2017

Pensamento e utopia: breves anotações militantes sobre a universidade

por João Carlos Salles

Resumo

A universidade parece ser ambiente propício ao pensamento utópico e, por isso mesmo, à filosofia. Não foi sem alguma surpresa que primeiro me deparei com o severo diagnóstico que Wittgenstein enuncia sobre ela. Ela não seria o lugar do pensamento. Por isso mesmo, não hesitava em sugerir a seus melhores alunos que se afastassem desse ambiente rarefeito para o pensamento e se dedicassem a profissões mais úteis à sociedade. Mas, então, por que ele mesmo continuava sendo um professor universitário? Ora, retrucava, ele criaria sua própria atmosfera.

Mas, sendo a filosofia contemporânea, de modo quase ineludível, uma coisa universitária, por que a universidade seria enfim tão inóspita?

A resposta é talvez trivial, podendo ser reencontrada em diversas reações na história da filosofia. Essa velha instituição seria, antes de tudo, o lugar da repetição, do pensamento com hora marcada e, logo, de negação da presença do espírito na palavra; depois, o lugar da reprodução, de modo que sua defesa do mérito apenas velaria as diferenças que reproduz e que, por mais que as encubra, não deixariam de lhe ser exteriores; enfim, o lugar da competição, por recursos, por prestígio, por poder, nada sendo mais distante do pensamento e nada mais próximo da miopia de burocrata.

Daí a necessidade testar a natureza desse ambiente, não por referência a índices de produção, que lhe mostrem o vigor científico que lhe redimam, ou na produção final de verdades, dos brutais procedimentos que a sedimentam. Tal teste verificará a natureza da militância política ou cultural que a universidade abriga ou pode abrigar, tomando como ponto de partida a ideia singela de que o militante, em todas as dimensões, é o portador da utopia. Verifica-se assim em que medida o ambiente da universidade favorece um vínculo especial entre energia pessoal e interesse coletivo, um vínculo que alimente novos sentidos para a utopia.


A universidade parece ser ambiente propício ao pensamento utópico e, por isso mesmo, à[1] filosofia. Não foi sem surpresa, e mesmo com algum sabor de escândalo, que primeiro me deparei com o severo diagnóstico que Wittgenstein enuncia sobre a universidade. Ela não seria o lugar do pensamento. Por isso mesmo, não hesitava em sugerir a seus melhores alunos que se afastassem desse ambiente rarefeito e inóspito para o pensamento e se dedicassem a profissões mais úteis à sociedade. Mas, então, por que ele mesmo continuava sendo um professor universitário? Ora, retrucava, ele criaria sua própria atmosfera[2]. Essa separação entre universidade e pensamento causou-me tanto impacto, confesso, quanto aquele célebre verso de Augusto dos Anjos, “O beijo, amigo, é a véspera do escarro”, que eu lera menino.

Mas, sendo a filosofia contemporânea, de modo quase ineludível, uma coisa universitária, por que a universidade lhe seria enfim tão inóspita? A reação de Wittgenstein seria mera idiossincrasia? A resposta é talvez trivial, podendo ser reencontrada em diversas reações na história da filosofia. Essa velha instituição seria, afinal, (I) o lugar da repetição, do pensamento com hora marcada e, logo, de negação da presença do espírito na palavra – estando, pois, a repetição na sala de aula para o trabalho do pensamento como estaria talvez a palavra escrita em relação à fala viva do filósofo, revivendo ambas parcialmente um sentido que nunca poderiam recuperar de todo; (II) o lugar da reprodução e, desse modo, sua defesa do mérito apenas velaria as diferenças que reproduz e que, por mais que as encubra, não deixariam de lhe ser exteriores; (III) o lugar da competição, por recursos, por prestígio, por poder, nada sendo mais distante do pensamento e nada mais próximo da fúria de políticos ou da miopia de burocratas; (IV) o lugar de uma militância cada vez mais seletiva, que encobre exatamente os interesses que enuncia – sendo talvez a inimiga íntima e destruidora do valor universal que a universidade pode ter – e pode conferir-lhe, a essa vetusta anciã, um sentido utópico, muitas vezes difícil de agarrar ou pressentir em seu dia a dia. Este paradoxo é o mais grave e perigoso, uma vez que a militância, desenhada idealmente, deveria tender à universalidade, sendo capaz de acolher o outro e não apenas defender, muita vez ocultando-os, seus próprios interesses.

