O marxismo e a condição humana
Resumo
A antropofilosofia materialista de Marx construiu sobre o trabalho o fundamento do humano; o homem marxista é, antes de tudo, um produto do seu próprio trabalho em busca de sua reprodução.
O que resta da contribuição de Marx quando exatamente o trabalho, em sua forma fabril – sobre a qual o marxismo, não restritamente o próprio Marx, construiu sua teoria de classes e sua teoria política – está em desaparecimento, ou pelo menos, em uma mudança tão radical que joga por terra todas as concepções societárias que se fundavam sobre o “homo faber”?
Tal perspectiva não era estranha ao próprio Marx, pois ao pensar o salto do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade” ele estava eliminando o “homo faber” da história, para ceder lugar apenas ao trabalho intelectual, criador, livre. Em outras palavras, mesmo em “O capital”, sua obra mais acabada teoricamente, a escalada do capital chegaria a tornar supérflua a exploração do trabalho. A contribuição da ciência e da técnica como forças produtivas, já em Marx, seria o novo fato, capitalista por certo, que tornaria supérfluas as formas de exploração. É claro que em Marx o capital não é um “piloto automático”, mas uma relação social, e, portanto, é a luta de classes o operador das transformações no capitalismo.
Mas o capital chegou antes do “reino da liberdade” e ironicamente – dura ironia – tornou o “reino da liberdade” tão longínquo que ele se parece mesmo é com a quimera, o monstro medieval. As necessidades impõem-se cada vez mais ferreamente, e são criadas pelo mesmo processo que desqualifica o trabalho do “homo faber”.
O que será, pois, a “condição humana” num mundo em que o controle do produtor sobre seu próprio produto é uma “quimera”, em que o produtor mais sofisticado tem em seu produto um estranho tão imperativo e indomável?
A antropofilosofia materialista de Marx e Engels construiu sobre o trabalho o fundamento do humano; o homem marxista é, antes de tudo, um produto do seu próprio trabalho em busca de sua reprodução. A tradição marxista que se fundamentou na obra dos criadores não negou essa ancoragem. Como os criadores não se cansaram de explicitar, sobretudo em A ideologia alemã, o homem genérico, enquanto espécie natural, é o fundamento do homem humano – com perdão da redundância – que produz a si mesmo pelo trabalho. Desde logo, o homem, ou, melhor dizendo, a condição humana é histórica: essa na Antiguidade difere daquela da Idade Média, a da Idade Moderna e a da Contemporânea. E o homem genérico que existe em todas não é suficiente para equalizá-los enquanto dotado dos mesmos atributos.
A discussão dessa concepção faz-se mais importante diante do dilema da “tábula rasa”: somos uma folha em branco sobre a qual a cultura imprime tudo, ou existe algo inato sobre o qual a cultura opera dentro de limites dados pelo homem genérico? A concepção marxista, concilia história, cultura e atributos inatos, isto é, o homem biológico, ser da natureza. Mas nosso objetivo não é senão retomar a questão precisamente do ângulo que o marxismo privilegia, isto é, sua produção histórica pelo trabalho. Sabemos que Engels fez o sobrehumano esforço para integrar a natureza à História, com sua controvertida Dialética da natureza. Engels vem sendo criticado desde que sua obra se fez pública, mas não é sem relevância que as modernas ciências e pesquisas sobre o meio ambiente estejam pondo o dedo na ferida engelsiana: desastres aparentemente naturais podem ser produzidos pelo homem, isto é, natureza também é história.
A dialética “homem-trabalho-produto-homem” é decisiva na concepção marxista. Dela decorrem a própria produção social, a teoria da mais-valia ou da exploração do trabalho, que é a reprodução da sociedade, a teoria das classes e, não menos importante, a teoria da alienação e do fetichismo. A dialética completa o círculo regressando ao ponto de origem inteiramente modificada: enquanto o trabalho é criatura do homem, volta-se contra ele como algo estranho, alienado, pois o domina e retira dele as próprias virtudes criadoras. Deslocamentos nesse edifício implicam sua quase total reconstrução.
Sua origem é a dialética do senhor e do servo de Hegel, e, como é arquiconhecido, a inversão que Marx opera refere-se a colocar a produção material no lugar do Espírito Absoluto. Assim, a contradição, ou a unidade dos contrários, é o fundamento da dialética materialista em Marx e sua concepção do homem, ou melhor, da condição humana.
Essa unidade é radicalmente intransigente. Trata-se da determinação recíproca dos contrários, não apenas de mera oposição. O senhor só é senhor se existe um servo, e a recíproca é verdadeira.[1] Transportada por Marx para a história da condição humana sob o capitalismo, ela determina simultaneamente o capitalista, o burguês e o proletário, o operário, isto é, o dominante e o dominado. É claro que em Marx é o capital o sujeito de toda a dialética, mas ele mesmo só é produzido pela mais-valia, que é seu contrário, ou melhor, sua síntese a partir da transformação da exploração do trabalho.
