O erotismo do Divino Marquês da Amazônia
por Pascal Dibie
Resumo
Como fazer para tratar ao mesmo tempo de Wavrin e da sexualidade ou, antes, por que Wavrin e a sexualidade? Em que esse marquês, como ele se apresentava, apagando sempre seu nome de batismo, está ligado ao erotismo e à Amazônia? Como referência ao relato da sexualidade do Outro; no caso, os índios da Amazônia? Uma espécie de “aferidor” que permite sondar o tema?
Mas, antes disso, é preciso formular a questão do “ver”, já que de certa forma é de um “voyeurismo” científico que se tratará. Por acaso, “ver” não é, antes de tudo, construir uma relação crítica com o mundo, reconhecer como Outro percebe e aceitar representá-lo como tal? Ver implica a aceitação mental de um objeto ou de um fenômeno até então indiscernível. Cristóvão Colombo, Jean de Léry, Hans Staden… – o etnólogo, cujo ofício primeiro é ver, reconhece no viajante-explorador que o precede, antes da disciplina se constituir, um “oficial de justiça”, para retomar a bela fórmula de Alejo Carpentier.
Já sobre o marquês Robert de Wavrin de Villers du Tertre, sabe-se que é um “cavaleiro de aventura” que percorreu a Amazônia e boa parte do continente sul-americano entre 1913 e 1937. Foi ao Paraguai, ao Mato Grosso, ao grande Chaco, à bacia Amazônica peruana, à bacia do Orenoco colombiano, ao Equador, Peru e Venezuela, em viagens expedicionárias de que extraiu mais de uma dúzia de livros e um grande número de artigos.
Em “Usos e costumes dos índios selvagens da América do Sul”, Wavrin trata abertamente da sexualidade indígena, sobretudo no longo e denso capítulo V. É neste que se descobre, por exemplo, que “para os primitivos os prazeres do amor são um dos principais prazeres da vida, e o máximo do bem físico. Para dizer a verdade, eles não introduzem no amor grandes complicações: tudo se resume ao ato que proporciona, e na medida em que proporciona, prazer ao homem. Este não procura saber a que ponto a mulher participa de seu prazer. […] O homem considera que ele, homem, deve apenas consumar o ato que corresponde ao macho, que só ele deve sentir prazer, porque a mulher só está ali para o prazer dele”. Em contraste, é ainda no capítulo V (de “Usos…) que se lê que “onde existe a mais completa liberdade sexual para as moças púberes e não casadas, elas são livres para dispor à vontade de seu corpo e o fazem sem a menor ideia de contenção, que sua moral não impõe. Esta é a lei tribal, e todas seguem sem falso pudor essa regra, que parece a todos e a todas mais do que normal. Aliás, elas foram oficialmente iniciadas por ocasião da festa da chegada da puberdade, nunca tiveram outro exemplo diante dos olhos e acham isso tudo natural. Muitas vezes elas cedem a quem lhes oferece um pequeno presente em troca de seus favores. Fazem-no por interesse, mas veem nisso uma coisa muito natural e permitida, acham normal fazê-lo, principalmente para receber um presente que creem merecer, em agradecimento pela gentileza delas e em pagamento do que concedem”.
Lê-se ainda (e não só nos “Usos…) sobre a inexistência da ideia de prostituição entre os índios (que ainda não mantiveram contato com os brancos), a participação feminina no sexo encarada como perversão, a poligamia do Jivaro (chefe, feiticeiro, bom caçador ou guerreiro), a raridade da poliandria (poligamia feminina), a sexualidade dos jovens, a guerra para rapto de mulheres, a facilidade sexual entre as tribos que viviam (e vivem) junto ao rio Putumayo… São muitos os aspectos sexuais abordados nos livros de Wavrin, injustamente esquecidos.
Como fazer para falar ao mesmo tempo de De Wavrin e da sexualidade ou, antes, por que De Wavrin e a sexualidade? Em que esse marquês, como ele se apresentava, apagando sempre seu nome de batismo, está ligado ao erotismo e à Amazônia? Digamos que, como muitos etnólogos, me servirei da sexualidade do marquês De Wavrin como suporte para a “relação” (relato) da sexualidade do Outro, no caso, os índios da Amazônia, como uma espécie de “aferidor” que permite sondar essa questão antes de afiná-la com textos de etnólogos americanistas contemporâneos. Antes disso, tenho de formular a questão do ver, já que de certa forma é de um “voyeurismo” científico que se trata aqui. Por acaso, “ver” não é, antes de tudo, construir uma relação crítica com o mundo, reconhecer como Outro o que percebemos e aceitar representá-lo como tal? Ver implica a aceitação mental de um objeto ou de um fenômeno que não éramos capazes de distinguir até então. Os etnólogos, cujo ofício primeiro é ver, reconhecem entre os viajantes-exploradores que os precederam, antes da disciplina se constituir, um certo número de “oficiais de justiça”, para retomarmos a bela fórmula de Alejo Carpentier, tais como Cristóvão Colombo, o borgonhês Jean de Léry ou o holandês Hans Staden.
Com essas duas testemunhas famosas da descoberta dos “americanos”, muito mais que olhares, assistimos ao “desenvolvimento de uma consciência que se testa no encontro de uma nova humanidade” (Lestringant, 1992). Jean de Léry propõe um olhar aberto sobre seus contemporâneos, entre os quais engloba esses homens nus “das mais elevadas virtudes” e mulheres “sempre nuas [que] em nada ficam a dever às outras [as mulheres europeias] em beleza”; seres humanos cuja sexualidade ele observa indiretamente, pelo viés dos casamentos poligâmicos. Descrevendo estruturas de parentesco, constata que “nossos americanos observam apenas três graus de consanguinidade, a saber: ninguém toma por mulher a mãe, a irmã ou a filha; mas o tio toma a sobrinha, e em todos os outros graus não fazem exceções”.
Léry não se espanta com a “pluralidade de mulheres” para um só homem e simplesmente constata que, “fazendo do vício virtude, os que têm maior número de mulheres são estimados como mais valentes e destemidos”. Seu maravilhamento não decorre, contudo, do poder dos homens sobre as mulheres, mas de que “essa multidão de mulheres [para um só homem] […] vivem juntas numa paz sem igual”. É como europeu que reage, e escreve, como em uma confissão, que “seria melhor mandar um homem para as galês do que metê-lo em tal azáfama de brigas e birras […] visto que muitas vezes só a ordenada por Deus ao homem para ajudá lo e regozijá-lo, já é para ele em vez disso como que um diabo familiar em sua casa” (Léry, XVII). Feita essa comparação, que é mais uma espécie de aparte relativo à força da mulher única no lar cristão, Jean de Léry volta “ao casamento de nossos americanos”, comovendo-se com que “o adultério das mulheres é visto com tamanho horror que, sem que eles tenham outra lei além daquela da natureza, se uma mulher casada se abandona a outro que não seja seu marido, este tem o poder de matá-la, ou pelo menos de repudiá-la e mandá-la embora coberta de vergonha”, ao mesmo tempo que “os pais e parentes, antes de casar suas filhas, não opõem grande dificuldade em prostituí-las ao primeiro que aparecer”.
