1988

Olhar-louco

por Fábio Landa

Resumo

A loucura não é mais um mistério, mas não se pode preveni-la facilmente encapsulando-a num manicômio. Uma das imagens mais fortes desse fenômeno, que se encontra nos limites do sofrimento humano, é o quadro Guernica de Picasso. Ali se multiplicam olhos, olhares grotescos de perplexidade, espanto, indignação. Os fragmentos não contam uma história, mostram um episódio que rompe a história. Como num espelho partido em que Narciso vê a si mesmo. A loucura nos coloca indefesos diante dessa visão ameaçadora. Freud imaginou a vida como uma frágil vesícula que sacrifica sua superfície para proteger seu núcleo. Seria também a origem da psique, capaz de criar as condições de representar o mundo externo dentro de si mesma. No processo de desenvolvimento, a Psicanálise descreve como surge, a partir da identificação, a denegação do fetichismo (ver e não aceitar a diferença), impedindo olhar outra coisa que não seja a própria imagem no espelho. O exemplo maior dessa cegueira aparece em Auschwitz, em cujos portões estava inscrito: “O trabalho liberta”, e onde milhões de judeus foram reduzidos a corpos físicos que, como diz um chiste, “podiam caber num caixote”. Tudo sob o olhar do homo normalis (segundo a expressão de Wilhelm Reich) que trata como louco quem se opõe a essa brutalidade. Loucura é resistência narcísica à mudança, é querer apoderar-se onipotentemente do corpo do outro para contrabalançar experiências frustradoras e causadoras de ansiedade, medo de perder algo que se tem. Cegueira pior do que uma deficiência visual.


Ao nos depararmos com o tema loucura, temos alguns pontos de partida, algumas rotas de abordagem, alguma compreensão, mas por enquanto é um fenômeno que nos aparece e se nos defronta com a máxima agudeza e simplicidade, máxima intensidade e mínima mediação.

Já é abordável, não é mais um mistério total. Estamos longe, porém, de poder interferir e prevenir facilmente, sabendo-se que é muito cômodo tentarmos encapsular a loucura dentro dos muros de um manicômio da mesma forma que tentamos encapsular a marginalidade dentro dos muros das prisões e tentamos, enquanto organizados como estamos hoje, estabelecer uma espécie de cordão sanitário protetor a respeito de um sem-número de assuntos, na ilusão de que somos capazes de remeter para uma periferia remota questões absolutamente centrais.

A partir dos ensinamentos da psicanálise, já estamos relativamente habituados ao fato de que todos os fenômenos ocorrem com todos. Eventualmente, varia um pouco o grau de intensidade, claro que varia de acordo com as capacidades, tendências e talentos individuais, mas não há um fenômeno humano que se passe com determinado homem que seja estranho a outro.

Assim, podemos deixar a proteção ilusória do cordão sanitário.

Gostaria de realizar um esforço e tentar apreender o fenômeno antes de analisá-lo; na medida do possível, sem diminuí-lo ou exagerá-lo, mas numa tentativa de observá-lo.

O tema nos toca emocionalmente, pois se refere inevitavelmente a um sofrimento, não a qualquer sofrimento, talvez aos limites do sofrimento humano, quando se resolve por uma morte mental num último esforço para sobreviver antes de sucumbir também biologicamente.

Como vejo esse sofrimento? E de outra parte, como o mundo me aparece a partir desse sofrimento?

Uma das imagens que me ocorre é o quadro de Picasso, Guernica. No polo superior, uma forma de olho que se repete em muitos outros lugares do quadro. Esse olho paira como uma espécie de sol; próxima dele, uma lamparina que parece encostar neste sol; a comparação entre as duas fontes de luz é quase grotesca. A cabeça do touro está de perfil, os olhos de frente. O esporão na boca do cavalo lhe pertence ou rasga-o? O olho de um moribundo, outro de um morto; no quadro, multiplicam-se os olhos, os olhares, a perplexidade, o espanto, a indignação. Os fragmentos desse quadro não são caóticos; não contam nenhuma história, mas um episódio que rompe a história; o caos é só aparente, há uma espécie de ordem e sobretudo de notícia, talvez a intenção de um recado.