O desenvolvimento das forças produtivas pelo capitalismo, que hoje quase se confundem com ele, elevou a produtividade do trabalho a níveis tais que tornam supérfluas as duas classes antagônicas, o burguês-capitalista e o operário-proletário. Na previsão do próprio Marx, chegaria o dia em que o consumo das forças vivas do trabalho pelas forças mortas do trabalho, isto é, o consumo da força de trabalho pelo capital, seria diminuto e mesmo irrelevante, isto é, do capital variável pelo constante. Então, e só por isso, o capitalismo se tornaria historicamente supérfluo, superável e superado. Essa última façanha não se daria de forma automática, apenas pelo desenvolvimento do “piloto automático” do capital; requer a luta de classes, a derrubada do capitalismo pelos trabalhadores.
Há muito tempo o burguês-capitalista já deixou de ser necessário, superado pela imensa concentração de capital e pela sua centralização. Até uma literatura apologética já proclamou sua substituição pelos gerentes, e mesmo esses são superados hoje por um simples programa de computador. Quando você vai ao gerente de seu banco, imediatamente ele acessa sua conta e seu passado de relações com o banco, e com o sistema bancário-financeiro, e um programa de computador mostra as condições em que o banco pode ou não operar com você: o gerente é quase inteiramente supérfluo. O vozerio e a gritaria enlouquecida dos operadores de bolsa são apenas uma caricatura das grandes operações; o papel do Estado, tão mal estudado por Marx – melhor apenas quando tratou da acumulação primitiva, se expressa já no chamado Estado de bem-estar e hoje (setembro de 2008) os jornais noticiam a maior operação estatal de salvamento de fundos hipotecários pelo governo conservador, já nos estertores, de George W. Bush, injetando 200 bilhões de dólares para salvar duas empresas detentoras de mais de 60% dos créditos hipotecários nos EUA. Créditos de 5,3 trilhões de dólares sobre um PIB norte-americano de 11 trilhões (dados de 2006). Pergunta-se há muito tempo, portanto, onde está a classe burguesa. Ela é apenas persona do capital, enquanto seu antagonista na contradição pode ser apenas, também, persona do trabalho.
O que resta da contribuição de Marx quando exatamente o trabalho, em sua forma fabril – sobre a qual o marxismo, mas não de forma simplificada o próprio Marx, construiu sua teoria de classes e sua teoria política -, está desaparecendo ou, pelo menos, em uma mudança tão radical que joga por terra todas as concepções societárias que se fundavam sobre o Homo faber?
Tal perspectiva não era estranha ao próprio Marx, pois, ao pensar o salto do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”, o filósofo de Tréveris estava eliminando o homo faber da história, para ceder lugar apenas ao trabalho intelectual, criador, livre. Em outras palavras, mesmo em O capital, sua obra mais completa teoricamente, a escalada do capital chegaria a tornar supérflua a exploração do trabalho manual. A contribuição da ciência e da técnica como forças produtivas, já em Marx, seria o novo fato, capitalista por certo, que tornaria supérfluas as formas de exploração. É claro que em Marx o capital não é um “piloto automático”, mas uma relação social, e, portanto, é a luta de classes o operador das transformações no capitalismo.
Mas o capital chegou antes do “reino da liberdade”, e, ironicamente – dura ironia -, tornou o “reino da liberdade” tão longínquo que ele se parece mesmo com a “quimera”, o monstro medieval. As necessidades impõem-se cada vez mais ferreamente, e são criadas pelo mesmo processo que desqualifica o trabalho do Homo faber.
A dialética marxista implica necessariamente sujeitos humanos, se não quisermos voltar a Hegel e ver no “piloto automático” do capital o Espírito Absoluto. A polarização de classes segue um caminho implacável: só no Brasil, uma periferia “emergente”, o número de bilionários segue em curva ascendente, e basta consultar a Forbes, essa nojenta bíblia – ou – Caras – dos muito ricos, para perceber que esse fenômeno é mundial. A China e a Índia, os recém-chegados ao êxito e à embriaguez capitalistas, exibem novos-ricos numa escala tal que mesmo os períodos de ouro da Inglaterra e dos EUA ficam morrendo de inveja. No Brasil, o número de bilionários com rendimentos acima de 1 milhão de dólares por ano praticamente duplicou em dois anos, entre 2005 e 2007. E o outro lado? O crescimento do programa Bolsa Família deixa perceber que não é apenas o objetivo de controle social e político por parte do PT que faz crescer os beneficiados pela falsa caridade do governo: eles estão crescendo enquanto sobe o número de bilionários. Também, com a equação da dívida pública não poderia ser de outra forma: 200 bilhões de pagamento de juros da dívida pública contra 10 bilhões de Bolsa Família, em 2007.