Quanto à sexualidade em sentido estrito, ele se espanta com que, em função do clima e da nudez dos habitantes, “os jovens casadouros, tanto rapazes quanto moças dessa terra, não são tão propensos à libertinagem quanto se poderia esperar”. Acrescenta, todavia, “para não mostrá-los mais gente de bem do que são”, que, quando se insultam, às vezes se chamam de tyvire, isto é, maricas (“enrabado”) e acha possível “conjeturar (pois não estou afirmando nada) que esse abominável pecado se cometa entre eles”. Voltarei mais demoradamente à sexualidade dos índios, mas cumpre reconhecer a Jean de Léry a coragem de ter evocado e mostrado, contrariamente às hipóteses cristãs, que a nudez não gera necessariamente o desejo…
Para permanecermos nesse olhar do século XVI, que sempre ilumina o nosso, resta saber não apenas como se vê, mas de onde se vê. Para os etnólogos, a coisa se complica um pouco, porque se trata de saber como fazer para distinguir entre o que pertence à coisa vista e o que pertence àquele que vê; como fazer quando o olho ainda não se quadra com o que reflete. A resposta mais imediata é: descrever, descrever, descrever tudo o que nosso olho é capaz de captar. Hans Staden é interessante desse ponto de vista. A edição de Marburgo de 1557, com suas cinquenta gravuras baseadas unicamente em seu olhar, é a primeira a “fazer ver”; ela ajuda a “descongelar” a representação do Outro, a lhe proporcionar movimento, vida. Staden descreveu em particular os Tupinambá, e não mais “os selvagens” em geral. Mostrou assim, como Léry, que existiam homens, nações, do outro lado do mundo. Os dois participaram inteligente e amplamente da construção a longo prazo do imaginário europeu de um Outro ao mesmo tempo tão distante e tão próximo. Esse “dado a ver nunca visto” prolonga a extraordinária onda de choques desencadeada meio século antes pela descoberta da América, muito embora não exista lógica do olhar possível, porque ele procede da alteridade e não da diferença.
Posto isso, é da “sexualidade dos índios” que desejo tratar, não exatamente a deles, mas aquela que foi proposta através do imaginário antropológico e das tentativas de reconstituição dela. Sei que ao falar de sexo ainda se podem desencadear furores. Sei que as conveniências não apreciam nada que divulguemos nossas alegres verdades individuais e que o sexo, entre nós, no Ocidente, foi e continua sendo, em parte, muito impopular. Freud, que tenho de evocar já de início, levou um bom tempo para fazer com que uma sociedade agrilhoada pelas religiões e pela moral admitisse que o objetivo da sexualidade humana não é apenas a procriação, mas que ela está sempre a serviço de si mesma!
De tanto viajar pelo mundo, os etnólogos puderam com frequência ser testemunhas ou observadores das primeiras aproximações amorosas dos indivíduos (fato raro, a não ser quando a sociedade se presta a tanto, como nos mares do Sul). Na verdade, não há nada mais difícil, quando não se pertence a uma cultura, do que compreender e penetrar os códigos amorosos. Apesar disso, todo viajante, assim como todo sedentário, aliás, quando consegue domesticar suas pulsões, tem mais dificuldade para fazer o mesmo com seus fantasmas. O grande etnólogo Bronislaw Malinowski, numa época em que o mito da “boa selvagem” transformava de antemão todas as colônias em paraísos do sexo, demonstrou a falácia dessa ideia grosseira, mas nem por isso foi menos literalmente obcecado pelos encontros femininos. Quando da eclosão da guerra, em 1914, ele se viu designado para a Nova Guiné, nas ilhas Trobriand, e anotou em seu “diário de etnógrafo” não somente observações etnológicas, mas também seus cansaços, suas insônias, suas vergonhas e seus desejos, para não dizer seus amores… Refletir o olhar do etnólogo, quando estou prestes a testemunhar, por intermédio dos colegas, coisas do sexo, parece-me eticamente mais do que necessário, caso se considere que o cientista não deixa de ser homem… Mas voltemos ao inconsciente do etnólogo, cujas revelações, bastante temperadas e no fim das contas bastante pobres, têm o interesse de confirmar que, em matéria de sexualidade, o homem nunca inventa grande coisa. Freud, contemporâneo de Malinowski, tinha advertido: o sexo não devia ser um achado, mas um reencontro. Enquanto aguardava esse reencontro, o etnólogo com ele sonhava! Assim, anotava em seu caderno: “Segunda-feira, 19/1/15 […] De manhã, revi em sonho minhas figuras ideais; Zenia, T., N., todas dormindo num mesmo quarto, separadas por tabiques de zinco. Isso acontecia em algum ponto entre Zakkopane (nos Cárpatos) e a Nova Guiné. Uma sensação de felicidade malbaratada, de tesouros perdidos”.
Nossa sexualidade, para dissimular sua ausência ordinária da cena social, inventou-se sublimes desordens que fizeram muitas gerações de obcecados sonhar, até… até que alguns etnólogos, não menos obcecados, foram ver as coisas de perto. Na realidade, muitos de meus colegas observaram e descreveram rituais complexos, mas raros são os que se interessaram diretamente pela sexualidade, embora todos concordem em reconhecer que em toda cultura há tabus e sistemas de controle cuja finalidade é tornar moralmente inacessíveis uns aos outros certos indivíduos do sexo oposto. Para aceitar essas relações impossíveis e estabelecer verdadeiros “corta-desejo”, a humanidade criou válvulas de escape, como os célebres sistemas de “parentesco de riso”. Rir com aquela ou com aquele com quem é vedado manter relações sexuais permite, por meio de palavras, mas muitas vezes num linguajar nu e cru, suportar as proibições tradicionais.
Eu gostaria que não se visse nada de obsceno nas descrições que vão se seguir, tanto mais que o obsceno não deve ser procurado no âmbito do sexo: a obscenidade só existe no espírito que a detesta e a projeta sobre os outros. Nesse ideal de cultura que é a antropologia, devemos ser capazes de ler tudo e ver tudo, a fim de explicar o fenômeno social total tão caro a Marcel Mauss, fenômeno de que a sexualidade, evidentemente, faz parte. A ingenuidade de nossa civilização ocidental, se não se trata de sua célebre (e terrível) cegueira, por muito tempo protelou os debates relativos à questão da sexualidade.
