1996

O discreto

por João Adolfo Hansen

Resumo

A libertinagem erudita na França do século XVII está associada ao ceticismo e ao relativismo. É uma liberdade de reflexão dos que se julgam “melhores”, mas não é libertária como o será com os philosophes do século XVIII iluminista. Ela tem mesmo pontos em comum com o ideal neoescolástico do cortesão discreto. No barroco ibérico e italiano, discreto é quem sabe produzir aparências adequadas através da agudeza de espírito. É o caso de Gregório de Matos quando, a um pedido de Rocha Pita de uma rima “para mim” (a palavra “mim”), responde: “capim”, insultando-o de maneira sutil. Agudeza e dissimulação revelam uma superioridade de ações e palavras. É preciso saber representar e fingir as paixões, e também o mundo católico reconhece, como no casuísmo jesuítico, que as condutas se adaptam às conveniências das ocasiões. Para o discreto católico há técnicas de encobrir a verdade e mesmo de fingir a obscenidade, assim como a violência pode ser adequada para o entendimento do povo. Tal atitude foi fundamental na formação dos Estados absolutistas e da sociedade de corte, movida pela etiqueta e pela adulação. O que importa é manter e ampliar o poder. E a novidade radical introduzida por Maquiavel, e que será determinante para a conceituação do discreto como um tipo católico, herege ou libertino, é a separação entre vida votada à virtude e vida votada ao sucesso político. Num mundo de sonho e desengano, o cortesão discreto busca aperfeiçoar seu desempenho na representação decorosa das paixões.


O livro de Pintard, em 1943, sobre a libertinagem erudita na primeira metade do século XVII, o estudo de Anna Maria Battista sobre Montaigne e Charron, em 1966; os textos de Ivo Comparato sobre o pensamento político libertino, em 1980; o ensaio de Françoise Charles-Daubert sobre o conservadorismo político da crítica libertina, em 1985, ou os de Tullio Gregory, em 1986, sobre a ética e a religião na crítica libertina, demonstram que, na França do século XVII, os libertinos eram uma pequena fração da gens de lettres, os letrados. Sua atividade intelectual era definida então como “libertinagem erudita” e os termos libertin e libertinage, usados principalmente com sentido pejorativo pelos seus inimigos, os tradicionalistas adeptos do coustume, o costume, também significavam o esprit fort do homem livre que se opunha ao aristotelismo escolástico da “política católica” com teorias da razão empírica ou mundana. Por outras palavras, as posições teóricas da “libertinagem erudita” eram céticas, empiristas, relativistas,[1] e seu lema principal era o de que a pretensão de posse da verdade, e, com ela, o dever de impô-la aos outros, é o vício máximo de toda cultura tradicional.

Cética, identificando-se com a observação e a descrição empírica de casos, sem pretensões sistemáticas ou totalizantes,[2] a razão libertina é o instrumento útil de um conhecimento que faz a crítica das certezas dogmáticas da teologia. Como escreve Charron, “é preciso distinguir a pele da camisa”.[3] A prática da reflexão libertina sempre pressupõe que a liberdade intelectual é conquistada contra um estado de sociedade que determina o monolitismo de uma doutrina nunca posta em questão. Critican­do os mitos seculares ou o concordismo contra-reformista de Suárez e dos comentadores jesuítas de Coimbra, os libertinos franceses sempre afirmam, por isso, que a religião tem uma origem política, não sobrenatural. Contrários à noção platônica e cristã de um fundamento substancial e absoluto das leis, Deus, afirmam o artifício das convenções que regulam as sociedades. Como escreve Naudé, evidenciando ser leitor de Maquiavel: “[…] todos os legisladores mais finos e astutos, não ignorando que o meio mais adequado para conquistar e conservar a autoridade sobre seu povo era persuadi-lo de que eram órgãos de uma divindade suprema […] serviram-se muito oportunamente dessa fingida divindade […] para melhor ocultar a própria ambição” .[4]

Na crítica dos dogmas, a dúvida é sistemática: “Duvidamos de tudo”, declara La Mothe le Vayer, citando Charron. O mesmo tom cético é corrente em Cyrano de Bergerac, Vanini, Garasse, Patin.[5] Ou, como sintetiza Garasse: “[…] não existe outra divindade nem potência soberana no mundo senão a natureza, que é preciso seguir em tudo, sem recusar nada ao nosso corpo e aos nossos sentidos” .[6]

A libertinagem francesa seiscentista é chamada de “erudita” porque, de modo polêmico, cita autoridades antigas do relativismo — sofistas, céticos e cínicos — em teses tendencialmente atéias: Protágoras, Epicuro, Sexto Empírico, Lucrécio, Diógenes Laércio, Luciano, Plínio, mas também o Aristóteles da Física, que permite reduzir os fenômenos a causas natu­rais, o Cícero do De natura deorum, que permite a crítica da superstitio, e os renascentistas Pomponazzi, Guicciardini, Maquiavel, Rabelais, Charron, Bodin, Montaigne formam a biblioteca da “filosofia livre” do “ho­mem forte”.

A libertinagem erudita é liberdade da reflexão dos intelectualmente “melhores”, mas não é “libertária”, como geralmente costumamos entender “libertinagem”, porque não propõe a transgressão, a subversão ou a superação da ordem política instituída. Assim, a libertinagem não é pro­priamente um pensamento político tentando organizar sua prática como um sistema juridicamente codificável de normas de comportamento desviante ou transgressivo, como depois será próprio da “libertinagem” re­volucionária dos philosophes e autores de poesia e prosa do século XVIII iluminista. É antes uma reflexão moral impregnada de erudição antiga,[7] que se pretende “livre”, enquanto se adapta à ordem e discute assuntos restritos a um pequeno número de “iguais”, que excluem o “povo”.

Quando se ocupa do “povo”, a libertinagem erudita o define duplamente, aliás, como categoria intelectual e categoria política. Como categoria intelectual, “povo” significa os “espíritos fracos”, cuja debilidade é piorada pela ignorância; como categoria política, significa “plebe”. Assim, quando tratam da “fraqueza” intelectual ou da vulgaridade do “povo”, por oposição os libertinos se constituem como categoria intelectual superior, a partir da qual também se passa de “povo”, “credulidade ignorante”, para “povo”, “plebe”, que é preciso saber dominar. O conceito político de “povo” como “plebe” conserva, por isso, o significado da categoria intelectual de “espírito fraco” tradicional, como demonstra Charles-Daubert.[8]

Como governar a plebe ou os espíritos fracos? Os libertinos propõem a abstenção política ou o refúgio no saber, pois são eruditos que desejam a paz como condição de possibilidade dos estudos; mas também aderem ao Príncipe, ao absolutismo e às técnicas de controle da plebe. Como diz Françoise Charles-Daubert, à extrema liberdade do pensamento libertino corresponde o seu conformismo na vida pública.[9]

Fiz essa pequena introdução sobre os libertinos eruditos franceses para criticar o uso anacrônico do termo libertino, lembrando que, no século XVII, “libertinagem” não significa “libertarismo”. Mais ainda quando se trata da representação ibérica e italiana do discreto, o ideal do cortesão de que lhes vou falar. O tipo apresenta alguns padrões semelhantes aos dos libertinos franceses, como a prudência política, o desprezo pela vulgaridade da plebe, a erudição e a adesão aos valores absolutistas. Mas é apenas semelhança, no entanto, pois o discreto é tipo católico contrarreformado e as teses neo-escolásticas criticadas pelos “libertinos” franceses são justamente o fundamento da sua prudência política e distinção, que são católicas, ou seja, conservadoras.

Pode-se dizer, inicialmente, que a discrição é o diferencial da vulgaridade: no século XVII, é discreto o que não é vulgar. Como o vulgar é definido como o “espírito fraco” levado pelo gosto confuso que se deixa enganar pelas aparências, discreto é aquele capaz de produzir aparências adequadas, porque tem o juízo. Assim, a discrição seiscentista é um saber ou uma técnica da imagem. Como no caso dos libertinos eruditos franceses, a discrição ibérica também não admite a interpretação romântica, que é a nossa, e que entende “libertinagem” como anarquismo, informalismo, inconformismo sexual, perversão ou transgressão. Como uma técnica da imagem retoricamente regrada, a discrição seiscentista prevê os excessos aparentes que hoje qualificamos como “libertinagem”, principalmente quando se trata do erotismo, mas todo excesso, no caso, é produzido como representação distintiva do privilégio de uma posição superior na hierarquia e que é ordenada segundo os esquemas da racionalidade de corte absolutista. Embora possa aparecer como “transgressiva” na situação individual isolada, como é o caso da obscenidade, da pornografia e de práticas eróticas aparentemente muito desviantes, a imagem discreta sempre se adapta aos critérios teológico-políticos institucionais que fornecem a definição contemporânea que integra o sentido da sua representação e ação à hierarquia.

Como diz Klossowski, é a instituição que produz a perversão: a obscenidade, por exemplo, só tem vigência quando existe um sistema de normas que a tornam visível e emolduram.[10] Também na representação discreta do obsceno, os princípios teológico-politicos da hierarquia capturam os monstros produzidos com a unidade das instituições, que os traduz como uma variedade incluída. A obscenidade é representada como uma insubordinação das funções fisiológicas que só existe, enfim, pela permanência das normas, e, como exemplo, lembro os poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra, cuja obscenidade não é transgressiva, pois apenas leva ao pé da letra a ortodoxia católica — quando afirmam, por exemplo, que o nosso pai Adão recebeu de Deus o dom de nomear as coisas enquanto brincava com a nossa mãe Eva, e que por isso não se devem pôr rebuços nas palavras, pois as coisas devem ser chamadas pelo nome original: o cono é “cono” e o caralho, “caralho”.

