Onze notas sobre o novo espírito utópico
por Adauto Novaes
Resumo
A relação entre mutações e utopia remete, de imediato, às perspectivas criadas pela revolução tecnocientífica e biotecnológica ou, mais precisamente, ao futuro pensado pelo que se convencionou chamar de advento do pós-humanismo, cujo ano limite seria 2030. Nele, a inteligência artificial triunfaria sobre a inteligência biológica, milhões de nanorobôs circulariam por todo o corpo humano, no sangue, nos órgãos, no cérebro, para corrigir erros do DNA; a vida poderia afinal se prolongar ao infinito. Com a morte da morte, o homem seria, enfim, moderno, escreve Jean-Michel Besnier no livro “Demain les posthumains”, em que se lê ainda que “nada seria mais importante aos nossos olhos do que a autonomia em relação aos outros, à natureza, às tradições e aos deuses”. Enfim, a criação, pelo homem, de um novo homem passaria a habitar o admirável mundo novo. O desenvolvimento tecnológico dispensaria o homem de nascer, sofrer e morrer. Como prometem os centros de pesquisas conhecidos pela sigla NBIC – convergência das nanociências, das biotecnologias, das ciências da informática e das ciências cognitivas – , seria o “fim do nascimento, graças às perspectivas abertas pela clonagem e ectogênese; fim da doença graças às promessas das biotecnologias e da nanomedicina; fim da morte não desejada, graças às técnicas ditas de uploading, isto é, de telecarga da consciência sobre materiais inalterados dos quais os chips são a prefiguração”.
Para os humanistas, a primeira e mais evidente das consequências de tais experiências consistiria no apagamento da memória – mesmo que ela não funcione como um depósito de lembranças, mas como “a vida na primeira pessoa, mobilizada hic et nunc nas relações que se tecem com outrem. Ela não está toda na mente. Ela é uma relação contextualizada com o mundo que se constrói em função da vida no presente” – nota o filósofo Francis Wolf.
Certa é a mudança radical do homem pela técnica. Günter Anders refere-se ao desaparecimento do mundo humano da seguinte maneira: no futuro próximo, a humanidade não passaria a outro período da história, mas, sim, a um período de “ahistoricidade renovada”. Diferente das análises feitas por Walter Benjamin a partir da imagem simbólica do anjo de Klee que, empurrado pela tempestade da história, volta o rosto para o passado, a humanidade atual não olha para o passado e muito menos para o futuro. “Durante a passagem da tempestade, seus olhos permanecem fechados, ou, no melhor dos casos, fixados no instante presente”. Ao lado dos cientistas transumanistas, concentrados no Vale do Silício, que sonham em prolongar a vida, outros “profetas pragmáticos” imaginam uma sociedade utópica sem Estado. Ela que aliaria “pesquisa tecnológica e capitalismo dinâmico”. Utopia neo-liberal?
Mutações: novo espírito utópico pretende, pois, percorrer os dois mundos da utopia: o do humanismo e o dos pós-humanos.
OBSERVAÇÃO PRELIMINAR
Um livro de ensaios que relaciona mutações e utopia nos remete, de imediato, às perspectivas criadas pelas revoluções tecnocientíficas e biotecnológicas ou, mais precisamente, ao futuro pensado pelo que se convencionou chamar de advento do pós-humanismo. Para muitos dos pós-humanistas, 2030 será a data da grande virada: triunfo da inteligência artificial superior à inteligência biológica, milhões de nanorrobôs circularão por todo o corpo humano, no sangue, nos órgãos, no cérebro, para corrigir “erros” do DNA, e a vida poderá ser prolongada ao infinito, quando então será anunciada a morte da morte. O homem será, enfim, moderno, escreve Jean-Michel Besnier no livro Demain les posthumains: “nada seria mais importante aos nossos olhos do que a autonomia em relação aos outros, à natureza, às tradições e aos deuses”. Enfim, a criação pelo homem de um novo homem que passaria a habitar o admirável mundo novo! O desenvolvimento tecnológico dispensaria o homem de nascer, sofrer, morrer e até mesmo do sexo para reprodução como prometem os centros de pesquisas conhecidos pela sigla NBIC – convergência das nanociências, das biotecnologias, das ciências da informática e das ciências cognitivas. Seria o “fim do nascimento, graças às perspectivas abertas pela clonagem e ectogênese; fim da doença, graças às promessas das biotecnologias e da nanomedicina; fim da morte não desejada, graças às técnicas ditas de uploading, isto é, ao telecarregamento da consciência sobre materiais inalterados dos quais os chips são a prefiguração”. Pensadores humanistas respondem a tais utopias científicas ao dizer que a primeira e a mais evidente das consequências de tais experiências consistiria no apagamento da memória. Isso dá a entender que o espírito, diz o filósofo Francis Wolff, é uma caixa na qual se podem pôr e da qual se podem tirar representações à nossa vontade: “Ora, a nossa memória não é uma memória de computador. Ela vive na primeira pessoa, ela é mobilizada hic et nunc, nas relações que teço com outrem. Ela não está em mim. É uma relação contextualizada com o mundo que construo em função do que vivo no presente”. Ao lado dos cientistas trans-humanistas, concentrados no Vale do Silício, que sonham em prolongar a vida, outros “profetas pragmáticos” imaginam uma sociedade utópica sem Estado que pretende aliar pesquisa tecnológica e capitalismo dinâmico. Utopia neoliberal? Assim pensa um dos seus idealizadores, o empresário Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal, que se apresenta como discípulo do filósofo Leo Strauss. Recentemente Thiel doou mais de 1 milhão de dólares para projetos de pesquisa trans-humanistas.