Foi necessário Freud, por exemplo, para que ela começasse a aceitar que “a vida sexual da criança começava bem cedo e era em particular muito desenvolvida no período de três a seis anos”; e foram necessários os etnólogos para, tratando das outras culturas, formular, enfim, a questão da sexualidade dos adultos. “Quem ousaria afirmar que o problema sexual representa na Europa apenas dez por cento de nossas preocupações conscientes?”, indagava Elwin Verrier, o famoso pastor anglicano que os aborígines Muria do Norte da Índia convenceram da razoabilidade de pensar a sexualidade e a se tornar seu etnólogo-testemunha. Estranho arcaísmo, na verdade, esse funcionamento de nossa sociedade que se crê desenvolvida e resolve as coisas do sexo por omissão ou por sanção, e constrói uma visão voluntariamente cindida do homem; homem no qual às vezes só se vê uma cabeça sem corpo ou um corpo sem cabeça, e às vezes até um corpo sem sexo, quando não sexos sem corpos…
Há um estranho personagem sobre o qual ainda sabemos muito pouca coisa, a não ser que é um desses “cavaleiros da aventura” que percorreram a Amazônia e boa parte do continente sul-americano entre 1913 e 1937: o marquês Robert de Wavrin de Villers du Tertre. De Wavrin fez cinco viagens: ao Paraguai, ao Mato Grosso, ao grande Chaco, à bacia Amazônica peruana, à bacia do Orenoco colombiano, ao Equador, Peru e Venezuela; viagens expedicionárias de que extraiu mais de uma dúzia de livros e um bom número de artigos, os últimos deles em colaboração com Paul Rivet, então diretor do Musée de l’Homme, em Paris, relativos a questões linguísticas.
Entre seus livros, há um cuja importância para os etnólogos institucionais é inegável: Usos e costumes dos índios selvagens da América do Sul. Essa obra, depositada no Musée de l’Homme por Alfred Metraux e por ele em grande parte anotada e sublinhada (o que torna sua leitura particularmente comovente), traz informações raras e originais sobre os grupos indígenas das regiões visitadas por De Wavrin. Sei, cruzando informações, que muitos colegas etnólogos mergulharam e se inspiraram nessa obra de De Wavrin para preparar expedições e terrenos etnológicos. Os poucos retratos existentes do marquês vêm de seus pares nobres e dão uma ideia, através de seu lirismo, da dimensão desse personagem e da impressão que ele lhes deixou. Assim, podemos ler da pena de Hubert Carton de Wiart, secretário de embaixada de S. M. o rei da Bélgica:
O marquês De Wavrin, homem que, desde o desaparecimento de Fawcett, é considerado pelos americanistas dos dois hemisférios como o perito de ciências naturais e humanas, a referência viva para tudo o que diz respeito à observação direta dos indígenas e dos costumes da fauna que povoa as profundezas silvestres do continente sul-americano. […] Pode-se dizer dele, sem exagerar, que é o Cristóvão Colombo desse oceano vegetal, dessa floresta aquática, desses deltas ao revés que as altas bacias do Amazonas, do Orenoco, do Paraná constituem.
A esses elogios se soma, marcada por igual entusiasmo, a voz do marquês De Créqui Montfort, então presidente da Sociedade dos Americanistas de Paris, para quem “ele era o homem que melhor conhecia, no conjunto, os vastos espaços desconhecidos ou pouco conhecidos, temíveis ao homem branco, da América tropical e subtropical. […] Seu nome e o da Bélgica, seu país natal, devem permanecer ligados. […] O andarilho tornou-se, na escola da natureza, um cientista, um fornecedor dos museus, um laureado de sociedades científicas”. Cumpre acrescentar o testemunho do rei da Bélgica, grande amigo de De Wavrin, que de seu exílio redigiu um posfácio para a edição de Mitologia, ritos e feitiçaria dos índios da Amazônia (reeditado em 1979), no qual ele diz do marquês-etnólogo: “Essa experiência excepcional, unida a um agudo senso de observação meticulosa e científica, confere um valor inconteste a seu livro, em que são descritas e analisadas as crenças religiosas e as práticas mágicas dos índios”. Esclareça-se que De Wavrin, cujos vínculos com Paul Rivet são notórios, também se declara “amigo do excelente etnólogo Lévi-Strauss e de outros autores” (1979); em suma, em tal companhia, a que devemos adicionar o meio etnológico franco-belga do entreguerras e dos anos que se seguiram, é de causar espanto sabermos tão poucas coisas sobre o marquês De Wavrin.
Nessa etnologia nascente, Robert de Wavrin apresenta-se com modéstia. Na “advertência” à sua última obra, escreve: “Ao longo de contatos íntimos, muitas vezes prolongados, com numerosas tribos, notei a existência de diversas crenças, constatei fatos que relato ou examino aqui, sem com isso querer sustentar nenhuma teoria. Dou as explicações fornecidas em muitos casos pelos próprios índios […] Não procuramos afirmar hipóteses duvidosas, com risco de falsear-a verdade. […] Convém desconfiar às vezes do desejo que tem o informante de se valorizar ou tornar-se interessante embelezando seu relato” (1979, p. 13). Suas diferentes obras, além de suas observações pessoais, às quais retornarei, apresentam interesse para os etnógrafos, sobretudo o interesse de terem sido em grande parte redigidas a partir “das explicações fornecidas pelos próprios índios”, pois De Wavrin sabe que, “para estudar bem os índios, deve-se conquistar sua amizade, apreender sua mentalidade” (1979, p. 15). Em todo caso, o marquês é o primeiro a tratar abertamente da sexualidade indígena, tema que aborda em sua obra maior, publicada em 1937, Usos e costumes dos índios selvagens da América do Sul, no longo e denso capítulo V, intitula do “Relações sexuais”.
