2015

Onze notas sobre as fontes passionais da violência

por Adauto Novaes

Resumo

Para discutir os deslimites da violência passional hoje, propõe-se um breve recuo no tempo, que toma a Guerra de 1914 como emblema da mutação da própria ideia de violência, quando surge o que pode ser definido como o domínio da técnica, ou seja, o advento da civilização tecnocientífica. Foi, então, que Paul Valéry escreveu a célebre frase, síntese de um dos grandes problemas da humanidade: “Temo que o espírito esteja se transformando em coisa supérflua”. É certo que o mundo dominado pela tecnociência tende a dificultar o trabalho do espírito, que é fundamental no controle da violência. Lê-se ainda em Valéry que, através desse trabalho, o homem adquire a capacidade de afastar-se por momentos de “tudo o que existe”, inclusive da própria personalidade. Assim, o “homem pode observar-se; pode criticar-se, controlar-se”. A nova forma de violência limita, pois, o trabalho do espírito, o que quer dizer que as deliberações humanas acontecem a despeito da capacidade de reflexão e discernimento. Mais: o homem perde o controle das paixões violentas. A ciência e a técnica dominam não apenas nossa vida material mas também as coisas do espírito; pior: o espírito, limitado, está presente mesmo nos episódios que implicam seu enfraquecimento. Se o espírito retira-se do novo mundo – ou melhor, se, no mundo dominado pela técnica, não há mais espaço para o trabalho do espírito –, isso acontece porque existem forças instintivas que trabalham contra ele. Valéry pergunta, então, num breve ensaio sobre a virtude, se nós nos tornamos piores ou apenas mais verídicos. Talvez seja o caso de constatar que a técnica, ao estimular a força e a potência que há no homem, tornou-o mais violento. A difusão universal, através dos novos meios de comunicação, alimenta um gozo insaciável da violência: no cinema, nos jornais, na televisão, no celular – até –, nos locais públicos ou em casa, os olhos parecem absorver sem emoção notícias abomináveis acerca de mortes e massacres.


[1]

Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.

GUY DEBORD[2]

PERGUNTAS INICIAIS

No dia 24 de julho, uma quinta-feira, na mesma edição cuja manchete principal era a morte do escritor Ariano Suassuna, a Folha de S.Paulo trouxe um artigo de Alan Gripp em que apareceram dois destes breves trechos interceptados por escuta policial. Gripp destaca uma das falas: “Botamos o Choque para correr, minha linda”, diz o manifestante, em tom triunfal, em conversa grampeada pela polícia. “Foi muito lindo, amor, [você] perdeu”[3]

Em seguida, o articulista esclarece: “O rapaz se referia ao episódio que acabara de ser exibido numa reportagem de TV, no qual um grupo de black blocs, ele incluído, ataca PMS da Tropa de Choque do Rio com coquetéis molotov”[4].

Nas curtas falas capturadas pela escuta policial, os embates corporais com as tropas do Estado não eram descritos como eventos próprios da

ação política, nem mesmo como episódios militares ou marciais. Ele parecia falar de um filme de ação que lhe dava um prazer intenso e dá um depoimento de quem experimentou um gozo estético.

O apego à razão tem nos levado a crer que é por meio da linguagem que a civilização suplanta a barbárie. Acreditamos que a guerra principia onde o diálogo fracassa e que a paz só se constrói pela boa comunicação entre as partes. Entretanto, sem prejuízo dos ideais pacifistas, somos obrigados a admitir a contrapelo que não apenas pode haver violência na inguagem como a violência também se articula como linguagem.

Entre tantas outras evidências, os protestos de rua têm dado curso a essa possibilidade. Desde meados do século xx, eles se diferenciaram como um recurso a mais a serviço da propaganda política na pólis, mobilizando códigos que fazem alusão à violência e, em tensões extremas, são violentos em si mesmos, seja da parte dos que protestam, seja da parte dos que tentam reprimi-los. E mesmo aí, mesmo quando evoluem para escaramuças mais ou menos ásperas, mais ou menos desabridas, os protestos são comunicação. Um certo grau de violência, neles, funciona como publicidade. No rumor dos protestos, a violência é linguagem.

Marchando nas ruas, grupos e causas afirmam “nós existimos”, “fazemos diferença”, “temos o direito de ser ouvidos e vistos na paisagem urbana”. A partir das ranhuras da cidade, projetam mensagens em signos que combinam palavras, imagens e coreografias próprias que podem incluir a pancadaria e escorrem nas praças e avenidas não como selvageria desgovernada – mas como linguagem. Os protestos assumem a forma de precipitados sígnicos líquidos em contraste direto com as cristalizações linguísticas fixas do espaço urbano, como uma estátua, um monumento ou uma catedral.

Observemos que, em nossos dias, a ordem urbana conforma, contém e expressa, ela também, uma linguagem própria, igualmente mediada por imagens. Das placas de trânsito às antenas luminosas que sinalizam a proximidade do aeroporto para os aviões, do traçado amplo das vias de alta velocidade às conexões elétricas ou digitais, quase microscópicas, dos fios subterrâneos, essa ordem obedece a protocolos linguísticos bem estabelecidos e, não nos esqueçamos, bastante globalizados: todas as cidades do mundo, cada vez mais, parecem falar uma mesma língua ordenadora. A cidade resulta de um complexo de signos interconectados

uns aos outros em circuitos pelos quais os sentidos sociais se processam e se firmam, o que faz da urbe uma planta linguística.

O pulo do gato dos protestos de rua está nisto: eles compreenderam intuitivamente a gramática dessa urbe como linguagem e aprenderam a problematizá-la, a sabotar o fluxo de sentidos que aí tem lugar e atuar como um vírus que, se não é anti-hegemônico como gosta de se imaginar, é pelo menos contradiscursivo. Como num curto-circuito à revelia, como numa disfunção, os protestos desorganizam o ordenamento linguístico urbano para se afirmar como dissidência ou como crítica do poder. Ao problematizar a língua ordenadora da cidade, eles não se fecham em si mesmos, como gargalos antiurbanísticos ou caixas pretas indecifráveis e impenetráveis, mas despendem energia enfartando o fluxo dos sentidos na planta urbana para atrair o olhar, pois só quando atraem o olhar cumprem a meta de se afirmar como dissidência ou como crítica do poder. A lingua­ gem que eles falam, então, é uma contralinguagem (contradiscursiva) em relação à linguagem ordenadora, uma competidora momentânea dessa linguagem ordenadora, uma vez que os protestos de rua só podem falar sua contralinguagem se forem vistos e, mais ainda, se forem vistos como postulam ser vistos (o que é aparentemente a mesma coisa, mas não é). É nessa medida que os protestos se dirigem às câmeras do mundo.

Querem capturar as formas de representação instituídas pelas instituições da comunicação social, pela mídia, pelo jornalismo e também pela indústria do entretenimento. Esse arsenal midiático, a exemplo do que se deu com a linguagem ordenadora da urbe, encontra-se irreversivelmente globalizado, homogeneizado nas metrópoles de todos os continentes. É apenas aí, na instância das câmeras – na instância da imagem ao vivo, como veremos adiante -, que os protestos de rua conseguem desordenar a narrativa urbana contra a qual se insurgem. Eles problematizam a cidade menos porque atrapalham o trânsito e mais, muito mais, porque alcan­ çam lugar nas teles eletrônicas, onde estabelecem uma ligação direta (um by-pass) com a linguagem da imagem eletrônica dos meios de comunicação globais da era digital. Mais do que ferir a cidade como corpo físico, eles lancetam a representação da cidade na instância da imagem ao vivo. Os protestos, então, aglomeram-se como coisa corpórea, muito embora líquida, e, acima disso, acontecem como representação.

Se assim é, algumas interrogações se impõem.

Será que poderíamos identificar, nas manifestações de junho de 2013, momentos nos quais a violência fluiu como linguagem, tanto do lado dos manifestantes, como do lado dos que os retratavam e, ainda, do lado daqueles que os reprimiam? Os black blocs podem ser lidos como signos? De que natureza? A sua linguagem poderia ser vista como uma linguagem específica, regida por normas específicas? Essa linguagem específica teria servido de meio de produção, meio de expressão e meio de potencializa­ ção da própria violência?

Quanto aos meios de comunicação, de que modo as suas linguagens próprias, notadamente a linguagem audiovisual dos telejornais, contribuíram para exacerbar o emprego dos códigos violentos? Os signos visuais dos programas jornalísticos de televisão, que geram efeitos na indústria do entretenimento em geral, compareceram às ruas? De que modo? Teriam eles, no calor dos protestos, providenciado uma sintaxe para glamurizar o apedrejamento de policiais e a depredação de lojas e repartições públicas, uma vez que se deixaram monopolizar, como que magnetizados, pela apoteose do que tentavam condenar com a palavra “vandalismo”? Será que as câmeras não idolatraram aquilo que, nos microfones, os apresentadores rejeitavam?