Este é o desafio do ciclo de conferências O novo espírito utópico: percorrer os dois mundos da utopia, o mundo do humanismo e o mundo dos pós-humanos.
NOSTALGIAS DO FUTURO – UTOPIA DA FALA
Utopia, o livro célebre de Thomas Morus, faz quinhentos anos. Durante meio milênio, esta bela palavra, que quer dizer não lugar mas também se pode traduzir por eutopia – lugar da felicidade -, fez um longo percurso cheio de enigmas. Promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos, a utopia tem um destino comum: a “severa e lúcida crítica da realidade”. O fundamento da utopia é, pois, a crítica do presente. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico, como também de triste silêncio em torno do pensamento sobre a utopia. É como nos adverte Miguel Abensour no ensaio “O novo espírito utópico”: um dos lugares-comuns da nova opinião consiste em dizer que quem pensa a democracia deve fazer o luto da utopia; inversamente, quem insiste em pensar a utopia afasta-se da democracia. Nada mais danoso para a política e para o pensamento: “Esta hipotética contradição entre o pensamento do político e o pensamento da utopia faz pouco-caso de toda uma tradição da filosofia política moderna”, escreve Abensour. O ódio da utopia alimenta-se do ódio à emancipação. O pensamento conservador vai além e tenta justificar esse ódio de maneira sinuosa, desqualificando a utopia com mais um lugarcomum: “a política é pensamento; a utopia é ilusão”. Pensando assim, utopia não pode, portanto, pertencer ao mundo do pensamento e muito menos ao mundo da política. Identificando-a, pois, à coisa que não se pensa, a utopia é jogada para o campo do teológico, do não existir. Eis uma das razões que fazem com que a utopia se torne uma das noções mais “esquecidas” hoje. Deliberadamente esquecida. Além da tendência a ligar a utopia à fé supersticiosa e ao fanatismo religioso e político, uma das causas essenciais da recusa da utopia está, certamente, tanto no modelo científico desenvolvido e difundido por certas ideologias – entre elas a de uma sociedade absolutamente pacificada, mito da sociedade reconciliada (o que não representa necessariamente o pensamento de Marx como querem alguns) – como no domínio da visão científica e técnica do mundo hoje. A tecnociência dispensa o pensamento e a imaginação.
Mas o espírito utópico contemporâneo enfrenta um desafio maior: se é próprio da utopia pensar o social em toda a sua amplitude, como imaginá-la em um mundo no qual predomina o individualismo exacerbado, mundo descrito por Musil como o egoísmo organizado, ou, como diz Engels com maior propriedade no texto sobre a utopia de Fourier no Anti-Dühring, mundo do “espírito de butique universalmente expandido”? Como pensar, enfim, a utopia quando vemos o predomínio de nova forma de determinismo expresso no controle e no autocontrole através dos novos meios eletrônicos que impedem o indivíduo de desenvolver sua singularidade?
No mundo dominado pela racionalidade técnica, pensar é também utopia quando se sabe que o espírito (ou inteligência) tende a tornar-se coisa supérflua. A utopia consiste no trabalho do espírito sobre si mesmo que se expressa na ação pensada. Através do movimento incessante, o espírito trabalha utopicamente a própria negação descobrindo os segredos do pensamento e da natureza através da promessa do novo e do julgamento. É o que também diz o utópico Campanella, que relaciona o trabalho do espírito às palavras (ou conceitos): “O mundo é o livro em que a inteligência eterna escreve os próprios conceitos”. Movimento que se faz, portanto, nos objetos, na política, no humano, muitas vezes de forma flutuante como podemos ler na bela imagem de Kojeve: “O universo do Discurso (o Mundo das Ideias) é o arco-íris permanente que se forma sobre uma catarata”. Se não houvesse espera, se se seguisse apenas a ordem circular, determinista e mecânica, o espírito não seria mais espírito; deixaria de ser potência de transformação.
Pensamos, com Abensour, que uma das exigências hoje para retomar, de maneira consequente, a ideia de utopia consiste em abolir de um lado a resignação do seu fim e, de outro lado, a sua valorização acrítica (no caso das experiências revolucionárias do século XX). Para isso, é preciso “democratizar a utopia e utopizar a democracia”. A vontade cada vez mais renovada de atribuir à emancipação um novo rosto dá-se, segundo Abensour, da seguinte maneira, seguindo a trilha aberta por Adorno e Benjamin: “no lugar de ir em direção ao que deve ser, importa trabalhar a negatividade – a negação determinada daquilo que é”. É certo que a fi losofia crítica tem aqui, como alvo, “o processo paradoxal através do qual a emancipação moderna tornou-se o seu contrário, dando nascimento a novas formas de opressão e barbárie”, além da mercantilização do mundo. Estas são algumas das condições necessárias para a construção dos novos laços entre utopia e política. Mas, para que isso seja possível, devemos responder à questão: como pensar a utopia de outra maneira?