Para compreender como se difundiu a imagem da sexualidade dos índios e, mais particularmente, do objeto sexual que é a índia (o machismo e o olhar viril do marquês-caçador e de seus companheiros de aventura sobre as mulheres contribuiu largamente para uma visão “coisificada” do exótico sexo oposto), tenho de citar, quase como um olhar fundador sobre a questão, longos trechos do testemunho do marquês. No que concerne à metodologia de pesquisa preconizada por De Wavrin em seus anos de viagem (1914-37)- pelo menos é o que sobressai de suas declarações voluntariamente provocadoras, em relação às quais não sei se devemos rir ou nos indignar -, o divino e lúbrico marquês, grande testemunha da vida dos índios mas também representante perfeito dessa época colonial em que todos se permitiam tudo, não hesita:
Para mostrar aos índios que não havia nada a temer na fotografia e para persuadi-los a me deixarem tirar deles fotos semelhantes, às vezes eu lhes mostrava fotos de nudez um tanto especiais, que eu havia levado expressamente com esse intento. Eu as mostrava então aos homens, que imediatamente caíam na gargalhada e tratavam de mostrá-las logo às suas mulheres. Naturalmente as crianças acorriam intrigadas e também desejavam ver. Com as fotos na mão, os pais as abaixavam para mostrá-las e explicar a suas filhas moças e a garotinhas de às vezes apenas cinco a seis anos os detalhes mais particulares; às vezes a menina puxava o braço do pai para ver melhor, enquanto ele lhe dava explicações. [1937, pp. 188-9]
É bom saber, como garante com tanta veemência e segurança o marquês um tanto libertino, que parece sentir-se à vontade neste meio, que “para os primitivos os prazeres do amor são um dos principais prazeres da vida, e o máximo do bem físico. Para dizer a verdade, eles não introduzem no amor grandes complicações: tudo se resume ao ato que proporciona, e na medida em que proporciona, prazer ao homem. Este não procura saber a que ponto a mulher participa de seu prazer. […] O homem considera que ele, homem, deve apenas consumar o ato que corresponde ao macho, que só ele deve sentir prazer, porque a mulher só está ali para o prazer dele” (p. 166).
“Como os prazeres da carne ou o coito ocupam um lugar tão importante no ideal indígena”, prossegue o marquês, falando como connaisseur,
fala-se deles em toda ocasião e os indígenas gostam de fazer constantemente alusão a eles. Sem nenhum tipo de contenção, os indígenas falam disso sem rodeios. As imagens ou frases alusivas são desconhecidas […] As próprias mulheres não têm nenhum pudor quanto ao tema, e nas aldeias, quando um casal se dedica ao ato, deixa todos os seus vizinhos ouvirem. […] O marido, orgulhosíssimo, se felicitará pelo que está possuindo, ao que a mulher responderá e poderá fazer observações igualmente cruas. Ela rirá, discutirá e acrescentará obscenidades. A presença dos filhos não incomoda nem um pouco os pais. Por isso as crianças são colocadas a par desde a mais tenra idade; e os adultos se encarregam de lhes dar todas as explicações desejadas. É exatamente por dizerem e fazerem sem constrangimento diante delas que as põem a par. [p. 188]
Explorando mais adiante a questão, De Wavrin relata que
a mulher deve se prestar benevolamente ao prazer do homem, obedecer sempre que ele tem desejo; mas ela não pode manifestar seu próprio prazer. Ao contrário, deve se mostrar indiferente e permanecer totalmente passiva.
Para convidar uma parceira, ele dirá nos termos mais diretos: “Venha fazer amor”. Sua mulher, ele não precisa convidar, contenta-se em agarrá-la. A mulher convidada diretamente, durante uma dança, por exemplo, às vezes se afasta alguns passos das outras; e ela se deita no lugar que o homem lhe indica. Ela se deita no chão, de costas, com os membros estendidos e deixa o homem agir. O homem se instala; ela abre as pernas sem resistência. Logo depois do ato, ela se levanta e continua como se nada tivesse acontecido. Portanto, elas não ajudam em nada e não parecem participar diretamente; parecem alheias à coisa. As mulheres também não conhecem o beijo, nem os prazeres da carícia. Se são tocadas, isso em geral não parece produzir nelas nenhuma impressão. [p. 166]
Essas afirmações sobre o “não-gozo” das mulheres parecem estar um pouco em contradição com o que segue. Mas porventura não é justamente a questão da reconstituição dos fatos e, mais ainda, a da incompreensível, fantasmática e inacessível sexualidade do Outro que é levantada aqui pelo próprio testemunho do marquês, que aceita e reforça o mito ocidental da “livre e desejada selvagem”, então associado à colonização em plena expansão? Afirma De Wavrin:
Entre as tribos onde existe a mais completa liberdade sexual para as moças púberes e não casadas, elas são livres para dispor à vontade de seu corpo e o fazem sem a menor ideia de contenção, que sua moral não impõe. Esta é a lei tribal, e todas seguem sem falso pudor essa regra, que parece a todos e a todas mais do que normal. Aliás, elas foram oficialmente iniciadas por ocasião da festa da chegada da puberdade, nunca tiveram outro exemplo diante dos olhos e acham isso tudo natural. Muitas vezes elas cedem a quem lhes oferece um pequeno presente em troca de seus favores. Fazem-no por interesse, mas vêem nisso uma coisa muito natural e permitida, acham normal fazê-lo, principalmente para receber um presente que crêem merecer, em agradecimento pela gentileza delas e em pagamento do que concedem. [p. 173]
Dito isso, sabendo das taras de seus contemporâneos ocidentais e estando relativamente a par das questões do colonialismo etnocida, De Wavrin, mesmo se nota que “não há prostitutas ou mulheres assim consideradas entre os índios” (p. 167), tem o mérito de nos informar sobre um dos mitos de origem da prostituição – “difundida em toda a Amazônia até o Mato Grosso” -, em sua obra sobre Os animais selvagens da Amazônia (1951): o mito da cigarra. A origem desse mito é bem simples. O único remédio de que o homem dispõe para a picada de certa cigarra, uma picada que pode ser mortal, seria ter o mais depressa possível relação com uma mulher. “Foi assim, por sinal”, relata o marquês,
que um casal de comerciantes fez fortuna. Com vários servidores, tinham entrado na floresta procurando borracha para explorar, quando, por acaso, um dos companheiros foi picado por uma dessas cigarras. Recusar-lhe o único remédio era, acreditavam eles, deixá-lo morrer. Depois de conversar entre si, os esposos concordaram em que era preciso salvar o ferido. Poucos dias depois, outro trabalhador veio se queixar de ter sido mordido. Tampouco podiam se recusar a salvá-lo. A mulher era bonita e com certeza era uma tentação para homens tão isolados. Logo a reputação do tratamento que ela proporcionava tornou-se conhecida dos vizinhos. O explorador da outra margem do rio se apresentou para recorrer aos mesmos serviços. Ofereceu como pagamento um fardo de borracha. Recusar teria provocado uma guerra aberta entre os dois grupos de trabalhadores vizinhos. Foi necessário aceitar. A partir de então, o casal combinou que a mulher continuaria a conceder seus cuidados, mas em troca de pagamento. [1951, p. 222]
Nasceram assim a prostituição e, mais ainda, a reputação da cigarra, cuja picada amorosa inspirou, sob diversos nomes, muitos autores de canções populares, como aquela machaca que fez sucesso na Colômbia na década de 1970 e que inflamava o coração dos homens graças a algumas picadas… Dito isso, De Wavrin nota com bastante perspicácia que “as mulheres cedem […] e crêem adotar ideias da civilização, não sentem a perversão desses civilizados” (1937, p. 173).