Para definir o tipo do discreto, contarei algumas histórias do século XVII. A primeira é narrada pelo licenciado Manuel Pereira Rabelo, um letrado que, em meados do século XVIII, compilou poemas satíricos que circulavam no Recôncavo baiano, atribuindo-os a Gregório de Matos e Guerra, que tinha vivido em Salvador entre 1682 e 1695. Na notícia biográfica que juntou à compilação, “Vida do excelente poeta lírico o doutor Gregório de Mattos Guerra”, Rabelo conta que Sebastião da Rocha Pita, ainda moço, certa vez se aproximou do poeta, dizendo-lhe que estava compondo um poema e que lhe faltava uma rima — uma rima para a expressão “para mim”. Gregório imediatamente lhe propôs “capim” e com isso conseguiria a sua inimizade para sempre. Rocha Pinta se vingaria em seu História da América portuguesa, de 1730, não citando o nome de Gregório quando fez a lista dos poetas ilustres que viveram no Brasil. A segunda história é narrada pelo conde Emanuele Tesauro, em seu II cannocchiale aristotelico, ou A luneta aristotélica, de 1654. No nome do seu tratado, Tesauro cita o instrumento óptico inventado na Holanda por iniciativa de Maurício de Nassau e aperfeiçoado por Galileu, porque seu livro se propõe a ler a Retórica de Aristóteles discretamente, como se aplicasse as lentes do telescópio a ela, trazendo para perto o que nela é distante, ampliando o que nela é pequeno e vendo várias vezes o que nela se vê uma só, como diz. Quando trata da “essência da agudeza”, Tesauro a ilustra com a seguinte história, entre outras: um músico de Bolonha, tendo ido assistir à apresentação de outro, estrangeiro, que passava por um novo Orfeu, depois de longa espera ouviu uma voz fraca, trêmula e desafinada. Imediatamente, jogou uma capa de chuva ao ombro, o que significou para todos os assistentes “o tempo é de chuva porque a rã coaxa”, e saiu.

A terceira história leva-nos de volta à Bahia, agora em julho de 1643. Nesse ano, os oficiais da Câmara de Salvador escreveram ao rei pedindo providências contra o que afirmavam ser “o excesso e a insolência do bispo d. Pedro da Silva”. Na carta, os oficiais relataram que, na procissão de Corpus Christi daquele ano, d. Pedro tinha saído para o adro da Sé sem esperar que a procissão saísse ou que os oficiais da câmara chegassem para acompanhá-la, como era costume. O bispo também não teria esperado que houvesse músicos na Sé, nem “gente de qualidade, como convinha” para levar o pálio, embora outros eclesiásticos o tivessem advertido da inconveniência. Segundo a câmara, d. Pedro fez tudo de propósito: “Tomando o Senhor nas mãos saiu tão antecipadamente e escandalosamente que fez força com a pouca gente para sair a procissão”. Quando o governador chegou esbaforido buscando a procissão, o bispo já entrava pela rua Direita “com toda descompostura”. Aí, segundo a câmara, teria largado a imagem de Cristo, indo para fora do pálio e soltando também a custódia do chantre, “com grande admiração de todo este povo”. Aproximou-se em seguida de um homem de representação que tinha sido vereador da Bahia no ano anterior e, segundo a carta, deu-lhe um empurrão, ordenando-lhe que seguisse adiante com o guião da câmara, enquanto o ameaçava aos brados com a excomunhão. E “o fez ir assim intimidado para onde iam as bandeiras e as insígnias das mecânicas afrontosa e escandalosamente”. Conforme o relato, a população testemunhou tudo em silêncio. O governador e os vereadores se portaram “com toda a prudência e a dissimulação para não se alterar o povo, e romper em outro sucesso”.[11]

Com a quarta história, vamos à França de Luís XIV, no fim do século XVII, quando chega a Marselha um navio com o embaixador da Sublime Porta, o Império Otomano. De Marselha a Versalhes, durante mais de um mês, o embaixador turco é recebido com festas, espetáculos e banquetes em cada localidade por onde passa. A recepção preparada para ele em Ver­salhes é magnífica. A corte francesa pretende ultrapassar a suntuosidade do sultão no Bósforo. Luís XIV mandou fazer um traje bordado a ouro, com botões de diamantes; toda a aristocracia o imita, arruinando-se com a compra de trajes, cabeleiras, joias… Dias antes da recepção, descobre-se que o embaixador turco é um mercador de tapetes que foi confundido com o outro por causa das roupas incomuns. Nada se comenta e a corte francesa de Versalhes recebe o embaixador turco com as festas e os espetáculos programados.[12]

As duas últimas histórias trazem-nos de volta para o Brasil, mais precisamente para Pernambuco, onde, na primeira delas, em 1640, chega a armada comandada por d. Fadrique Osório, que vem para combater os holandeses de Maurício de Nassau. Um dos navios choca-se com um atol e começa a fazer água; enquanto a tripulação foge, o capitão fidalgo abre o livrinho das Metamorfoses, passa a comentar o sentido de um verso com o imediato e afunda.

A sexta e última história não tem fim, pois no arquivo só encontrei o que talvez tenha sido o começo dela. Trata-se de uma carta de 1642, escrita pelo marechal d. Fernando Coutinho aos dois filhos, d. Alvaro, de vinte, e d. Francisco, de dezenove anos, em que ensina os cuidados de si ao mais velho, aconselhando-o a cuidar do mais novo. Ambos estavam embarcando na armada e vinham para o Brasil lutar contra os holandeses. Depois de vários avisos sobre as maneiras de vestir-se e portar-se, falando e agindo, o pai lhes ordena que, em todas as situações de perigo, escolham sempre a posição mais vantajosa, afirmando que a mais vantajosa é a linha de frente, onde o perigo é máximo e a morte é quase certa.[13]

As seis histórias têm algo em comum, que permite constituir indutivamente o padrão de comportamento do tipo que é o tema da minha palestra. A primeira e a segunda são muito parecidas e eu as contei justamente para poder lhes falar da internacionalização seiscentista de um padrão intelectual de pensamento e ação caracterizado pela agudeza. A agudeza consiste numa metáfora que condensa dois ou mais conceitos, geralmente de modo inesperado e irônico, funcionando como uma síntese da situação em que é aplicada. Assim, na anedota sobre Gregório, é evidente o duplo sentido irônico que estabelece quando, respondendo ao pedido de Rocha Pita, uma rima “para mim”, propõe “capim”. O pedido significa apenas “uma rima para a palavra mim”, mas Gregório malvadamente o interpreta como “uma rima para a pessoa a que se aplica o pronome “mim”. Chamando Rocha Pita de “asno” quando propõe “capim”, insulta-o, mas sem que o insulto seja uma ofensa declarada, pois é metáfora. No caso do músico, a significação da capa de chuva lançada ao ombro também é uma metáfora engenhosamente irônica, que diz tudo sobre a qualidade do cantor, sem dizer diretamente nada. Por padrões do século XVII — ainda que a ironia contra Rocha Pita seja imprudente — as agudezas engenhosas da fala de Gregório e do gesto do músico os especificam como discretos.

Quanto aos dois exemplos seguintes, o do bispo d. Pedro e o da corte de Versalhes, vou repetir o que a carta da câmara diz sobre a ação do governador e outras pessoas de representação que assistiram à cena. Diz que se portaram “com toda a prudência e a dissimulação, para não se alterar o povo”. O conflito das representações é basicamente hierárquico e fica evidenciado na simultaneidade das posições do bispo, do governador, da câmara e da população presente. O bispo é uma autoridade local e tem o poder de excomungar o “homem bom” que foi vereador, entregando-o ao Diabo, mas sua ação é indecorosa e agrava sua própria imagem de eclesiástico, porque desqualifica publicamente um membro superior da hierarquia local quando o obriga a andar junto com a gente vulgar que está na procissão. Sua arbitrariedade rompe as regras protocolares de precedências hierárquicas, pois destrói a representação discreta de superioridade das imagens públicas do bispo e do vereador. Basicamente, por duas razões: primeira, porque o bispo dá a ordem sabendo que está sendo visto pela população. Constituindo-a como um testemunho desigual da sua autoridade, humilha o vereador em frente dos que não têm nenhuma; além disso, degrada o vereador e a bandeira da câmara em posição vulgar, indecorosa e afrontosa para pessoa e símbolo de “mor qualidade”, quando ordena que vá andar junto dos oficiais mecânicos. No caso, é justamente o olhar da população presente que impõe limites às medidas imediatas contra a afronta. O governador e a câmara dissimulam o agravo “para não se alterar o povo”, porque sua dissimulação prevê justamente o olhar do mesmo. Há um estilhaçamento de visões e de visadas: o povo vê o bispo e o vereador em situação irregular, o governador e a câmara vêem o bispo e o vereador sendo vistos, vendo-se a si mesmos ultrajados enquanto vêem que o povo os vê. A decisão do governador e da câmara é política: pela dissimulação, a ruptura da hierarquia não é corrigida e isso acontece para que a mesma hierarquia seja mantida. O incidente da desestabilização momentânea da ordem é absorvido na mesma ordem, enfim, por meio de uma representação adequada, prudência e dissimulação, em nome de um bem maior, que é o “bem comum da República”.

