1998

O mundo, todo e uno

por Eduardo Subirats

Resumo

O conceito de “Novo Mundo” aparece pela primeira vez na bula papal Intercetera (1493), ligado a um princípio globalizador e unilateral de conversão cristã. No século XVI, Francisco de Vitoria falará em totus orbis, isto é, “em todo o orbe”, como capacidade legislativa universal. O problema de fundo era então a “questão indígena” e a legitimação do poder colonial. Tratava-se, como para Francis Bacon, de formular a unidade racional do mundo, o conhecimento sendo entendido como poder e produção. O método científico tornava-se o princípio de um novo olhar universalizante, mais tarde reforçado na filosofia crítica de Kant. Mas na época dos Descobrimentos também se manifesta a construção de um olhar alternativo. A Utopia de Thomas More (1516) utilizava o olhar do americano para uma crítica de caráter reformador sobre a civilização europeia. No entanto, é Garcilaso o Inca, primeiro humanista da América latina, que vai propor no século XVII uma verdadeira mudança de olhar, a partir da consciência da destruição colonial das culturas americanas. Para Garcilaso, a unificação do mundo só pode ser pensada com base no reconhecimento mútuo dos olhares americano e europeu. Ele se apoia na antiga concepção inca de uma “alma do mundo” e a relaciona ao princípio do Amor do filósofo hebraico Abravanel. Como o amor, o mundo é harmonioso justamente em e por suas diferenças e conflitos. Em nosso mundo globalizado, essa perspectiva de diálogo continua sendo um dos significados mais fortes e criativos do descobrimento da América.


O “MUNDO TODO”

O conceito de descobrimento do Novo Mundo foi polêmico desde a primeira vez em que foi usado, na bula papal Intercetera, de 1493. Seu caráter era redutor e explicitamente unilateral; além de privilegiar um olhar unidimensional do europeu cristão, essa unidimensionalidade estava estreitamente associada a um equivocado postulado jurídico de apropriação. Todas essas conotações negativas foram então questionadas pelos juristas da Escola de Salamanca e, principalmente, pelo filósofo Francisco de Vitoria. Contudo, tanto para o humanismo renascentista como para nós, o descobrimento do Novo Mundo como um continente por direito próprio encerra um significado ao mesmo tempo revolucionário e positivo. Com ele a concepção medieval dê um mundo plano e limitado transformou-se radicalmente na moderna representação de um mundo redondo, unitário ou global. Nas cartas e crônicas das primeiras expedições marítimas da Renascença o mundo foi se revelando como orbe.[1]

A forma deste mundo universal fundou-se, em primeiro lugar, sobre uma base teológica. A bula Intercetera de Alexandre VI é, nesse sentido, um marco radical. No documento pontifício dava-se por certo que as ilhas descobertas por Colombo eram um reino virgem – a bíblica Orfis, cumulada de inúmeras riquezas -, povoado por seres humanos em estado de natureza. Mas suas diferenças naturais e culturais eram programaticamente diluídas sob o postulado de sua “redução” (reducere é a palavra usada por Alexandre VI) a um princípio globalizador de conversão cristã. No tratado Da guerra justa contra índios, que devemos a Juan Ginés de Sepúlveda, o Novo Mundo por vezes adquiria colorações mais terríveis. A América ocultava ouro e outros minerais preciosos, mas era também o continente habitado por humanos que o demônio acorrentara a cultos selvagens, que devoravam carne humana como as feras e praticavam a sodomia. Tão radicais diferenças de costumes serviram de pequeno pretexto para uma grande ação missionária destinada à destruição das línguas, dos cultos e das culturas da América e à imposição de um credo global. A constituição de um mundo universal guardava identidade com seu igualamento compulsivo sob uma mesma fé.

Motolinea via no Novo Continente o horizonte expansivo de uma missão cristianizadora e apocalíptica que mesclava as marcas da violência e da intolerância em relação às culturas recém-descobertas com visões extáticas de paraísos celestes. Las Casas e Quiroga estavam certos de ter encontrado na América uma terra prometida para regenerar uma Igreja ferida de morte pelas conflitantes ambições imperialistas das monarquias cristãs europeias. O descobrimento do Novo Mundo foi o sinal de uma nova concepção unitária do mundo como orbe cristão.