O que os índios acham perverso em nós (em relação a suas mulheres) é o gosto dos brancos de ensinar e compartilhar o prazer que as mulheres podem ter no amor: “Elas aprendem depressa a participar mais diretamente e até a provocar o ato e sua repetição”, nota como perito aplicado que é o marquês-etnógrafo, “mostrando então que elas sentem prazer. Não é de se espantar que os índios, que não admitem que a mulher participe ativamente[…], não queiram mais saber dessas mulheres, que julgam pervertidas. É para eles uma ofensa à sua dignidade de homens quando elas parecem querer ajudá-los” (1937, p. 167). O fato é que muitas vezes na pena de De Wavrin aparecem mulheres que tiveram uma relação com um branco e não podem mais manter seu lugar no grupo; mas que a razão disso seja apenas a descoberta de outra sexualidade, isso é coisa de que podemos duvidar…
A ingenuidade do marquês às vezes nos desarma, tanto quanto sua lubricidade. Seu espanto diante dos exemplos de poligamia equivale ao de Jean de Léry quando constata que, entre os Tupinambá, as mulheres “não ficam enciumadas, e nenhuma delas parece querer atrair de modo mais particular o homem para si” (1937, p. 173). Mais familiarizado com os costumes dos índios e com os trabalhos etnológicos do que seu augusto predecessor, De Wavrin mostra ter compreendido muito bem que a mulher é aqui um bem mobiliário, quando afirma: “O fato é que a mulher é uma riqueza e, em geral, quanto mais companheiras o homem possui, mais é considerado rico e importante; porque elas lhe proporcionam prazer e trabalham para ele. Para o prazer, ele naturalmente deseja ter sempre alguma jovem com a qual se deita, enquanto as mais velhas são relegadas aos trabalhos duros, sem que com isso, porém, o bom entendimento seja jamais perturbado” (1937, p. 173).
Dando, como faz quase todas as vezes, exemplos precisos, o autor relata que
o Jivaro, principalmente se é homem de alguma importância, se é chefe, feiticeiro, bom caçador e guerreiro, costuma ter várias mulheres. Aliás, muitas vezes é precisamente para raptar mulheres que eles empreendem expedições guerreiras. […] Eles só poupam as mulheres jovens, desde as mais ou menos púberes até as que estão em plena maturidade, contanto, porém, que ainda não estejam demasiado envelhecidas e que um dos vencedores queira se apropriar delas. Em todo caso, à morte de seu novo senhor, a cativa será sacrificada, se foi poupada até então. Já a viúva jivaro pertence de pleno direito ao irmão do defunto. Se ele não a toma, ela fica livre e escolherá então o marido de sua eleição. Mas se ela volta a se casar e tem uma filha, assim que for púbere esta pertencerá automaticamente e de pleno direito a seu pai adotivo, que fará dela oficialmente sua mulher. Ele a deflorará e poderá em seguida manter relações ao mesmo tempo com ela e com a mãe dela; depois conservará esta última apenas como serviçal, ficando apenas com a filha como mulher. Muitas vezes obtém em casamento duas ou três irmãs ao mesmo tempo, se agradar aos pais destas. [p. 174]
“A poliandria é rara”, acrescenta De Wavrin, fazendo a seguir uma observação que poderia ter dispensado mas que, aqui também, denota um estado de espírito que coloca alguns limites ao olhar: “Isso é concebível, já que a mulher não deve mostrar ardor sexual” (p. 175). Afirmação contestada por um testemunho etnográfico, que confirma a regra da “sexualidade dos selvagens”, que sempre pode levar a uma sexualidade selvagem, isto é, livre…
De modo geral, em todas as tribos é depois dos primeiros sinais da puberdade que a menina terá relações carnais. Nesse ponto, porém, os Motilone são particularmente estritos. Meninos e meninas, ainda impúberes, se divertem frequentemente em jogos bastante especiais, com o consentimento dos pais, que acham tudo muito natural e não vêem nada a censurar; ao contrário, agrada-lhes que seus filhos procurem imitá-los em tudo. Portanto, como foi explicado, todas as crianças se divertem com esses jogos do amor. Isso é verdade no próprio Chaco, onde, contudo, uma cerimônia especial deve coroar o ingresso na puberdade.
Depois da festa da puberdade, a mocinha lengua mantém relações com todos os homens que quiser; e esse costume é comum a quase todos os índios do Chaco. Ela vende correntemente seus favores ou recebe a ordem de se prestar a isso; mas, assim que se casa, deve fidelidade ao marido.
Portanto, a virgindade não tem valor algum, e a moça que continuasse virgem depois dos primeiros sintomas da puberdade representaria uma desgraça na maioria das tribos. Entre os Aruak de Sierra Nevada, o mama, ou sacerdote-feiticeiro, intervém oficialmente. A púbere recente deve ser consagrada mulher; e ele, à sua vontade e sem levar em conta nem as preferências da menina nem as dos pais, designa aquele com quem ela deve dormir três noites seguidas. Naturalmente, se não estiver velho ou cansado demais, aquele que é chamado a presidir a cerimônia costuma designar a si mesmo para preencher as funções de educador. [1937, pp. 176-7]
Depois de ter descrito a sorte pouco invejável da moça, o divino marquês-caçador descreve com divertimento e júbilo a juventude indígena que está à espreita:
Os jovens, principalmente, às vezes espiam as mocinhas e as jovens e procuram se aproveitar da menor ocasião que se oferece a eles para surpreendê-las a sós. É principalmente quando estão em visita a grupos de sua raça que buscam tal aventura. Como quem não quer nada, passeiam pela aldeia, param e demoram-se na casa de uns e de outros para descobrir aquela cujo físico lhes agrada. […] [Quando a vê] afastar-se para ir buscar água, tomar banho ou qualquer outro motivo, procura segui-la às escondidas e se aproximar o mais possível para, inesperadamente, pular em cima dela. Então a pega quando ela foge e a joga no chão. Eventualmente o homem também pode surpreender assim uma jovem casada, sobretudo quando ela toma banho. Ele procura interceptar-lhe a fuga, antes que ela tenha percebido o perigo e pegado suas roupas. Ele já se precipitou, alcançou-a e abraçou-a.