A contrapelo dessas fortes imagens, que bem justificariam a reação de Wittgenstein e de tantos outros filósofos e cientistas, pois não são fúteis e estão inclusive amparadas na dura realidade universitária, queremos explorar o potencial utópico que torna a universidade, sim, um lugar privilegiado do pensamento. Em nossa apresentação pretendemos, pois, testar a natureza desse ambiente, não por referência a índices de produção, que lhe mostrem o vigor científico ou lhe redimam, na produção final de verdades, dos brutais procedimentos que a sedimentam, mas sim através do confronto e da articulação de dois modelos de sociabilidade acadêmica – um cartesiano e outro maquiavélico, na falta de melhores termos. Pretendemos testar esse meio pela natureza da militância política ou cultural que abriga ou, sobretudo, pode abrigar, tomando como ponto de partida a ideia singela de que o militante (não seletivo), em todas as dimensões, é o portador da utopia. Pretendemos, assim, ver (não como resultado de análise histórica ou política, mas antes pela constituição de um quase tipo ideal) em que medida o ambiente da universidade favorece um vínculo especial entre energia pessoal e interesse coletivo.

Como podem ver, deslocamos a temática proposta por Adauto para este ciclo, que parece visar mais alto e mais longe, para o chão específico da universidade. Ora, o lugar é propício e desafiador. A universidade não é um objeto, um que, mas sim um sujeito coletivo, um nós, um quem[3]; entretanto, é um quem desconexo, esgarçado por interesses conflitantes, centrífugos, cuja unidade essencial parece sempre ameaçada e cujos propósitos definidores precisam sempre ser lembrados. É boa a perspectiva fichtiana, de tratar-se a universidade de uma instituição que sempre precisa justificar o próprio direito à existência.

Que lugar então é este, a universidade? Com que direito pode justificar sua existência essa entidade em cuja origem estaria a ideia de uma associação dotada de certa unidade, consistindo esta no interesse de mestres na formação de novos mestres, plasmada, enfim, em estabelecimentos de ensino[4]. Vale reter esse sentido para lhe enfatizar exatamente o caráter gregário e também agregador, bem como o interesse na formação, o que sempre coloca algum modelo de sociabilidade em funcionamento. Sua posição em nossa sociedade é, pois, estranha e rara, valendo a pena citar mais uma vez este texto da equipe Areser, que já retomei tantas vezes:

A universidade é um lugar, talvez o único lugar, de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políti­ cas, artísticas, por completo insubstituíveis […]; lugar de concorrência entre saberes, de seu colocar-se em questão, e, portanto, forma insubs­ tituível de espírito crítico e cívico, de espírito cívico crítico, lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ul­ trapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais[… ][5].

Nossa tese óbvia é também a menos corrente. Esse lugar singular, em que a palavra (em tese) teria preeminência sobre outros instrumentos de poder, pode alimentar sentidos utópicos, que contraria e subverte a todo momento. Claro que, por isso mesmo, para quem está imerso em sua experiência, em suas mazelas cotidianas, em seu modo de reprodução, a afirmação desse interesse utópico parece apenas uma versão edulcorada do real. E, com efeito, essa universidade que esboçamos é inatual, mas, ao ousarmos propor ou lutar por que seja essa sua essência, somos antes desafiados por uma reflexão que, partindo desse lugar, naturalmente exige o primado da palavra e preserva, contra a urgência do tempo, a paciência do conceito.