Paralelamente a essa visão salvacionista e apocalíptica da globalidade do mundo, construiu-se sua unidade jurídica. Nesse sentido, já em meados do século XVI Francisco de Vitoria estabeleceu uma tênue separação, decisiva para a nova configuração do mundo como ordem jurídica global, entre o ideal medieval de orbis christianus e o conceito moderno de totus orbis. A noção de totus orbis provinha de uma reformulação universalista do ius gentium romano e tinha por fundamento uma capacidade legislativa universal. “E é que em todo o orbe”, escreve o filósofo de Salamanca, “que de certo modo forma uma república, tem [o soberano] poder de dar leis justas e para todos convenientes, como as do direito das gentes.”[2]

Gostaria de assinalar dois aspectos básicos desta visão moderna da unidade do mundo que constituem, ao mesmo tempo, seu ponto de partida e seu problema de fundo. Este último não era outro senão o índio: a chave, a partir da bula Intercetera, da legitimação do domínio colonial cristão. Nesse sentido é preciso salientar que foi justamente Vitoria quem formulou, ou melhor, reformulou essa “questão indígena”, a grande incógnita do poder colonial na América, em termos inovadores e modernos. Formulou-a justamente da perspectiva de uma liberdade dos índios formalmente definida e da legitimidade jurídica de seus governos próprios e de sua soberania, com total dependência quanto a suas diferentes formas de vida. Segundo as interpretações salmantinas dos títulos da Guerra justa proferidas por aquele humanista, os índios não poderiam ser expropriados de suas terras, leis e costumes pelo simples fato de serem gentios ou de estarem em pecado mortal.[3] Vitoria renunciava assim a qualquer dimensão salvacionista e apocalíptica da conquista.

Em segundo lugar, o ponto de partida dessa nova ordem universal era o poder de elaborar leis universais e justas, isto é, um ideário moderno de hegemonia universal.[4] Vitoria expressou esse princípio nas palavras orbis totius auctoritate, uma autoridade jurídica universal, e escreveu: “Todas aquelas ações que forem necessárias para o governo e a conservação do mundo pertencem ao direito natural […] E se a república pode fazer isto com seus súditos, não há dúvida de que o orbe também poderá fazê-lo […] e isto em virtude do direito de gentes e da autoridade de todo o orbe”.[5]

Em todos esses casos estamos diante de uma ideia unilateral de globalidade. A doutrina do totius orbis, do “mundo todo”, representa a igualdade de todo o orbe em relação a uma ordem jurídica universal; em compensação, as diferenças na ordem social, econômica e de costumes que distinguem universalmente as individualidades sociais e culturais que a integram não eram contempladas. Tampouco eram levadas em conta as desigualdades reais de poder técnico e militar e de organização política, assim como concepções de mundo e formas de vida que, de fato, convivem em conflito – tanto no mundo colonial de então como na nova ordem global contemporânea – com aquela universalidade juridicamente formalizada. Enquanto as doutrinas salvacionistas desenvolvidas pela Igreja romana, de Sepúlveda a Las Casas, partiam justamente do projeto de eliminação dessas diferenças em nome de um princípio igualador de conversão religiosa, a constituição jurídica do “mundo todo” considerava-as irrelevantes ou inexistentes em nome de um princípio político de poder global.

A UNIDADE RACIONAL DO MUNDO

Em 1620, Bacon publicou a primeira versão latina de seu tratado Novum Organum. A finalidade desta obra, num sentido restrito, era a fundação de um novo órgão do conhecimento, em contraposição ao velho Organon, o aristotélico. Num sentido amplo, no entanto, esse objetivo filosófico revelava ao mesmo tempo uma mudança de rumo quanto aos fins últimos da civilização europeia.