Quando pode, a mulher escapa; por isso o homem procura não lhe dar tempo de fugir e, tentando alcançá-la, corre antes que ela consiga juntar-se aos seus. Em caso algum ela pede socorro a seus amigos ou a seus pais; ao contrário, sentindo-se agarrada e detida, ela não opõe mais nenhuma resistência. Sem mostrar que sente prazer, sem tampouco resistir, ela se presta ao prazer do macho. Terminado o ato de acasalamento, eles se sentam um ao lado do outro e conversam amistosamente. O estuprador-sedutor tivera o cuidado de levar consigo algum objeto para oferecer em agradecimento pelos favores que sempre conta receber, assim, ocasionalmente. […] ela também dá como lembrança a seu admirador algum enfeite que usa e de que abre mão em seu favor. Fazem assim uma troca de presentes que sela e autoriza suas futuras relações. Esse primeiro abraço, portanto, começou de modo brusco, mas a partir de então a relação se reatará a cada ocasião, sem freios e abertamente. [pp. 185-6]
Não satisfeito, o marquês traz outro testemunho sobre os arranjos “ordinários” dos índios:
Nas tribos do rio Putumayo, o amor se pratica por toda parte […] ele é particularmente fácil, já que os próprios maridos emprestam de bom grado suas mulheres, contanto que tirem algum benefício disso e contanto que elas não mantenham por muito tempo relações com um mesmo homem, porque, nesse caso, a mulher acabaria se desinteressando de seu lar. No Putumayo, as meninas são dadas em noivado quase tão logo nascem. Se um homem adulto lhes agrada, os pais dela declaram que a reservam para ele. Só a entregam quando ela estiver grande o bastante para ajudá-lo, acompanhá-lo, carregar o butim, cuidar do cultivo, encarregar-se da casa. Claro, ele só deverá fazer dela literalmente sua mulher quando ela tiver manifestado os primeiros sinais da puberdade; mas é raro dar provas de tanta paciência.
[…] Entre os Jivaro, um homem que está de passagem pode surpreender uma mulher e abusar dela, se a encontra sozinha em sua roça […] Sob essa ameaça, ela deve se entregar. Voltando para casa, ela se queixa imediatamente ao marido, que fica furioso. É comum que ele a surre, como se ela fosse culpada. Às vezes pode até quase matá-la. […] Em todo caso, o homem fica com ódio mortal do agressor, daquele que abusou do direito de propriedade dele; por isso o culpado só tem uma coisa a fazer, se quiser evitar a morte depois de ter abusado de uma mulher: fugir para longe e nunca mais tornar a encontrar o marido. […] Entre os Chama do Ucayali, casada ou menina moça, a mulher nunca cede fora do casamento ou do dom de sua pessoa, consentido por seu pai a um homem. Salvo no casamento, ela não cede, ao menos pela primeira vez, a nenhum homem, a não ser se for pega de surpresa, por estupro; mas depois desse estupro ela se oferece por vontade própria, em qualquer ocasião, a esse admirador. […] No que concerne ao amor passageiro ou às relações extraconjugais, os costumes variam […] Em Goajira, o culpado é punido com a morte, se não indenizar o marido, pagando lhe mais ou menos o preço de compra da mulher. A única coisa que os Huitoto, os Ocaina, os Boro e outros indígenas do Putumayo não admitem é que suas mulheres tenham relações seguidas com os mesmos homens, porque em tal caso elas se acostumam com ele e podem acabar preferindo-os. E, principalmente, nesse caso elas cuidam menos bem do marido, não obedecem e não são mais tão submissas a ele… “Que importância tem emprestar o que não se usa?”, dizem eles simplesmente. [1937, pp. 176, 179-80]
Esse valor de objeto da mulher está tão profundamente arraigado no homem que o tratamento a que eles a submetem em caso de rapto numa guerra – conforme mostra, não sem certo sadismo, o marquês – merece ser relatado aqui, lembrando-nos em parte o relato de “Yanoama”, um dos únicos relatos femininos contemporâneos que possuímos que merecem credibilidade.
Os Guaharibo não se escondem uns dos outros para suas relações sexuais, praticam o coito como todos os índios: com a mulher deitada de costas no chão. Todavia, tendo capturado uma índia civilizada da raça brasileira dita “geral”, depois de tê-la despido, um dos homens agarrou-a e, prendendo-lhe a cabeça entre as pernas, segurou-a pela cintura para imobilizá-la nessa posição, ela de joelhos, inclinada para a frente. Assim o chefe do grupo raptor a violentou primeiro, seguido de todos os homens, que deviam ser uns duzentos. Cada dia esse suplício se renovava, nas etapas do trajeto, e isso depois de a mulher ter ido colher lenha para todas as fogueiras que tinha de acender. Compreendendo que era inútil tentar resistir, no terceiro dia, assim que percebeu que iam agarrá-la, ela própria assumiu a postura, à qual em seguida se sujeitou todas as vezes que algum índio manifestava o desejo de possuí-la. Desse modo, ela evitou o suplício de sentir-se tão violentamente subjugada e imobilizada. Mas, no quarto dia de sua captura, os índios a jogaram de costas no chão, abriram-lhe as pernas e depilaram-na totalmente, todo o corpo, apesar dos gritos e gemidos que a dor lhe arrancava. Eles nunca se serviram dela a não ser na posição a que não queriam submeter suas próprias mulheres. [1937, p. 184]
À parte esses poucos casos extremos de submissão total de mulheres durante guerras intergrupais (estupros coletivos, que temo serem parecidos com os que ainda hoje são perpetrados em nossas latitudes) que De Wavrin relata, os “jogos” não são tão irremediáveis assim. Na sequência do exemplo já mencionado, em que a mulher não opõe nenhuma resistência, o marquês relata outras situações, mais individuais e menos belicosas:
[…] Ela volta para a casa dos seus. Lá, apressa-se a queixar-se ao marido, se é casada, ao pai, se ainda é menina-moça, do estupro de que foi vítima. Ela submete seu agressor ao ressentimento de seu legítimo protetor. É esse o costume e as coisas sempre ocorrem assim; ela declara ter sido vítima involuntária da violência a que a submeteram. Sem acrimônia, o pai ou o marido censura o agressor pelo ato cometido. Na verdade, desculpa-o facilmente, porque sabe que, agindo como agiu, não fez mais do que obedecer a seus instintos. Sua conduta é perfeitamente normal, todo homem agiria assim; ele próprio o fez mais de uma vez e voltará a fazê-lo junto a seus vizinhos quando a ocasião se apresentar. Portanto, é sem rancor que o marido encontrará posteriormente aquele que abusou de sua mulher. Ele não manifesta nenhum desejo imediato de vingança. Talvez às vezes até pense em se vingar, mas sabe que o fará, eventualmente, no dia em que o desafiar durante uma festa. A mulher não é incriminada de forma alguma; ela não é considerada responsável pelo estupro, pela violação que lhe impuseram de surpresa. Claro, essa mulher que correu para ir se queixar […] continua, em seguida, a manter relações adúlteras com o culpado. E o fará com o conhecimento de seu pai ou de seu marido. […] Seu marido não ficará melindrado com isso. […] É admitido pelo uso e é um direito. Os dois amantes se conhecem intimamente, tiveram relações carnais e, portanto, podem continuá-las, porque não têm mais nada a esconder um do outro. Isso não quer dizer que a vingança do marido não acontecerá. Quando for conveniente, ele verá sem rancor seu rival e não parecerá zangado com ele; mas este que se cuide, caso se encontrem durante uma festa, depois de terem bebido bastante.