Quanto ao episódio do embaixador turco que era mercador de tapetes, se a corte de Luís XIV reconhecesse o engano também admitiria uma falha na naturalidade da ordem. A dissimulação também se impõe, determinada pela prudência política. Tanto o governador da Bahia quanto a corte de Luís XIV comportam-se com prudência e dissimulação. Se a prudência lhes permite avaliar racionalmente os excessos e os enganos das situações e contorná-los, a dissimulação é a forma que sua prudência assume publicamente quando adapta o comportamento à circunstância numa aparência adequada. O governador e a corte francesa agem com discrição.

Quanto aos dois últimos casos, o capitão que afundou lendo Ovídio demonstrava espetacularmente com o gesto que sabia que teria de morrer de qualquer jeito depois, por isso pouco lhe adiantava escapar da morte antes. Tendo aproveitado a ocasião para demonstrar que era a mais ade­quada para fazer bem o que acontece uma vez só, morreu com honra, para não ter de continuar repetindo, se vivesse, a vergonha de não ter sabido fazê-lo. É o mesmo pensamento, aliás, da carta do marechal d. Fernando Coutinho aos filhos: antes de tudo, importa manter a honra dos signos de honra, e a morte é a principal ocasião para fazê-lo, quando se é fidalgo. Tanto o capitão quanto d. Fernando são discretos.

Agudeza, prudência, dissimulação, aparência e honra constituem a discrição. Nas monarquias absolutistas do século XVII, principalmente nas ibéricas, a discrição é o padrão da racionalidade de corte que define o cortesão, proposto para todo o corpo político como o modelo do uomo universale, o homem universal, como se dizia na Itália do século XVI. Nas práticas de representação, a discrição é, por isso, uma categoria intelectual que classifica ou especifica a distinção e a superioridade de ações e palavras, aparecendo figurada no discreto, que é um tipo ou uma personagem do processo de interlocução.

Etimologicamente, o substantivo discreto, como em “o discreto”, é a forma do particípio passado do verbo discernir. O termo significa a qualidade intelectual de penetração nos assuntos, como perspicuidade ou perspicácia, por isso relaciona-se ao talento intelectual da invenção, o engenho retórico-poético, e à capacidade lógica e analítica da avaliação, o juízo dialético. Como uma categoria central dos Exercícios espirituais, de Inácio de Loyola, no Mundo católico do século XVII a discretio significa a capacidade lógica e ética de discernimento do juízo aconselhado pela luz natural da Graça inata. Teologicamente, é, por exemplo, discreta caritas, a caridade clarividente. Assim, como diz Calderón de la Barca em La vida es sueño, discreto é principalmente o que sabe morrer, pois possui a recta ratio agibilium escolástica, a “reta razão das coisas agíveis”, sabendo discernir o que realmente importa na ação para a salvação da alma, pois suas escolhas são aconselhadas pela Graça.

É na mesma clarividência que pensam os italianos seiscentistas que se ocupam da retórica das agudezas conceituosas, como Peregrini, Pallavicino e Tesauro, quando falam de discretezza giudiciosa, significando com a expressão a perspicuidade do juízo e a versatilidade do engenho, que são instrumentos politicamente aptos para achar as metáforas de ações e de palavras como imagens adequadas às várias ocasiões da hierarquia.

Na cultura ibérica do século XVII, o tipo do discreto é modelado, assim, pela retórica aristotélica apropriada na doutrina neo-escolástica de uma história providencialista, segundo a qual os casos vividos por homens ilustres do passado são exemplos para a sua experiência política. É discreto, por isso, aquele que pauta as ações pela sollertia, a sagacidade escolástica. Barrocamente dividida em perspicácia e versatilidade, a sollertia permite achar instantaneamente, nos exemplos passados memorizados como eruditio ou erudição, a imagem adequada à ocasião. Assim, é discreto o que domina os protocolos dos decoros, com discernimento do que é “melhor” em cada caso. É a mesma capacidade de fazer distinções que implica a possibilidade política de também se aplicar o “pior”, quando o “pior” é discretamente “melhor” — por exemplo, como fingimento de falta de discrição adaptado à circunstância.

É oportuno lembrar que, embora apareça apropriado na auto-representação de fidalgos e cortesãos, o tipo do discreto não se confunde necessariamente com fidalgo/cortesão, segundo o esquema sociológico de “dominante/dominado”, pois o fidalgo e o cortesão também podem ser vulgares. Baltasar Gracián define o “vulgar” como categoria intelectual:

[…] pensas, disse o Sábio, que por ir alguém em liteira já por isso é sábio, indo alguém bem vestido é entendido? Tão vulgares há alguns e tão ignorantes quanto os seus próprios lacaios. E repara que, embora seja um príncipe, não sabendo as coisas e querer meter-se a falar delas, a dar sua opinião no que não sabe, nem entende, imediatamente se declara homem vulgar e plebeu, porque vulgo não é outra coisa senão uma sinagoga de ignorantes pre­sumidos que falam mais das coisas quando menos as entendem.[14]

O mesmo Gracián também fornece uma definição política da plebe, caracterizando-a como um monstro perigoso e estúpido:

Foi o caso que apareceu […] um monstro, embora raro, muito vulgar. Não tinha cabeça e tinha língua, sem braços e com ombros para a carga, não tinha peito, tendo tantos, nem mão em coisa alguma, dedos sim, para apontar. Era seu corpo em tudo disforme, e como não tinha olhos, dava grandes quedas, era furioso em acometer, e logo se acovardava […] Este é — respondeu o Sá­bio — o filho primogênito da Ignorância, o pai da Mentira, irmão da Estupidez, casado com sua Malícia: este é o tão afamado Vulgacho.[15]

A alegoria do raro monstro de Baltasar Gracián no Criticón significa que a plebe não tem unidade, pois não tem juízo. Sua murmuração é virtualmente perigosa e pode tornar-se “furiosa em acometer”. Quando ultrapassa os limites, as representações se embaralham e apagam, desfazen­do-se na opinião volúvel do monstro a aparência de unidade virtuosa da “política cristã” regida pela cabeça dos melhores, o rei, que é uma figura do Primeiro Móvel divino a que toda hierarquia universal se reduz. A murmuração transforma-se em crime; sedição e traição, é pecado mortal. Por isso, no século XVII, a murmuração também aparece prevista como um mecanismo de integração hierárquica que constitui e mantém a fama de honradez e justiça discretas dos que têm o poder dentro de certos limites, que incluem a força ou a violência. A murmuração também é mantida sob controle por meio da ostentação de signos verossímeis de virtude, discretamente aplicados. Diz Saavedra Fajardo: “Com tudo isso trabalha muito o artifício e a indústria em saber governar satisfazendo o povo e a nobreza, fugindo das ocasiões que podem indigná-lo e fazendo nascer boa opinião de seu governo” .[16]

Segundo um lugar-comum corrente no século XVII, quando se está entre vulgares também não é discreto demonstrar discrição, devendo-se aplicar o fingimento de vulgaridade para obter a aprovação dos vulgares e dominá-los. A técnica consiste na aplicação de esquemas que efetuam uma aparência vulgar, como um fingimento de falta de fingimento cujo efeito é entendido pelos vulgares como ausência de efeito. É o que se dá com as obscenidades, de que já falei, que decorrem da aplicação de esquemas de gêneros baixos e não da expressão livre, incondicionada ou transgressiva da psicologia definida como individualidade dotada de direitos liberais, que é o modo anacrônico como entendemos “libertinagem”.

Assim, nas representações seiscentistas do tipo discreto, a agudeza funde-se com a prudência. A fusão é praticamente total e explicita uma das ideias centrais do mundo barroco, a de que a representação decorosa da ocasião como aparência verossímil é sempre mais fundamental que qualquer exteriorização “sincera” ou “verdadeira” dos afetos, como se os signos valessem mais que as coisas.
Para o discreto, ao contrário do que pensamos romanticamente, as paixões não são informais. Ainda quando são paixões excessivas ou obscenas, têm formalização retórica; por isso, na representação do tipo, é uma racionalidade não psicológica que opera os afetos, aplicados segundo uma convenção de esquemas partilhados coletivamente como verossimilhança. As paixões são afetos manipuláveis como efeitos, como indica o título do livro que, em 1641, o oratoriano Senault dedica ao cardeal Richelieu, De l’usage des passions. Em todos os casos, é a “agudeza prudencial” que fundamenta os estilos e os comportamentos do discreto.

Aplicando um lugar-comum do aristotelismo, os preceptistas barrocos propõem que as imagens que compõem as agudezas da aparência discreta são formadas na mente de três modos. O primeiro deles consiste em produzir-se uma imagem mental pelo entendimento, sem que a fantasia interfira no ato, a não ser como fornecedora das imagens que são a matéria do juízo. Quando a imagem mental é representada no discurso exterior, caracteriza-se pela clareza sem ornatos. O segundo modo consiste em unir entendimento e fantasia, como proporção adequada de dialética e ornato. O terceiro, enfim, ocorre quando só a fantasia fabrica imagens, sem interferência do juízo. Esquematicamente, tem-se, assim: juízo sem fantasia; juízo com fantasia; fantasia sem juízo. Salvo em alguns gêneros, como o didático, o primeiro modo é teorizado como árido e pedestre; o segundo é agudo e o terceiro, vulgar. Todos eles, contudo, podem ser afetados ou fingidos pelo discreto.

