, para ele, o mundo é tudo e ele nada, ora ele é tudo e o mundo nada. Tal é a relação que o ser humano moderno, o ser humano do Ur-Teil, o ser humano da separação tem com o mundo.
Contrapor-se harmonicamente a uma esfera externa, por outro lado, é reunir-se a ela numa totalidade superior, em que as diferenças não se revelem antagônicas, mas complementares. É assim que, ao se contrapor harmonicamente à esfera externa da linguagem, o poeta produz o poema. Desse modo, ele constitui uma exterioridade em que se reconhece. Essa exterioridade não é mais apenas matéria, pois foi formada pelo espírito.[83]
Ao contrário das proposições descritivas, como as filosóficas, que são unívocas, na medida em que, ao afirmar alguma coisa, simultaneamente negam as coisas que se opõem a essa afirmação, o poema não quer afirmar coisa alguma em particular e possui a densidade contraditória e a “unidade infinita”[84] dos organismos.
O poeta não somente luta com as palavras, mas, como Carlos Drummond no poema “O lutador”, faz amor com elas, enlaça-as, acaricia-as, persegue-as, tenta persuadi-las, submete-se a elas, ouve suas queixas, beija-as, apaixona-se por elas, sonha, joga e brinca com elas. E o que acabo de dizer da relação do poeta com as palavras e a linguagem aplica-se também à sua relação com o tema do poema, que também constitui uma esfera externa.
Nessas esferas externas, o poeta se joga inteiro. “A poesia”, diz Hölderlin em carta a Steinkopf, “não deve ser apenas explosão apaixonada e caprichosa, nem deve ser uma peça de arte forçada e fria, mas deve surgir ao mesmo tempo da vida e do entendimento ordenador, da sensação e da convicção”.[85] É o ser humano integral — sua cultura e sua natureza, sua mente e seu corpo, seu intelecto e sua intuição, seu conhecimento e sua sensibilidade, sua liberdade e sua necessidade, sua sobriedade e sua paixão, sua seriedade e seu humor, em contraposição harmônica à esfera externa da linguagem e do tema, tomados, igualmente, em sua integralidade formal e material — que se lança no poema. É por isso que o poema representa, num nível mais elevado, a unidade perdida de liberdade e necessidade, atividade e passividade, espírito e matéria, ideia e realidade, sujeito e objeto, constituindo o que Hölderlin chama de “individualidade poética”.[86]
Comecei tencionando relacionar o modo de Hölderlin pensar, como filósofo, sobre o mundo, com o seu modo de pensar, como poeta, o mundo. O resultado é que o que ele pensa sobre o mundo leva-o ao ceticismo em relação à potência de todo pensar sobre o mundo e à afirmação da potência de pensar o mundo: para ele, só a poesia, e não a filosofia, é capaz de proporcionar o conhecimento — pela via de uma intuição estético-intelectual — do absoluto. Permitam-me, agora, de acordo com esse resultado, reler o poema “Hälfte des Lebens”. Entretanto, para facilitar sua interpretação, não o lerei na bela tradução de Bandeira, mas numa versão mais literal, embora menos bonita.
Metade da vida
Com peras amarelas suspende-se, Plena de rosas silvestres,
A terra sobre o lago, Ó cisnes graciosos, E, bêbados de beijos, Mergulhais a cabeça
Na água santa e sóbria.
de mim, onde, se
É inverno, achar as flores, e onde A luz do sol
E as sombras da terra? Os muros estão
Mudos e frios, ao vento batem as bandeirolas.
O título é importante: “Metade da vida”. Imediatamente, evoca a ideia de meia-idade. Ostensivamente, trata-se de um poema sobre a passagem do tempo: a chegada do inverno, a chegada da velhice. Aceitemos esse sentido. Adiante, voltarei a esse título.