A PALAVRA E A INVENÇÃO DE MUNDOS
Fala-se hoje que chegamos à era do fim das utopias e que a política libertou-se, enfim, dos sonhos de uma sociedade que jamais poderia existir. É como se as utopias se reduzissem a esta ideia. Ao abolir a utopia, o pensamento dominante expõe, involuntariamente, um dos grandes problemas do nosso tempo: ele é incapaz de lidar com ideias abstratas que ajudam a ordenar a vida e a sociedade. Os fatos e a atualidade nos dominam. Ora, como nos diz o poeta e ensaísta Paul Valéry, a barbárie é a era do fato, e é necessário, pois, que a era da ordem seja o império das ficções: “não existe potência capaz de fundar a ordem apenas através da violência de corpos contra corpos. É preciso que haja forças fictícias. A ordem exige, pois, a ação de presença de coisas ausentes”. Ou ainda, como Valéry escreveu em outro ensaio, as invenções fabulosas são o princípio das coisas. E ele interroga: “Que seríamos nós sem a ajuda daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos, sem o que fazer, feneceriam se as fábulas, as desatenções, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não povoassem de seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais”. Esta é, certamente, uma ideia de utopia em tempos de materialismo vulgar. Assim, o espírito “ousa especular sem limites com sistemas infinitamente complexos”. Entendemos estas abstrações com seus seres e imagens sem objetos, sem lugar nem tempo, como indispensáveis para a criação de referências simbólicas que asseguram a estabilidade de qualquer sociedade. São elas que fundam também o aspecto mental da vida coletiva, capaz de construir um pensamento comum e um saber partilhado. Contrários, portanto, à era dos fatos. O simbólico, que ganha expressão na palavra, cria novas relações entre sujeitos e estabelece, com eles, novas dimensões da vida. Projeta na linguagem as errâncias do espírito. É, pois, com a fala que criamos o mundo, como nos lembra Jacques Lacan em conferência diante de padres em torno do tema de São João da Cruz: Le mythe individuel du névrosé, ou Poésie et vérité dans la nevrose:
Voltemos, pois, à noção do mundo a partir da fala. Antes da fala, não havia nada, era o nada, o caos, e o espírito de Deus talvez pairando sobre as águas – mas não estamos em comunicação com Ele! A partir da fala, algo surge no mundo que é novo, e que introduz poderosas transformações[…]. Quando o homem se esquece de que é portador da fala, deixa de falar. E é exatamente o que acontece: a maioria das pessoas não fala mais; elas repetem, o que não quer dizer, de nenhuma maneira, a mesma coisa. Quando o homem não fala, ele é falado.
Muito além do psiquismo individual, Lacan nos lança em audaciosas extrapolações: o que conta não é apenas a finalidade da fala, mas o conteúdo do que se fala. Parafraseando a ideia de “Deus pairando sobre as águas”, podemos dizer com Nietzsche que os sonhos iniciam os homens no divino (ou na utopia), o “esplêndido nascimento dos deuses do fundo do sonho”. A diferença hoje é que o homem não sonha, nem mesmo paira nem sobre o caos. Vive no caos. Pior, constrói o caos na repetição de palavras sem pensamento. Eis, pois, o desafio de uma nova forma de utopia: a construção de outro mundo através da recuperação da fala. Essa nova utopia começa com um discurso sempre original.
Mas, no mundo da precisão técnica e da fala repetida e imitada, autopia tende a ter menos lugar na mesma medida em que se enfraquecem as coisas vagas, as ideias e o simbólico. Para sair da barbárie – era dos fatos-, voltemos, pois, às utopias. Mas ao se falar de império das ficções, como diz Valéry, somos levados a reconhecer que a utopia tem pelo menos dois caminhos antagônicos: o reino da liberdade, o lugar da felicidade, e as ficções que tentam expressar o domínio futuro absoluto da tecnociência e da biotecnologia – aquilo que Norbert Elias chama de utopia pesadelo -, tão bem representado por filmes como Blade Runner, Minority report – a nova lei, Eu, robô, entre outros. Mas fica a pergunta: podemos chamar de utópico um mundo feito de afasia, como diz Henri Michaux no seu livro Passages? “O robô melancólico, que sabe que é robô, não tem mais lamentos nem gritos. Não ousa mais tê-los, sabendo agora que é robô. Por que gritaria? Por que faria histórias?” É certo que há uma mudança radical do homem pela técnica. O filósofo Günter Anders fala em desaparecimento do mundo humano da seguinte maneira: a humanidade não passa a outro período da história, mas, sim, a um período de a-historicidade renovada. Anders define assim nosso tempo: diferentemente das análises feitas por Walter Benjamin a partir da imagem simbólica do anjo de Klee, que, empurrado pela tempestade da história, volta o rosto para o passado, a humanidade atual não olha para o passado e muito menos para o futuro. “Durante a passagem da tempestade”, diz ele, “seus olhos permanecem fechados, ou, no melhor dos casos, fixados no instante presente”. Eis uma modalidade de pós-humano: o tempo sem passado nem futuro.
A UTOPIA NO TEMPO
A ausência da ideia de duração nos leva a propor a discussão sobre um dos grandes problemas da utopia: o tempo. Tendemos a dizer que a própria ideia de utopia dos tempos futuros, defendida por Adorno e Ernst Bloch, talvez já esteja superada pelos acontecimentos tecnocientíficos. Em entrevista radiofônica que data de 1964, eles falam da metamoifose da utopia: “No começo, em Thomas Morus, a utopia era a determinação de um lugar situado em uma ilha dos Mares do Sul. Depois, essa determinação se transformou: saiu do espaço para entrar no tempo”. Será assim hoje? Teóricos contemporâneos insistem em dizer, com razão, que assistimos hoje não mais à passagem da utopia à ucronia. Ou melhor, não mais a passagem do não lugar ao não tempo (utopia do tempo futuro), mas ausência de espaço e tempo. No ensaio “Biantes, bioides e borgues”, publicado no livro O homem-máquina, Luiz Alberto Oliveira descreve as três grandes promessas do século XXI que redesenham a forma humana, a saber:
A robótica (a produção de sistemas capazes de comportamento autô nomo), a biotecnologia (a manipulação dos componentes dos seres vi vos, incluindo o código genético) e a nanotecnologia (a fabricação de dispositivos moleculares) têm como fundamento comum a crescente capacidade de manipular objetos infinitesimais; contudo, seus campos de aplicação incluem, decididamente, desde a partida, nossos próprios corpos e espíritos. Estamos a caminho de redesenhar a forma humana.