A distinção entre discreto e vulgar passa, no caso, pelo domínio da própria ficção: como o louco, o vulgar não o tem, ao contrário do discreto, que, sendo engenhoso sempre, também é capaz de fingir a falta de engenho e prudência ou a vulgaridade e a loucura. Como diz Emanuele Tesauro quando trata dos caprichos de pintores como Bosch, nada é mais artificioso que pecar contra a arte, nada mais sensato que perder o senso, prescrevendo-se para o discreto seiscentista a técnica retórica da contra-facção, própria da dissimulação.[17] No Oráculo manual y arte de prudencia, Baltasar Gracián propõe que é a experiência da observação dos outros e o cultivo da memória que permitem que se obtenha a discrição. Catolicamente, a natureza humana é perfectível porque é mortal, e a re­presentação do discreto seiscentista pressupõe, por isso, não só a substância, mas também a circunstância: redime-sea besta cultivando-se, como diz o mesmo Gracián.

A ideia seiscentista de que a discrição pode ser adquirida por não-cortesãos por meio de exercício ou de imitação também implica as refrações do modelo e, em decorrência, também as tensões na representação da superioridade social. Como uma agonística ou uma técnica da rivalidade, as representações seiscentistas da discrição se refratam por vários motivos polêmicos, todos eles organizados em torno da idéia nuclear de que há uma moral da aparência que deve ser mantida a todo custo, não importa que seja uma aparência de moral. Na representação da aparência, o fingimento é regra; como se dizia em Veneza, “degli effeti nascono gli affeti” , “dos efeitos nascem os afetos”.

Em Portugal, a centralização absolutista recicla a escolástica como doutrina teológico-política do Estado, principalmente na teoria do “pacto de sujeição” em que o corpo político se aliena do poder transferindo-o ao rei. Na doutrina, a qualidade que capacita o governante a atingir os fins mais nobres do “bem comum” do Estado é a virtude. Segundo a doutrina jurídica portuguesa, principalmente a de Suárez, no De legibus, se o Príncipe deseja manter seu reino e alcançar a honra, a reputação e a reverência de toda a sociedade, deve acima de tudo cultivar o elenco das virtudes cristãs. A concepção opõe-se radicalmente à de Maquiavel.

Como se sabe, Maquiavel também afirma que a honra, a reputação e a reverência são objetivos do Príncipe, mas rejeita a doutrina de que o único meio correto de obtê-las seja o meio da virtude cristã. Os fins justificam os meios e nada é mais importante para o Príncipe do que saber o quanto é fundamental e positivamente vantajoso agir contrariamente à caridade, à boa-fé e à religião, quando for oportuno ou necessário. Maquiavelicamente, o Príncipe deve ser como a raposa e o leão, sabendo sempre que a aparência virtuosa é tudo — a ponto de tolerar e mesmo incentivar, por exemplo, a murmuração da plebe, para manter-se em evidência e também demonstrar, com astúcia, sua magnanimidade de homem supe­rior às críticas. Tudo que for necessário para assegurar o poder deve ser feito, enfim, em nome da “razão de Estado” quando se trata, como no caso, do “príncipe novo”.

Maquiavelicamente, não há nenhuma contradição no fingimento dis­creto, pois a ação política não pressupõe nenhuma ética. No mundo católico, contudo, a ideia da discrição como aparência implica as tensões das práticas: o fundamento da prudência política do discreto é a universalida­de da lei divina, espelhada em cada alma como luz natural ou Graça inata. Teoricamente, por isso, o discreto católico não poderia mentir ou ser hipócrita. Na prática, contudo, as condutas adaptam-se às conveniências da ocasião, o que determina um duplo padrão de moralidade e o típico casuísmo jesuítico das interpretações. Gracián, por exemplo, escreve no Oráculo manual y arte de prudencia que a discrição permite dizer o “sim” que significa “não”, ou “talvez”. Não confiar em ninguém é receio de tirano, mas acreditar em todos é facilidade de príncipe imprudente, também escreve Saavedra Fajardo, propondo um meio-termo de confiança e desconfiança, porque “néscia seria a ingenuidade que descobrisse o coração, e perigoso o império sem recato. Dizer sempre a verdade seria pe­rigosa simplicidade, sendo o silêncio o principal instrumento para reinar”.[18]

A discrição implica a metáfora nas formas do dizer e do agir e, por definição, é técnica da agudeza. E, como a agudeza conceituosa fundamenta um estilo e um modelo de comportamento apropriados também por aqueles que institucionalmente seriam “vulgares”, torna-se objeto de polêmicas. Matteo Peregrini, um dos primeiros a teorizá-la como técnica do conceito engenhoso, retoma princípios antigos para opô-los aos “modernos”, que exercitam a retórica, como diz, “senz’arte quasi del tutto, senza prudenza e senza giudicio”.[19] Em Delle acutezze, che altrimenti spiriti, vivezze e concetti volgarmente si appellano (1639), Peregrini teoriza o que chama de “l’indiscreta affettazione delle acutezze”. A desqualificação com que constitui o vulgar, que usa as agudezas indiscretamente, também se evidencia como desqualificação política, uma vez que o uso indiscrimina­do delas não considera as hierarquias sociais, aplicando os decoros a es­mo.

A afetação decorrente é justamente uma hiperdeterminação dos traços do modelo cortesão da discrição, como um hiperurbanismo. Ridícula pelo exagero, a afetação não deixa de evidenciar, contudo, os limites da convenção de discrição, que se pretende naturalmente fundada. Assim, conforme Peregrini, a agudeza também é louvada pelos “infarinatti di lettere” , formulação que extrai de um tratado de Boccalini.[20] Os infarinatti são pedantes, com pretensões de saber tudo, por isso vulgares. Como letrados de “estilo moderno”, não têm a perfeição do juízo que pre­tendem aparentar no uso da agudeza porque, com a mesma presunção, evidenciam que o têm corrompido. Em suma, como diz Peregrini, só os que não têm o juízo perfeito admiram a agudeza sempre. É que, às vezes, a matéria da representação necessita de uma discretezza giudiciosa para ser bem conhecida e figurada, segundo uma oposição: indiscreta afeta discrição judiciosa, opondo-se afetação/discrição segundo suas duas qualificações principais, indiscreta/ judiciosa. Por outras palavras, o dis­creto é sempre agudo e é por agudeza que às vezes não é agudo… A dis­crição é postulada, por isso, como racional, decorosa, justa e avaliadora das ocasiões, ao passo que a afetação é irracional, indecorosa, injusta e imprudente.

Peregrini faz sua crítica como oposição neo-escolástica, que inclui motivos platônicos de proporção/desproporção ou de icástico/fantástico, nos quais também se rebate a moralidade do decente/indecente. Ocupando-se dos efeitos e só conseguindo atingir a “turba popular” por meio deles, que fazem uma coisa ser outra quando produzem um ente a partir do nada, como metáfora, a agudeza indiscriminada é jogo da aparência e da multiplicidade enganosas, como pretensão de simulacro. Além disso, é indevida a fama que seu autor recebe da admiração embasbacada do vulgo, uma vez que a mesma “turba popular” é vulgar e, por isso, inepta para julgar e distribuir honras. O verdadeiro discreto saberia, enfim, que o aplauso vulgar é desonra. Assim, é preciso também saber quando é oportuno fingir.[21]

Della dissimulazione onesta (Da dissimulação honesta) é, aliás, o no­me de um tratadinho de 1624, em que Torquato Accetto escreve sobre a necessidade e as técnicas de se encobrir a verdade que caracterizam o discreto católico. Conforme Accetto, a cautela que se toma contra os lobos e os leões é uma coisa óbvia, por causa do conhecimento que já se tem da sua violência. Mas as raposas também estão entre nós e nem sem­pre são reconhecidas; quando se conhecem, usa-se a arte contra a arte, e nesse caso jogará melhor quem for mais capaz de aparecer como estúpido, fingindo crer em quem deseja enganá-lo com o fingimento, pois é grande inteligência que se dê a ver que não se vê quando mais se vê, num jogo em que os olhos aparecem fechados e estão totalmente abertos.

Como dissimulação, as conceituações católicas do discreto apropriam-se também do texto dos Annales, de Tácito, principalmente do dito de Tibério — “Qui nescit fingere nescit vivere” (Quem não sabe fingir não sabe viver). Nos usos católicos de Tácito, o fingimento aparece como um travestimento oportuno do maquiavelismo, pois faz o jogo dos interesses da “razão de Estado” e ao mesmo tempo mantém a aparência da moral e virtude católicas.