Definir universidade assim, diriam alguns realistas, é estar doente dos olhos, é quase não enxergar os fatos. Isso é, para além de cegueira objetiva, uma manifestação de pensamento utópico. É como proferir a frase absurda “Gentileza gera gentileza”, tensa, porque contraditória, uma vez que a sentimos falsa e verdadeira. Falsa como a que julgava impossível errar moralmente pelo conhecimento. Falsa, porque negada a cada dia e por toda experiência. Entretanto, também verdadeira, em um sentido mais profundo, pois aferrar-se ao dito é resistir a todo pragmatismo da vida e da política, onde vícios podem até gerar virtudes e virtudes afundam em vícios.

Como fulcro utópico, a universidade é o lugar mais próximo de realização do que chamaríamos de um auditório universal. Ou seja, a matriz mais pura da vida universitária seria a criação de condições para a unidade entre verdade e evidência, imaginando aqui, com Descartes, que ter a verdade é ter um caminho para ela, de sorte que não haveria conhecimento se uma proposição não expressasse uma virtude intelectual reconhecível e partilhável, e assim déssemos por mero acaso com a verdade, à semelhança de como, olhando para um relógio quebrado, acertaríamos as horas, com a maior precisão, duas vezes ao dia. Ter a verdade é, ao contrário, possuir as condições para a produção de um auditório universal, no qual apenas se exercitam as condições ideais da argumentação.

De um ponto de vista teórico (e deveras utópico), em que os conflitos podem ser resolvidos pela palavra e esta tem preeminência sobre outros instrumentos de poder, devem estar dados, como traços de sociabilidade prévia e comuns a esses contextos, determinando condições ideais de argumentação: (i) a igualdade de direitos de quantos argumentem; (ii) a igualdade potencial de compreensão; (iii) o reconhecimento da alteridade potencial ou efetiva; e (iv) a crença comum na eficácia da linguagem. Temos aqui conjugados, em um modelo ideal, um aspecto normativo (contido na igualdade de direitos), um cognitivo (expresso na possibilidade comum de compreensão), um político (na aceitação da alteridade e constituição de espaços para ela) e um decisivo componente pragmático (a ação mesma de confiança na linguagem e na argumentação).

Afinal de contas, quem desrespeita o primeiro aspecto, um ditador, por exemplo, não precisa argumentar, caso sua força seja suficiente para dispensar qualquer tipo de legitimação. Tampouco argumentamos, segundo aspecto, com quem se mostra incapaz de compreender nossas proposições, de acompanhar nossas inferências, sendo propedêutico e indispensável o acesso equânime a um mesmo patrimônio de linguagem. Menos ainda argumentamos, terceiro aspecto, com quem se mostra incapaz de aceitar nossas proposições, porque incapaz de tolerar a diferença, de conviver com a alteridade, não sendo produtiva uma discussão, caso a possibilidade da divergência esteja eliminada. Enfim, no aspecto pragmático, decisivo a todos, um certo emprego ou uma confiança no emprego da linguagem mostra-se indispensável, de modo que, uma vez reconhecida a diferença, os interlocutores confiem na linguagem como instrumento de persuasão racional, ou melhor, de convencimento – o que equivale, em última instância, a acreditar, com força militante, que o caminho para a solução de todos os problemas que porventura se apresentem na universidade está na própria universidade.