O mundo dessa nova forma humana seria o virtual. Não estamos hoje longe desse mundo. Em um comentário ao ensaio de Luiz Alberto Oliveira, a filósofa Marilena Chaui nota que a revolução da informática e da cibernética modificou o conceito de virtual. O virtual já é real e já existe:
Não se opõe ao real, e sim ao atual. Agora, entende-se por virtual algo real e existente que aguarda atualização; é aquilo que pode ser infini tamente atualizado. O virtual é o que não pode ser determinado por coordenadas espaciais e temporais, pois ele existe sem estar presente num espaço e num tempo determinados – ou seja, para ele, a atopia e acronia são seu modo próprio de existência. No mundo virtual, a atua lização é o modo de relação dos indivíduos humanos com sistemas in formacionais. A virtualização dispensa o que sempre foi o núcleo da ex periência humana: a presença. Em seu lugar operam redes de comuni cação atópicas e acrônicas […]. A noção de espaço universal desprovido de lugares e estados de coisas significa que a noção de mundo perdeu sentido, seja na acepção fenomenológica, seja na de Wittgenstein.
Isto é, “espaço” universal sem espaço e sem tempo. Mais: a atopia e a acronia do mundo virtual “significam, ao fim e ao cabo, um processo ilimitado de desincorporação dos seres humanos” e um processo contínuo de sua reformatação. Enquanto a cultura do ciberespaço propõe a desmaterialização do homem, conclui Marilena, a tecnociência toma a direção oposta, “pois propõe a pura materialidade do espírito, ou seja, a indistinção entre o sistema nervoso e a consciência. Ao mesmo tempo, no entanto, essas duas atitudes possuem um ponto de encontro, qual seja: a imagem do humano como mescla de carbono e silício”. A pergunta é: como fica o trabalho da percepção em um mundo que abole as maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro, ou o espaço e o tempo?
UTOPIA, TEMPO E DESEJO
Ora, o que se quer dizer com tempo quando se fala de utopia? Para Hegel e Marx não se trata de tempo biológico e sim histórico, tempo que tem como centro o futuro. Desejo e promessa de outro mundo, isto é, movimento que se engendra no futuro em direção ao presente passando pelo passado. Esta é a estrutura específica do tempo propriamente humano, isto é, histórico. Este movimento engendrado pelo futuro é o movimento que nasce do desejo, como escreve Kojeve:
Do desejo especificamente humano, isto é, do desejo criador, isto é, do desejo que reporta a uma entidade que não existe no mundo natural real e que não existiu nele […]. Ora, sabemos que o desejo só pode recair sobre uma entidade absolutamente não existente sob a condição de cair sobre outro desejo visto como desejo. Com efeito, o desejo é a presença de uma ausência.
Mas, como observa ainda Kojeve, se o desejo é presença de uma au sência, ele não é uma realidade empírica e, portanto, não existe de maneira positiva no espaço. Se, de outro lado, se aceita o real presente, espacial, nada é desejado. Portanto, conclui, para se realizar, o desejo deve reportar-se a uma realidade mas não de maneira positiva; deve reportar-se a ela negativamente. Alain diria a mesma coisa em estilo poético: o gosto do devaneio jamais se separa do amor pela natureza. A utopia sem ordem exterior é frágil e inconsistente. Mas este amor pela natureza tem uma condição, adverte Kojeve:
O desejo é, pois, necessariamente o desejo de negar o dado real ou pre sente. E a realidade do desejo vem da negação da realidade dada. Ora, o real negado – isto é, o real que deixa de existir é o real passado, ou o passado real. O desejo determinado pelo futuro só aparece no presente como realidade (isto é, como desejo satisfeito) na condição de ter nega do o real, isto é, o passado.
Vivemos sempre, portanto, a imagem do vir a ser.
Gaston Bachelard – que não fala diretamente de utopia, mas que se aproxima dela nos devaneios e na busca da felicidade – vê o destino natural do homem mais como um ser de desejos do que um ser de necessidades. Tomemos como exemplo outro filósofo do desejo, Charles Fourier (este, sim, utópico declarado), que afirma que existe uma incontável diversidade de desejos (sexuais, por exemplo) e imagina todas as situações possíveis no novo mundo amoroso. Para ele, observa o filósofo Thierry Paquot, “os homens e as mulheres estão condenados a reprimir os seus mais secretos desejos e a se satisfazer com uma normalização imposta”. Nesta constelação, poderíamos citar ainda os libertinos do século XVIII – tema do ciclo e do livro Libertinos libertários: Mirabeau (Le libertin de qualité), La Mettrie (L’Art de jouir), Réstif de La Bretonne (L’Anti-]ustine), Marquês de Sade e outros. A utopia passa, portanto, pela crítica da moral. Mas não fiquemos apenas no desejo amoroso. Há um desejo utópico maior, o desejo de liberdade.