Considerando-se essas possibilidades de fingimento do fingimento ou de fingimento da falta de fingimento, na constituição ibérica do tipo discreto é central a reciclagem da ideia aristotélica que propõe a virtude como capacidade intelectual do juízo, principalmente porque é o juízo que fundamenta o artifício das técnicas retóricas com que então se faz a diferença entre “dissimulação” e “simulação”. Ambas especificam a discrição, mas sua diferença está nos meios aplicados e nos fins visados. No mundo católico, a dissimulação é entendida como uma técnica de fingimento moralmente virtuoso que oculta o que realmente existe, enquanto a simulação é dada como a técnica maquiavélica que finge a existência do que não há.[22] Dois fingimentos, duas aparências: um deles oculta a verdade, outro produz o falso, segundo a interpretação católica. Como diferenciar a aparência da verdade da verdade da aparência?

Como o discreto sempre aparenta reconhecer seu lugar na hierarquia por meio de uma representação adequada, os exemplos de Gracián, Saavedra Fajardo, Gregório de Matos ou Torquato Accetto também evidenciam que as categorias intelectuais da discrição e da vulgaridade são apropriadas por ordens, grupos ou indivíduos, que as usam para com elas impor a classificação cultural positiva ou negativa a outras ordens ou a indivíduos de ordens, enquanto se autoclassificam com os usos. Os tipos do discreto e do vulgar funcionam, por isso, como mecanismos políticos de constituição de unidades de excelência e de não-unidades viciosas.

Autores espanhóis de tragicomédias, como Lope de Vega e Tirso de Molina, escrevem no início do século XVII que a agudeza é “política perfeição”, pois é um instrumento adequado para produzir discursos que, sendo formulados aparentemente como se não seguissem nenhuma regra, são também consumidos sem necessidade delas. Tais discursos são caracterizados pela mistura /dos estilos e pela falta de proporção aparente de suas partes, como se neles a fantasia poética estivesse livre de regras e fosse produzida por um tipo furioso, louco ou vulgar. Na Espanha do século XVII, tais discursos são fabricados, no entanto, tendo em vista um público específico ou típico, constituído pelos autores como vulgar. Tem um perfil profissional nítido, sendo formado por tipos que exercem ofícios mecânicos, como se pode ler em Ortografia castellana, texto de 1690 do espanhol Alcázar:

No teatro o juiz é o vulgo néscio e sem letras, que não distingue o relâmpago do raio, que não penetra os conceitos e somente sente prazer com a transposição desusada das palavras. Não são vulgo os cidadãos, nem os mestres das artes mais nobres, mas sim os alfaiates, os sapateiros, os cocheiros, os liteireiros e outros semelhantes, que pelo ruído que fazem se chamam “mosqueteiros”.[23]

Nas discussões espanholas da tragicomédia, acusada pelos críticos tradicionalistas de fazer misturas estilísticas inverossímeis, Lope de Vega escreve, respondendo às críticas:

[…] escrevo com a arte que inventaram
os que o vulgar aplauso pretenderam,
porque, como as paga o vulgo, é justo falar-lhe como néscio para dar-lhe gosto
[24]

Tem-se, no caso, uma das representações barrocas do discreto, capaz de se fingir vulgar ou néscio quando se dirige ao vulgo. Em uma das sátiras atribuídas a Gregório de Matos, que trata do tema do “mundo às aves­sas”, propõe-se a seguinte questão: entre vulgares, o discreto continua dis­creto ou é vulgar, conforme o julgamento de néscios que não sabem julgar? Concluindo que é mais néscio ainda agir sempre por meios discretos num lugar em que os vulgares sempre têm razão e no qual toda prudência é erro, a personagem satírica declara:

[…] De diques de água cercaram
esta nossa cidadela,
todos se molharam nela,
e todos tontos ficaram:
eu, a quem os céus livraram
desta água fonte de asnia,
fiquei são da fantesia
por meu mal, pois nestes tratos
entre tantos insensatos
por sisudo eu só perdia.
[…]
Dei por besta em mais valer,
um me serve, outro me presta;
não sou eu de todo besta,
pois tratei de o parecer:
assim vim a merecer
favores, e aplausos tantos
pelos meus néscios encantos.
[25]

Pela convenção, o vulgar é néscio ou estúpido; o discreto o satisfaz ao “falar-lhe como néscio”, no verso de Lope, ou, nos da sátira, “não sou eu de todo besta/ pois tratei de o parecer”. É essa representação que per­mite outro fingimento discreto de vulgaridade corrente nas letras seiscen­tistas, o fingimento da obscenidade:

Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?
O falar de intercadência
entre silêncio, e palavra,
crer, que a testa se vos abra,
e encaixar-vos, que é prudência:
alerta homens de Ciência
que quer o Xisgaravis,
que aquilo, que a voz não diz
por lho impedir a rudeza,
avalieis madureza,
sendo ignorância traidora.
Entendeis-me agora?[26]

O poema de Gregório enuncia a adequação da agudeza discreta conforme a situação e o público. No caso, é público vulgar e a agudeza cortesã é inadequada para ele porque é “cultíssima profecia” ou “culterania”, fórmula que aproxima conceitos distantes fundindo-os numa metáfora hermética cuja interpretação necessita do engenho e do juízo que o vulgar por convenção não tem. A agudeza, que é a formulação adequada para caracterizar a representação do discreto e também, negativamente, para figurar a representação discreta apropriada por aqueles que a aparentam, aqui é totalmente inadequada. Propõe-se, por isso, a virtude retórica da clareza: “porque todos entendais”. E isso porque o vulgar também confunde o silêncio — no caso do poema, o silêncio de Xisgaravis — com a representação discreta de “madureza” e não entende que é “rudeza”. No caso, o silêncio de Xisgaravis não é dissimulação — se o fosse, Xisgaravis seria um discreto — mas é silêncio causado pela rudeza que o impede de falar. Veja-se que o poema adapta os conceitos de discreto e vulgar a termos escravistas, correntes no Brasil colonial, usados para classificar africanos escravizados, “ladinos” os que falam português, “boçais” os que não o falam. O vulgar é boçal e essa significação se estende para “todos”, aos quais a sátira se dirige compondo a clareza do discurso. No caso, trata-se da clareza do cômico maledicente como “Musa praguejadora”: a Musa praguejadora produz obscenidades que, sendo vulgares e claríssimas, são também adequadas para a recepção e o entendimento de “boçais”, sem que o autor seja vulgar, pois seu fingimento é discreto.

Dessa maneira, quando compõem seus tipos e destinatários como vulgares, os discursos do século XVII também afirmam que os compõem sem nenhuma regra do juízo, uma vez que a recepção vulgar é néscia e não domina nenhum código discreto. O fingimento poético da fantasia como dissimulação produz o artifício de uma natureza estúpida para divertir os néscios com falas néscias, vulgares e obscenas. Dito doutro modo, a fantasia poética da obscenidade é uma operação discreta de produção de efeitos vulgares, que agradam sem postular o juízo. Como se diz em outro poema:

O néscio, o ignorante, o inexperto,
Que não elege o bom, nem mau reprova, Por tudo passa deslumbrado, e incerto. […]
Néscio: se disso entendes nada, ou pouco, como mofas com riso, e algazarras,
Musas que estimo ter, quando as invoco?
[27]

Como um artifício que calcula as adequações dos discursos ao destinatário, a representação deve ser suficientemente discreta para ser en­tendida como imitação e paródia por discretos que conhecem suas referências letradas; ou como mera diversão pelo vulgar, que se diverte com imagens obscenas, ignorando as convenções que as produzem.

Como propõe Chartier quando trata da difusão dos modelos de corte, sua ocorrência na representação seiscentista ibérica não pode ser identificada à simples difusão unidirecional “de cima para baixo”, ou do Estado para a sociedade, da corte para a população, dos dominantes para os dominados, da cultura letrada para a cultura popular. Como convenção partilhada socialmente por todo o corpo político do Estado, a discrição e a vulgaridade não têm substancialidade empírica; por isso, as representações do discreto e do vulgar não são um “reflexo” secundário de situa­ções ou de sujeitos preconstituídos. Como modelos de todo o corpo político dos Estados ibéricos seiscentistas, discreto e vulgar são tipos que organizam a representação segundo critérios do campo institucional das práticas em que ocorrem. A unidade do tipo discreto e a não-unidade do tipo vulgar são objetivações de práticas de representação.

Pode-se dizer, por isso, com historiadores e antropólogos, que a convenção do discreto foi fundamental no processo de formação dos Estados modernos absolutistas ibéricos, nos séculos XVI e XVII. Norbert Elias, por exemplo, propõe que o processo de centralização monárquica funciona como uma interiorização psicossocial do constrangimento político exterior por meio de um crescente processo civilizatório de controle do corpo e distinção das maneiras. Segundo sua interpretação, a centralização monárquica implicou a diferenciação progressiva de funções sociais e multiplicou as interdependências, dando lugar a mecanismos de autocontrole, como a pequena ética da etiqueta, que torna suportável a vida em sociedade, mas implica a repressão. A centralização implicou também a neutralização dos nobres, agrupados numa corte para maior controle por parte da Coroa que, usando dos privilégios, manteve-os coesos como ordem ao mesmo tempo em que os desuniu como interesses de grupos e subgrupos. Sendo a corte o modelo da centralização, o cortesão e suas maneiras foram constituídos como o ideal da excelência humana.