Considerando que a linguagem pressupõe e opera recortes de ordem temporal, da duração de uma semínima no metrônomo ao presumido intervalo de silêncio entre uma interpelação e sua resposta, haveria nos enfrentamentos das ruas um sintoma de uma incompatibilidade de temporalidades entre o Estado e a sociedade, incompatibilidade posta por ordens temporais de duas linguagens que não conversam mais entre si ou, se é que conversam, mal se entendem? Teria havido um distanciamento entre as duas temporalidades a ponto de produzir um estranhamento tão grave entre suas linguagens (seus códigos)? Estaria o Estado ainda preso a ritos e processos lentos, que não recepcionam nem conseguem dialogar com as redes interconectadas da era digital que definem uma nova temporalidade na esfera pública? É possível pensar que esse descompasso temporal estaria no substrato de fenômenos semelhantes às manifestações de junho de 2013 no Brasil, como a Primavera Árabe e Los Indignados na Espanha?

Quer dizer: se a violência das ruas se desenvolveu como linguagem, tendo sido permeada, flechada e atravessada por vetores multidirecionais

de outras linguagens, de que tipo ela foi? Uma linguagem performática? Estética? Que fundamentos, ainda que inconscientes, haveria naquela fala interceptada pela escuta telefônica no Rio deJaneiro que fala de uma beleza nas batalhas campais em que os manifestantes e a Polícia Militar tiveram parte? Por que o protagonista daquele ato fala do quebra-quebra como se fosse uma intervenção estética sobre a cidade, capaz de proporcionar um gozo sem igual aos presentes? Que gozo é esse?

No esforço de enfrentar essas perguntas, surgirá aqui um ângulo de análise pelo qual as manifestações de rua se descortinam como um confronto não entre forças políticas, não entre classes sociais, não necessariamente entre governo e oposicionistas, mas entre signos. Do lado dos manifestantes, há indicações enfáticas de que esses signos foram acionados por agentes fungíveis, aleatórios, que não guardavam entre si laços de organicidade política, mas apenas se integravam a uma sintaxe imagética já predefinida, como se vestissem às pressas uma fantasia pronta para entrar no cortejo que já se encontrava em andamento. De modo mais candente, esse se revelará o caso preciso da atuação dos black blocs.

O cortejo em andamento seguia um roteiro e uma partitura que vinham não de plataformas ou de programas partidários, mas dos atributos próprios dos signos em conflito. É claro que existiam intenções políticas no repertório imaginário dos agentes, mas este seria um aspecto acessório, não o motor principal. Veremos que o embate entre as imagens (signos) foi por vezes sangrento, mas ele se teria expressado (e evoluído) mais como cena do que como causa. A violência irrompia mais para dar curso às peiformances e menos para dar consequência a uma plataforma política. A violência estaria na linguagem e a serviço da linguagem, mais do que da política.

Em resumo: em junho de 2013, na hipótese que será aqui trabalhada, o jorro de linguagem implicado, em lugar de conter, desobstruiu a erupção da violência, que escreveu seu texto sobre o chão das cidades brasileiras. Para essa linguagem e para essa violência, o asfalto era a folha de papel e o corpo humano era a pena.

NAÇÃO EM FÚRIA

Da linguagem das ruas à estética dos confrontos, o caminho que se abre é traiçoeiro, crivado de armadilhas. Sejamos prudentes – não para

evitá-las, mas para, de cada uma delas, extrair mais sabor. Deixemos para depois as tais belezas suspeitas e a discussão estética (embora, como se verá mais adiante, beleza e estética não constituam esferas necessariamente coincidentes). Para começar de um modo menos temerário, menos afoito, iniciemos por esses entes de pura vacuidade aos quais nos habituamos a dar o nome de fatos, esses entes que se prestam ao culto de uma credulidade positivista que se abriga, ainda hoje, no âmago do discurso jornalístico. (A crença nos fatos como alicerces e ao mesmo tempo motores de todos os acontecimentos é um dispositivo de potencial autodestruição do jornalismo, já que o conduz à miragem de que se ocupa não dos conflitos na linguagem, e sim de acontecimentos objetivos que estariam fora dela, que existiriam a despeito dela, e alimenta no cerne da instituição da imprensa e no nervo da prática jornalística a veleidade de que ele não é pura linguagem, apenas linguagem. Mas, no presente texto, deixaremos também isso de lado.)

Recapitulemos então as raízes do trauma. Elas são, também, raízes sígnicas, mas, agora, no início do raciocínio, façamos de conta, vibrando na mesma nota falsa do jornalismo que não se sabe linguagem (só linguagem), que são apenas fáticas (pois elas também são fáticas, em mais de um sentido). Quer dizer: comecemos pelos fatos.

Em junho de 2013, a nação roncava em fúria. Nas maiores capitais e, logo em seguida, nas cidades médias, protestos apareciam como que do nada e se adensavam de um dia para o outro. Inicialmente convocados por um grupo de pouca ou nenhuma inserção social, o Movimento Passe Livre (MPL), começaram pedindo o congelamento das tarifas dos transportes públicos. Era só o começo. Rapidamente, foram acolhendo outras demandas, até abraçar a todas. Isso mesmo: todas as outras e outras mais. As avenidas do Brasil sediavam atos públicos que eram “contra tudo”, conforme noticiou a manchete garrafal da Folha de S.Paulo de 18 de junho de 2013: “Milhares vão às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios”.

A avalanche “contra tudo” tumultuou tudo, num ciclo prolongado de picos sucessivos. A intensidade chegou a tal ponto que consultores e estrategistas de empresas internacionais de segurança, dessas que prestam serviços de inteligência a governos sitiados e a organismos multinacionais que agenciam ou contratam mercenários, chegaram a falar, em conversas reservadas com senadores, que o quadro brasileiro corresponderia a

modelos de crise aberta que em tese seriam passíveis de evoluir para uma guerra civil. Estavam equivocados, sem dúvida, mas, nos apalermados gabinetes oficiais daqueles dias, conseguiram impressionar.

Ninguém estava entendendo nada. Para as calçadas, viadutos e praças, afluía gente de todo lado. Era uma gente improvável e inesperada, que jamais tinha sido recrutada e preparada pelas cúpulas sindicais ou parti­ dárias. Aquela gente não tinha descido do morro para o asfalto, como prometiam os sambas de antigamente; descia mesmo era dos apartamentos de alto padrão, ou, pelo menos, dos apartamentos confortáveis da classe média espaçosa. Adolescentes saíam dos colégios mais caros e rumavam para a passeata como quem vai à balada. Profissionais liberais de meia-idade saíam às pressas do escritório, punham um par de tênis e iam se juntar aos filhos. Quando o país se deu conta, viu que aqueles manifestantes de primeira viagem tinham assumido a linha de frente de uma vaga gigantesca que repudiava o poder público a plenos pulmões, contando apenas com as cordas vocais, uns poucos megafones e milhões de cartazes feitos em casa. A maioria silenciosa, quem diria, tinha tido seus 15 ou 20 dias de vanguarda do movimento de massas.

Nada daquilo parecia caber nas cartilhas de cabeceira dos que se supunham donos da agenda pública. Aquela gente era uma gente demasiadamente comum, comum até não poder mais, e por isso mesmo era uma gente improvável e inesperada. Prefeitos, governadores e ministros se perguntavam a portas fechadas sobre as intenções dos novíssimos agitadores. Quem os incendiou assim? A mando de quem eles marcham? Ninguém sabia responder direito. Muito menos prefeitos, governadores e ministros.

As respostas talvez pudessem vir de uma análise baseada na ciência política. Um estudo que leve em conta a carga dos signos linguísticos e visuais aí implicados poderá sugerir pistas menos óbvias. Com efeito, as ruas hospedavam uma guerra simbólica. Os que insultavam os representantes do poder eram os mesmos que se adornavam com os símbolos do Estado e da pátria. Os insatisfeitos que xingavam as autoridades desfraldavam bandeiras brasileiras nas janelas dos prédios e se adornavam de verde e amarelo, como a dizer que a pátria estava ali, no corpo de cada um deles, que a pátria estava nas ruas. “O povo acordou”, gritavam, sem medo de serem bregas. A breguice não poderia faltar ao encontro das massas: a

qualquer pretexto, os grupos saíam cantando o hino nacional sem errar a letra. Naqueles dias, uma anedota de um espirro no metrô fez sucesso nas rodas sociais. Dizia a piada que, numa tarde de trens superlotados, um passageiro espirrou alto dentro do vagão. Educadamente, alguém ao lado redarguiu: “Saúde”. Ao ouvir a palavra saúde pronunciada de forma tão decidida, um sujeito a poucos metros da cena ergueu o punho e gritou: “Educação!”. Ato contínuo, todos começaram a cantar o Hino Nacional. Esse era o Brasil em junho de 2013. Esse era o Brasil que as autoridades não conseguiam decifrar.