Outra aproximação ao tema: recordo o filme de Fuller, Schock corridor. Neste filme, um jornalista muito ambicioso pretende ganhar um prêmio importante na sua área. Combina com um amigo seu, psiquiatra, uma farsa para que seja capaz de ser internado num asilo de loucos. Trataria então de investigar os boatos a respeito de um crime que teria ocorrido aí em condições escabrosas. Supunha que, se fizesse esta matéria, ganharia o prêmio. “É interessante a combinação com o amigo psiquiatra, pois a principal recomendação deste é que trate de se comportar com a máxima naturalidade e espontaneidade, negando ter qualquer tipo de problema; a única coisa que o incomoda seria alguns tiques sem nenhuma importância; quando lhe perguntarem com quem vive, deve responder, muito naturalmente, que tem uma relação muito especial com uma de suas irmãs.

Dois ou três dias após conseguir ingressar no asilo nessas condições, já então como interno, sonha com a namorada; a imagem desta se transforma, num primeiro momento fica parecida com a irmã e finalmente se metamorfoseia nesta. O filme segue até uma cena em que ele está olhando para o teto; é um dia de chuva e ele sente que vai cair uma gota; a gota que cai é acompanhada longamente pela câmara; quando termina de cair, o filme muda completamente; a partir daí, há uma sequência do rompimento de um dique e da inundação consequente. Outra cena que gostaria de mencionar: um outro interno, negro, gritando slogans racistas da Ku-Klux-Klan. O filme termina com o jornalista não mais tendo que fingir ser louco.

O jovem Törless é um livro de Musil que conta a história de um menino, que na época do colégio tinha um colega, filho de uma viúva pobre, bolsista de um colégio de classe alta. Por um pequeno roubo, o colega de Törless passa a ser chantageado por dois outros alunos, que ameaçam denunciá-lo aos professores, com a possibilidade de ser expulso do colégio, perder a bolsa e magoar a mãe. Num sótão, longe dos olhares dos adultos, passa a ser torturado e manipulado pelos dois chantagistas e com o passar dos dias termina sendo uma espécie de brinquedo deles; Törless se incorpora à brincadeira, e o usa sexualmente, mas com certa bondade. Não tendo seu corpo machucado, o garoto preso em tal armadilha entrega-se ao que não o maltrata com boa vontade. Os professores e o diretor do colégio continuaram achando que a instituição que dirigiam era um dos mais sólidos baluartes pedagógicos do país. Tampouco tinham motivo para deixar de crer nisso. Nas memórias de Törless, esses eventos desapareceram e ele se pega no fim do livro se perguntando: “O que será que foi feito dele?”.

Uma das coisas que eu mais desejaria dizer sobre a loucura é que não tenho nada a ver com isto. Seria muito conveniente poder afirmar — você é louco; eu não sou louco. Parece que a loucura se presta a essa colocação de alguma coisa própria indesejável no outro. De alguma forma, declarar que você é louco, e eu não, parece mais uma solução de compromisso do que uma constatação de verdade; parece mais um grito do que uma convicção.

Olhar-louco: neste hífen, pretendo colocar o narcisismo. Da lenda de Narciso, aquele jovem tão lindo, por quem todos se apaixonavam e ele por ninguém, tomo a imagem de Narciso vendo a si mesmo. Quando eu-Narciso digo “você é louco”, você é eu também, porque o que vejo é a minha imagem. Se você é eu e digo que você é louco, quem sou eu? Louco também? Não. Impossível aceitar. Este espelhismo pode ser levado ao infinito: reflexo do reflexo do reflexo. O olho diz que você é você; o ineludível olho de Narciso, que você, é a minha imagem. Se eu vejo você, e eu-Narciso ao mesmo tempo o vejo, como saber quando estou falando de você e quando estou falando de mim? Afinal, como na lenda, muito se passa só para atender às conveniências de Narciso. Para Narciso, o outro separado de si, com características e movimento próprios, não existe; para Narciso, o outro é aquilo que ele quer ou precisa que seja.