O novo princípio do conhecimento científico, a indução, era definido pelo filósofo em estreita interdependência com os conceitos modernos de poder econômico e político. Por um lado, o novo conhecimento estava ligado ao poder (potentia), entendido como domínio técnico desenvolvido pelas novas ciências – da óptica à mineralogia. Por outro lado, Bacon aproximava o método indutivo do conhecimento científico ao conceito de produção (productio) de frutos úteis à humanidade, num sentido pragmático, ligado aos valores modernos do trabalho, da disciplina e da indústria.[6]

Esse revolucionário ideal de conhecimento surgiu ao lado das explorações e viagens de descobrimento, conquista e colonização. Em seu frontispício, o Novum Organum traz justamente uma imagem que ilustra o nexo entre as viagens transoceânicas europeias e a empresa do conhecimento científico. A gravura em questão revela um cenário magnífico: em primeiro plano, erguem-se as Colunas de Hércules, símbolo de um limite mitológico ultrapassado e, por conseguinte, de um distanciamento da concepção clássica, isto é, fechada ou limitada, do mundo. Mas as Colunas de Hércules são também o símbolo de virtudes e potências heroicas, ligadas aos antigos “trabalhos” fundadores da civilização clássica. Duas caravelas navegam em mar aberto com seus velames enfunados, citação homérica que evoca a voluptuosidade da aventura e o afã de riqueza. Uma das naus começa a romper com sua proa as águas que separam o limite simbólico entre o Velho Mundo e o oceano. Uma legenda reza ao pé da gravura: Multi pertransibunt & augebitut scientia. Trata-se de uma citação do livro de Daniel extraída do Antigo Testamento.[7] Ali o enunciado estava formulado justamente num contexto apocalíptico: “Muitos passarão e a ciência avançará…”.

Trata-se, decerto, de uma nova visão das viagens de exploração e descobrimento. O “Plus Ultra” libertou-se da ordem teológica, agora identificada com o reino do preconceito. A ciência do Livro, a que o texto do profeta Daniel aludia, é substituída pela acumulação indutiva de conhecimentos e riquezas como sua expressão econômica. Na Antiguidade, escrevia Bacon, quando o globo terrestre era muito pouco conhecido, a filosofia só era capaz de chegar a um conhecimento dedutivo e, portanto, limitado. As navegações mal chegavam aos limites de um mundo doméstico e provinciano. A nova filosofia científica, ao contrário, era a expressão das viagens transoceânicas, do mundo da moderna indução, que se caracteriza justamente, segundo as palavras do próprio Bacon, por seu “alcance universal”.[8] O método científico converte-se no princípio da nova universalidade da conquista tecnocientífica.

Para a ciência renascentista, a unidade do mundo já não se define segundo uma unificação jurídica que equipara, em nome de uma igualdade formal de direito, civilizações em si mesmas diferentes ou até rivais. Sob a moderna perspectiva filosófico-indutiva, o mundo se transforma numa unidade de poderes que emanam de um conhecimento economicamente produtivo. Esse é o significado do novo paradigma científico baconiano. Essa mesma perspectiva histórico-universal do conhecimento seria depois formulada de maneira análoga pela filosofia crítica de Kant. O mundo, para sua Crítica da razão pura, é “a totalidade matemática de todas as aparências e a totalidade de suas sínteses, tanto nas pequenas como nas grandes coisas”.[9] A totalidade do mundo é a unidade da natureza enquanto aprioristicamente determinada pelas leis do conhecimento tecnocientífico.[10]

O “OUTRO MUNDO”

Ante a definição filosófica, jurídica e teológica da universalidade do orbe como unidade virtual na ordem da representação geral de uma síntese matemática da natureza, do postulado de um direito natural ou de gentes, ou da redenção cristã no além-túmulo, o humanismo europeu ainda deixou uma brecha para a construção de um olhar alternativo. Foi esse olhar que Thomas More formulou.