Peras amarelas são peras maduras. A pera é uma fruta suculenta e deliciosa, que mal amadurece e já está prestes a se estragar. Desde a Antiguidade, por isso, funciona como metáfora para a perecibilidade, como em Teócrito:
Ó amores corados como maçãs, atirem setas no adorável Filino,
atirem, que o miserável não tem pena do meu amigo: todavia, mais maduro do que pera, as mulheres dizem Ai ai Filino, já foge a flor da tua beleza.[87]
O escoliasta comenta que “mais maduro” significa “mais perecível” (asthenésteros).[88] Já as rosas silvestres ou selvagens revelam que se trata de uma paisagem não cultivada, produto não da arte, mas da natureza: de uma paisagem natural. A rosa é metáfora tradicional da efemeridade e é dedicada a Afrodite, a deusa do amor. Há aqui, portanto, uma insinuação de sentimentos ou emoções fugazes e não domesticados pelo entendimento. Cisne é metáfora de poeta desde a Grécia antiga. Platão diz que Orfeu escolheu ser reincarnado como cisne.[89] Antípatro de Sídon diz, num epigrama sobre o poeta Anacreonte:
A tumba de Anacreonte: o cisne de Teio aqui dorme com sua pura loucura por rapazes.
Um auge lírico ele canta sobre o desejo de
Bathyllo, e o mármore branco tem perfume de hera. Nem Hades extinguiu os teus amores e na casa de Aqueronte é da febre de Chipre que padeces.[90]
Também Horácio, na segunda ode do livro IV, compara Píndaro a um cisne. Além disso, Aristófanes (Aves, 769 ss.) o associa a Apolo, o deus da poesia.
Pois bem, os cisnes, “bêbados de beijos”, isto é, entregues aos sentimentos e às emoções, entregues à natureza, mergulham a cabeça “na água santa e sóbria”. Lembremo-nos de que Hölderlin diz que Homero, para fazer seus poemas, rouba para o reino de Apolo a sobriedade junônica ocidental. É o que fazem os cisnes — os poetas — ao mergulhar a cabeça na água sóbria.
Metade do poema passa-se, como indicam as peras maduras, no final do verão ou no começo do outono. Não é mais o auge da bela estação: já não estamos no estado da natureza, mas no estado da naturalidade.
Mas a água é também espelho, reflexo, reflexão. Mergulhando nela, o eu mergulha em si. Os cisnes passam da pura integração embriagada com a natureza para o mergulho no espírito, que é o que os torna sóbrios. Eis aqui também outro sentido do título “Metade da vida”. A água, como o eu, reflete, isto é, duplica, o mundo; o sujeito transforma a natureza em seu objeto. Ao fazê-lo, porém, ele dela se distancia, torna-a apenas metade da vida, cuja metade é o próprio espírito. Desse modo, ele conquista a sobriedade, a razão e a liberdade, mas perde a embriaguez com que se entregava e integrava ao mundo. Assim prepara-se o segundo plano, que é o da separação, e que se encontra na outra metade do poema.
A separação do eu e do mundo é representada pelo inverno, cuja chegada é lamentada: “ai de mim…”. Observe-se que só nesse instante se manifesta o sujeito do poema. O mundo tornou-se frio e unidimensional: já não há flores, nem luz do sol, nem sombras, isto é, já não há contrastes, já não há multiplicidade real no mundo do qual o sujeito se separou. Só restam dois objetos: os muros e as bandeirolas ao vento. Os muros frios, alheios, representam a separação: entre o sujeito e o objeto, entre o ser humano e a natureza, entre o ser humano e o ser humano, entre cada ser humano e ele mesmo. Cada objeto se tornou um muro impenetrável, vedando a passagem e a paisagem. Restam as bandeirolas, batendo ao vento. Enquanto a palavra portuguesa “batem” pode referir-se tanto à imagem das bandeirolas tremulando quanto ao som que fazem, a palavra alemã original, klirren, refere-se exclusivamente a esse som. Nesse sentido, o “rangem os cata-ventos” da tradução de Bandeira era, embora menos literal, adequado. Ouve-se o som do bater, o que não quer dizer que se vejam as bandeirolas: a formulação insinua antes o oposto. Não lidamos, aqui, com a dimensão espacial do mundo; quando a encontramos, acima, é na forma de muros. O som do tremular ocorre no tempo, como que afirmando a sua passagem. O vento é uma metáfora para a passagem do tempo. Ora, o tempo não é senão, como dizia Kant, “a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e de nossa condição interna”.[91] Toda a desolação da paisagem refere-se à separação do eu e do não-eu.