DA NATUREZA SÍGNICA DO BLACK BLOC (E DO PAPAI NOEL)

As sessões de quebra-quebra viraram arroz de festa. Os black blocs brasileiros – imitadores daqueles que se tornaram célebres quando espatifaram vitrines no encontro da OMC em Seattle em 1999, ou quando criaram os grupos de autodefesa das passeatas em Berlim, ou quando apedrejaram policiais em Milão – roubaram a cena. Desferiam pedradas nos capacetes da polícia e estilhaçavam vidros de agências bancárias. Além dos escudos transparentes da tropa de choque, símbolos da repressão, miravam os estabelecimentos que simbolizavam o capital (bancos), o luxo (concessionárias de automóveis importados) e o poder (prefeituras, palácios de governo e demais repartições vistosas). Signos do dinheiro, da ostentação e do Estado viraram alvos de guerra, guerra simbólica, guerra das imagens.

No começo, aquela gente comum presente aos protestos, que não queria saber de escoriações, não se incomodou tanto. Em lugar de medo, os manifestantes de primeira viagem experimentavam fagulhas de excitação cívica; olhavam aqueles rapazes, pouco mais que crianças, e viam neles candidatos a heróis exóticos. A zoeira meio descontrolada compunha uma ambiência de aventura nas ruas, fascinando os neófitos, que eram quase todos.

Mas a boa vontade durou pouco. Logo os neófitos se alinharam ao discurso televisivo e passaram a repelir as táticas mais duras. Os relatos noticiosos na televisão e nos jornais começaram a tachar os black blocs de “vândalos”, contrapondo-os aos demais, designados de “manifestantes pacíficos”. Os primeiros eram execrados na TV. Os segundos, adulados.

O propósito da operação semântica insistente era prevenir e educar os novatos em passeatas, para que não enveredassem pela pancadaria.

É claro que os meios de comunicação acabaram produzindo o contrário do que pretendiam. Os manifestantes pacíficos deixavam que suas objetivas se imantassem pelo histrionismo do vandalismo, que monopolizava as imagens na TV. Os vídeos e as fotografias abundantes con­ sagravam os atos de depredação, emprestando a seus agentes uma aura de delinquentes românticos numa angulação que mais os edulcorava do que os desencorajava. Ocorre que os depredadores, de sua parte, também produziram o oposto do que pretendiam. Em lugar de fortalecer as passeatas, como almejavam, só conseguiram esvaziá-las. Tão logo a arruaça se tornou regra, aquela gente comum, que antes não ligava tanto, começou a ficar ressabiada. E vazou.

Mas o que eram esses tais black blocs, que tanta apreensão causavam? Eles entraram no circuito como uma tribo à parte, um signo muito bem marcado. O que os identificava, além da disposição de partir para as vias de fato, eram as roupas padronizadas, quase um uniforme: tecidos escuros, espessos, mangas compridas, botas resistentes, o rosto coberto por tecido ou máscaras de gás, às vezes acopladas a capacetes. Do ponto de vista do figurino, pode-se dizer que formavam um conjunto, mais ou menos como os aposentados que se vestem de Papai Noel em shopping centers também formam um conjunto.

A comparação não tem fins humorísticos, ainda que não os rejeite. As semelhanças entre uns e outros aparecem em profusão e em profundidade. São estruturantes. Os Papais Noéis e os black blocs podem ser lidos como dois significantes que ingressam na cena pública. A natureza de sig­ nificante espelha os dois num feixe de equivalências que fala por si. Antes de qualquer outra consideração, façamos uma pergunta singela. Por que os Papais Noéis de shopping, quase todos, são personagens mascarados? Por que escondem a própria identidade sob barbas brancas de mentira? A resposta é muito simples: eles precisam suprimir momentaneamente suas identidades individuais para ficarem parecidos com o ser genérico em que se transubstanciam. O significante é assim: igual a si mesmo e diferente de todo o resto. Daí que o sujeito que interpreta na rua o papel de black bloc precisa se mascarar. Nem tanto para escapar à vigilância policial (isso também conta, por certo), mas principalmente para encarnar

o ser genérico que o define. O black bloc é efetivamente um ser genérico, um Papai Noel das sombras. E o que nele é significante é o seu invólucro, não o seu “conteúdo”.

Junho de 2013 foi para os black blocs o que as festas natalinas são para os aposentados que fazem bico suando sob o cetim vermelho e fazendo “hô-hô-hô” para as criancinhas. Alinhados em destacamentos uivantes, que às vezes até fizeram a polícia recuar, os black blocs davam a impressão de formar um pelotão unificado e bem treinado, mas nunca foram uma organização formal. Havia os que se dedicavam ao esporte com afinco excepcional, o que incluía exercícios de treinamento e algum preparo coletivo, mas eles nunca chegaram a compor uma falange disciplinada e centralizada. Também nisso guardam analogias com o pessoal da terceira idade que se veste de Papai Noel. Um Papai Noel não conhece os outros; talvez uns poucos sejam amigos entre si e se cumprimentem na hora do trabalho, mas isso é irrelevante. Não é preciso haver uma empresa monopolista de senhores que se fantasiam de Papai Noel para que, no fim do ano, o comércio seja invadido por um descomunal exército deles e para que eles se comportem exatamente de acordo com o figurino.

Com os black blocs é a mesma coisa. Um pode muito bem não ter a menor ideia de quem seja aquele mascarado ao lado arrancando a placa de trânsito para quebrar a porta da butique. Só o que unifica os black blocs é o figurino e o código gestual. A roupa instaura o significante, tanto no Papai Noel como no black bloc, embora as alterações que um e outro produzem na cidade sejam diversas ou mesmo opostas.

Fora isso, que não é pouco, o significante dos black blocs tem pouco a ver com a figura do bom velhinho. Na faixa etária, por exemplo, são antípodas. Os primeiros, ainda mal entrados na puberdade, até outro dia pediam para as mães levá-los ao shopping para se deleitar com os segundos. O personagem genérico do Papai Noel foi massificado pela máquina da propaganda da Coca-Cola, nos anos 1930, e daí ganhou vida própria como catalisador de publicidade. O personagem genérico do black bloc foi industrializado não pela publicidade, mas pelos noticiários de TV de estilo mais ou menos sensacionalista, hipnotizados pelas peiformances dos garotos que bagunçavam as praças em épocas das reuniões de cúpula dos países ricos.

Os dois significantes fincam raízes em tradições culturais anteriores à TV. Antes da Coca-Cola, o Papai Noel já tinha sido utilizado por outras

marcas de bebidas doces, mas sua origem é ainda mais antiga. A lenda original remonta a santos e benfeitores do cristianismo, que jamais ouviram falar de Coca-Cola. A figura do black bloc também não foi inteiramente inventada no âmbito dos telejornais a partir das diatribes juvenis dos ativistas antiglobalização. É verdade que, logo no seu aparecimento, esse significante se estabeleceu como forma relativamente eficaz de chamar a atenção das câmeras de TV e logo ganhou vida própria como ser genérico. Mas é preciso desmontar com menos apressamento o processo de fabricação simbólica desse significante tão central em junho de 2013 no Brasil.

O figurino parece resultar de uma replicação puída do fardamento da própria polícia. É uma réplica um pouco mais andrajosa da armadura emborrachada da qual se paramentam os soldados das divisões encarregadas de dissolver aglomerações inflamadas. A sua semelhança antitética com os policiais da repressão é indispensável para que o significante fique de pé: em oposição às forças repressivas, como seu outro em negativo, os black blocs seriam o pelotão de defesa dos protestos, os brucutus do bem. O black bloc entra em ação como o antichoque, um anteparo de força física capaz de se igualar ao agente da lei. Mas não é só isso. A fantasia que o caracteriza incorpora uma mitologia que já tinha virado lugar-comum na indústria cultural: a dos heróis mascarados das histórias em quadrinhos de meados do século xx (muitos dos quais foram parar no cinema) que batiam nos vilões para defender oprimidos medrosos. O personagem genérico do black bloc encontrou eco no imaginário juvenil, moldado pela indústria do entretenimento, porque reencarnou personagens ficcionais que combinavam uma estranha consciência social com uma dose de sociopatia, mais ou menos como Zorro[5], Fantasma ou Durango Kid. A figura

de Guido Fawkes, que viria a inspirar a máscara do Anonymous, tanto na internet como nas manifestações de rua, é outra referência[6]• Se existisse um black bloc autêntico à brasileira – coisa que não existe, pois o black bloc é sempre um decalque mimético – ele seria algo como um Batman abrasileirado, um Batman de esquerda.

Mas em outros países o sentido é inteiramente outro. O significante do black bloc se presta a significados sortidos, ou até opostos, conforme variam o tempo e o lugar. Se no Brasil o black bloc seria um Batman de esquerda, na Síria de 2011 ele seria um Capitão América de extrema direita. Um black bloc só tem ideologia na medida em que um revólver pode ter ideologia. Nessa perspectiva, o Papai Noel lhe é superior. Os significados revestidos pelo significante do bom velhinho costumam ser mais constantes e mais coerentes. O black bloc é um significante mais vazio e mais volátil.