Em 1516, o intelectual publicou um dos livros mais inusitados da bibliografia renascentista: sua Utopia. Esta obra foi considerada uma crítica social e política do mundo europeu da Renascença, com suas lutas pelo poder, suas guerras religiosas e sua dilaceração social. Mas o que quero salientar a propósito dessa crítica social é sua articulação em torno de um virtual habitante do Novo Mundo, em cujos confins, justamente, se encontrava aquele ideal reino epicurista de “Utopia“.[11]

“Dirigimos a ele toda sorte de apaixonadas perguntas … “, diz-se pela boca do protagonista de Utopia assim que o livro começa, “perguntas que Rafael respondeu-nos cordialmente. Não lhe perguntamos exatamente sobre monstros, como já é de praxe nas narrações de viagens. Sobre Cilas e Silênio, e sobre lestrigões ávidos de carne humana e toda essa sorte de aberrações que hoje mal se pode evitar, mas sobre governos sabiamente organizados…”[12] O Novo Mundo, longe de ser representado da perspectiva do exótico ou do terrível, aparece antes como um hipotético exemplo de virtudes domésticas, como um bom governo, tanto no sentido político como no moral e científico. More se antecipava, assim, à específica estilização historiográfica do Reino dos Incas como modelo de bom governo, desenvolvido um século mais tarde pelo humanista Garcilaso.

“Assim”, prossegue Thomas More, “alegra-me que os utópicos ao menos tenham sido felizes o bastante para realizar essa república que eu desejaria que fosse imitada pela humanidade inteira…”[13] Pela primeira vez uma voz europeia interrogava-se acerca das formas de vida, da religião, dos conhecimentos científicos e geográficos, dos costumes, da economia, das leis e do governo do Novo Mundo. A América como o “outro mundo” deixava de ser a representação de uma diferença negativa em relação ao universo cristão para, ao contrário, ocupar um lugar exemplar. Essa exemplaridade, por outro lado, não era inteiramente nova. Constitui no mínimo um momento relevante de muitos dos testemunhos de europeus que viajaram à América, do próprio Colombo e Vespúcio até Humboldt. A novidade na obra de More, porém, era utilizar o olhar do americano como ponto focal para uma crítica de caráter reformador sobre a civilização europeia. Nesse sentido, deve-se salientar que a utopia de More não visava tanto a fantasia irreal de uma sociedade quimérica, e sim a construção de um moderno olhar crítico sobre a civilização moderna em sua etapa de nascimento. E a “Utopia”, a ilha imaginária no antípoda do Velho Mundo, onde se descobriram os tesouros de um virtual bom governo, não era senão o espaço real em que se construía esse novo olhar, um olhar idealizado e abstrato do outro, mas, por isso mesmo, mais rigorosamente reflexivo.

O MUNDO “TODO E UNO”

Recordemos por um momento o mundo descrito por são Isidoro de Sevilha em suas Etimologias. Aquela representação do orbe era finita. O mundo medieval estava, de fato, limitado por fronteiras intransponíveis. Compreendia o céu e o oceano que rodeavam e delimitavam o continente euroasiático, ou o que dele se conhecia, dentro de um círculo perfeito.[14] Segundo essa visão fechada do universo, a América era o antípoda, um inabitável antimundo. O lugar imaginário do antípoda era concebido, na melhor das hipóteses, como uma região tórrida povoada por monstros terríveis. Parafraseando Francis Bacon, poderíamos dizer que na concepção medieval de mundo formulada por são Isidoro observamos ainda uma escala geográfica regional, de acordo com o caráter “doméstico” da economia manufatureira e comercial daquela era e de suas correspondentes viagens “insulares” de exploração e expansão comercial.

Essa representação do mundo foi superada pela cosmografia resultante dos novos meios técnicos de medição e ordenação do espaço, de instrumentos como o astrolábio a técnicas como a perspectiva, e pelos descobrimentos geográficos que eles permitiriam. O mundo de Américo Vespúcio já era um mundo unitariamente definido conforme critérios matemáticos e astronômicos e uma concepção contínua e uniforme do espaço. O mundo da época dos grandes descobrimentos geográficos era um mundo globalizado. Contudo, a descoberta de grandes e ricas nações de gentios nessas terras antes desconhecidas introduziu, no mundo global, uma nova fronteira interna e um princípio hierárquico de divisão, correlativos a sistemas desiguais de dominação e às diferentes formas de vida que eles possibilitavam. O mundo do Renascimento já era redondo. Era um mundo global perfeitamente unificado teológica, jurídica e tecnocientificamente. Em pouco tempo, porém, transformou-se novamente num mundo plano em nome de suas renovadas hierarquias simbólicas, fronteiras políticas e desigualdades econômicas.