Essa máquina ideal parece capaz de produzir convencimento, mas não crença. É imbatível como modelo, mas não produz crença, sendo algo como um ordenamento jurídico descolado da realidade. Por isso, talvez, o aspecto pragmático, envolvendo a vontade, seja o mais importante e desafiador. Com efeito, essas condições ideais são amiúde ameaçadas mesmo no território livre da argumentação, significando exatamente o jogo das falácias (o uso de raciocínios incorretos, a falta de metodologia científica adequada, o desconhecimento dos padrões racionais de inferência etc.), o desrespeito a alguma das quatro cláusulas acima. Apelos à autoridade e apelos à piedade, por exemplo, conquanto aparentemente opostos, têm em comum o fato de romperem com a igualdade potencial de quem argumenta. Enquanto rupturas do contexto racional, enquanto práticas que anulam o contexto em que se pode efetivar a racionalidade, o recurso à força pode bem ser identificado à inconsistência formal. Desse modo, podemos dizer que há uma questão ética anterior ao uso dos argumentos e que lhes condiciona a possibilidade. E a falácia não deixa de ser, como aposta que se anula, uma contradição performática: lança argumentos que, pretendendo convencer, apenas podem persuadir. Com isso, o jogo das falácias supõe o contexto que nega e se vale do diálogo que, não obstante, sabota.

Ao tipo ideal de um contexto para a lógica, que ultrapassa interesses particulares e se volta a uma dimensão universal, contrapõe-se com força e presença constante em nosso dia a dia outro tipo também ideal, qual seja, o modelo da arte da guerra, como nos sugere um pequeno texto de Maquiavel. Enquanto, por exemplo, na construção de um auditório universal e na prática científica, é fundamental que tenhamos em conta previamente o método adotado e cheguemos em conjunto a um acordo sobre sua legitimidade, Maquiavel sugere: “Nenhum método é melhor do que aquele que o oponente não percebe até o adotarmos”. Enquanto o método da lógica procura que sejamos juntos com-vencidos, Maquiavel aconselha: “dificilmente será vencido quem souber avaliar suas forças e as do oponente”. Na verdade, em A arte da guerra, Maquiavel não fala em oponentes, mas sim em inimigos, quando já cessou a busca da universalidade e foi extinto o olhar divino, excelso, capaz de unir verdade e evidência. E suas máximas nesse texto têm sua valia determinada pela natureza do conflito, subordinando-se todas ao princípio que as preside, ao desejo de aniquilação do outro, que encabeça sua lista: “O que favorece o inimigo me prejudica; o que me favorece prejudica o inimigo”[6].

Não podemos, porém, ler a oposição entre lógica e guerra. de forma maniqueísta. Há evidente sabedoria no reconhecimento do combate e de suas armas. Entretanto, sem um horizonte de excelência, no qual devemos ser sempre instados a pedir provas, a solicitar dados, a procurar demonstrações, as universidades não podem cumprir a missão autêntica e necessária de inclusão, tornam-se más provedoras de assistência social e, ao fim e ao cabo, se destroem.

Cada modelo desenhado em traços rápidos foi também batizado de forma bastante artificial. O batismo, somos os primeiros a enfatizar, não faz justiça a Descartes nem a Maquiavel, mas serve a nosso propósito rápido e quase caricatural, com o acréscimo prudente de que cada modelo (ou qualquer modelo) tem sua verdade e sua limitação. Na universidade cartesiana, interesses pretensamente se apagam. É uma universidade de anjos, sem sexo, sem drogas, sem gênero, sem cor. Os desiguais estariam de início ou formalmente igualados, como se tivessem tido, por algum acaso, uma compensação na corrida (por talento ou favor), ou não muito atrasados e, assim, não estariam reduzidos a trabalhos de segunda linha. Quando sabemos que a universidade, ao contrário, se lugar da utopia, deve ser o lugar de recomposição do tecido, sendo a igualdade não um ponto de partida, mas um desafio e um processo.

Compreendidos os modelos, cabe enfrentar com realismo maquiavélico o desafio cartesiano, aprofundando sempre as medidas de qualidade com as de compromisso social e, com isso, combatendo as manifestações de militância seletiva, pois aferradas a interesses sem o horizonte da utopia. É preciso também reconhecer a nova realidade da vida universitária. Sem o reconhecimento dos novos tempos, estaremos voltando a projetos que amesquinham sua dimensão mais ampla de interlocução com outros saberes e com a sociedade, e se tornam modelos ampliados e sempre parciais de laboratórios de pesquisa.