Mas a segunda estrofe inicia com uma pergunta: “Ai de mim, onde, se/ É inverno, achar as flores, e onde/ A luz do sol/ E sombras da terra?”. À luz do pensamento filosófico de Hölderlin, podemos responder: no poema. É o próprio poema que é a “metade da vida”. Ele é vida porque nele o ser humano, que não dispõe, no mundo moderno, senão de uma vida pela metade, tem a intuição estética da contra posição harmônica que constitui a integralidade da vida. Ele é apenas a metade da vida, pois, por um lado, ele não é completo sem o leitor, que constitui a outra metade; e, por outro, a restituição efetiva da vida integral não poderá se dar senão no mundo. Mas, por enquanto, o poema constitui a única noção que nos é dada d’aquele ser, no único sentido da palavra.
Notas
* Mit gelben Birnen hänget/ Und voll mit wilden Rosen/ Das Land in den See,/ Ihr holden Schwäne,/ Und trunken von Küssen/ Tunkt ihr das Haupt/ Ins heilignüchter ne Wasser.// Weh mir, wo nehm ich, wenn/ Es Winter ist, die Blumen, und wo/ Den Sonnenschein,/ Und Schatten der Erde?/ Die Mauern stehn/ Sprachlos und kalt, im Winde/ Klirren die Fahnen.” Exceto por esta versão de Manuel Bandeira, todas as demais traduções de textos em alemão, francês, inglês e grego são de minha autoria.
** Buonaparte: Heilige Gefäße sind die Dichter,/ Worin des Lebens Wein, der Geist/ Der Helden, sich aufbewahrt,// Aber der Geist dieses Jünglings,/ Der schnelle, müßt er es nicht zersprengen,/ Wo es ihn fassen wollte, das Gefäß?// Der Dichter laß ihn unberührt wie den Geist der Natur,/ An solchem Stoffe wird zum Knaben der Meis ter.// Er kann im Gedichte nicht leben und bleiben,/ Er lebt und bleibt in der Welt.
[1] Manuel Bandeira, “Poemas traduzidos” em Estrela da vida inteira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1966, p. 445.
[2] Manuel Bandeira, “Itinerário de Pasárgada” em Poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1967, p. 121.
[3] Friedrich Hölderlin, “Brief an den Bruder, 31/12/98” em Sämtliche Werke und Briefe, Munique, Carl Hanser, 1970, vol. 2, p. 797.
[4] Friedrich Holderlin, “Brief an Hegel, 26/01/95” em Sämtliche Werke und Brie fe, cit., vol. 2, p. 639.
[5] Dieter Henrich, Der Grund im Bewusstein, Stuttgart, Klett-Cotta, 1992, pp. 127
e 796, n. 152.
[6] Em linguagem fenomenológica: toda consciência é intencional.
[7] Em texto de 1965-1966 (“Hölderlin on Judgement and Being: A Study in the His tory of the Origins of Idealism”, em The Course of Remembrance and Other Essays on Hölderlin, Stanford, Stanford University Press, 1997, p. 79), Dieter Henrich pensa que o parágrafo sobre modalidade pode não fazer parte da principal sequência argumentativa de Urtheil und Seyn; em 1992 (“Der Grund im Bewusstsein”, cit., pp. 707-26), porém, ele tenta mostrar como se dá essa articulação.