PASSIVIDADE
Normatização da vida e passividade são dois fenômenos antiutópicos. Maine de Biran, pensador do século XVIII, exerceu grande influência sobre a fenomenologia europeia do século XX, mesmo sem ser filósofo de profissão. Ele nos ajuda a entender um dos fenômenos contemporâneos que anulam as utopias: os hábitos. Habituamo-nos com as convenções, as normas, o estilo de vida, a política instituída, enfim, com todas as coisas que regulam nossa existência. Como nos desfazermos daquilo que o hábito faz conosco? Maine de Biran nos mostra no livro Influence de l’habitude sur la faculté de penser [Influência do hábito sobre a faculdade de pensar] de que maneira o indivíduo recebe passivamente as impressões exteriores: “O indivíduo permanece passivamente entregue aos impulsos das causas exteriores que o movem muitas vezes sem que ele perceba[…]. O hábito apaga a linha de demarcação entre os atos voluntários e involuntários”. Este é o lado passivo do hábito, mas De Biran aponta também na outra direção, o que ele define como hábitos ativos: desfazer, através da reflexão, aquilo que faz a passividade. Para isso, ele recorre à noção de signo. Ele reconhece que o exercício do pensamento é inseparável da linguagem, mas, como nos lembra o filósofo Émile Bréhier, De Biran dá ao signo outro sentido: ele faz nascer do signo um caráter, “segundo ele primordial, que é um movimento, e um movimento que, para preencher o seu papel de signo, deve permanecer ‘disponível’; ele está à nossa disposição para evocar uma ideia e assim, indiretamente, ele nos torna senhores de nossas ideias”. Mas devemos ter atenção: sem a ideia de movimento o signo, mesmo reinterpretado, perde-se no hábito. A conclusão é de Bréhier: a história do pensamento traz nela mesma permanente contradição: é a “história dos fracassos quando insiste em manter a ‘disponibilidade’ destes signos (e com ela o domínio de si), e a descrição dos esforços que ela insiste em fazer contra a rotina”.
Assim, passando por diversas noções de utopia, propomos um novo ciclo de conferências – o nono da série Mutações – sobre O novo espírito utópico.
UTOPIA-SONHO/UTOPIA-PESADELO
No ensaio “Note (ou L’Européen)” [Nota (ou O europeu)], escrito logo depois da Primeira Guerra Mundial, Valéry nos alerta: “A tempestade passou e, no entanto, estamos inquietos, ansiosos, como se a tempestade fosse começar. Quase todas as coisas humanas permanecem em terrível incerteza […]. Não sabemos o que vai nascer mas podemos, racionalmente, temê-lo[…]. Nossos temores são infinitamente mais precisos que nossas esperanças”. Eis, em poucas palavras, o que se pode esperar da história hoje: um desdobramento utópico fundado no medo. Se até aquele momento a utopia resumia-se no sonho de um lugar de felicidade, a partir de agora temos que conviver com dois tipos de utopia, como pouco mais tarde iria escrever Norbert Elias. Em um ensaio publicado em 1981, Elias distingue, de um lado, sonhos que exprimem os desejos de felicidade, e, de outro lado, sonhos que nascem do medo. Ele define assim a utopia contemporânea: “Para mim, uma utopia é uma representação imaginária de uma sociedade que contém sugestões e soluções para alguns de seus problemas ainda não resolvidos, uma representação imaginária de soluções, desejáveis ou indesejáveis, segundo o caso, de um problema”. Eis uma espécie de mutação: nas épocas recentes, conclui Elias, as utopias passaram a adotar cada vez mais um caráter de pesadelo, de espanto. Algo de decisivo aconteceu para transformar as utopias, “coisas relativamente agradáveis que predominaram até fins do século XIX, como aquelas de Edward Bellamy, Theodor Hertzka, William Morris e seus contempo râneos, que cedem lugar a utopias-pesadelo como O melhor dos mundos, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell”. Razões de Norbert Elias para esta grande mutação? Automatismo socialmente cego do progresso, emergência do desencantamento do mundo tal como ele é, ilusões perdidas. Na realidade, escreve ele,
na sua maioria, os progressos científicos são indeterminados nas suas consequências: poder-se-ia dizer que eles têm o duplo rosto de Janus. Os processos cegos e incontrolados da sociedade no seu conjunto podem fazer dela instrumento de uma vida melhor tanto quanto instrumentos de destruição e de guerra. As formidáveis esperanças que as gerações passadas puseram na ciência, considerada como um invariável vetor do progresso social e do bem-estar dos homens, cedo ou tarde iriam decepcionar[…]. Estas esperanças perdidas agravaram-se com medos do futuro.
Para ilustrar as revoluções tecnocientíficas e biotecnológicas ligadas às utopias-pesadelo, Elias cita várias criações da ficção científica não só na literatura mas principalmente no cinema, como o filme Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, simbolizando o perigo de ameaça do gênero humano, “por meio de antecipações imaginárias de tais possibilidades”.
Uma das características do domínio da tecnociência consiste naquilo que Hans Jonas define como o excesso do nosso poder fazer bem acima da nossa potência do prever e mais acima ainda do nosso poder de avaliar e julgar. Mais: há um desconhecimento dos efeitos últimos de nossas ações. A extensão inevitavelmente utópica da tecnologia moderna, escreve Hans Jonas, no livro O princípio responsabilidade, “faz com que a distância salutar entre projetos cotidianos e projetos últimos, entre ocasiões de exercer a inteligência e ocasiões de exercer uma sabedoria esclarecida diminui de maneira permanente”. Jonas vai além no diagnóstico de uma utopia submetida às leis da tecnociência:
Pelo fato de vivermos hoje de maneira sempre à sombra de um utopismo não desejado, automático, fazendo parte do nosso modo de fun cionamento, somos perpetuamente confrontados a perspectivas finais cuja escolha positiva exige suprema sabedoria – uma situação impossí vel para o homem como tal, porque ele não tem essa sabedoria, e em particular impossível para o homem contemporâneo, que nega a pró pria existência do seu objeto, a saber, a existência de um valor absoluto e de uma verdade objetiva.