No campo psicanalítico, Freud cita Groddeck quando diz que sou governado por forças contra as quais não posso praticamente nada; sou vivido, não vivo. O indivíduo é um que conhece e também um outro que não conhece e do qual nada pode saber. Parece que nesse espelhismo, vejo pela primeira vez a imagem de um da mesma espécie; poderia-se pensar que esse amor tão extraordinário que um dia devoto a mim mesmo é a primeira identificação: eu com alguém da mesma espécie, no caso eu mesmo. As vicissitudes desse amor tão egoísta e tão ensimesmado, a tal ponto que Narciso na lenda vira uma flor, vão reger grande parte da minha existência. De acordo com alguns autores, é esta identificação primordial que abre caminho para uma série de identificações que se seguem no curso do desenvolvimento posterior.

Guernica era uma cidade espanhola que, durante a Guerra Civil, foi bombardeada e arrasada pela aviação nazista. Talvez tenha sido um dos grandes ensaios que atestaram a importância da aviação como arma bélica. Na época, Guernica esteve completamente indefesa diante de um ataque que lhe veio de um meio inusitado, do ar. Talvez, o sol que brilha no alto do quadro de Picasso possa ser a bomba contra a qual Guernica não tinha defesa. A fragmentação dos seres, do mundo de Guernica, foi obtida a partir de uma intrincada organização preexistente. Guernica fez-se pedaços diante de uma força infinitamente maior. Picasso estetizou o desfazer das malhas daquilo que um dia foi uma cidade.

Dentro da doutrina psicanalítica, aceita-se, a partir do seu fundador, que a vida nasceu e se mantém a partir de profundas modificações na natureza. Freud imagina uma vesícula viva que, de alguma maneira, tem que existir num universo cujas forças lhe são imensamente ameaçadoras. Supõe então que essa vesícula viva, eventualmente, sacrificaria sua superfície para proteger o seu núcleo. Ou seja, supõe que algo passa a interpor-se entre o núcleo vivo e o mundo circundante. Essa superfície tem como principal função a proteção antiestímulos; Freud busca, tanto do ponto de vista da embriologia como da filogênese, esse órgão. Para ele, aquilo que se interpõe entre o mundo interno e o mundo externo nos seres humanos é o que se denomina ego. O ego acaba então sendo esse órgão que se relaciona internamente com o núcleo vivo e externamente com o mundo.

A superfície externa desse órgão hipotético estaria mais de acordo com o mundo externo e tentaria impor ao mundo interno suas condições. A superfície interna, em contato com o núcleo vivo, recebe as impressões e está plasmada pelas demandas desse núcleo. Freud supõe mais: que este órgão acaba por ganhar as condições de representar o mundo externo, o mundo interno e a si mesmo.

O bebê humano nasce fetalizado, isto é, ao nascer é imaturo e portanto completamente dependente, a tal ponto que é inimaginável um bebê humano abandonado a si mesmo. O bebê depende intrinsecamente de quem o cuida. Freud atribui ao ego o acesso e o domínio da motricidade. No momento do nascimento, dadas as condições de fetalização, nem essas funções é o ego capaz de exercer. Da representação que esse ego faz de si mesmo depende em vasta medida das diversas ocorrências sucedidas. Por exemplo, sabe-se da influência que as doenças têm sobre a representação que o ego obtém dos distintos órgãos. Na condição de dependente, o bebê afinal se liga extraordinariamente a quem cuida dele. Freud descobre uma propriedade desse ego, a identificação: o ego em algum momento pode se apresentar ao mundo interno como se dissesse: “você já pode me amar, pois sou tão parecido ao objeto que cuidou de você”.. Seja porque pela primeira vez me apreendo como íntegro, completo e tendo conseguido alguma coisa, e tão jubiloso e orgulhoso estou, seja por me identificar com aquele que foi certa vez o objeto do meu amor, está dada a propriedade de o ego representar em si este objeto, que uma vez esteve fora e agora está dentro.