[8] Friedrich Hölderlin, “Urteil und Seyn” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol.
[9] Cf. Der Grosse Duden Etymologie, Mannheim, Bibliographisches Institut, 1963.
[10] Citado por Violetta L. Waibel, Hölderlin und Fichte 1794-1800, Paderborn,
Schöningh, 2000, p. 140).
[11] J. G. Fichte, “Recension des Aenesidemus oder über die Fundamente der von Hern Prof. Reinhold in Jena gelieferten Elementarphilosophie”, em Sämtliche Werke, Berlim, Veit & Comp., 1845-1846, vol. 1, p. 10. Disponível também em Fichte im Kon text, Berlim, Karsten Worm, 1999, CD-ROM.
[12] Dieter Henrich, Der Grund im Bewusstsein, cit., p. 95.
[13] Friedrich Hölderlin, “Brief an Schiller, 04/09/95”, em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 2, p. 667.
[14] Ibidem.
[15] Friedrich Hölderlin, G. W. F. Hegel & Friedrich Schelling, “Das älteste System programm des deutschen Idealismus” em Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 1, p. 918.
[16] Friedrich Schiller, “Etwas über die erste Menschengesellschaft nach dem Leit faden der Mosaischen Urkunde” em Kleinere Schriften — Sämtliche Werke, Leipzig, Inselverlag, s. d., vol. 7, p. 325.
[17] Friedrich Hölderlin, “Hyperion oder der Eremit in Griechenland” em Sämtli che Werke und Briefe, cit., vol. 1, p. 640.
[18] Friedrich Schiller, “Über naive und sentimentalische Dichtung” em Sämtliche Werke, Munique, Carl Hanser, 1962, vol. 5, p. 695.
[19] Pouco importa aqui se a anterioridade cronológica é do processo de reflexão transcendental ou do esboço de filosofia da história. O que conta é a articulação de ambos.
[20] Naturalmente, tomo a palavra “infância” no sentido etimológico: in-fans, “o que não fala”.
[21] “Friedrich Hölderlin, “Hyperion (voletzte Fassung)” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 1, p. 559.
[22] Violetta L. Waibel, Hölderlin und Fichte 1794-1800, cit., p. 125.
[23] Immanuel Kant, “Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht” em Werke, Berlim, Preussische Akademie der Wissenschaften, 1902 ss., p. 27. Reimpressão: Berlim, Walter Gruyter, 1968.
[24] Ibidem, p. 26.
[25] Michael Konrad, Hölderlins Philosophie im Grundriss, Bonn, H. Bouvier u. Co., 1967, p. 38.
[26] São interessantes as circunstâncias que ocasionaram os escritos de Jacobi. Tendo sido informado de que o filósofo Moses Mendelssohn preparava-se para escr ever uma obra sobre o caráter e os escritos do recentemente falecido poeta Lessing, Jacobi lhe perguntou, por meio de uma amiga comum, se sabia que Lessing havia sido um spinozista. Foi a partir do choque de Mendelssohn – pois Spinoza era tido por panteísta ou ateu – que Jacobi escreveu, em 1785, Sobre a doutrina de Spinoza, em cartas ao Sr. Moses Mendelssohn. Ao fazê-lo, a intenção manifesta de Jacobi era complexa. O que queria era, mais ou menos como Pascal havia feito, mutatis mutandis, em relação a Descartes, lutar contra as pretensões da filosofia racionalista do seu tempo, que considerava desmesuradas. Entretanto, julgava que o ápice ou a verdade da filosofia puramente racional era o spinozismo, que, segundo ele, em última análise era um ateísmo. Por isso, ao atacar o spinozismo, ele pretendia estar atacando toda filosofia puramente racional. Assim, Jacobi via a sua tarefa como quádrupla: primeiro, demonstrar que a filosofia de Spinoza constituía o auge da filosofia puramente racional; segundo, demonstrar que a filosofia de Spinoza, corretamente entendida, era ateia; terceiro, demonstrar que todas as outras filosofias puramente racionais desembocavam – na medida em que fossem consequentes – na de Spinoza; quarto, demolir a filosofia de Spinoza e, com isso, toda filosofia puramente racional. Paradoxalmente, a quarta etapa do trabalho de Jacobi foi praticamente ignorada, enquanto as três anteriores exerceram uma enorme influência na Alemanha do final do século XVIII, de maneira que Jacobi, malgré lui, pôs em voga a filosofia de Spinoza. Foi desse modo que esta acabou por fazer parte do fundo filosófico comum a Hegel, Schelling e Hölderlin.