Perspectivas finais para Jonas são as catástrofes que nos esperam e é a partir daí que ele define sua ética da responsabilidade, “impossível para o homem contemporâneo”, que tende a negar uma das terríveis verdades objetivas – a destruição. Quando as gerações futuras quiserem reclamar pelos estragos que fazemos hoje, já não estaremos mais aqui. Resta-nos, pois, trabalhar utopicamente, hoje, pela ética da responsabilidade – uma ética voltada para o futuro – para tentar salvar o que nos resta.
A POÉTICA DO ESPAÇO
Este é o lado trágico das utopias contemporâneas. Mas existem outras visões – ou conceitos – de utopia bem diferentes e devemos dar atenção a elas. Pensemos no que escreve Michel Foucault no ensaio “As utopias reais” ou “Lugares e outros lugares”. Existem utopias, diz ele, que nascem na cabeça dos homens, no interstício de suas palavras, países “sem lugar e histórias sem cronologia”. É a alegria das utopias. Mas, apesar disso, continua Foucault,
acredito que existem – e isso em qualquer sociedade – utopias que têm lugar preciso e real, um lugar que se pode situar em um mapa; utopias que têm um tempo determinado, um tempo que se pode fixar e medir segundo o calendário de todos os dias[…]. Eis o que quero dizer: não se vive em um espaço neutro e branco. Não se vive, não se morre, não se ama em um retângulo de uma folha de papel.
Citando o Bachelard de A poética do espaço, para quem “o espaço tomado pela imaginação não pode permanecer espaço indiferente entregue à medida e à reflexão da geometria”, Foucault cria uma espécie de fenomenologia da imaginação:
Estes contraespaços utópicos localizados, as crianças os conhecem per feitamente. É o fundo do jardim, é o sótão, ou melhor, a tenda dos ín dios no meio do sótão; ou ainda, a quinta-feira à tarde, a cama de casal dos pais: é nesta grande cama que se descobre o oceano uma vez que se pode nadar nela entre cobertores; esta grande cama é também o céu […] é a floresta onde se pode esconder, é a noite, pois se pode tornar fantasma entre os lençóis; é o prazer, enfim, porque, com a chegada dos pais, vai-se ser punido.
As crianças têm muito a ensinar. Os contraespaços utópicos são, certamente, uma maneira de sair do mundo já feito para entrar em um mundo em construção. O primeiro gesto da criança consiste em se recusar a sacrificar a própria natureza obedecendo a ordens; o segundo gesto é também a recusa de imitar e ser imitada em tudo o que os adultos fazem. Aqui, imaginação passa pela experiência (ainda que seja experiência da vida imediata da criança), o que, para aquele que é dominado pelo costume, é difícil de compreender. Ainda assim, a imaginação criadora da criança não abre mão da presença do mundo; este mundo visionário e mágico, onde não existe o possível e o impossível, que as crianças criam, pode ser também uma fonte do entendimento. Elas são senhoras dos seus sentidos, fazem o que querem, como querem, construindo com o toque, com o olhar, com o olfato, explorando voluntariamente os sentidos desejados. Pelo menos até a chegada da ordem estabelecida, os pais. Mas vemos aqui um problema: por que Foucault escolheu as crianças para falar dessa utopia se sabemos que, de certa maneira, elas têm um entendimento limitado do mundo, isto é, não têm ainda consciência de si para esclarecer o próprio entendimento? ‘Via, mas não sabia o que via”, poderíamos assim definir esta percepção primeira, à qual falta o saber de si e do mundo. Tanto que elas fogem do combate com os pais, porque só o seu outro, a consciência de si, poderia enfrentá-los. Desafiar a autoridade é o primeiro passo para a solução da contradição ligada à consciência, por mais obscuro que seja o primeiro passo, como é o caso das crianças. É certo que estes primeiros instantes da vida são envoltos em uma indiferença, mas devemos reconhecer que mesmo assim há um lento e obscuro trabalho do desejo. É este conflito entre desejos e obstáculos, latente nas crianças e que não vem ainda à expressão, que dá ao ser a consciência de si. A lição é de Hegel: o ser sem consciência não deseja porque ainda não é um ser dividido. Falta às crianças o desejo de emancipação. Estas questões nos levariam longe, são importantes para o nosso tema, mas não cabem nas nossas notas e nos desviariam de nossa modesta observação. Mas só gostaria de deixar assinalado que o desejo de conquista, ainda que não inteiramente consciente (talvez imaginário) – aqui simbolizado na cama dos pais – é um dos fundamentos da utopia. Talvez tomando como exemplo a ação fugaz das crianças, Foucault queira reafirmar que a utopia tem um espaço e um tempo determinados e que a utopia é um processo permanente de criação. Ele se interessa menos pelo não lugar e mais pelo lugar da utopia e suas disciplinas de poder. Uma coisa é certa: sabemos que com esta experiência imaginária, as crianças apontam para um mundo utópico.