Gostaria de introduzir uma outra noção, um evento que pode parecer bizarro mas é de uma importância fundamental e parece estar no cerne de como eu vejo/não vejo a própria loucura. Freud descreveu este acontecimento sob o termo de fetichismo.

Diz ele que no decurso do desenvolvimento, por um motivo ou outro, o menino descobre, vê, que os genitais femininos são diferentes dos seus, diferentes, para ele, pela ausência. Dessa maneira, uma porção de ameaças anteriores de perder os genitais, às quais não tinha necessariamente que dar atenção, agora surgem revestidas de possibilidade real, porque existe um ser, em tudo idêntico a ele, mas não tem esse órgão que lhe é tão querido. A ausência desse órgão é registrada de uma dupla maneira. O menino percebe, constata, e daí se cria uma corrente que consigna que um outro ser igual a ele não tenha pênis. Uma outra corrente desmente isso; desmente o que o menino constatou e não quer aceitar. O menino passa a viver de acordo com as duas correntes: a que consignou e a que desmentiu. Nesse desmentir parece residir a origem da psicose, quando esta corrente se torna prevalente. Eventualmente, podemos considerar que todos somos de alguma maneira fetichistas, vimos e desmentimos o que vimos. Se não queremos ver, permanecemos narcisisticamente indiferentes, iludidos, com soluções fáceis para problemas complexos; endurecidos, olhando para nós mesmos sem sermos capazes de olhar outra coisa que não seja a própria imagem no espelho.

Depois de ter feito da psicose uma espécie de zoológico humano, depois de tê-la romantizado, talvez tenhamos que admitir que estamos diante de uma situação-limite, na fronteira entre a vida e a morte, entre o fazer-se em pedaços ou manter-se íntegro, ou fazer o outro em pedaços; e parece que é nessa fronteira que este fenômeno reside.

Nesta fronteira, pode-se entender a afirmação dos psicanalistas de que ninguém enlouquece porque quer. Muito pouca coisa depende de nossas próprias decisões. Freud deixou uma velha comparação das relações entre o ego e o restante do mundo interno: que muitas vezes o cavaleiro, para se manter sobre a sela, é obrigado a fazer suas as vontades do cavalo. Assim, se o cavaleiro quer ir para a direita e o cavalo para a esquerda, ao cavaleiro não lhe resta outra opção a não ser reforçar a pose de ginete e proclamar a obediência do cavalo, que tão docilmente vai para a esquerda e não para a direita.

Há algum tempo atrás tive a oportunidade de fazer uma visita à Polônia; não foi uma viagem particularmente turística e sim a locais históricos, testemunhas de uma história ,que não estamos muito acostumados a ver, o testemunho dos vencidos, massacrados, e não os bonitos monumentos dos vencedores.

Dessa viagem, quero transmitir em primeiro lugar o impacto que causa Auschwitz. Auschwitz foi chamado por alguns ex-prisioneiros de o Planeta Auschwitz. Na porta de Auschwitz está escrito “O trabalho liberta”. Dentro vemos uma grande organização industrial que explica a inversão orwelliana desta frase; o trabalho não é trabalho e a liberdade só se dá pelas chaminés dos fornos crematórios. A grande organização industrial consiste no fato de com um mínimo de recursos obterem-se os máximos resultados. Uma câmara de gás não é mais que um cubículo de uns quarenta metros quadrados. Em Auschwitz havia de oito a dez destas câmaras. E em cerca de três anos desapareceriam aí dois milhões de pessoas. Esse planeta é o nosso planeta com sinal trocado. Nele, a única certeza é a morte iminente. Creio que Friedländer tenha sido o primeiro historiador que se aventurou a intitular um de seus livros como O anti-semitismo nazi ou uma psicose coletiva. Friedländer é um historiador, e obviamente não desconhece os fatores históricos, culturais, econômicos, mas ressalta o. conceito de psicose na sua obra.