O trabalho clássico de Norbert Elias sobre a sociedade de corte e suas retomadas recentes por historiadores dos Annales, como Daniel Roche, Jacques Revel e Roger Chartier, permitem que se defina a racionalidade de corte que especifica o tipo do discreto como uma organização de três princípios paradoxais.[28]

Primeiramente, como propõe Chartier, a corte é um lugar e um modelo. Como um lugar, nela a maior distância social se manifesta na maior proximidade espacial. Como modelo, sua estrutura difunde-se para todo o corpo político do Estado. Na corte, também, as condutas que na socie­dade burguesa são próprias da esfera privada, em oposição à esfera pública, são signos ostensivamente visíveis da ordem política, na qual cada um é, ao mesmo tempo, ator e espectador.

Por isso, e em segundo lugar, segundo Chartier, na sociedade de corte o ser social do indivíduo é identificado à representação que faz de si para os outros. O reconhecimento da posição a partir de signos visíveis fundamenta uma economia da ostentação em que os dispêndios são essenciais, sendo regulados de acordo com as exigências da posição. É o caso extremo do marquês de Villamediana, que manda pôr fogo ao seu palácio recém-inaugurado depois que recebe a visita de Filipe IV e da rainha, declarando que o sol seria indigno de brilhar sobre a cena onde os dois sóis tinham brilhado; também o do nobre que constrói o castelo de Vaux e convida Luís XIV para visitá-lo, com recepção magnífica; após a visita, o rei manda prendê-lo, pois o seu luxo ultrapassa o de Versalhes.

Em terceiro lugar, ainda conforme Chartier, na sociedade de corte a superioridade social só se afirma pela submissão política e simbólica. Trata-se de uma lógica da distinção pela dependência de dar inveja aos porteiros de palácio de hoje. Como lembra Starobinski, no termo adulação se acha o ad ululari do cachorrinho que abana o rabo quando vê o dono. A adulação é funcional, contudo, pois apenas pela submissão à vontade real e à etiqueta a aristocracia mantém sua posição diante de concorrentes. Posição obviamente sempre precária, porque todo privilégio é revogável pela vontade soberana do rei:

era valido, e caiu,
que o cair é dos validos:
tão certos são, e sabidos
no monte, no lar, na praça
estes reveses da graça,
que é já dos Palácios lei,
que quem da graça d’El-Rei
cai, cai da sua desgraça,
[29]

Como se lê num poema atribuído a Gregório de Matos e que refere o conde da Ericeira, d. Luís de Meneses, que se suicidou atirando-se de uma janela depois que perdeu o favor real.

Desse modo, a discrição seiscentista implica que a identidade é definida pela representação e como representação; e que o poder seja deduzido da aparência, e a posição, da forma da representação.[30] O que obviamente também implica a disputa política das representações e a sua identidade instável; a constituição de aparências ou representações “verdadeiras” e a exclusão simultânea de outras, dadas como aparências “falsas” “inadequadas” ou “improcedentes”.

Por isso, quando o tipo do discreto é encenado nas letras, também ocorrem os temas do grande teatro do mundo, do ser e do não-ser, da inconstância da Fortuna, do mundo às avessas e do desengano. Em todos os casos, é fundamental o conceito de “honra”.

Em seu dicionário Tesoro de la lengua castellana, de 1612, Covarrubias propõe, no verbete “Honrado”: “Honrado es el que está bien reputado, y merece que por su virtud y buenas partes se le baga honra y reve­rencia”. Retomando os exemplos que referi, o vereador ou a Câmara de Salvador, o governador ou a corte de Versalhes não têm honra, substancialmente, mas sim aqueles que, não a tendo institucionalmente, têm o poder de murmurar e deixar de atribuí-la quando seu olhar não encontra a representação adequada. Por outras palavras, tem honra quem tem o poder de tirá-la de outro, como se pode ler na peça Los comendadores de Córdoba, de Lope de Vega, quando falam as personagens Veintecuatro e Rodrigo:

VEINTECUATRO: ” é Sabes lo que es la honra?”
RODRIGO: “Sé que es una cosa
que no la tiene el hombre”.
VEINTECUATRO: “Bien has dicho.
Honra es aquello que consiste en otro.
Ningún hombre es honrado por sí mismo,
que del otro recibe la honra un hombre”.

Como diz Veintecuatro, “ser virtuoso um homem e ter méritos não é ser honrado”, pois a honra resulta de uma opinião. Discreto é o que sabe produzir a representação adequada de “honra”, evitando com ela a murmuração vulgar, pois com a representação adequada se mantém intacta a reputação da posição que aparece formalizada nos signos. Da mesma maneira, mantêm-se intactas também a reverência e a obediência que são devidas à posição. Por isso, nas práticas de representação do século XVII, “honra”, “reputação” e “reverência” são sinônimos doutrinados politicamente como derivados da opinião. É a opinião, enfim, que confere a honra ou a desonra quando se aplica a um ponto social determinado. A noção barroca de honra é especular, implicando a circularidade do ver e do ser visto. Reflexivamente, a honra deve ser mantida a todo preço pela representação das aparências de honra oferecidas para o julgamento da opinião, como moral da aparência e aparência da moral.

Justamente por isso, quando discretos se atacam uns aos outros, atribuem desonra às mulheres. Para compor o insulto, aplicam a maledicência do cômico aristotélico, produzindo efeitos deformantes em que a obscenidade é regra. Nos discursos, a técnica constitui a imoralidade hiperbólica do comportamento sexual da mulher, invariavelmente caracterizada como “puta”. A imagem desonrosa de “puta” atribuída à mulher transforma a imagem honrada de esposa na de mulher de corno e mãe de bastardos, o que é “insulto atroz” em sociedades de corte nas quais a herança do nome de família e das riquezas pressupõe a “limpeza de sangue” ou a pureza da linhagem, como é o caso da sociedade ibérica do século XVII. Paradoxalmente, por isso, os tipos superiores ibéricos se mantêm em evidência pela ostentação dos signos da honra e recebem a glória e a fama por parte daqueles que institucionalmente não podem aparentar tais signos, mas que os reconhecem, os vulgares. A honra discreta é funcional, como disse, pois é uma imagem resultante de uma relação de representações que implica sempre o ver e o dizer, o olho e a voz, ou um testemunho e uma opinião formulados num juízo de valor. É, por exemplo, o que se lê numa sátira contra Gregório de Matos, em que se faz um trocadilho maledicente com o nome da esposa do poeta, d. Maria dos Povos:

Quis por ser em tudo novo,
que é somente o que ele quer,
ter consigo uma mulher,
que é também de todo o povo:
eu só nesta parte o louvo
de discreto, e entendido,
pois que quis ser seu marido
juntamente com mais cem;
mas não o saiba ninguém.
[31]

Dessa maneira, e repetindo, na representação seiscentista do discreto a prudência é a virtude política principal, pois é ela que, pelo cálculo da aparência adequada, consegue evitar a murmuração da opinião quando aplica um decoro específico da circunstância. Entre os artifícios que constroem a aparência discreta, o luxo discursivo da ostentação das agudezas é um dos principais e fica evidenciado no sucesso e na diluição de poetas difíceis como Góngora ou Marino, cujo hermetismo distingue como discretos os leitores capazes de entendê-los. Justamente por serem poetas definidos como discretos, são apropriáveis por aqueles desejosos de parecer discretos ou, por outras palavras, desejosos de aparentar as aparências adequadas às posições superiores.

Pode ser oportuno lembrar que, no século XVII, o Estado português sofre de uma espécie de inchaço burocrático e passa a absorver mais e mais um novo tipo social em ascensão, o de indivíduos enriquecidos com os negócios da Índia, da África e do Brasil. Começam a formar uma nobreza togada, principalmente quando conseguem acesso à universidade e ao padrão letrado da cultura, ou quando firmam alianças com a nobreza velha por meio de casamentos, ou quando passam a usar dos privilégios concedidos pela Coroa em troca de empréstimos, ou simplesmente quando ostentam foros falsos de fidalguia, que então são vendidos em Lisboa. Como disse, a ascensão dos arrivistas frequentemente esbarra com a opo­sição da fidalguia de sangue, que aplica o modelo cortesão da discrição para com ele desqualificar os falsos pretendentes:

Já temos o Canastreiro,
que inda fede a seus beirames,
metamorfósis da terra,
transformado em homem grande:
e eis aqui a personagem.
[32]

Como um instrumento político de conferir posições sociais, o mode­lo da discrição define a representação dos que pretendem aparentar a imagem de autênticos discretos, mas também especifica a afetação de vulgares. Como ocorre na anedota sobre os hábitos do dr. Gregório de Matos: branco, afidalgado, letrado, formado em cânones pela Universidade de Coimbra, poderia afetar a aparência discreta; no entanto, desdenha a pragmática que hierarquiza o uso dos trajes, pois costuma vestir um colete de pelica âmbar ou cor de rato. Sua imagem torna-se objeto da opinião zombeteira dos mulatos de Salvador, que vestem sedas e veludos proibidos para a gente de ínfima condição. A anedota figura uma inversão das regras do campo: juridicamente definidos como inferiores e vulgares segundo os estereótipos da “limpeza de sangue”, do escravismo e dos ofícios mecânicos, os mulatos ostentam a representação de “discretos” no juízo com que avaliam o gosto do doutor quando zombam dele. No entanto, como se dizia no século XVII, a vulgaridade da imagem de Gregório talvez seja efeito da discrição, pois entre vulgares a maior discrição é o fingimento da sua falta.