O black bloc, a exemplo do Papai Noel, é um significante que se prolifera por meio da cópia imagética. Quando em ação, segue uma coreografia prêt-à-porter. Alonga os braços para atirar pedaços de pau. Desloca-se como num balé de avanços e retrocessos, vanguarda e retaguarda. Faz a delícia dos fotógrafos porque os fotógrafos foram adestrados a devorar o que é flamejante, pois o black bloc, esse significante da visualidade que se presta a significar o que contesta, foi desenhado pelo olhar domesticado pela indústria.

Tais atributos, invariavelmente exteriores, reforçam sua característica de ter na aparência a sua única essência. O que o define é o que o reveste: o figurino, a postura híbrida entre o marcial e o marginal, a coreografia padronizada, o teatro de manobras radicais matizadas por um timbre cênico entre o trágico, o heroico e o mambembe.

Quanto à sua função na sintaxe das manifestações, o black bloc prolonga em ato a violência que os códigos gestuais das passeatas convencionais apenas encenam (mas não praticam), como os soquinhos no ar, entre outros cacoetes. Ele dessublima o linguajar agressivo dos panfletos e das palavras de ordem por meio de uma coreografia que o transforma em peiformance. Do léxico panfletário de inspiração bélica (com palavras como luta, derrota, trincheira, estratégia etc.), extrai seu gestual pautado pela finalidade de representar (e ilustrar) o embate de ideias presentes no imaginário dos contestadores. O black bloc é protagonista (vocábulo de sua predileção) de uma representação da violência, sob a justificativa moral um tanto rasa de que sua atuação mais pirotécnica do que propriamente destrutiva serviria para desnudar e denunciar aquela que efetivamente é a violência maior (mas silenciosa, oculta, subliminar), qual seja, a violência materializada em rotina da ordem estabelecida.

Os black blocs de junho de 2013 eram uma imagem (supostamente de contestação) que se batia contra outra (de manutenção do status quo). Não eram um modo de ativismo, como teriam preferido dizer, mas uma hiperatividade que soube fazer do anonimato sua via narcisista. A essa figuração estrepitosa e maquinal eles chamavam de tática, uma tática que eles assimilavam não em grupos de estudo ou em sessões de doutrinação política, mas assistindo a vídeos nas telas eletrônicas, como acontece com os praticantes de skate ou com os músicos das bandas cover. Como os Papais Noéis de shopping.

O TEMPO DO ESTADO ATROPELADO PELO TEMPO DA SOCIEDADE

As chamadas jornadas de junho escancararam o descompasso entre a temporalidade da sociedade civil e a temporalidade do Estado. A evolução ultraveloz das práticas comunicativas da esfera pública e do mundo da vida deixou na poeira o andamento lento da burocracia estatal. O que as autoridades tardaram a perceber foi que as redes interconectadas deram

mais substância, mais alcance e mais vigor para os processos naturais do mundo da vida, o que turbinou os ritmos próprios de formação e dissolução de consensos e dissensos na esfera pública.

As duas categorias são emprestadas de Jürgen Habermas. Ao conceber o mundo da vida como contíguo à esfera pública, ele desenvolve os dois conceitos de modo articulado e complementar. O mundo da vida pode ser entendido, para efeitos desta conferência, como o lugar em que a vida cotidiana acontece ou, se preferirmos, o lugar onde se dão os entendimentos entre os agentes (atores sociais) que fazem a vida acontecer. “Ao atuar comunicativamente”, escreve Habermas, “os sujeitos se entendem sempre no horizonte de um mundo da vida. Seu mundo da vida está formado de convicções de fundo, mais ou menos difusas, mas sempre aproblemáticas”[7]• A base do mundo da vida “de modo algum se compõe somente de certezas culturais”[8] (“certeza” no sentido daquilo que não é tematizado como problema na comunicação entre os participantes da situação), mas incorpora também “habilidades individuais, o saber intuitivo e práticas socialmente arraigadas”. Desse modo, além da cultura, “sociedade e personalidade atuam não só como restrições mas também como recursos”[9]

Sobre a esfera pública, Habermas diz que ela é “uma estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida através da rede de associações da sociedade civil”[10]. Ele insiste reiteradamente que a esfera pública não é instituição formal, não é um arranjo posto pelo ordenamento jurídico, mas é um “espaço social gerado pela comunicação”[11]. Ela não é Estado, não se confunde com ele, embora o tangencie e tenha forças para agir sobre ele. A esfera pública é um espaço comunicacional mais amplo, mais dinâmico e mais ágil do que qualquer instituição a que possa dar origem ou abrigar. “Tal como o mundo da vida como um todo, a esfera pública também é reproduzida através da ação comunicativa.”[12]

Para uma formulação um pouco mais fina, vejamos o que propõe o texto do próprio autor:

Nas sociedades complexas, a esfera pública consiste numa estrutura in­ termediária entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida [próprios da vida privada, que alcançam também

aspectos da esfera íntimaJ e os sistemas funcionais [relativos ao Estado

e ao capital, que não pertencem ao mundo da vida], de outro[13].

Em virtude dos padrões tecnológicos vigentes até há pouco tempo, o mundo da vida ficava mais distante da esfera pública. Os vasos comunicantes entre as duas categorias não eram tão desobstruídos. O que a eclosão de junho de 2013 jogou na cara de todos foi exatamente isto: o mundo da vida, tornado mais complexo, mais aparelhado e mais vigoroso, com mais capilarização comunicativa a oxigenar-lhe as células e a fortalecer­lhe o tecido, caía dentro da esfera pública praticamente sem mediações. O seu acesso à esfera pública parecia instantâneo, uma questão de um minuto. Ou menos. Os meios pelos quais os sujeitos se entendiam (ou se desentendiam) no horizonte de um mundo da vida tinham adquirido mais potência, de tal forma que a voz de um só homem pode ser a voz de um milhão em um intervalo exíguo, e isso sem depender de partidos, sindicatos, ONGS ou governos, sem depender dos órgãos convencionais de imprensa e praticamente sem depender de uma cadeia sequencial de mediações intercaladas. Sem depender, também, de um cérebro maquiavélico secreto que manipule as massas nos subterrâneos da web profunda

– cérebro que, para desalento dos potentados, nunca foi localizado.

Junho de 2013 deixou patente que, no advento da internet, esse lugar chamado de mundo da vida tinha sido, por assim dizer, ligado a uma tomada de 220 volts ou mesmo energizado por fusões e fissões subatômicas com descargas quânticas de força inimaginável. A redefinição dos padrões tecnológicos alterou de vez não só o mundo da vida como a esfera pública e, principalmente, as conexões entre os dois.

É assim que os conceitos de mundo da vida e de esfera pública não apenas não se diluíram com a emergência das novas tecnologias mas

ganharam com ela uma nova altitude. A noção de esfera pública como espaço social gerado pela comunicação saiu fortalecida do advento da era digital. Tanto que surgiram entusiastas da esfera pública como uma fronteira capaz de realizar os projetos de emancipação que a antiga esfera pública burguesa, colonizada pelos meios de comunicação de massa, se viu forçada a abandonar. Um desses entusiastas é Yochai Benkler. Em The Wealth of Networks (A riqueza das redes), ele afirma:

A esfera pública interconectada permite a muito mais indivíduos comunicar suas observações e seus pontos de vista para muitos outros e fazer isso de tal maneira que não pode ser controlada pelos proprietários dos meios de comunicação e não é fácil de ser corrompida pelo dinheiro como nos tempos dos meios de comunicação de massa[14].

Admitamos que talvez exista aí, nesse pensamento, uma ponta de ingenuidade ou até de deslumbramento. A esperança de que as redes interconectadas, ou a “esfera pública interconectada”, traria consigo uma nova estrutura social, comunicativa e tecnológica que prescindiria das mediações típicas da indústria cultural e das ferramentas midiáticas da sociedade de massas talvez seja por demais otimista, mas o fato é que ela vem frutificando. Em diversos círculos acadêmicos, essa nova esfera pública é percebida pela teoria como um ambiente mais livre, mais arejado e mais protegido contra controles unilaterais (sistêmicos) urdidos pelo Estado ou pelo capital. A nova esfera pública estaria a salvo das colonizações e das manipulações. Seria, então, capaz de dar novo sopro de vida à própria democracia. Essa leitura entusiasmada da nova esfera pública não revogou o modelo de Habermas, mas o enraizou ainda mais.