Um chiste da Segunda Guerra era que alguém perguntava: “Qual o espaço necessário para abrigar um milhão de judeus?”. Outro respondia: “Um caixote, e não precisa ser muito grande”. E riam.

Poliakov nos conta como ao longo de séculos se cantavam lindas canções em que a letra era “os judeus são malditos”, “vamos matar os judeus”. Primeiro se reduziram as funções; os judeus só podiam praticar algumas profissões; depois, se acusava os judeus de só praticarem algumas profissões. Depois se coloca os judeus em guetos. O espaço aerado, virtual, vazio em que as pessoas se locomovem, esse espaço em que o teatro das pessoas, a relação entre elas, a teia de seus movimentos, a malha de suas fantasias se reduz drasticamente e então os judeus estão reduzidos ao seu corpo físico. O corpo físico pode ainda ser reduzido pela eliminação da respiração a seus elementos químicos e aí um milhão de judeus cabem num caixote não muito grande. Dentro de Auschwitz faziam-se experiências ditas médicas. Uma delas era abrir a barriga de uma grávida e colocar junto ao bebê um rato vivo e fechar a barriga.

Algumas dessas situações coincidem com certas constatações de psicanalistas sobre as primeiras fases do desenvolvimento infantil; como Melanie Klein, que nos ensina que o bebê humano projeta coisas boas e más, principalmente más, para dentro do corpo da mãe; que muitas vezes os bebês se projetam para dentro do corpo da mãe, para vorazmente comerem a mãe e os bebês que supõem estarem dentro dela.

A loucura, disse no começo, é simples. Em Auschwitz, havia um pátio onde chegavam os trens com seus prisioneiros; nesse pátio se fazia uma seleção: os que iam ser mortos imediatamente é os que iam entrar para o trabalho escravo. À direita e à esquerda desse pátio, a pouco menos de cinquenta metros, estavam as câmaras de gás. As pessoas que desciam do trem para esse pátio sabiam o que ia se passar; viam os fornos, sentiam o cheiro que de lá emanava, ouviam os gritos, enfim, estavam absolutamente conscientes. E tudo isso se passava sob o olhar de absoluta normalidade, apenas a rotina do trabalho cotidiano, dos chefes e guardas dos campos de concentração. O encarregado do setor de fornos crematórios em Auschwitz durante algum tempo era um padeiro.

Diz-se que uma parte dos judeus de Varsóvia só pode ter sido evacuada pela intervenção da polícia judaica, quer dizer, policiais judeus desempenharam papel importante na captura de seus correligionários. Como é possível que os piores anti-semitas tenham sido os judeus convertidos? No asilo de Schoch corridor, o negro gritava slogans da Ku-Klux-Klan. Na Espanha das Três Religiões, Judá Halevi era o príncipe dos poetas judeus grande talmudista; três gerações depois, seu neto, no começo da Inquisição, se torna o fundador da grande família católica dos Santa Maria, sob o nome de Pablo Santa Maria, e um dos principais teóricos da Inquisição.

No campo dessas situações-limite, há que se citar um último fato, que eventualmente nos facilite a apreensão do fenômeno. Entre os seis milhões de judeus mortos nas câmaras de gás, dois milhões eram crianças. Será que só os nazistas, que hoje são bons velhinhos e velhinhas, são capazes de fazer isso? Esse assassinato deixou algum resíduo, ou não há resíduo algum? Há uma semana li numa revista um episódio que me chamou a atenção: aparecia a fotografia de uma menina com queimaduras de cigarro de dois centímetros de diâmetro; quem a feria era sua mãe; outro menino, cuja mãe era ex-prostituta atualmente casada: certa vez ele mexeu no aparelho de som do padrasto; o aparelho quebrou; a mãe pulou sobre o abdômen do filho, quebrou-lhe o braço, o crânio, deixou-o cego e paralítico.