Skinner demonstra que os livros de discrição surgiram nas cidades republicanas da Toscana em luta contra as políticas do imperador e do papa, no século XIII. Eram livros relacionados à ars dictaminis, a técnica retórica que fornecia fórmulas e modelos oficiais para a escrita de cartas. Conforme Muratori, o primeiro deles teria sido escrito anonimamente em 1222, sendo seguido logo depois pelo de Giovanni de Viterbo, que tratava do governo das cidades. Viterbo o completou em 1240, depois de ter ocupado o cargo de juiz para o podestà de Florença. Como diz Skinner, o aparecimento desse gênero de textos marca uma dramática extensão da ars dictaminis. Com eles, seus autores deixavam de ser simples instruto­res ou professores de retórica e passavam a conselheiros nos negócios das cidades.

A característica principal desse gênero literário conhecido como speculum ou specula Principum, espelho ou espelhos de Príncipes, é o fato de apresentarem o elenco completo das virtudes que o governante deve ter. Geralmente, os vícios mais criticados neles são a embriaguez, o orgulho, a ira, a venalidade e a aceitação de presentes.[33] Propõem que, acima de tudo, o governante deve temer a Deus e honrar a Igreja, agindo segundo as quatro virtudes cardeais, prudência, magnanimidade, temperança e justiça.

Na segunda metade do século XIII, deu-se na Itália uma importante modificação nos estudos de retórica, decorrente de a tradição local do estudo da ars dictaminis ter sido interceptada pelo modelo francês do estudo baseado na leitura de autores latinos — os auctores ou as auctoritates — propostos como modelos a serem imitados. Provavelmente, foi Brunetto Latini, tradutor de obras de Cícero e professor de Dante, o mais im­portante dos inovadores. A substituição do ensino de retórica baseado em regras pelo ensino das letras latinas propostas como modelos a serem imi­tados atingiria o auge no século XIV. Quando o modelo francês das auctoritates cruza o dos livros de aconselhamento escritos à maneira das regras da ars dictaminis, começam a aparecer textos em que a mistura resulta numa sofisticação teórica e num cuidado maior com as próprias letras. Citações de Platão, Sêneca, Juvenal, Salústio e, principalmente, Cícero, juntam-se a regras de conselho e comportamento. No texto de Brunetto Latini, por exemplo, a contínua citação de Cícero e a incorporação da ética aristotélica levam-no a afirmações como a de que a principal ciência que tem relação com o governo da cidade é a retórica, como técnica da fala persuasiva. Ao mesmo tempo, com a apropriação da filosofia estóica pelos autores dos textos de aconselhamento, passar-se-ia a fazer a crítica da nobreza de sangue, propondo-se, com a citação contínua da poesia de Horácio, que a verdadeira nobreza é a da virtude. Um lugar-comum sempre aplicado então é o de que, se um homem tem origem nobre, isso nada significa caso leve uma vida desonesta. A mesma opinião é encontrável no quarto livro do Banquete, de Dante: onde está a virtude, aí se encontra a nobreza.

Essa mesma direção geral do aconselhamento misturado com exemplos de virtude de textos latinos seria retomada, por exemplo, por Maquiavel. A partir dele, passa-se a discutir uma questão básica: para manter o poder, o Príncipe deve ser virtuoso ou deve parecer virtuoso, deve ser generoso ou parcimonioso, cruel ou compassivo? Como a principal questão é, afinal, a de como conquistar, manter e ampliar o poder, Maquiavel considera que a vida de virtudes pode ser objeto de consideração desde que a virtude possa ser útil para atingir os fins do poder. Assim, a novidade radical introduzida por ele — e que será determinante na conceituação posterior do discreto como um tipo católico, herege ou libertino — é a separação que faz entre vida votada à virtude e vida votada ao sucesso político. A partir do século xvi, a obra de Maquiavel fissura o modelo da virtude aristotélico-cristã, principalmente os capítulos 16, “Sobre a liberalidade e a parcimônia”, e o 17, “Sobre a crueldade e a piedade”, de O Príncipe.

Um dos livros principais de codificação do tipo do discreto é o de Baldassare Castiglione, Ii Lebro del cortegiano, de 1528, seguido pelo de Giovanni della Casa, Galateo ovvero de’ costumi, em 1558. Tanto Casti­glione quanto Della Casa foram muito imitados em Portugal, podendo-se lembrar aqui o exemplo de Francisco Rodrigues Lobo e seu Corte na aldeia, de 1619. Todos propõem como central o conceito da virtus, tratado por Cícero no De officiis, e que fora reciclado no século XV pelos humanistas florentinos da Academia de Careggi: é possível obter a excelência por meio de uma educação adequada de retórica e filosofia antiga. Em tal educação, são modelos o costume (consuetudo) e a autoridade (auctoritas) dos exemplos a serem imitados, segundo o topos renascentista de que a excelência universal — o uomo universale — é atingida por meio das letras e armas. Enquanto Castiglione propõe seu modelo de discrição restritivamente, no entanto, como padrão a ser seguido por cortesãos das cidades italianas do século XVI, no século XVII Gracián e seus tradutores franceses, como Antoine de Courtin e Amelot de la Houssaye o retomam dilatando-lhe a proposição. Em El discreto (1646) e Oráculo manual y arte de prudencia (1647), Gracián propõe que é pela aplicação de suas receitas de discrição que qualquer um, dentro dos limites hierárquicos óbvios, pode tornar-se discreto enquanto sobe hierarquia acima buscando distinção.

No último capítulo de El discreto, Gracián alegoriza a vida humana com a antiga tópica das estações do ano[34] quando faz o elenco das matérias que concorrem na educação do cortesão seiscentista. A educação que propõe visa a desenvolver a “agudeza prudencial”[35] de um tipo humano que a vida toda se prepara para morrer bem. Feita como anamnese de casos exemplares da ars moriendi, a educação do tipo é também uma ascese que, pelo autocontrole das paixões, permite sua integração virtuosa no corpo político do Estado. Já se viu que na hierarquia barroca determinada como “razão de Estado” a liberdade tem formulação paradoxal para nós, pósiluministas, pois define-se como subordinação ao sistema dos privilégios; por isso, a posição social é deduzida da aparência e, a aparência, da forma da representação. Logo, Gracián propõe a educação como as técnicas que permitem construir a forma de uma representação verossímil, co­mo aparência decorosa ou adequada às várias ocasiões da vida de relação.

Exemplarmente discreto, segundo Gracián, é o varão que decidiu repartir a comédia da vida em três atos: no primeiro, a juventude, conversou com os mortos; com os vivos, na madureza; e consigo mesmo, no último.

Dedicando o primeiro terço da vida ao comércio com os livros, uma vez que tanto se é mais homem quanto mais se sabe, o tipo aprende as artes dignas de um nobre engenho e que, segundo o estereótipo também ibérico que define o trabalho manual como inferioridade, diferenciam-se das que são escravas do trabalho. Numa sociedade em que a Conversação cortesã é fundamental, devendo mostrar-se “aguda” e simultaneamente “natural”, a aprendizagem da língua que se fala na corte é o primeiro cuidado. Preparando-se para “entrar no mundo”, o discreto dedica-se especialmente ao estudo de línguas, com que se forma e informa: latim e espanhol, grego, italiano, francês, inglês e alemão. Depois, dedica-se à história, que entende ciceronianamente como “grande mãe da vida, esposa do entendimento e filha da experiência”: compreensão das monarquias, repúblicas e impérios, com seus aumentos, sucessos, declínios e mudanças; número de seus príncipes, ordem e qualidade deles, bem como seus feitos de paz e guerra. Aprende-a sabendo, como escreve Saavedra Fajardo no prólogo de Corona gothica castellana, y austríaca, que “o ofício do historiador não é o de ensinar referindo, mas o de referir ensinando”.[36] Feita como memorização de exemplos de política cristã, para a qual são utilizados os lugares de uma arte da memória que toma por modelo a Retórica a Herênio,[37] a aprendizagem é meio para um fim superior. Como fusão de senequismo ético e tacitismo político, visa ao aperfeiçoamento do desengano da alma no desempenho mundano da representação decorosa das paixões, como subordinação hierarquizadora, segundo a doutrina da razão de Estado. A memória, no caso, é uma parte da prudência.

Em terceiro lugar, o discreto passeia “os deliciosíssimos jardins da Poesia, não tanto para usá-la quanto para gozá-la, que é vantagem e também decência”. Com o exercício, pretende não ser ignorante a ponto de não saber fazer um verso, mas também não quer ser tão inconsiderado a ponto de fazer dois, como dizia o conde de Orgaz, d. Alvar Pérez de Guzmán, que considerava vulgar quem não sabia fazer uma copla e louco o que fazia duas.[38] Sempre considerando a justa medida, o discreto lê todos os “verdadeiros poetas” — entre eles, o “profundo Horácio” e o “agudo Marcial” — valorizando um padrão cortesão de urbanidade artificiosa, que alia a solidez do conhecimento consuetudinário da poesia, articulado à prudência, com a brevidade epigramática da sua elegância, formulada na agudeza. À poesia, junta as humanidades, ou as letras, ganhando erudição não tanto extensa, antes aprofundada, com as leituras intensivas dos mesmos textos.