[27] O último Heidegger, tendo pinçado em Hölderlin a antiga grafia, passou a empregar a palavra para indicar que não pensava mais o ser (das Sein) à maneira metafísica (Martin Heidegger, Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1994, p. 436). O uso da palavra Seyn significaria, portant, mais um passo na direção da superação da metafísica. Se tivermos em mente que, para Heidegger, um dos erros inaugurais da metafísica havia sido a tradução, por ele considerada degenerescente, da palavra grega ousía pela latina substantia (Martin Heidegger, “Die Metaphysik als Geschichte des Deins” em Nietzsche, Pfullingen, Neske, 1961, vol. 2, pp. 399-457), essa pretensão não deixa de ser curiosa, pois, para Hölderlin, como para Jacobi, Seyn era exatamente a tradução de substantia.
[28] Hermann Diels & Walther Kranz (org.), Die Fragmente der Vorsokratiker, Hildesheim, Weidmann, 1992, vol. 1, p. 153.
[29] Baruch Spinoza, Éthique, Paris, Vrin, 1977, p. 80, Liber I, Propositio XXIX, Scholium.
[30] Richard Glauser, “Aesthetic Experience in Shaftesbury”, em Aristotelian Society, Londres, vol. 76 (volume suplementar), no 1, p. 32, 7/1/2002.
[31](31) Johann Gottfried Herder, “Einige Gespräche über Spinoza’s System nebst Shaftesbury Naturhymnus” em Philosophie von Platon bis Nietzsche, Berlim, Direct-media, 1998, CD-ROM, p. 29456.
[32] F. W. J. von Schelling, “Ideen zu einer Philosophie der Natur” em Otto Weiss (Org.), Sämmtliche Werke, Leipzig, Fritz Eckardt, 1907, vol. 1, p. 152. Disponível tam bém no CD-ROM Philosophie von Platon bis Nietzsche, Berlim, Directmedia, 1998, CD-ROM.
[33] Anthony Ashley Cooper Shaftesbury, “Third Earl of Sensus Communis, an Essay on the Freedom of Wit and Humour in a Letter to a Friend” em Lawrence E. Klein (org.), Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times, Cambridge (UK), Cambridge University Press, 1999, p. 322.
[34] Ibidem.
[35] Ibidem.
[36] Ibidem, p. 333.
[37] Richard Glauser, “Aesthetic Experience in Shaftesbury”, cit., p. 31.
[38] Ernst Cassirer, Die Platonische Renaissance in England und die Schule von Cambridge, Berlim, Teubner, 1932, p. 116.
[39] Ernst Cassirer, Filosofia de la ilustración, México, Fondo de Cultura Económica, 1943, p. 306.
[40] Immanuel Kant, “Kritik der Urteilskraft”, em Werke, cit., p. B 181.
[41] Ibidem, p. B 194.
[42] Friedrich Schiller, “Über naive und sentimentalische Dichtung”, cit., p. 704.
[43] Immanuel Kant, “Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht”, cit., p. 306.
[44] Michael Konrad, Hölderlins Philosophie im Grundriss, cit., p. 53.
[45] Friedrich Hölderlin, “Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 1, pp. 881-2.
[46] Michael Konrad, Hölderlins Philosophie im Grundriss, cit., p. 54.