Foi Garcilaso, o Inca, o primeiro humanista da América Latina, quem se confrontou, tanto hermenêutica como politicamente, com a nova realidade geopolítica de uma “ordem mundial”, ou seja, o orbe cristão, ao mesmo tempo unificado pelos descobrimentos tecnocientíficos e pelas estratégias de conversão cristã e dividido por formas de vida e princípios de soberania radicalmente desiguais. A essa nova divisão interna do “mundo todo”, da qual a simples noção unilateral de descobrimento já dava conta, e às categorias contrárias de “velho” e “novo” mundos, Garcilaso contrapôs a visão polêmica de um mundo sem divisões nem fronteiras. A esse respeito, Garcilaso escreveu em Comentarios reales, sua obra mais importante, publicada no início do século XVIII: “Digo que de primeiro poder-se­ á afirmar que há não mais que um mundo, e embora digamos Mundo Velho e Mundo Novo, é […] não porque sejam dois, e sim um todo uno”.[15]

A definição programática do mundo “todo uno”, isto é, a concepção radicalmente global, unitária e igualitária de mundo formulada por Garcilaso, não lança luz apenas sobre a vigente concepção geopolítica de um planeta ostensivamente dividido em primeiro, segundo, terceiro e quarto mundos. A concepção garcilasiana elo mundo “todo e uno” era revolucionária justamente em relação às definições teológica, jurídica e tecno-econômica do “descobrimento” americano vigentes até o século XVIII.

Até hoje, a recepção historiográfica de Garcilaso tem ignorado, quando não ocultado, essa visão em nome de um suposto aristocratismo do humanista cusquenho, ou, o que é pior, em nome de uma ideologia da mestiçagem da qual quiseram fazê-lo pioneiro. Sobre esse ponto, gostaria de destacar três aspectos de sua reivindicação humanista de um mundo global que, por um lado, constituem uma alternativa consistente às representações teológicas, jurídicas e tecno-econômicas da Renascença e, por outro, constroem um olhar plenamente moderno. O primeiro desses aspectos possui uma dimensão claramente negativa: é a consciência da destruição colonial das culturas históricas americanas que atravessa toda a obra historiográfica de Garcilaso como contrapartida real do princípio globalizador formulado, de perspectivas teológico-filosóficas diferentes mas perfeitamente equiparáveis, por um Ginés de Sepúlveda, um Francisco de Vitoria ou um Francis Bacon. O valor literário de Garcilaso é, nesse sentido, o de uma das primeiras expressões americanas da dor espiritual que acompanhou essa destruição. Aquela “república, antes destruída que conhecida …” são as significativas palavras com que ele abre seus Comentarios reales.[16]

Em segundo lugar, os Comentarios reales constroem um duplo olhar sobre a situação fundamental de um descobrimento americano que o cristianocentrismo europeu reduzira a sua conhecida constituição unilateral. O Velho Mundo é assim chamado porque foi “novamente descoberto a nós”, segundo as palavras do humanista, isto é, descoberto aos incas; o Novo Mundo recebe este nome por ter sido descoberto pela primeira vez pelos europeus. Garcilaso apresenta a dupla face do mundo renascentista em contraposição ao igualamento religioso ou jurídico de todos os rostos e de todos os olhares sob uma mesma racionalidade colonizadora. E mais: no pensamento de Garcilaso, a unificação efetiva do mundo só pode ser pensada e realizada com base no reconhecimento mútuo de ambos os olhares, o americano e o europeu, como olhares equidistantes e ao mesmo tempo diferentes, num mundo fundamentalmente harmonioso, embora efetivamente cindido por poderes avassaladores e destrutivos.