Estuda filosofia em seguida, começando pela natural para alcançar a causa das coisas; como um tipo contra-reformado ou neo-escolástico, prefere a moral, como luz e guia da prudência, investigando-a em sábios e filósofos. Discípulo de Sêneca, apaixonado por Platão, também a lê em Epiteto, Plutarco e Tácito, não desdenhando o útil Esopo, sem que se fale do óbvio e divino Aristóteles, e Túlio, o nome familiar de Cícero no século XVII. Aprende também cosmografia, natural e formal, medindo terras e mares para saber onde tem os pés; de astrologia saberá o que permite a cordura; fecha os estudos com o que será toda a vida uma contínua lição de Sagradas Escrituras, preparando-se para os desempenhos da apa­rência. Porque o mais, como diz Calderón de la Barca, é o mundo.

NOTAS

[1] R. Pintard, Le libertinage érudit dans la première moitié du XVIIe siècle, Paris, Boivin, 1943; Anna Maria Battista, Alie origini del pensiero politico libertino. Montaigne e Charron, Milão, Giuffrè, 1966; Ivo Comparato, “Ii pensiero politico dei libertini” in Storia delle idee politiche economiche e sociali, Turim, Unione Tipografico/ Ed. Torinese, 1980; Françoise Charles-Datibert, “Le libertinage érudit et le problème du conservatisme politique”, in H. Mechoulan (org.), L’État baroque 1610-1652; regards sur la pensée politique de la France du premier XVIIe siècle, Paris, Vrin, 1985; Tullio Gregory, Etica e religione nella critica libertina, Napoles, Guida Editori, 1986.

[2] Tullio Gregory, “Ii libertinismo erudito”, in Etica e religione nella critica libertina, Nápoles, Guida Editori, 1986, P. 41.

[3] P. Charron, De la sagesse, II, 2, p. 314.

[4] G. Naudé, Apologie pour tous les grands personnages qui ont esté faussement soupçonnez de magie, Paris, 1625, pp. 49-50.

[5] Tullio Gregory, op. cit., p. 41.

[6] Fr. Garasse, La doctrine curieuse, p. 676, citado por T. Gregory, op. cit., p. 38.

[7] Framçoise Charles-Daubert, “Le libertinage érudit’ et le problème du conservatisme politique”, in Henry Mechoulan, L’État baroque 1610-1652 , Paris, Vrin, 1985, p. 181.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, ibidem, pp. 183-4.

[10] Pierre Klossowski, Sade mon prochain (précedé de “Le philosophe scélérat”). Paris, Seuil, 1967, pp. 51-2.

[11] Cartas do Senado: 1638-1673, Salvador, Prefeitura do Município de Salvador, Bahia, 1951, 1º vol., pp. 18-9.

[12] Phillipe Beaussant, Versailles Opéra, Paris, Gallimard, 1981.

[13] Cf. “Lembrança que o marechal dom Fernando Coutinho deu por escrito a seus filhos dom Álvaro e dom Francisco partindo eles para a jornada da Bahia (1649)”, in Miscelânea histórica portuguesa, códice 1551, Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa.

[14] Baltasar Gracián, “Plaza del populacho y corral del vulgo” in El criticón, ii, crisi v, in Obras completas, Madri, Aguilar, 1960.

[15] Idem, ibidem.

[16] Diego Saavedra Fajardo, Empresas políticas: idea de un príncipe político-cristiano; ed. Quintin Aldea Vaquero, Madri, Nacional, 1976, 2 vols., vol. 1.

[17] E. Tesauro, Idea delle perfette imprese; a cura di Maria Luisa Doglio, Florença, Leo Olschki, 1975, capítulo xx.

[18] E. Tesauro, Idea delle perfette imprese; a cura di Maria Luisa Doglio, Florença, Leo Olschki, 1975, capítulo xx.

[19] Matteo Peregrini, I fonti dell’ingegno ridotti ad arte, in Trattatisti e narratori del Seicento, Milão/Nápoles, Riccardo-Ricciardi, 1960, p. 179.

[20] Cf. Trajano Boccalini, Ragguagli de Parnaso. Avisos de Parnaso: primera e segunda centuria (de Traiano Boccalini); traducidos de lingua toscana en espatiol por Fernando Perez de Sousa. Madri, por Diego Diaz de la Carrera, à custa de Mateo de la Bastida, 1653.

[21] Matteo Peregrini, Delle acutezze, che altrimenti spiriti, vivezze e concetti volgarmente si appellano, op. cit.

[22] Por exemplo, o códice 206, Aforismos da razão de Estado, dos Reservados na Biblioteca Nacional de Lisboa, diz o seguinte, quando trata do tópico “Doudice”, propondo a discrição como dissimulação:

“Fingir-se um homem doudo talvez é ser discreto. Isto hão de fazer aqueles que são mal contentes de seus Príncipes; mas primeiro devem medir as suas graças, e ver se são tais que quando possam fazer resistência aberta, e fazer-lha, porque esse é o melhor caminho, menos perigoso, e mais honrado. O mal contente que não pode fazer resistência declarada deve contemporizar e acomodar-se ao gosto do Príncipe em tudo sendo necessário.”

Às vezes, no entanto, o próprio modelo da dissimulação honesta é criticado como simulação própria do maquiavelismo, como se pode ler no texto Caráter dos cortesãos maquiavélicos e refalsados, descrito por Boileau e outros escritores, do códice 43, Papéis vários.

“Quais são as qualidades de um cortesão: adular a seus inimigos, em quanto os teme, e destruí-los, se pode, aproveitando-se de seus amigos, sempre que necessite deles, e virando-lhe o rosto quando os não há de mister: buscar Protetores poderosos a quem adora com dissimulação e indústria na aparência, e frequentemente despreza con p.as (sic) e com secreto. A urbanidade cortesã consiste na grande fábrica de observar a Lei da dissimulação, e do dolo: de Representar todo o gênero de Personagens, segundo pedirem os próprios interesses, nas ações que se oferecerem. Sofrer com aparente desembaraço, e dissimulação aprazível as desgraças, e os reveses da Fortuna, e esperar com pomposa alegria, e inquieta modéstia, os favores da ventura” (p. 3).

[23] Pe. Alcázar, Ortografia castellana (1690), in Federico Sánchez Escribano & Mayo, Alberto Porquera, Preceptiva dramática esparzola (Del Renacimiento y el Barroco), Madri, Gredos, 1965.

[24] Lope de Vega, Arte nuevo de hacer comédias en este tiempo (1609), vs. 44-8.

[25] Gregório de Matos, Obras completas de Gregório de Matos (Crônica do viver baiano seiscentista); ed. James Amado, Salvador, Janaína, 1968, 7 vols., ii, p. 449.

[26] Idem, ibidem, p. 470.

[27] Idem, ibidem, p. 470.

[28] Roger Chartier, “Trajectoires et tensions culturelles de l’Ancien Régime”, Paris, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1989, mimeo.

[29] Gregório de Matos, op. cit., I, p. 143.

[30] Roger Chartier, op. cit.

[31] Gregório de Matos, op. cit., IV, p. 783.

[32] Idem, ibidem, II, p. 430.

[33] Quentin Skinner, The foundations of modern political thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1978, I, p. 34.

[34] A tópica é pitagórica e foi desenvolvida inicialmente na doutrina dos quatro elementos de Empédocles. Cf. Raymond Klibansky, Erwin Panofsky & Fritz Saxl, “La mélancolie dans la littérature physiologique des Anciens”, in Saturne et la mélancolie, Paris, Gallimard, 1989 (Bibliothèque llustrée des Histoires).

[35] Cf “Diéronle al Hombre treinta anos suyos, para gozarse y gozar, veinte después prestados del Jumento, para trabajar; otros tantos del Perro, para ladrar; y veinte ultimos de la Mona, para caducar; excelentisima ficción de la verdad”, in Baltasar Gracián, “Culta repartición de la vida de un discreto”, capítulo XXXV, El discreto, in Obras completas, Madri, Aguilar, 1960, pp. 144-5.

[36] (36)  Cf. d. Diego Saavedra Fajardo, Corona gothica castellana, y austríaca; politicamente ilustrada. Madri, por Andres Garcia de la Iglesia, 1670; 2° vol., 1671. A “história mestra da vida” é uma tópica ciceroniana corrente no século XVII. Cf. Traiano Boccalini, Ragguagli di Parnaso. Avisos de Parnaso: primera e segunda centuria (de Traiano Boccalini); traducidos de lingua toscana en espariol por Fernando Perez de Sousa, Madri, por Diego Diaz de la Carrera, à custa de Mateo de la Bastida, 1653: “Ninguno de qualquier grado, y condición que sea, se atreva a escrivir Historia, si primero no fuere aprobado en la pureza de la lengua, por suficiente, del Emperador Julio Cesar, en la eloquencia de Livio, en la politica de Tacito, en entender, y penetrar bien los intereses de los Principes del famoso Francisco Guichardino” (p. 87) porque é “[…] el fin el fin del Historiador infundir en los animos la virtud, no enseiiar los vicios” (p. 89).

[37] Cf. Frances A. Yates, L’art de la mémoire, Paris, Gallimard, 1973 (Bibliothèque des Histoires); La philosophie occulte à l’époque elisabéthaine, Paris, Dervy-Livres, 1987.

[38] Baltasar Gracián, El discreto, in Obras completas, Madri, Aguilar, 1960.

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