Tentemos descrever a mesma figura – a esfera pública gerada pelas práticas comunicativas da era digital – de um modo um pouco mais crítico. As vias de expressão do que temos chamado de opinião pública ficaram mais inconstantes – e muito mais barulhentas. Os picos instantâneos que sinalizam o humor coletivo não precisam guardar laços de coerência entre si e deixam expostos deslizamentos inconscientes. Nesse contexto, é possível que a opinião pública tenha se mundanizado mais,

alegremente entregue a se manifestar sobre passatempos do entretenimento como se fossem eventos políticos e vice-versa. Em consequência disso, as distinções clássicas entre o mercado cultural e a arena política se dissolveram, em nuvens indefinidas, pesadas ou leves, cujas cargas elé­ tricas mostram inclinações ambivalentes: podem relampejar tanto para um lado como para o outro. Nesse contexto, a esfera pública não está, de modo algum, imune aos códigos da indústria da diversão, que prosseguem potentes para pautar suas tematizações, assim como se abastecem, ainda mais, de suas flutuações. A expansão cultural do mundo da vida pela força das tecnologias digitais se afirma como um dado irrefutável, assim como as linhas comunicacionais constitutivas da esfera pública passam por uma multiplicação e uma aceleração vertiginosa, mas não se deu a emancipação sugerida por alguns dos novos autores. A esfera pública é claramente mais veloz e tem (muito) mais massa, mas não ficou necessariamente mais livre.

Em contraste, a máquina estatal segue lenta. Ainda não passou pelos reordenamentos estruturais que poderiam dar conta de conectá-la ao novo padrão tecnológico no qual já vive e respira a sociedade. A lentidão da burocracia estatal tem peso de chumbo e, quando comparada à aceleração dos processos comunicacionais do mundo da vida e da esfera pública, assume o aspecto de uma âncora exagerada, que puxa o navio para o fundo do mar. Esfera pública e Estado (ou sociedade civil e Estado, se quisermos) se põem, então, como hardwares incompatíveis. E isso não apenas no Brasil. O tema é indiscutivelmente mundial.

A percepção repentina desse descompasso não é simples do ponto de vista dos governantes. Eles tinham se acostumado a usar como passarela as cabeças estagnadas dos homens comuns. Quando elas se moveram, sentiram a terra tremer sob os seus pés.

NOTAS SOBRE UMA ESTÉTICA PEDESTRE

Do seu ponto de observação, no “olho da rua”, o jornalista Bruno Torturra, líder da Mídia Ninja[15], enxergava junho de 2013 por ângulos

pouco usuais: “O black bloc não é um movimento. É uma estética, um código simples de reproduzir. Quando vão para a rua a sociedade identifica: o black bloc chegou. É um comportamento emergente. A ausência de liderança, que virou clichê, é ausência de mediação”[16]

A frase, dita no debate sem plateia organizado pelo jornal Valor Econômico, em São Paulo, e depois publicado no caderno Eu& na edição de 9 de agosto de 2013, deixou muita gente desconcertada. A ideia de que a violência rueira pudesse ser chamada de estética chocava os leitores de boa formação cultural e analistas ilustrados. Mas ele tinha seu ponto.

A despeito das alegadas intenções políticas benévolas de promover a “autodefesa” das passeatas, os black blocs parecem mesmo carregar alguns aspectos que poderiam ser chamados de estéticos. Vistos desse ângulo, eles descendem da escola das intervenções urbanas lançada por artistas de vanguarda do surrealismo, do dadaísmo e do neodadaísmo. O diferencial black bloc consiste em transpor a fronteira que separa o discurso do ato de destruição física dos símbolos da ordem: vitrines de lojas, agências bancárias, sedes do poder público. É bem verdade que um componente de quebra abrupta da normalidade, ou pelo menos da inércia, já se fazia sentir nas intervenções urbanas de inspiração surrealista. Elas desconstruíam a rotina dos ambientes em que se instalavam. Pode-se dizer que agrediam, simbolicamente, as pessoas que participavam daquela rotina, embora não lhes ferissem o corpo.

O que eles encenam é uma intervenção urbana, mesmo que adulterada, na qual a agressão simbólica vira mais do que isso. Arrastam a lógica da intervenção urbana – que, de resto, está necessariamente presente nos protestos de rua, que tumultuam a cidade para projetar uma causa

– ao limiar do terrorismo. Se a intervenção urbana extraía da arte uma linguagem e, de posse dela, desmontava imposturas da própria arte ou os embustes de entidades como cultura popular, os black blocs se apossam da

 

linguagem da intervenção urbana para promover um ritual cujo clímax é o linchamento estridente dos signos do poder. Enquanto a intervenção urbana pretendia ressignificar a arte, os black blocs querem extirpar da epiderme da cidade as inscrições que sinalizam o predomínio do poder. Por meio dessa violência que presumem reativa, esperam desnudar a violência simbólica inscrita nos signos contra os quais se levantam. Ao torná-los um alvo físico da ira das massas em passeata, imaginam evidenciar, neles, que aparentemente são inertes, passivos e inofensivos, a violência real e oculta de uma ordem que oprime, explora e humilha os seres humanos. Ora, isso nada mais é que um procedimento da ordem da linguagem que tem sim componentes estéticos.

O que ocorre – e isso é que choca os homens de cultura – é que, nos black blocs, a estética vira loucura, descosturada da razão e da consciência. Sendo loucura, não tem como ser estética. A linha divisória entre uma e outra é tênue, como todos sabemos, mas, no caso dos black blocs, ela é claramente transposta. Ainda que traga algo de estético em sua roupagem e em sua coreografia prêt-à-porter, a irrupção dos vandalismos urbanos brinca com fogo, literalmente. Sua tática produz mortes. Sua agressividade gestual, que se pretende performática, deságua em violência comum, banal, criminosa. Não nos esqueçamos de que foi um rojão acionado por black blocs, apontado na direção de um grupo de potenciais vítimas, que matou o cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, no dia ro de fevereiro de 2014, no centro do Rio.

Nisso reside o curto-circuito ontológico do emprego da palavra estética para qualificar o black bloc: não há possibilidade conceitual de existência de uma área conexa entre o campo da estética, próprio da arte, e atos dolosos cujo objetivo inclui causar ferimentos ou a morte de alguém. O bloqueio lógico que se põe aí é, inicialmente, de fundo ético: a civilização, gerada pelo instinto de preservar a vida (a própria e a dos semelhantes) e consumada como obra da razão (ainda que fugaz), não tem como conceber no homicídio um fio de ligação (ainda que sumário) com o engenho humano de elaborar aquilo a que a razão mira com encantamento. Nesse plano, a criação estética é incompatível com a irrupção fanática. Se fosse pleitear uma estética no assassinato, a civilização implodiria todo o seu legado racional e desmoronaria sobre si mesma: teria que ver sua própria implosão como o suprassumo da beleza. Dos desvãos da história, em que

maneirismos da arte se contrabandearam para a política e daí para a violência, a humanidade retém ainda úmido o odor do nazismo. Portanto, se os black blocs brincam com fogo, a crítica não pode brincar com qualquer ideia de estética da morte. Isso, de uma vez por todas, não existe.

Se existisse, teríamos de conceder que o atentado contra o World Trade Center em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001, fulgurou no céu como uma obra de arte, e não uma qualquer, mas uma obra de arte acima de todas as demais. Alguns pensadores críticos investiram nessa provocação, mesmo cientes de que ela não se sustenta[17]• O que os con­ funde, talvez, é que o predomínio total daquelas imagens, por horas a fio, sobre todos os meios audiovisuais do planeta inscreveram sua existência suprema não no plano da suposta realidade, e sim no plano da representação – e, de novo, não no plano de uma representação qualquer mas no da representação midiática posta pela instância da imagem ao vivo. O golpe terrorista desferido contra o WTC em 2001 alcançou assim uma existência como representação cuja potência era equivalente ou superior a todas as demais. O atentado transcorreu ao vivo, queimando minuto a minuto o tecido de que é feito o olhar planetário, reduzindo todos os espectadores que o acompanharam a mutilados de guerra, mutilados imaginários. Com isso, abriu a era do terrorismo como intervenção urbana globalitária e irrecorrível. Aquelas torres em chamas, em franco derretimento, aprisionaram os olhos do mundo porque sua narrativa instantânea fez de Manhattan um altar de sacrifício da própria civilização. Cada lance – com mil reprises imediatas, em câmera lenta – transcorria como numa montagem desbragadamente estética, que incorporava não alguns, mas virtualmente todos os ingredientes da indústria do entretenimento. Daí que não foram poucos os que cederam à tentação de ver naquilo uma forma estética ao mesmo tempo suprema e catastrófica. Aliás, aqueles que, em 2001, transitavam com destreza pelos instrumentos teóricos que lhes permitiam discernir, nas fissuras da ordem mundial, as enfermidades letais que acometiam a civilização que oprimia e cegava, dificilmente tiveram como evitar de vivenciar aquelas imagens como uma estrondosa

obra de arte apocalíptica, gerada pelo avesso de uma razão transfigurada em força bruta. Em violência tácita e massacrante.