Em outro ensaio, O corpo utópico, Foucault amplia o conceito de utopia. Ele diz: “Uma coisa é certa. O corpo humano é o ator principal de todas as utopias”. Através da máscara, do disfarce e da tatuagem, por exemplo, ele mostra de que maneira o corpo é posto em outro espaço que o faz entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo. Elas fazem desse corpo “um fragmento de espaço imaginário que vai comunicar-se com o universo de divindades ou com o universo de outrem[…]. De qualquer maneira, a máscara, a tatuagem, o disfarce são operações através das quais o corpo é retirado do seu espaço próprio e projetado em outro espaço”.
Partindo desta proposta de Foucault, poderíamos ir além: a ideia que faço do meu semelhante é também utópica. Mesmo olhando com atenção seu corpo, seu rosto e seus gestos, acompanhando cuidadosamente seus movimentos, ignoro o mundo de segredos que ele guarda e só sei que ele é um estrangeiro e, portanto, habita um não lugar. Não há outra maneira de chegar a este outro a não ser recorrendo à imaginação para criar uma comunidade dos semelhantes.
Citando estes autores – Norbert Elias, Miguel Abensour, Valéry, Alain, Walter Benjamin, Michel Foucault e outros – pretendemos mostrar que o conceito de utopia pode e deve ser alargado. Insistimos: nada mais errado, pois, dizer que vivemos em um mundo sem utopias.
Se o conceito de utopia tem história, isto é, se ele acompanha as mutações ao longo de quinhentos anos, como ele deve ser pensado hoje diante das revoluções tecnocientíficas, biotecnológicas e digitais? É certo que estamos caminhando para modificações genéticas que tendem a alterar não só a espécie mas os desejos e a espera desta nova espécie. De que maneira a utopia deve enfrentar o novo mito das construções científicas que pretendem tudo dominar e, principalmente, definir o futuro?
DIALÉTICA DA EMANCIPAÇÃO
Não se pode falar de utopia sem relacioná-la à ideia (e prática) da emancipação. Mas atenção: a utopia entende por emancipação não o modelo comum e difundido da produção que valoriza a exploração da natureza, sonho de certa concepção de modernidade, “sem discernir que tal ‘vitória’ traz nela a possibilidade de domínio do homem pelo homem”. Muito menos a ideia de progresso como pensou a modernidade. Assim, o significado filosófico do novo espírito utópico consistiria em “atar uma relação crítica à dialética da emancipação na modernidade”. E, em parti cular, uma crítica ao domínio da ciência e da técnica sobre todas as áreas da atividade humana, em particular sobre os desejos do homem. Em um ensaio provocante sobre o século XX, o filósofo Alain Badiou nos mostra que o terror que nos domina vem não das utopias de emancipação, das promessas e muito menos de construções em nome de um futuro indeterminado, mas do real, entendendo por real os ideais de progresso. Ou, se quisermos, da ideia de civilização tal como foi instituída pelo capital. Badiou trabalha com dois enunciados que nos ajudam a compreender alguns problemas da realização utópica.
O primeiro enunciado é o que ele designa como finalidade ideal:
O século XX realizou as promessas do século XIX. O que o século XIX pensou, o XX realizou. Por exemplo, aquela com que os utópicos e os primeiros marxistas sonharam. Em termos lacanianos, isso pode ser dito de duas maneiras: o XX é o real daquilo que o XIX fora de imaginário; ele é o real do qual o XIX fora o simbólico (aquilo com o qual ele fez doutrina, pensou, organizou).
O segundo enunciado é descrito por Badiou como descontinuidade negativa: “O [século] XX renuncia a tudo o que o XIX [idade de ouro] prometia. O XX é um pesadelo, a barbárie de uma civilização”.
As ideias de Badiou remetem, indiretamente, a outra vertente de utopia que não pode ser esquecida: Marx, da utopia imaginária-simbólica à utopia real (é preciso distinguir as ideias filosóficas de Marx das “utopias” do socialismo real). Voltemos às noções expostas por Marx, que dão um sentido material às utopias. Para ele, o materialismo permite, à diferença dos utópicos abstratos, ver na miséria não apenas miséria mas também o ponto do reflorescer. No lugar de construir sociedades a partir de um idealismo utópico sem ação, Marx recorre à experiência e esta mudança faz toda a diferença nas utopias. Não se pode, pois, pensar a dialética da emancipação abrindo mão de alguns pressupostos fundamentais do marxismo. Eles nos levam, como lembra Ernst Bloch, a ver, por exemplo, no proletariado (penso que proletariado aqui não é apenas uma classe, mas um proletariado de espírito) “não apenas a negação do homem mas também, por causa mesmo desta desumanização levada a seu ponto extremo, a condição de uma ‘negação da negação'[…]. É no horizonte do futuro que se situa a matéria dialética. É na direção deste futuro, ao qual se encontra reenviado mesmo o passado, que o materialismo dialético vê a matéria em obra”. Enfim, sabemos que a essência das coisas e a matéria em obra jamais se manifestam plenamente. O mundo e as utopias no mundo jamais esgotam todo o campo do possível.