O modelo cartesiano parece guardar o espírito inodoro de uma universidade em que não haveria muita diferença a aplastar. Nessa universidade, não seriam muito díspares as origens e interesses. Nossa realidade desafia decerto o modelo cartesiano, que todavia nunca deveríamos afastar de nosso horizonte, pois equivale ao horizonte da construção cotidiana de nossa identidade universitária. A natureza mesma da universidade sabe a um bom cartesianismo, embora a ciência universitária nos faça lembrar os interesses que se aninham na produção do conhecimento mais inocente. A tolice não é nosso forte, dir-nos-ia M. Teste. Assim, somos cartesianos, mas com a importante aceitação do óbvio, qual seja, a de que a construção de condições ideais de argumentação depende da explicitação de interesses, bem como da escolha dos interesses da emancipação para além do contexto importante das lutas por reconhecimento[7]. Devemos ser cartesianos, mas redimidos pela boa lição de Lebrun, em Passeios ao léu, livro que pensou batizar de Meus venenos ou de Meus pré-juízos, “ficando bem entendido”, diz ele, “que não confundo pré-juízos com parti-pris, isto é, opiniões tais que sua contestação só pode suscitar reações cabeçudas e passionais. Pois afinal, Descartes que me perdoe, como pensar sem pré-juízos? Como pensar, sem mobilizar o que a experiência nos ensinou? E haverá outra proteção além da experiência, por frágil que seja, contra as tentações da razão raciocinante? “[8].

As universidades são hoje, porém, o campo fértil da retórica. De uma militância que deixa de ser ato de fé para ser expediente de sobrevivência, por um lado, e de campo de conflito, não de emancipação, mas de reconhecimento. De certa forma, um mesmo padrão de reivindicação pode estar presente tanto no estudante que busca assistência e, com isso, reparação, quanto no cientista que, buscando financiamento, limita seu olhar a seu exclusivo laboratório. Nesse terreno pragmático, podemos viver os vícios da democracia sem o benefício de suas virtudes.

São perigosas as saídas fáceis, sobretudo quando ditadas pelo regime de urgência. Certamente, compreendemos bem o desespero de bons pesquisadores, as dificuldades para a produção do conhecimento em instituições de espírito burocrático, insensíveis à singularidade e à dinâmica da vida acadêmica e ameaçadas pela insuficiência e a irregularidade no fluxo do financiamento, muitas vezes pouco dependente da relevância da pesquisa ou do mérito dos pesquisadores e bastante determinado por componentes pouco desejáveis de pressões políticas. Não obstante isso, recusamos o atalho tomado por algumas soluções, que parecem jogar a toalha do trabalho permanente e repetidas vezes vão do convencimento.

É o caso da proposta apresentada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em documento conjunto com a Academia Brasileira de Ciências. O documento propõe, entre outros itens, alguns de inegável mérito e pertinência, uma proposta que, todavia, vindo ao encontro de boas soluções retóricas (como a tópica de respeitar as diversas vocações), se confronta com a natureza mesma da universidade:

Excelência na diversidade. À sociedade que a sustenta, a Universidade pública deve a excelência no cumprimento de seu plano de metas e de sua função social. Excelência que pode se manifestar de forma diferenciada para cada instituição, de acordo com sua vocação e com as necessidades regionais, envolvendo um ou mais focos de atuação, como a pesquisa de fronteira, a formação de profissionais para o mercado de trabalho ou de professores para a educação básica, ou ainda a participação em processos de inovação tecnológica nas empresas ou de inovação social[9].