Mas não. A despeito de sua inesquecível explosão de efeito estético, o ato terrorista de 11 de setembro não tinha nem teve nem tem nada, nada, nada de obra de arte. Afirmar que teve, ou que tem, implica incinerar o que a humanidade entendeu por arte – e o que a arte acalentou como ideal de civilização. Pelo prazer ocasional de um boutade, o preço é alto demais. Não há como visualizar um caráter de obra de arte no ato material que destrói a vida, a razão ou a civilização. Há que reconhecer, contu­ do, que as narrativas violentas, posto que são representação, lançam mão de elementos estéticos, que se atiram nos olhos das plateias como estilhaços nos quais haveria, aí sim, rescaldos ou a memória destroçada de uma arte que se despedaçou antes de existir. É um pouco assim que podemos considerar a hipótese, não de que os black blocs sejam uma estética mas de que mobilizam, em suas arruaças juvenis, fragmentos recombinados de estéticas características não da cultura em geral mas da indústria do entretenimento em particular.

O GOZO ESTÉTICO QUE DISPENSA A ARTE

Assim como as guerras mais odiosas servem de insumo a obras-primas da literatura, as confluências, sobreposições e compartilhamentos de linguagem entre política e espetáculo (oratória, drama e teatralização) vêm, no mínimo, da Grécia antiga. Não percamos tempo com isso. No século xx, com os meios de comunicação de massa, essas confluências, sobreposições e compartilhamentos de linguagem passaram por uma espécie de big bang, envolvendo todo, absolutamente todo o horizonte do visível. Fazer política e instaurar performances são esportes inseparáveis.

A precedência de signos estéticos sobre o discurso político, ainda que este não se ocupe da arte ou do belo, vai se afirmando como irrefutável. O filósofo francês Jacques Ranciere afirma que a estética, antes da política, propicia o caldo da identificação aos agrupamentos que vão às ruas protestar.

Há uma espécie de convergência entre formas artísticas performáticas e formas propriamente políticas. […J Atualmente, há uma partilha bas-

tante vasta das capacidades de experiência perceptiva, sensível, que passa por toda uma série de artes e cria uma espécie de tecido democrático capaz de ligar as pessoas que vão se reunir numa praça em Atenas ou Istambul. Efetivamente, isso passou pelo cinema, passou pela música, passou pela performance… […] Hoje em dia, toda manifestação assume o jeito de uma performance artística tanto pela atitude física dos manifestantes quanto pelas palavras e imagens que eles vão mostrar na rua. Há uma espécie de aparição de uma democracia estética que se transforma, nas ruas, em democracia política[18].

Professor emérito de estética e política na Universidade de Paris vm, na qual lecionou de 1969 a 2000, Ranciere dá um nome a esse caldo comum que é próprio da experiência estética. Ele o chama de partilha do sensível[19]. O pensador explica que a partilha do sensível é “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”[20].

Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não tem nada a ver com a “estetização da política” própria da “era das massas” de que fala Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo como obra de arte. […] Pode-se entendê-la num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault – como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo[21].

Por certo, a ideia de estética e a evocação estética entram aqui não como uma discussão acerca da arte e das formas da beleza, mas como aquilo que simplesmente se refere ao sensível, um sensível que, por caminhos não muito racionais, não conduzidos pelo raciocínio típico do cálculo estratégico, insemina a ação política. Nesse mesmo registro proposto por Ranciêre, enxergar fragmentos de uma ou mais de uma estética nas manifestações de junho de 2013, ou em tantas outras que a elas se assemelham, não implica subordiná-las a nada que diga respeito a obra de arte e, acima disso, a nada que se possa acomodar no velho e temível rótulo da estetização da política.

A estética vai além, muito além da arte, e Jaques Ranciêre não deixa dúvidas a respeito: “A estética não existe enquanto teoria da arte, mas sim enquanto uma forma de experiência, um modo de visibilidade e um regime de interpretação. A experiência estética vai muito além da esfera da arte”[22]• Fiquemos atentos a isso. Como fator que propicia a partilha do sensível a partir do qual o discurso político toma forma, a estética vai nos interessar de perto no fôlego final deste ensaio.

Já vimos que a estética, entendida como um campo autônomo que se prolonga a partir da filosofia, se autonomiza em relação ao conceito de arte e ao ideal de beleza. A estética pode desaguar na política – sem que isso signifique “estetizar a política”. Ela deságua na política nos termos de Jacques Ranciêre, a partir da ideia de “partilha do sensível”. Numa perspectiva semelhante, ela pode desaguar também nos circuitos do mercado e banhar até mesmo o capital. Nessa direção, Wolfgang Fritz Haug identifica a “estética da mercadoria”. Para ele, a estética incide na fabricação do fetiche da mercadoria. Em Crítica da estética da mercadoria, ele também argumenta que falar de estética não significa obrigatoriamente falar de arte.

Uso o conceito de estético de um modo que poderia confundir alguns leitores que o associam firmemente à arte. A princípio, uso-o no sentido cognitio sensitiva – tal como foi introduzido na linguagem erudita -, como conceito para designar o conhecimento sensível. Além disso, utilizo o conceito com um duplo sentido, tal como o assunto exige:

ora tendendo mais para o lado da sensualidade subjetiva, ora tendendo mais para o lado do objeto sensual.[…] De um lado, a “beleza”, isto é, a manifestação sensível que agrada aos sentidos; de outro, aquela beleza que se desenvolve a serviço da realização do valor de troca e que foi agregada à mercadoria[23].

Agora, o que está em pauta é o fetiche. Perfeitamente industrializado, ele consegue exponenciar o valor de uso para precipitar a realização do valor de troca da mercadoria. Para Haug, a fabricação da estética da mercadoria tem lugar num plano divorciado daquele em que se dá a fabricação do corpo da mercadoria, do objeto físico que a encerra: “O aspecto estético da mercadoria no sentido mais amplo – manifestação sensível e sentida de seu valor de uso – separa-se aqui do objeto”[24]

A imagem (estética) da mercadoria replica a ansiedade que move o consumo e este, por sua vez, decorre do desejo que leva o sujeito a deslizar na direção da imagem da mercadoria à qual sente que precisa fixar-se, formando uma unidade com ela. Aos olhos dele (e ao desejo dele), naquela imagem está inscrita a narrativa que o explica para si mesmo. “Ansiosa pelo dinheiro, a mercadoria é criada na produção capitalista à imagem da ansiedade do público consumidor. Essa imagem será divulgada mais tarde pela propaganda, separada da mercadoria.”[25]

Em outras palavras, o fetiche, mais do que embrulhar a mercadoria para presente, passa por uma expansão posta pela força da publicidade a partir da segunda metade do século xx. A mercadoria, dotada de sua estética industrializada, pode arvorar-se a tentar ocupar o lugar da arte, obstruindo qualquer rota de fuga. Haug sustenta que, com sua imagem imantada, a mercadoria reluz como se fosse um ser: representa um ser para o outro ser (vazio) que a deseja. Podemos dizer então que a mercadoria transubstanciada em imagem age como se tivesse o dom de revelar para o sujeito a verdade sobre ele, uma verdade que ele mesmo ignorava até então, uma verdade dita de um modo tal que ele mesmo seria incapaz de dizê-la. Nisso consiste a estética da mercadoria. Ela simula (emula) a arte, no instante mesmo em que inviabiliza a manifestação da arte.

Na ambiência de uma comunicação social com tais características, em que imagens visuais rebarbativas realizam – nem que seja parcialmente – funções próprias da linguagem, o nexo de sentido se aproxima mais do registro do sentir do que do pensar. Os processos de identificação (ou seja, os processos que levam um espectador a se identificar com uma imagem ou um personagem, numa interpelação que tem parte com o sentir e com a emoção) tendem a predominar sobre a argumentação (mais racional, por assim dizer). É nesse sentido que é correto afirmar que a ordem do imaginário (em que o gozo escópico induz à identificação prazerosa) avança sobre a ordem do simbólico (que se prende mais ao que ordena, que disciplina, que hierarquiza e que, no limite, é capaz de pensar em termos abstratos). Vale recuperar a expressão usada por Jacques Lacan nos anos 1960: valor de gozo[26]Ela foi invocada pela primeira vez pelo psicanalista francês no Seminário XIV, intitulado A lógica do fantasma. Diz ele que esse “problema é da ordem do valor, digo que tudo começa a se esclarecer, a dar seu nome ao princípio que o reforça, que o desdobra, em sua estrutura, o valor ao nível do inconsciente”[27]. Lacan prossegue:

há algo que toma o lugar do valor de troca, tanto que da sua falsa iden­ tificação ao valor de uso resulta a fundação do objeto mercadoria. […] Só que isso, na perspectiva da identificação, mostra um sujeito reduzido à sua função de intervalo, para que percebamos que se trata da equiparação de dois valores diferentes, valor de uso e, por que não, veremos isso sempre, valor de gozo. Sublinho valor de gozo, desempenhando ali o valor de troca[28].

Mais adiante, naquele mesmo seminário, Lacan afirmou que “o valor de gozo[…] estava no princípio da economia do inconsciente”[29]• Embora ele não tenha desenvolvido a constituição teórica dessa expressão e não

tenha descrito seus componentes intrínsecos, a ideia que ela encerra tem sido considerada por seus seguidores, como veremos a seguir, como uma das pedras centrais de seu pensamento.