Mas essa pobreza não é uma classe social; é uma regressão, em todos os sentidos. Regressão à pobreza econômica mesma, para a grande maioria, e regressão à pobreza política para os que continuam a trabalhar no chamado mercado formal, com garantias trabalhistas, pois perderam a capacidade de vetar o arbítrio do capital, de pautar a conduta do adversário, e já não são uma classe social; uns e outros são apenas “sacos de batatas”, para utilizar a expressão raivosa do próprio Marx. Edson Miagusko, em sua tese de doutorado, recentemente [setembro de 2008) defendida no Departamento de Sociologia da FFLCH USP, intitulada “Movimento de moradias e sem-teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche”, flagrou o desmanche da classe e a regressão à pobreza numa cena única: de um lado da via Anchieta, assembleia de trabalhadores da Volkswagen – empresa na qual Lula trabalhou como torneiro-mecânico – discutindo o que fazer diante da ameaça de demissão de milhares deles, que terminou num acordo chulo, logo descumprido pela empresa. Exatamente do outro lado da via, sem nenhuma figura retórica, sem-teto acampados em terreno da Volkswagen, no qual havia sido a fábrica de caminhões da empresa, realocada para outro município com isenção de impostos e salários mais baixos. Nos dois lados, a regressão da classe à pobreza econômica absoluta, os sem-teto, e à pobreza política (nem greve têm capacidade de fazer), à impotência política, a assembleia de trabalhadores.
O que será, pois, a “condição humana” no mundo em que o controle do produtor sobre seu próprio produto é uma “quimera”, em que o produtor mais sofisticado tem no seu produto um estranho tão imperativo e indomável?
Na periferia, mesmo as mais reluzentes, como China e Índia, e com maior visibilidade no Brasil e África do Sul, a regressão da classe à pobreza é a pacificação da luta política, que já não processa a luta de classes. É Johannesburgo e São Paulo, imensos acampamentos de miseráveis; é o MST, a mais formidável “invenção” política das duas últimas décadas no Brasil, transformado em solicitador de auxílios ao Governo Federal, criminalizado pelos governos estaduais e condenado a ser eternamente um “movimento” que não sai do lugar; é o Rio de Janeiro, controlado pelas gangues do tráfico de armas e de drogas, que são a mesma coisa, elevadas à condição de árbitro dos conflitos privados.
E no máximo pode levar a um modelo norte-americano, de indiferenciação das classes sociais e, paradoxalmente, de falsa transferência da luta de classes para a política institucional: é o que ocorreu nos EUA, onde a simples candidatura de um negro à presidência pelo Partido Democrata ressuscitou o interesse pelas eleições, e até os jovens tomaram o partido de Obama. Mas quais são as posições do jovem e elegante negro formado em Harvard? As mesmas dos conservadores, ou, dito explicitamente: tropas no Iraque e no Afeganistão, ameaças claras ao Irã, pouco interesse pela América Latina e África do Sul, patrocínio da entrada da China na OMC, enfim, um receituário claramente conservador: nada sobre direitos civis, nada sobre programas sociais – quando a pobreza também está batendo na porta dos norte-americanos e a desigualdade está em ascensão. Hillary Clinton, derrotada por Obama, era mais progressista que o senador de Illinois.
E do lado dos dominantes, aqui eles são mais claramente que nunca apenas personae do capital. O caso da longa permanência de Greenspan no comando do FED norte-americano (12 anos, sob ou sobre dois presidentes?) poderia servir de exemplo, mas entre nós não faltam “greenspans”: o banqueiro Meirelles, tucano de carteirinha, foi escolhido por Lula, antes do anúncio de qualquer outro ministro, para dirigir “nosso FED”, o Banco Central: e lá permanece impávido (6 anos e vai chegar aos 8), aumentando os juros mesmo com a economia crescendo a 5% ao ano. Isto é, as classes dominantes só aparecem no rosto de banqueiros, já que estamos num regime de acumulação à dominância financeira (François Chesnais). Mas enganam-se os que pensam que os conflitos de classe tendem a desaparecer; eles podem ser apaziguados, como a longa história já nos mostrou, ou duramente reprimidos. O novo é sua cooptação, os fundos de investimento de propriedade (será?) de trabalhadores financiando a acumulação de capital. Agora mesmo a crise mundial, que é a primeira da globalização, nasceu na China e na Índia, que rebaixaram drasticamente o custo de reprodução da força de trabalho norte-americana, em flagrante descompasso com a capacidade do capitalismo norte-americano de operar uma redistribuição da renda para realizar o valor das mercadorias indianas e chinesas. Daí a crise.
O marxismo não pode fugir a essa interrogação, pois do contrário será jogado no lixo da história como o próprio trabalho que ele colocou no centro da “condição humana”. Aos marxistas, a tarefa de enfrentá-lo.
Previsões não fazem parte do receituário marxista, embora dele se tenha abusado (falsa e ideologicamente). O marxismo precisa de situações concretas, na velha lição de Marx. Nesse caso, a situação concreta indica, sugere, a desimportância das classes sociais que constituíram o capitalismo nos dois últimos séculos, pelo menos, em trânsito para classes não classes, valha o pobre trocadilho. Como a dialética exige uma recíproca determinação dos contrários, o panorama que se apresenta já sugere que nenhum dos dois tem a capacidade de impor sua agenda ao adversário. Parece um mundo robótico, à la George Lucas, mas o marxismo não nos permite fantasias, embora a tecnociência esteja aí tornando-nos quase deuses. Por isso, ficamos no diagnóstico, na constatação, e à história futura fica o prognóstico.
Nota
- COHN, Gabriel. “Dominação e dialética”. ln: – Crítica e resignação. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ↑