DESPERTAR NO SONHO
Vivemos hoje a paixão do real. Isto é, vivemos em um mundo que tende a abolir “as duas maiores invenções da humanidade” que são o passado e o futuro, como escreveu Valéry. Utopia é pensar o futuro, é promessa, daí sua permanência. Promessa remete à espera e, no mundo dominado pela pressa e pela velocidade, “esperar é agir”. O sujeito concentra-se no possível e sobre o estado nascente das coisas. Esta é a única maneira dada ao homem ou ao coletivo para fugir da ordem dominante em busca daquilo que não existe ainda, passagem de um lugar para um não lugar, em direção “à expressão imaginativa de um mundo novo”, de Marx. As mutações das noções de espaço e tempo de hoje têm precedente: Abensour cita um fragmento da História da Revolução Francesa de Michelet sobre o que acontecia em 1790: “O tempo chegou ao fim, o espaço chegou ao fim, duas condições materiais às quais a vida está submetida[…]. Estranha vita nuova que começa para a França, eminentemente espiritual, e que faz de toda a sua revolução uma espécie de sonho, ora encantador, ora terrível […]. Ela ignorou o espaço e o tempo”. O que chama a nossa atenção aqui é a ideia de sonho, mais tarde retomada por Walter Benjamin com a noção de sonho do coletivo que ele alia à imagem dialética para tratar da utopia: “Cada época”, escreve Benjamin em 1935, “não sonha apenas com a próxima; ela busca, ao contrário, no seu sonho, sair do sono […]. A exploração dos elementos do sonho no despertar é o caso típico do pensamento dialético. Eis por que o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico”. Todo sonho tem fundamento material, como nos lembra Alain:
O espírito dorme todas as noites. Ele renuncia a governar esta máquina de ossos, músculos e nervos que não é senão uma colônia de animais que se banham em uma espécie de água marinha. É daí que ele despertará: e é de seus absurdos sonhos que ele construirá pensamentos; sim, a cada manhã […]. É preciso saber que o sonho não é de outro mundo mas deste mundo […]. Ora, é esta passagem do sonho ao despertar, do mesmo sonho ao mesmo despertar, que me interessa porque isso é pensar, porque não temos outros pensamentos reais a não ser estes.
Os sonhos são percepções incompletas traduzidas pela linguagem e pela narrativa. O trabalho do pensamento e das artes é pois o momento do despertar “não deste sonho mas neste sonho […] não por ideias estrangeiras mas pela própria ideia que está nele”. Mais: através de um esforço crítico, desfazer-se das ideias já dadas. É assim que lemos a seguinte “história”: certa vez, perguntaram ao poeta e ensaísta Paul Valéry o que ele mais desejava e ele respondeu “ser despertado”. É assim também que devemos pensar a ideia do sonho do coletivo na utopia, o político no sonho. O sonho aqui é entendido como uma deriva no real ou, para usar o termo trabalhado de maneira incessante por Adorno, linhas de fuga: no lugar de se dirigir no sentido do que deve ser, observa Abensour, o que importa é estabelecer-se na negatividade: “negação determinada daquilo que é […]. Desta morada na negatividade pode surgir uma eclosão de linhas de fuga laterais, marginais, imprevisíveis, indomáveis, longe de um novo princípio de realidade”, sem a reprodução pura e simples da lógica da sociedade mercantil.
UTOPIA E CONSTRUÇÃO DO SUJEITO
Não se deve reduzir a utopia ao plano do político. É preciso dar atenção também à construção utópica da subjetividade. A construção utópica do mundo não se separa da construção do homem, construção de si. Se se quer destruir o homem, destrua-se seu mundo interior. Paul Valéry definiu assim sua existência: “À força de construir, eu me construí a mim mesmo”. Isto é, o conhecimento do mundo está (eticamente) ligado ao fazer: “só sei o que sei fazer”. O sonho só é construção de si quando esvazia o espírito de um conteúdo de pensamento para preenchê-lo com outro (ou outros pensamentos), numa verdadeira “eclosão de linhas de fuga marginais”. “Extrair de si o que o eu ignorava”, escreve ainda Valéry. Podemos dizer que há um forte traço de utopia no pensamento de Valéry que se expressa na noção de espírito: “entendo por espírito”, diz ele, “não uma entidade metafísica; entendo-o como potência de transformação”. Uma vez transformada, a coisa não interessa mais: interessa o fazer e o imaginar fazer. Aqueles que condenam a utopia só pensam no já instituído, no já pensado.
Fala-se muito hoje na morte do sujeito. Ou melhor, da não consciên cia de si. O homem tornou-se hoje passivo, imagem de marca do espetáculo. Como se pode falar aqui de despertar do pensamento no sonho se os homens da sociedade do espetáculo e do consumo não desejam dormir para acordar no sonho, se estão permanentemente acordados, ou estão, na melhor das hipóteses, em um sono dogmático?
UTOPICIDADE?
O termo utopicidade, usado por Philippe Boudon em pequeno ensaio, resume bem a relação entre utopia e arquitetura. Ele reafirma o que todos sabem: a arquitetura moderna é rica de utopias, resultado de projetos da imaginação “extravagante” de arquitetos. Não poderia ser diferente, se não tivéssemos caído nas mãos de interesses puramente econômicos e técnicos que condicionam o espaço e a representação do espaço. Negação da própria ideia de arquitetura porque é próprio dela criar lugares. A imaginação do arquiteto cede lugar ao interesse, fruto da mecanização e da industrialização do mundo, negando o que disse certa vez Boullée, arquiteto utópico: “Nossos pais só construíam sua cabana depois de tê-la concebido em imagem”. O que vemos hoje, fora poucas exceções no espaço urbano, são prisões do espaço e da imaginação. Resta-nos o que poderíamos chamar de nostalgia utópica, utopia do passado, verdadeira ucronia/ verdadeira utopia: Tiradentes, espaço que acolhe a cada ano os autores das conferências e dos ensaios, é o melhor exemplo da utopia concreta de que fala Ernst Bloch.