Os homens Chama sempre levam uma faquinha pendurada no pescoço por um cordão. […] Essa lâmina curva, com cinco centímetros de comprimento, mais ou menos, [tem a] forma de uma podadeira. […] Para pedir reparação, o homem puxa essa arma e ameaça seu adversário, que tem de curvar a cabeça diante dele. Este faz um corte em seu crânio, fazendo o sangue jorrar por talhos mais ou menos longos e profundos no couro cabeludo. Eventualmente, se aquele a quem a reparação é pedida não se sujeita a ela, todas as mulheres cobrem-no de opróbrio, a começar por aquela que agora mantém relações com ele e pela qual ele tem de expiar a injúria infligida ao marido. Quando aquele que se julgou ofendido se declara satisfeito, por sua vez tem de curvar a cabeça diante daquele que acaba de ferir, para permitir que este último lhe faça o mesmo número de ferimentos, e do mesmo tamanho daqueles que ele acaba de lhe infligir.
Depois disso, mutuamente vingados, eles se dão por satisfeitos e se reconciliam na bebida; a partir desse momento toda causa de ressentimento está esquecida, a ofensa está expiada. A mulher não será incomodada; seu marido nunca a recriminará por ter sido violada uma primeira vez, como tampouco a repreenderá por manter depois disso relações tornadas lícitas. […] A mulher poderá, assim, ter vários amantes declarados, sem com isso incorrer na menor crítica. [pp. 185-8]
Voltando mais tarde a esse ponto, na realidade menos idílico do que pode parecer, De Wavrin nota, a propósito da sorte das índias:
“Em todos os outros lugares, a moça é dada em casamento a um homem sem que se peça seu consentimento e muitas vezes sem que ela possa compreender a maneira pela qual seus pais dispõem dela. Às vezes ela poderá até sentir aversão por aquele que lhe é imposto como marido. […] No alto Amazonas – no Maranhão, em particular-, não é raro uma moça se envenenar e se libertar tomando ‘barbasco’, planta venenosa que os índios utilizam para pescar envenenando riachos ou pequenos lagos” (1937, pp. 189-90).
Logo os fantasmas do divino marquês vêm ao seu encontro. Até parece que ele tem um real prazer em procurar “pusanas”, filtros de amor e de afeição, na esperança de se tornar senhor ou vítima deles… “Muitos conhecem as plantas de propriedades eróticas e a elas recorrem”, anota com uma espécie de inveja, precisando que “certas preparações seriam boas apenas para obrigar uma mulher que um homem cobiça a ceder a um capricho, enquanto outras as tornariam definitivamente amorosas e fariam que a mulher ficasse afeiçoada a esse homem” [1937, pp. 191-2].
Seguindo em sua pesquisa, ele nos fornece técnicas e anedotas que vêm confirmar a eficácias das “pusanas”: “Esfregue nela a palma da mão com que apertará a pessoa que deseja possuir, espalhe na roupa dela. Para que os poderes de determinado filtro atuem, é preciso jejuar primeiro, não ingerir alimento salgado durante um ou dois dias antes de aplicar outro etc. Ao longo do Amazonas, os caboclos têm numerosas superstições a esse respeito. Todos acreditam firmemente na eficácia dos filtros. Muitas vezes, acham até que um osso ou olho de determinado animal de determinado sexo é infalível para conquistar uma pessoa do sexo oposto” (p. 192). Enfim, impressionado por esses “encantos” e pelo poder das mulheres, preocupado com ser um dia enfeitiçado, como outros homens foram, nas margens do Amazonas e não voltar mais à civilização, o marquês confessa que “ouviu falar seriamente e em mais de uma região de homens que enlouqueceram por causa de um estupefaciente desse gênero, que uma mulher ciumenta ou insaciável lhe administrava” (p. 192). Com essa última constatação, a sexualidade dos índios que o divino marquês tenta descrever atinge seu próprio imaginário. De certo modo, ele responde à questão formulada acima sobre o olhar dirigido para o Outro como objeto de desejo e de conquista, e encerra (momentaneamente) o olhar antropológico que por muito tempo estará na base da visão “científica” desses seres nus da América sonhada…
Depois dele, virão felizmente testemunhos e trabalhos etnológicos que elevarão o olhar a uma dimensão etnológica mais ampla. Penso em particular em Pierre Clastres, com sua Chronique des indiens Guayaki, ce que savent les Aché chasseurs nomades du Paraguay (Plon, 1972), e Jacques Lizot, que, em Le cercle desfeux, faits et dits des indiens Yanomami (Seuil, 1976), consagrarão longos capítulos à vida erótica e às “histórias de amor” dos índios. O questionamento – entendam o olhar – de Jacques Lizot refere-se essencialmente à questão da ausência de culpa, logo, da não-condenação pela sociedade das relações homossexuais entre os índios (jovens e adultos). A esse respeito, ele escreve: “Se há escândalo em ‘comer a vagina’ de uma irmã – é a expressão dos índios-, não o há em ‘comer o ânus’ do irmão: a sociedade impõe a troca das filhas e das irmãs, mas não codifica uma sexualidade entre pessoas do mesmo sexo” (1976, p. 44). Pierre Clastres, como seu colega americanista, constata, com preocupações bem diferentes, que efetivamente “não se tenta de forma alguma dissimular às crianças o campo da sexualidade e das atividades a ela atinentes. […] Não há gosto pela censura, nenhuma crítica ao corpo, nenhum esforço para dissimular o apreço em que se tem o prazer: os adultos consentem em que se viva assim, ante o olhar das crianças. Eles não procuram enganá-las, elas não se deixam enganar, as coisas nunca são equívocas. […] Liberdade e contenção: é a atmosfera corrente entre os índios” (1972, p. 150). Se o testemunho de Lizot dá conta dos costumes sexuais dos Yanomami de um modo até brutal, o olhar que Clastres lança sobre os Aché é ao mesmo tempo carregado de uma forte moderação e de um grande calor, e mostra a que grau de fineza e de compreensão do Outro o olhar etnológico pode levar. Chamo a atenção para a descrição dessa cena noturna entre os Aché, que pode levar alguns a pensar que os índios dormem de qualquer jeito e até, se fosse o olhar de um missionário, que tamanha promiscuidade recenda ao enxofre das profundezas… Ora, Clastres tem tamanha familiaridade com os índios que ele vê e reproduz com a visão dos Aché, e não apenas do ponto de vista ocidental, tudo o que ele olha: “Já o lugar que cada um ocupa em torno do fogo na hora do sono noturno”, nota o etnólogo, “é atribuído de antemão, ninguém deita em qualquer lugar. Os Aché dormem diretamente no chão, se ele não estiver úmido, ou em esteiras de palmeira, nus. […] A mulher, assim, se acha metaforicamente dividida de alto a baixo e de acordo com sua dupla natureza: a face anterior é o lado mãe, onde se instalam as crianças que dormem entre o fogo e a mãe, onde se instalam as crianças que dormem entre o espaço infantil e o espaço dos adultos; a face posterior é o lado esposa, reservado aos maridos”.