Em outro trabalho, o próprio Lacan retoma o ponto, mas sem recorrer à mesma expressão. Ele fala ali em utilização de gozo. O sentido talvez não seja exatamente o mesmo, mas é muito próximo.

Falando “dessa coisa produzida”, ou seja, a mercadoria, Lacan comenta: “Ora, nessa coisa, rara ou não, mas em todo caso produzida, no final das contas, nessa riqueza, sendo ela correlativa a qualquer pobreza que seja, há no início outra coisa além de seu valor de uso – há sua utilização de gozo”[30].

A relação entre gozo e mercadoria, como se nota, não poderia ser mais central. A tal ponto que Jacques Alain Miller, considerado o principal sistematizador do legado lacaniano, observou: “conciliar o valor de verdade com o valor de gozo é o problema do ensino de Lacan”[31]

Efetivamente, a noção de valor de gozo vai se tornando indispensável para a descrição econômica da indústria do imaginário, posto que esse valor é fabricado fora do corpo da mercadoria, pois se trata não da coisa corpórea, mas da imagem da mercadoria – e é essa imagem, por sua vez, que proporciona o gozo da completude ao sujeito que busca na mercadoria o seu sentido de existência. Assim, a mercadoria, por meio de sua imagem fabricada, consegue se oferecer ao sujeito como se fosse o sentido que o complementa.

Na era do espetáculo, o capitalismo pode ser descrito como um modo de produção de incontáveis objetos que oferecem sentido ao sujeito sem sentido. Eis por que o capitalismo passou a fabricar imagens, muito mais do que coisas corpóreas. Hoje, “essa coisa produzida” é imagética, não mais física. É a imagem que orienta a usina produtiva tanto dos meios de produção quanto dos meios de comunicação. É também para a imagem que aflui o valor das mercadorias (ou elas são imagens fortes, sedutoras e obliterantes de todo movimento do olhar, ou não carregarão valor).

Nisso consiste a indústria do entretenimento ou, de modo um pouco menos vago, a superindústria do imaginário. Aí está o imperativo

da fama, aí estão as celebridades, aí está tudo o que se vê na instância da imagem ao vivo.

Para o sujeito que se inclina a ser participante dos protestos, reconhecer-se aí, grudar-se como um carrapato na superfície luminescente da imagem que ele imagina ser o seu sentido, identificar-se nessa imagem e fazer-se identificar por ela são, numa palavra, gozar. Ver um black bloc e reconhecê-lo é gozar no olhar, por identificação ou repulsa, tanto faz. Vestir-se do significante black bloc é gozar ainda mais no olhar do mundo, ao sabor do olhar do mundo, diante do olhar do mundo, em exibicionismo para gozo em retorno do olhar do mundo. Vestir-se de manifestante pacífico, a depender do gosto (inconsciente) do freguês, é gozar mais, igualmente[32]

Também por isso, as imagens, mais entregues às demandas inconscientes (do desejo), costumam dizer o oposto do enunciado das palavras escritas, mais atadas à pretensa consciência, quer dizer, a propósitos formulados por intenções morais postas como ideário no plano da consciência.

MANIFESTAR-SE É DESEJAR O OLHAR OUE TRABALHA

A fabricação dessa imagem que se oferece ao sujeito como portadora do sentido que a ele falta não se dá apenas no olhar. Ela se dá também pela força do olhar. Na era dominada pela imagem, olhar não é apenas uma janela receptiva pela qual o cérebro vê o mundo que lhe é exterior. Não é apenas o aparelho para ler, recepcionar ou contemplar signos ou imagens. Olhar é trabalhar ativamente. O olhar é uma força que fabrica signos. Olhar é trabalhar para que aquelas imagens sejam incorporadas à língua que dá os laços sociais da sociedade, uma sociedade em que todas as relações sociais são mediadas por imagens[33]• Olhar é trabalhar na exata medida em que falar uma palavra é trabalhar por inscrevê-la no código dos falantes. Quem fala ativa palavras na língua. Olhar é a mesma coisa.

Olhar não é apenas tomar conhecimento de um sinal emitido por uma imagem, mas ativar essa imagem no repertório (linguístico) das imagens.

As evidências disso se fortalecem quando levamos em conta que a imagem, para ser capaz de significação, deve ser costurada no repositório comum dos significantes ativos do repertório visual disponível à sociedade. A linha e a agulha que promovem essa costura na colcha de retalhos do imaginário é nada menos que o olhar. Acrescentemos que, mais do que um adereço ou um acessório da comunicação social, a imagem é fabricada como mercadoria. Impossível a ela não ser mercadoria: se toda mercadoria precisa existir como imagem, toda imagem só pode circular desde que revestida da condição de mercadoria. Ao consumir com os olhos a imagem que o explica, imaginariamente, o sujeito a consome como mercadoria e, nesse ato (que também é ato de linguagem), recarrega o valor da imagem que olha, ativando nela mais potência de significação.

Adorno e Horkheimer escreveram que o fetiche preside a circulação e o sistema de atribuição de valor à obra de arte[34]• Agora se faz necessário escrever que, assim como o capitalismo se especializou em fabricar não mais coisas úteis, valor de uso para dar atendimento às necessidades humanas (nas palavras de Marx), mas signos desejáveis para interpelar e anestesiar o desejo, a mercadoria aprendeu a circular não mais como coisa corpórea, mas como imagem portadora de beleza (estética) e de sentido (ético) para o destino do sujeito sem sentido. Eis por que, enfim, toda mercadoria, emulada em imagem, circula como se fosse arte.

Toda mercadoria significa exatamente isto: toda mercadoria. Dizer que toda mercadoria, em sua forma de imagem, circula como se fosse arte significa afirmar que essa determinante vale também para as mercadorias aparentemente menos “charmosas”, como os bens de produção, como os guindastes, um giz ao pé da lousa, e para as commodities mais insossas, como grãos de soja, uma vez que todas essas mercadorias, ainda que indiretamente, abastecem ou vertebram a mercadoria que, lá na ponta, há de se oferecer como arte, seja na peça publicitária de um prédio

de apartamentos, na propaganda de uma lata de óleo que é consumida pelas celebridades da TV ou na campanha promocional de uma faculdade particular. Essas coisas insossas são acessórias do processo que fabrica a mercadoria como se fosse arte.

Pela mesma lógica, qualquer notícia se reveste – não tem como deixar de se revestir – de uma roupagem estética (de uma estética industrializada, sem dúvida, mas, ainda assim, uma estética), o que foi caudalosamente verificável nas notícias sobre as manifestações de junho de 2013. Assim como a imagem foi alçada à condição de âncora e centro da mercadoria, as notícias, principalmente na televisão, foram alçadas à condição de imagem (ou de construção imaginária), passando a circular como mercadorias dotadas de fetiche (a aura sintética). Olhemos o mundo olhável (outro não há). A fabricação da imagem não é mais uma etapa suplementar a turbinar a circulação da mercadoria como coisa corpórea, esse objeto físico meio pré-histórico, e a precipitar seu consumo; a fabricação da imagem é nada menos que o núcleo principal da mercadoria: a coisa corpórea é agora periférica, pois é a imagem da mercadoria que move o corpo da mercadoria, no caso das que ainda dispõem de um corpo físico. Outro dado essencial para a compreensão do processo pelo qual a imagem (da mercadoria e como mercadoria) é fabricada está na relação de exploração que se estabelece. Uma vez que o olhar é um equivalente do trabalho em outro plano (no plano da imagem), o capital não tem como se esquivar de comprar o olhar para fabricar a imagem. Aí, o capital compra o olhar medido em unidades de tempo, por uma métrica análoga àquela que lhe permite comprar o trabalho fungível. Atenção: o olhar não é comprado para que os consumidores fiquem sabendo de um lançamento ou de uma oferta irresistível na rede de supermercados. É o oposto. O olhar é comprado para fabricar a imagem capaz de, depois, realizar essa função comunicativa. É como se, para expandir sua língua oficial, um soberano pudesse comprar falantes em outros países para que falassem o seu idioma, propagando-o. O olhar é comprado para que o signo se incorpore à linguagem visual, não para que o suposto consumidor potencial seja informado da existência de um bem de consumo ou outro (esse efeito informativo ocorrerá, é claro, mas como um subproduto da função principal da compra do olhar). Que a indústria publicitária não tenha consciência disso é absolutamente irrelevante.