Possivelmente a combinação do aumento do cabedal tecnológico com o aprofundamento e agravamento das ofensas interpessoais se constitua numa ameaça para a sobrevivência da espécie humana. Se o inimaginável, há quarenta anos, era o extermínio sistemático dos judeus, o inimaginável hoje é o extermínio da espécie humana. Mas há que se considerar que, se o inimaginável se deu, possa vir a se dar novamente.

Por oposição quero contar rapidamente a história de Janusz Korczak, um pedagogo , espécie de unanimidade nacional polonesa. Desde o começo parecia ter uma enorme dedicação às crianças. Entre outras coisas porque havia se programado para não ter filhos, uma vez que seu pai era doente mental e ele achava que as doenças mentais eram hereditárias. Parece que esse terror à loucura o impele ao polo oposto. Assim Korczak, que na época da Segunda Guerra já era bastante famoso, dizia que qualquer criança pode melhorar e crescer; do adulto, antes desconfia, depois confia; da criança, antes confia, depois desconfia. Dirigia um orfanato, no qual a primeira coisa que se fazia era discutir as leis do orfanato. Uma coisa que é muito importante para as crianças é que elas gostam de imaginar; às vezes a gente vê um prego e para a criança não é um prego, mas o mastro de um veleiro que há de singrar os mares; um pouco de papel amarrotado pode ser a bola de um animado jogo ou o sol de alguma boneca. Neste orfanato, havia então um lugar dos achados e perdidos, de tal forma que qualquer criança encontrando alguma coisa no chão levava para o achados e perdidos, porque ele dizia que as crianças são também um pouco distraídas: estão brincando, começam a brincar com outra coisa, mudam de ideia, querem retornar à primeira brincadeira, e não sabem onde colocaram os brinquedos delas. Nada, pois, se jogava fora no orfanato de Korczak. Dizia que as crianças tinham o direito de ter diversos humores durante o dia; assim, não é problema se uma delas não quer comer quando todos estão comendo; pode ser que ela queira ficar um pouco só e isso não é motivo para ser punida. No orfanato de Korczak, então, havia uma sala ao lado do refeitório em que uma criança que não quisesse comer podia ficar fazendo outras coisas enquanto as demais comiam e ao mesmo tempo não estar segregada.

Isso não teria nada de extraordinário se a maré contrária não fosse absolutamente avassaladora. Porque no tempo de uma extrema brutalidade, em que as crianças tratadas por Korczak estavam destinadas a serem cobaias de experiências, cinzas ou sabão, Korczak surge como uma oposição, em que o detalhe, a minúcia de cada investimento de vida que cada ser humano faz a cada pequeno objeto ao seu redor, era observado e valorizado.

Korczak, quando já estava fechado no gueto de Varsóvia, tratava de conseguir dinheiro para comprar comida para as crianças. Certa vez se ‘defrontou com um tipo que lhe perguntou por que dinheiro para essas crianças, se elas já eram cadáveres. Korczak não respondeu, deu um murro na cara do seu interlocutor. Korczak é a oposição a essa brutalidade. Era visto como uma espécie de louco, talvez visionário, no limite um imbecil. É este o olhar que o Homo normalis , categoria introduzida por Wilhelm Reich, lança sobre essas figuras, que acabam retornando como bizarras, como na Balada de um louco, de Piazzola, ou na indignação de Cambalache, de Discepolo, onde se diz que em 1500, como hoje, tanto faz ser um salafrário qualquer ou um grande professor.

Este contrapor-se de Korczak ao racismo nazista importa porque permite uma desmescla das posições que à medida em que aparecem fundidas não podemos discerni-las: a oposição das forças de preservação e das forças de destruição. Todos os sinais de estágios precoces do desenvolvimento descritos pelos psicanalistas vamos encontrar no racismo: uma idealização de si mesmo, uma atitude de auto-suficiência, desprezo pelo objeto, um jogar-se onipotentemente para dentro do corpo do outro, apoderar-se onipotentemente deste corpo, manipular, roubar e desgastar onipotentemente o corpo do outro, um imaginar estar lutando contra forças incomensuráveis do outro. Os atributos positivos dados a si mesmo, de beleza, bondade, sabedoria: e ao outro, as condições de contaminação, podridão, um poder maléfico infinito.