Há uma relação de complementaridade entre este “duplo olhar” do humanista inca e a “inversão” do olhar eurocristianocêntrico que Thomas More expõe em seu livro Utopia. O filósofo europeu contemplava o Novo Mundo como o diferente e, ao mesmo tempo, como o ponto de partida para um olhar reflexivo que questionava sua própria constituição histórica e filosófica. Nos Comentarios reales de Garcilaso constrói-se hermeneuticamente um duplo olhar do europeu e do americano como condição para um diálogo intercultural capaz de compreender os dois num plano equidistante. A unidade do mundo não é aqui um conceito teológico transcendente, nem um princípio jurídico formal. É, antes, o resultado programático desse diálogo num mundo que Garcilaso, assim como More, reconhece como radicalmente cindido.

Por último e em terceiro lugar, Garcilaso apoia essa visão do mundo “todo e uno” sobre uma base ao mesmo tempo mítica e metafísica da unidade do mundo. Trata-se da antiga concepção de uma “alma do mundo”, princípio animador e deus-criador ao mesmo tempo, como fora compreendido nas tradições religiosas incas e, em particular, na cosmologia ligada ao deus Pachacámac.[17] Mas trata-se também de Eros, o princípio imanente de unificação, diálogo e harmonia do mundo, segundo a formulação do filósofo sefardita Yehudá Abravanel. Esta dupla relação do pensamento filosófico garcilasiano com a mitologia inca e com a filosofia hebraica constitui por si só um de seus capítulos mais fascinantes.

Em Abravanel, o amor é o princípio intransitivo do ser e, ao mesmo tempo, o fundamento espiritual da unidade harmônica do mundo. Eros é a alma do universo. Em seus Diálogos de amor, segundo a versão castelhana que devemos ao próprio Garcilaso, o filósofo escreve: “Pois tanto o mundo e suas coisas têm ser, quanto está todo ele unido e enlaçado com todas as suas coisas como os membros de um indivíduo; se assim não fosse, a diluição seria causa de sua total perdição. E como não há coisa alguma que possa unir o universo com todas suas diversas coisas senão o amor, segue-se que esse amor é causa do ser do mundo e de todas suas coisas…”. Esse amor une a “ânima do mundo” com aquela zona sublunar do universo sujeita à geração e à corrupção, segundo uma metáfora sexual do amante e da amada, comum também à cabala. Escreve Abravanel: “Nem se uniria essa ânima do mundo com este globo da geração e corrupção, se não houvesse amor…”.[18]

De acordo com a teologia cristã, o papel de Eros é, ao contrário, sempre exterior e transitivo, virtual e transcendente. As almas que o amor cristão abraça em sua universal comunhão possuem uma dimensão fundamental de vassalagem espiritual e temporal. São as consciências “subjetas” (isto é, sujeitas e subjetivizadas)[19] sob a ordem temporal da Igreja universal. Do ponto de vista providencialista e apocalíptico dessa conversão universal, como foi concebido pela Igreja do século XVI, Eros perde aquele original significado ontológico de um princípio conservador do ser e fundamento do mundo “todo uno” para transformar-se no princípio de uma formação e conversão baseadas numa pedagogia barroca da sedução, da doçura, da persuasão, da caridade. Aquilo que para Yehudá Abravanel e para o inca Garcilaso era o princípio ontológico da unidade e da beleza do mundo, converteu-se, nas mãos dos missionários cristãos, num instrumento retórico, entendida sua subjetivização como subordinação a um poder institucional, subordinação esta que, além disso, nunca estava totalmente isenta de violência.