Durante a cobertura intensa e intensiva das manifestações de junho, a exploração do olhar social como força constitutiva e força produtiva (força de fabricação) da significação da imagem permitiu o estabelecimento de signos como o de manifestantes pacificas em oposição a vândalos. Mas isso também resultou na construção de auras românticas associadas a certos figurinos, principalmente o dos black blocs, e catapultou, em reação imediata, a adesão de multidões às passeatas ao fornecer a elas, na linguagem essencial da sociedade do espetáculo, os objetos que respondiam a cada sujeito sobre a razão de sua existência. Desse modo, num primeiro momento, vestir a fantasia (fetiche) de black bloc ou de manifestante pacifico proporcionou aos sujeitos um gozo (imaginário e estético) transitório em relação ao seu próprio sentido como sujeito. No caso dos black blocs, o gozo da violência tinha cargas mais explosivas, sem trocadilho, e dava a esse gozo imaginário um acesso perverso a um simulacro de gozo real. Depois essa relação finalmente se inverteu e o signo do black bloc operou mais como fator de repulsa do que de atração, mas, nas altas temperaturas daquele mês de junho, houve um pouco de estética da mercadoria (no dizer de Haug) na aura fabricada (involuntariamente) dos black blocs, assim como houve um pouco da estética típica da partilha do sensível (como prefere Ranciêre) que desaguou como aguaceiro na arena política. Isso tudo para reiterar que o manifestante do Rio de Janeiro que confidenciou ao telefone que o enfrentamento físico com a Tropa de Choque “foi muito lindo, amor” estava dizendo a verdade.

  1. Este texto é uma versão reduzida de um estudo, preparada para a conferência que resultou neste livro. A íntegra deste estudo será oportunamente publicada em livro.
  2. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.
  3. Alan Gripp, “Um drinque no inferno”, Folha de S.Paulo, São Paulo: 24jul. 2014, p. A2.
  4. Ibidem.
  5. A lenda do Zorro se inspira na biografia de um homem real, William Lamport, que nasceu em 1615 na Irlanda e morreu em 1659 no México. Era aventureiro, bom espadachim e poliglota. Segundo seus biógrafos, ele se envolveu com uma espanhola de família rica e teve que ir para o México como espião infiltrado entre os índios, mas, lá, aderiu à causa dos nativos e lutou ao lado deles. Foi quando se tornou El Zorro (que, em espanhol, significa raposa, homem astuto). Fazia justiça pelas próprias mãos e zombava dos soldados e da Igreja. Foi preso pela Inquisição duas vezes, sendo morto em 1659 na fogueira. Conta-se que, antes de ser queimado, teria se enforcado com a corda da fogueira. Em 1872, o general do Exército mexicano Vicente Riva Palacio (1832-1896) escreveu o livro Memorias de un impostor: Don Guillén de Lampart, rey de México (Memórias de um impostor: Dom Guillén de Lampart, rei do México), em que conta as aventuras do forasteiro europeu nas terras mexicanas. No romance, baseado em vasto material biográfico encontrado nos arquivos da Inquisição, Lamport ganhou uma alcunha bem ao gosto local: Diego de La Vega. O romance não ficou famoso, mas a obra do general serviu para a construção do herói mascarado. Em 1919, o Zorro surgiu em uma série no semanário americano All-Story Weekly. O nome da série era The Curse of Capistrano (A maldição de Capistrano), escrita pelo jornalista e romancista americano Johnston McCulley. Ver, a respeito, Cerard Ronan, The Irish Zorro: The Extraordinary Adventures of William Lamport (1615-1659) (O Zorro irlandês: as aventu­ ras extraordinárias de William Lamport (1615-1659), Dublin: Mount Eagle Publications, 2004; e Fabio Troncarelli, La spada e la croce: Guillén Lombarda e l’inquisizione in Messico (A espada e a cruz: Cuillén Lombardo e a Inquisição no México), Roma: Edizioni Salerno, 1999.
  6. O inglês Cuy Fawkes (1570-1606), também conhecido como Cuido Fawkes, é outra referência notória dos anarquistas nas manifestações de rua e, indiretamente, também dos black blocs. Ele se converteu ao catolicismo aos 16 anos e, tendo se tornado um soldado inglês, especializou-se em explosivos. Em 1605, teve participação na Conspiração da Pólvora (Gunpowder Plot), um complô que pretendia assassinar o rei Jaime I da Inglaterra, que era protestante, e os membros do Parlamento. O plano era desfechar o ataque durante uma sessão da casa e o objetivo era promover um levante católico. Fawkes era o res­ ponsável por guardar os 36 barris de pólvora que seriam utilizados para explodiI o Parlamento. Antes do ataque, porém, Fawkes foi preso, torturado e condenado à morte. Sua captura é lembrada ainda hoje, no dia 5 de novembro, na Noite das Fogueiras (Bon.fire Night). Durante seu interrogatório, Fawkes resistiu e se identificou como John Johnson. Sua fibra despertou admiração no rei, que elogiou sua “resolução romana”. A história em quadrinhos V de Vingança, lançada em 1982, com roteiro de Alan Moore e desenhos de David Lloyd, possui influências da Conspiração da Pólvora. Um personagem que utiliza o codinome V e usa uma máscara inspiiada no rosto de Cuy Fawkes tenta promover uma revo­ lução na Inglaterra fictícia (década de 1990) onde é ambientada a história. O rosto de Cuido Fawkes é o que aparece nas máscaras do Anonymous, que virou uma tebre nas manitestações de rua no mundo todo a partir de 2003.
  7. Jürgen Habermas, Teoria de la acción comunicativa (Teoria da ação comunicativa), vol. r, Madrid: Tau- rus, 1987, p. 104.
  8. Ibidem, vol. 2, p. 192.
  9. Ibidem.
  10. Idem, Between Facts and Norms (Entre fatos e normas), Cambridge: MIT Press, 1996, p. 359.
  11. Ibidem, p. 360.
  12. Ibidem, p. 360.
  13. Ibidem, p. 373.
  14. Yochai Benkler, The Wealth of Networks, New Heaven: Yale University Press, 2006, p. II.
  15. A palavra Ninja, um acrônimo de Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, deu nome a um grupo de ativistas que, munidos de celulares e alguns outros equipamentos instalados em carrinhos de supermercados, cobriam as manifestações in loco. Em julho de 2013, várias das reportagens dos ninjas, como passaram a ser chamados, ganharam espaço no horário nobre, em extensos minutos do Jornal Nacional. Eles registravam cenas que eram simplesmente inacessíveis às câmeras dos veículos convencionais, muitas vezes hostilizados pelos manifestantes.
  16. Declaração de Bruno Torturra no debate “Longa jornada junho adentro”, promovido, editado e publicado com exclusividade pelo caderno semanal Eu&, que circula nas edições de sextas-feiras do jornal Valor Econômico. Esse debate em particular contou com a participação de Bruno Torturra, José Álvaro Moisés, Jairo Nicolau e Eugênio Bucci, tendo sido conduzido e editado pelos jornalistas Bruno Yutaka Saito, Maria Cristina Fernandes, Robinson Borges e Viana de Oliveira.
  17. Em Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas (São Paulo: Boitempo, 2003, p. 26), Slavoj Zizek defende a polêmica ideia de Karl-Heinz Stockhausen, para quem os aviões que atingiram o World Trade Center teriam sido “a última obra de arte”, pois os terroristas teriam planejado o ataque para causar um “efeito espetacular”.
  18. Entrevista concedida a Patrícia Lavelle e publicada no caderno Eu& do jornal Valor Econômico, em 7 de novembro de 2014. Disponível em: <www.valor.com.br / cultura/ 3770152/ um-filosofo-do-presente #ixzz3]RebNC6N>, acesso em: jun. 2015.
  19. Jacques Ranciere, O desentendimento: política e.filosofia, São Paulo: Editora 34, 1996.
  20. Idem, A partilha do sensível: estética e política, São Paulo: Editora 34, 2009, p. 15.
  21. Ibidem, pp. 16-7.
  22. Idem, “O que significa ‘estética”‘. Disponível em: <www.proymago.pt>, acesso em: out. 2014.
  23. Wolfgang Fritz Haug, Crítica da estética da mercadoria, São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 16.
  24. Ibidem, p. 26.
  25. Ibidem, p. 35.
  26. Ver Eugênio Bucci e Rafael Duarte Oliveira Venancio, “The Jouissance-Value: A Concept for Criticai of Imaginary Industry” (O valor de gozo: um conceito para a crítica da indústria do imaginário), Matrizes (revista on-line), vol. 8, n. 1, 2014, p. 141. Disponível em: <www.revistas.usp.br/matrizes/article/ view / 82935>, acesso em: jun. 2015.
  27. Jacques Lacan, Seminário XIV-A lógica do fantasma, 1966-1967, sessão de 12 de abril de 1967, mimeo.
  28. Ibidem.
  29. Ibidem, sessão de 19 de abril de 1967.
  30. Idem, O seminário, Livro 7: A ética da psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 279.
  31. Jacques Alain Miller, Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan, Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52.
  32. Apenas como curiosidade um tanto mórbida, vale destacar que temos aqui uma banalização atroz do método de interpretação preconizado por Constantin Stanislavski, para quem o simples ato de vestir o personagem levaria o ator a experimentar, de fora para dentro, o caráter do personagem. Ao vestir­se de black bloc, o sujeito se transfigurava no personagem genérico – e vazio, posto que tudo nele é a aparência que ele tem e exala – que desejaria ser.
  33. Guy Debord, op. cit., p. 14.
  34. “O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte, torna-se o seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam.” Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio deJaneiro: Zahar, 1985, p. 131.

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