[47] Ibidem, p. 55.
[48] Ibidem, p. 59.
[49] Friedrich Hölderlin, “Brief an Casimir Ulrich Böhlendorff, 4/12/1801” em Säm tliche Werke und Briefe, cit., vol. 2, p. 927.
[50] Szondi, Poetik und Geschichtsphilosophie, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1974, p. 195.
[51] Johann Gottfried Herder, “Sechste Sammlung” em Heinz Stolpe, Hans-Joachim Kruse & Dietrich Simon (Org.), Briefe zur Beförderung der Humanität, Weimar, Aufbau, 1971, vol. 1, p. 369.
[52] Friedrich Hölderlin, “Brief an Friedrich Steinkopf, 18/6/99” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 2, p. 831.
[53] Friedrich Hölderlin, “Hyperion oder der Eremit in Griechenland”, cit., p. 669.
[54] Friedrich Hölderlin, “Brief an Johann Gottfried Ebel, 10/01/1797” em Sämtli che Werke und Briefe, cit., vol. 2, p. 717.
[55] Friedrich Schiller, “Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen” em Sämtliche Werke, cit., p. 581.
[56] Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, Paris, Éditions Sociales, 1971, pp. 156 ss., nota
[57] Friedrich Hölderlin, “Der Gesichtspukt, aus dem wir das Altertum ansuzehen haben” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 1, p. 846.
[58] Ibidem, p. 845.
[59] Peter Szondi, Poetik und Geschichtsphilosophie, cit., p. 190.
[60] Friedrich Hölderlin, “Hyperion (vorletzte Fassung)”, cit., p. 559.
[61] Günther Mieth, “Anmerkungen” em Friedrich Hölderlin, Sämtliche Werke und Briefe, cit., pp. 921-1170.
[62] Friedrich Hölderlin, “Brief an den Bruder, Sep. 93” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 2, p. 571, grifos meus.
[63] Friedrich Hölderlin, “Hyperion oder der Eremit in Griechenland”, cit., p. 669.
[64] Friedrich Hölderlin, “Hyperion (vorletzte Fassung)”, cit., p. 559.
[65] Friedrich Schiller “Über naive und sentimentalische Dichtung”, cit., p. 716.
[66] Ibidem, p. 695.
[67] Wilhelm von Humboldt, “Über den Charakter der Griechen, die idealische und historische Ansicht desselben” em Andreas Flitner & Klaus Giel (Org.), Werke, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgemeinschaft, 1963, vol. 2, p. 67.
[68] Friedrich Schiller, “Über naive und sentimentalische Dichtung”, cit., p. 704.
[69] Friedrich Hölderlin, “Hyperion oder der Eremit in Griechenland”, cit., p. 657.
[70] A formulação é de Waibel: “A beleza é a manifestação do ser no ente particular” (Schönheit ist die Erscheinung des Seins im Dasein) (Violetta L. Waibel, Hölder lin und Fichte 1794-1800, cit., p. 179).
[71] Friedrich Hölderlin, “Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes”, cit., p. 864.
[72] Aórgico, palavra que uso no lugar de Aorgisch, é provavelmente uma invenção do próprio Hölderlin, articulada a partir (1) do prefixo grego de negação a-, (2) da primeira sílaba da palavra grega órganon, tomada como raiz desta, e (3) do sufixo adjetivador alemão -isch. Como o prefixo a admite a variante an antes de vogais, Schelling, na mesma época, preferiu cunhar a palavra anorgisch (F. W. J. Schelling, “Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie” em Sämmtliche Werke, Tübingen, Cotta, 1856-1861, p. 92; disp. em CD-ROM, Berlim, Total Verlag, 1997). Não seria incorreto traduzir aorgisch por inorgânico, vocábulo de origem francesa, hibridamente construído com um prefixo latino preposto a um radical grego. Entretanto, três considerações me aconselham a preferir o neologismo aórgico, análogo ao alemão. A mais importante é que a tradução alternativa antes obscureceria do que iluminaria o sentido tencionado por Hölderlin. A segunda é que o termo aorgisch jamais foi dicionarizado em alemão, de modo que conserva, nessa língua, a mesma estranheza que aórgico em português. A terceira é que, tratando-se de construção sintática e morfologicamente grega, não fica totalmente deslocada em português.