Essa proposição, de aparente boa política, é estrategicamente fatal, uma vez que se rende a evidências circunstanciais e renuncia a toda chave utópica. A ideia de universidade é, segundo julgamos, estranha a esses pacotes regionais, mais favoráveis a carreiras que a vocações acadêmicas, que preferem restabelecer ou preestabelecer à força as condições do auditório universal da atividade científica. Devemos, porém, admitir um sabor exagerado e falso em nossas proposições. Nada disso se vê no mundo real, tudo é mero bolodório, se não formos tocados por um pensamento mágico e se aceitarmos os limites mesmos de nosso mundo, onde impera a guerra, não a lógica.

Mas aqui termino, lembrando Valéry (e aproveitando, com isso, para homenagear meu amigo Adauto), com uma fala de M. Teste:

Veja, todos os tolos dizem que têm humanidade e todos os fracos dizem que têm justiça; eles têm, tanto um como outro, interesse na confusão. Evitemos o rebanho e a balança desses Justos tão enganados; acabemos com aqueles que querem que nos pareçamos com eles. Lem­ bra simplesmente de que entre os homens só existem duas relações: a lógica ou a guerra. Pede sempre provas, a prova é a polidez elementar que devemos a nós mesmos. Se recusarem, lembra que estás sendo atacado e que vão tentar fazer-te obedecer por todos os meios. Serás tomado pela suavidade ou pelo encanto de qualquer coisa, apaixonar-te-ás pela paixão alheia; farão com que penses que não meditaste e não pesaste; serás enternecido, arrebatado, cegado; tirarás consequências de premissas que terão fabricado para ti, e inventarás, com alguma in­ teligência – tudo o que sabes de cor[10].

O realismo só é o caminho mais fácil se limitamos nosso horizonte. Nesse caso, é o melhor caminho apenas se retiramos da universidade sua substância e solo mais fecundo. Ousemos, porém, o absurdo, a surpresa, o espanto, e exercitemos nossa polidez utópica. Simplesmente, entre todos os caminhos e aventuras, escolhamos a lógica.

  1. Não havendo indicações em contrário, as traduções dos trechos citados são do autor. [N.E.]
  2. Aqui caberia um cuidado com o significado de atmosfera, uma vez que as expressões anímicas desafiam a autonomia da gramática. Entretanto, é difícil escapar a certas imagens, mesmo em contexto wittgensteiniano. Afinal, atmosfera é o que confere significado, o que alimenta, dá vida, identidade.
  3. Discurso de posse na reitoria da Universidade Federal da Bahia. Cf. João Carlos Salles, Entre o cristal e a fornaça, Salvador: Quarteto, 2015, pp. 9-21.
  4. Cf. Émile Durkheim, L’Évolution pédagogique en France, Paris: PUF, 1990, pp. 106-7.
  5. Areser (Association de Réflexion sur les Enseignements Supérieurs et la Recherche), Quelques diagnos­ tics et remedes urgents pour une université em péril, Paris: Raisons d’Agir, 1997, pp. 120-1.
  6. Maquiavel, A arte da guerra, Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 37.
  7. Lembrando aos militantes que, na luta por reconhecimento, um oprimido busca talvez os mesmos benefícios ou direitos de outro oprimido; na luta por emancipação, bem mais radical, almeja conquistar a liberdade, junto com outro oprimido.
  8. Gérard Lebrun, Passeios ao léu, Renato Janine Ribeiro (trad.), São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 10.
  9. Cf. “Em defesa das universidades públicas”. Assinado pelos presidentes Helena Bonciani Nader (SBPC) e Jacob Palis (ABC), esse manilesto em formato de carta foi enviado em 14 de agosto de 2015 aos ministros do Planejamento da Casa Civil e da Educação. Disponível em: <http:/ /www.jornaldaciencia.org. br / edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br /1-em-defesa-das-universidades-publicas/ >. Acesso em: 11 abr. 2016.
  10. Paul Valéry; Monsieur Teste, Cristina Murachco (trad.), São Paulo: Ática, 1997, p. 103.

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