A descrição – logo, a compreensão – torna-se mais árdua quando se trata da poligamia: “Mas, e quando são vários [maridos], como dormem?”, indaga Clastres.
É então que se realiza no corpo da mulher uma segunda divisão, não mais longitudinal, mas transversal, na medida em que ela delimita três setores (já que o número máximo de maridos para uma mesma mulher é, ao que parece, três). Cada um desses “lugares” é ocupado por um esposo, em função de sua posição na hierarquia dos maridos. Distingue-se primeiro a parte inferior do corpo feminino, a partir da cintura; depois, de acordo com uma escala de “valores” decrescentes, a cabeça da mulher; enfim, entre ambas, o meio, constituído pelas costas. O setor privilegiado, o que define a própria feminilidade da mulher, pertence – como é previsível – ao marido principal: ele dorme, em posição mais ou menos perpendicular à mulher, com a cabeça encostada em sua coxa. […] O marido secundário se coloca no lado oposto ao principal, com a cabeça perto da cabeça da esposa comum. E, se houver um terceiro marido, sobra para ele, último a chegar, o meio, o mais neutro sexualmente, mesmo se em seu coração a mulher nutrir por ele uma preferência secreta. É assim que os Aché dormem. [1972, pp. 157-8]
Depois disso, como dizer que o etnólogo não favoreceu o avanço do olhar, não postulou descrições que vão muito além do simples testemunho e, pelo questionamento que nos é permanentemente devolvido pelos etnólogos, ampliou a distância em relação à dimensão aventurosa e “voyeurista” de nossos predecessores, necessários mas no fim das contas pouco críveis.
Por ora, e como se trata aqui de “sexo” e de “divino marquês”, pode se continuar pensando que assim são os homens: estróinas contidos, caçadores de prazeres, agitando ali o que escondem aqui. Provocando o desejo para melhor driblá-lo, quando não apelam para a provocação, sempre ocupados como estamos em bancar os pavões ou galos diante das damas. Alguns se espantam, tomam o partido da castidade, primeiro mental, depois física, fazendo-se “ascetas renunciantes”. No que me diz respeito, não tenho a menor intenção de entrar em levitação quando tomado pelo desejo por demais inscrito num hábito de “consumo”, feliz por me esgotar em esforços físicos, fora de qualquer competição… O que eu posso contra isso? O costume de crer nas virtudes dos alegres prazeres está firme como cimento. O que me consola é que não sou de modo algum o único, pelo menos por enquanto, apesar do retorno, nestes últimos tempos, de um puritanismo que me deixa arrepiado. Afinal de contas, falar tanto do sexo dos outros não é uma maneira de reivindicar claramente a vinculação a uma cultura bem particular nesse ponto? Não nos destacamos, desde há muito, num gênero literário determinado que faz mais do que afirmar os direitos da carne: o erotismo, uma literatura de exceção e, em última análise, um modo de vida que nos incita a discernir melhor a multiplicidade ou a ausência de regras que comandam a vida amorosa ou, mais simplesmente, sexual, de que nossos olhares e nossos gestos não podem se abstrair. É assim que o mundo gira e que nossos corpos, com ele, se viram sem cessar, movidos pelo inextinguível desejo de ver.
Tradução de Eduardo Brandão
BIBLIOGRAFIA DO MARQUÊS DE WAVRIN
Les derniers indiens primitifs du bassin du Paraguay. Paris: Libr. Larose, 1926.
“Folklore du Haut Amazone”, Journal de la Société des Américanistes, t. 24, 1932.
Moeurs et coutumes des indiens sauvages de l’Amérique du Sud. Paris: Payot, 1937.
Les jivaros réducteurs de tête. Paris: Payot, 1941.
Les indiens sauvages de l’Amérique du Sud. Paris: Payot, 1948.
(Com Paul Rivet) “Un nouveau dialecte Arawak”, journal de la Société des Américanistes,
t. 40, 1951.
(Com Paul Rivet) “Les indiens Parawgwan”, Journal de la Société desAméricanistes, t. 41, 1952.
“La langue andoke” , Journal dela Société des Américanistes, t. 41, 1952.
(Com Paul Rivet) “Les Nonuja et les Okaina”, Journal de la Société des Américanistes, t. 42, 1953.
Chez les indiens de Colombie. Paris: Plon, 1953.
L’Amazonie et ses indiens, Nemur: Éd. du Soleil, 1958.
Mythologie, rites et sorcelleries des indiens de l’Amazonie. Mônaco: Éd. du Rocher, 1979.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ettore Biocca, Yanoama, Terre Humaine. Paris: Plon, 1968.
Alejo Carpentier, La harpe et l’ombre. Paris: NRF, 1979.
Pierre Clastres, La société contre nature. Paris: Éd. de Minuit, 1974.
Bronislav Malinowski, Journal d’ethnographe. Paris: Seuil, 1985.
Hans Staden, Nus, féroces et anthropophages (1557). Paris: A. M. Metailie, 1979.
Elwin Verrier, Maison des jeunes chez les Muria. Paris: Gallimard, 1978.