[73] Friedrich Hölderlin, “Grund zum Empedokles” em Sämtliche Werke und Briefe, cit., vol. 2, pp. 116 ss.Salvatore
[74] Salvatore Lo Bue, “Höldelin contra Hegel. Per une scienza della logica poietica”, Gionale di Metafisica, Gênova, vol. 22 nº 1-2, pp. 174-66, 2000.
[75] Violetta L. Waibel, “Hölderlin und Fichte 1794-1800”, cit., p. 291
[76] J.G. Fichte, “Über Geist und Buchstab in der Philosophie, Brief 2”, em Sämmtliche Werke, Berlim, Veit & Comp., 1845-1846, vol. 1, p. 130 s. Disponível no CD-ROM Fichte im Kontext, Berlim, Karsten, Wormo, 1997-1999.
[77] J.G. Fichte, “Grundlage der gesammten Wissenschaftslehe” em I. H. Fichte (org.), Sämmtliche Werke, Berlin, Veit & Comp. 1845-1846, vol. 1 p. 130 s. disponível no CD-ROM, Fichte im Kontext, Berlim, Karsten, Wormo, 1997-1999.
[78] Idem, p. 145.
[79] Dieter Henrich, “Hegel und Hölderlin” em Dieter Henrich (org). Hegel im Kontext, Frankfurt, Suhrkamp, 1971, p. 33.
[80] Friedrich Hölderlin, “Grund zum Empedokles”, cit., p. 116
[81] Konrad (1967, p. 33) surege que Hölderlin tenha cunhado essa expressão a partir da frase, que se encontra no Hipérion, “o que se difere de si próprio” (εϒ διαφερρον εαυτω) ou “o um que difere de si próprio” que é a paraphrase de uma proposição que Platão, no Simpósio (187-a), atribui a Heráclito.
[82] Friedrich Hölderlin, “Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes”, cit. p. 879.
[83] Apenas para estimular (ou estarei desenconrajando?) o leitor, observo que, em “Sobre o modo de proceder do espírito poético”, Hölderlin mostra todas as relações de oposição complementar pelas quais progressivamente se separam e definem e, ao mesmo tempo, cada vez mais se interpenetram , o espírito que produz o poema, a material que recebe o seu trabalho e o próprio poema; e mostra as relações entre ora a forma, ora o conteúdo do espírito (poderíamos dizer, ora o aórgico, ora o orgânico do espírito) em relação ora a forma, ora o conteúdo da material ou do poema, relação em que, alternativamente, ora a forma, ora o conteúdo de um ou outro constituem a unidade e a permanência, em oposição à mudança e ao progresso de um ou de outro.
[84] Friedrich Hölderlin, “Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes”, cit. 875.
[85] Friedrich Hölderlin, “Brief an Friedrich Steinkopf, 18/06/99”, cit., p. 831.
[86] Friedrich Hölderlin, “Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes”, cit. 875.
[87] Teócrito, Idylles, Paris, PUF, 1968, pp. VII, 118 ss.
[88] Schollia in Theocritum (scholia vetera), Stuttgart, Teubner, 1967, p. VII: 120.
[89] Platão, “Leges”em John Burnet (Org.), Platonis opera, Oxford, Clareton Press, 1989, p. 620a.
[90] Antípatro de Sídon, “7.30” em The Greek Anthology, Londres, Harvard University Press, 1993, vol. II, p. 20.
[91] Immanuel Kant, “Knitik der reinen Vernunft”, em Werke, cit., p. B 49.