Tomei a situação racista porque efetivamente confundiu grandes homens. Por exemplo, Voltaire dizia que os negros estavam mais próximos dos macacos do que dos homens brancos; Goethe discutia se os judeus têm alma e portanto se são ou não humanos. São interessantes esses lapsos, nos quais escorregamos do ápice ao zero.

São esses os elementos que Melanie Klein e seus seguidores descrevem como sendo as experiências fundamentais do bebê nos três primeiros meses de vida, sob a denominação de posição esquizo-paranóide. Aquilo que ajuda o bebê a superar essa fase são as providências do adulto que cuida dele, na medida em que lhe proporciona experiências de gratificação que contrabalançam as experiências frustradoras e causadoras de ansiedade, as quais ativam os elementos idealizatórios para defesa, idealização tanto no sentido do imensamente maravilhoso, perfeito e bom, como do imensamente terrível, ameaçador e persecutório.

Ressaltemos que infância e loucura são inconfundíveis; enquanto na infância tudo é desenvolvimento e perspectiva de progresso, os mesmos fenômenos, fora dela, são regresso, e a perspectiva é a tragédia.

Observemos que essas situações são possuidoras de uma enorme quantidade de energia. Freud dizia que os restos da onipotência que de alguma maneira se confirmam na realidade e tudo aquilo que um já conseguiu é o que constitui seu narcisismo. Mas não se trata da mera confirmação de restos de onipotência na realidade; força-se, forja-se a confirmação através de mecanismos também onipotentes, e dessa forma obtém-se a confirmação onipotente da onipotência, que fatalmente tende a se esboroar ou então passa a exigir providências cada vez mais deformadoras da realidade para se manter.

Parece que da dependência da lactância atrás e a angústia de castração à frente, o narcisismo está fadado a ser um estágio decisivamente dramático. Tudo que se consegue só se consegue às custas de um enorme esforço. Parece que a memória afetiva do extraordinário esforço para emergir da dependência da lactância e da impotência motriz e constituir-se esse primeiro momento de narcisismo torna para sempre o indivíduo resistente a qualquer mudança. A perda de um estado a duras penas conseguido muito dificilmente é tolerada; de outra parte, esse estado é ameaçado por forças internas e externas. Novas demandas se apresentam ao indivíduo, mas a partida para novas conquistas é obstaculi-zada pela memória das dificuldades de ter se atingido o estágio presente. Da mesma forma, a angústia de castração, isto é, dar-se conta de que se pode perder algo que já se tem, é um enorme perigo à frente, do qual o indivíduo se defende alterando-se, deformando-se, cindindo partes de si mesmo, ou tentando castrar o outro.

O narcisismo existe para ser perdido e na medida em que eu não o perco me oponho a todo crescimento, todo desenvolvimento. Existo enquanto Narciso; morro enquanto Narciso. Que estranha contradição intrínseca Narciso nos oferece: se eu não sou Narciso, não sou eu mesmo; se não perco o narcisismo, deixo de ser eu mesmo. O narcisismo existe no próprio momento em que começa a ter que desaparecer. A cada momento, a fatalidade e a vida jogam um flash na construção e um na perda, com velocidade estroboscópica.

E para finalizar, uma síntese ultra-sumária do problema e uma solução: pai e filha atingidos pela radioatividade do acidente de Goiás estão hospitalizados, deitados em duas camas próximas, separados por uma cortina de chumbo. O pai pede que se retire a divisória, estica o braço, pega a mão da filha e adormece. A equipe do hospital se emocionou.

Certa vez, uma jovem deficiente visual perguntou a um jovem psicanalista se podia tornar-se psicanalista. O jovem respondeu que sim, se quisesse. A deficiência visual talvez não seja obstáculo; o que preocupa é a cegueira.

BIBLIOGRAFIA

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