Para Garcilaso o mundo era harmonioso em si mesmo, e não como resultado de sua conversão ou subordinação político-religiosa à Igreja universal. E este mundo era harmonioso justamente em e por suas diferenças e conflitos. E mais: sua unidade emana, segundo Garcilaso, de uma comunicação horizontal de todas as coisas, de uma afinidade ontológica que, ao mesmo tempo, se traduz no valor coesivo e solidário da linguagem dos

homens e no consequente diálogo ou hermenêutica universais. Ao contrário da doutrina do orbe cristão, a globalidade do mundo todo e uno não é um postulado transitivo e hierárquico que exija, portanto, o sacrifício das diferenças e dos conflitos dos mundos do mundo, isto é, que exija sua radical conversão. Daí que Garcilaso pudesse conceber a unidade do mundo ou o diálogo universal de suas culturas como uma verdadeira estratégia de reconstrução do “perdido” Reino dos Incas. Esta perspectiva humanista de restauração e diálogo continua sendo, em nosso mundo globalizado e dividido, um dos significados mais fortes e mais criativos que encerra o descobrimento da América há cinco séculos.

Tradução de Sérgio Molina

NOTAS

  1. O descobrimento do mundo como orbe, contraposto à concepção insular do mundo medieval, constitui uma das teses centrais do estudo de Edmundo O’GORMAN, La invención de América, México, 1958, pp. 123 e ss.
  2. Francisco de VITORIA, Relectio de indis, Madri, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1989, p. 191.
  3. Idem, ibidem, pp. 84 e ss.
  4. Idem, ibidem, p. 160.
  5. Francisco de VITORIA, De Indis, Relectio II, em Obras de Francisco de Vitoria, Madri, Biblioteca de Autores Cristianos, 1978, pp. 828 e ss.
  6. Francis BACON, Novum Organum, em Tbe WarksofFrancisBacon, Stuttga11, F. Fromann Verlag, 1963, vol. 1; Klaus HEINRICH, Dahlemer Vorlesungen, Tertium Datur, Eine religions philosophische Einführung in die Logik, Basel, Verlag Roter Stern, 1981, pp. 112 e ss.
  7. Daniel 12, 5.
  8. Francis BACON, Novum Organum, op. cit., § 127.
  9. . KANT, Kritic der reinem Vernunft, A 418, B 446.
  10. Mesmo quando essa noção kantiana do mundo for complementada pela outra versão do mundo, a do “mundo moral”, o vínculo entre ambos já estará suficientemente debilitado, a ponto de ser gradual e progressivamente desfeito.
  11. Cabe lembrar a este respeito que as cartas de Américo Vespúcio chamam a atenção, mais ele uma vez, para o caráter perfeito do autogoverno epicurista ou comunista dos habitantes do Novo Mundo.
  12. Thomas MORE, Utopia, Cambridge, Cambridge University Press, 1975, p. 12.
  13. Idem, ibidem, p. 110.
  14. São Isidoro de Sevilha, Etimologias, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1983, p. 125.
  15. Garcilaso de la Vega, Comentarios reales, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1976, vol. r, p. 9.
  16. Idem, ibidem, p. 46.
  17. Idem, ibidem, p. 64. A moderna revisão da interpretação garcilasiana deste deus escamoteia o fato central de que seu significado, no complexo sistema argumentativo de Garcilaso, é o de um princípio metafísico ou filosófico, e como tal deve ser analisado em primeiro lugar.
  18. Leon HEBREO, Los diálogos de amor de mestre Leon Ahrabanel, trad. Garcilaso, Buenos Aires, Gleizer, 1944, p. 198.
  19. Esta dupla acepção do processo de subjetivação cristã como autoconsciência e vassalagem se depreende, não apenas do duplo valor semântico e etimológico da palavra sujeito, mas também da própria definição do processo de vassalagem como processo de autogoverno democrático dada pelo próprio Las Casas. Ver Fray Bartolomé de LAS CASAS, Tratado de las doce dudas, em Obras completas, Madri, Alianza Editorial, 1988, vol. 11, p. 79; Fr. Domingo de SANTO TOMÁS, Gramática o arte de la lengua general de los índios de los reinos del Perú, Lima, Edición dei Instituto de Historia, 1951, p. 7, onde também se estabelece esta dupla relação: “[…) vencer e sujeitar […] que não é outra coisa [senão] vencer-se a si e triunfar sobre si”.

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