2007

Por que república?

por Marcelo Jasmin

Resumo

O esquecimento das práticas e dos valores inscritos na tradição republicana se confunde com o esquecimento da política. O desafio na compreensão do tema reside no reconhecimento de que o desinteresse político e o abandono da esfera pública em troca dos prazeres privados têm razões que, em parte, podem ser consideradas legítimas nas condições da vida contemporânea. Encontrar argumentos que respeitem tais condições e ao mesmo tempo verifiquem as possiblidades de reversões pontuais, parciais, locais, mas não desprezíveis do esquecimento da política, parece ser uma tarefa central da reflexão republicana no mundo atual.

Tendo por campo a história conceitual, dois temas centrais devem ser discutidos: as concepções históricas que legitimam o abandono da reflexão dos clássicos, e da tradição republicana em particular; e o conceito de individualismo moderno que está na base da noção de liberdade negativa. Em ambos, a obra de Alexis de Tocqueville acerca da democracia e de sua inevitabilidade para o mundo moderno é ponto de partida.

No discurso de Benjamin Constant, Da liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos, escrito em 1819, encontra-se passagens que representam momentos exemplares em que a articulação entre os conceitos de história e de individualismo serve à fundamentação e à defesa da liberdade negativa justificando-a histórica e sociologicamente.

O diagnóstico de Constant para o esquecimento da política descreve, com precisão, o espírito dos modernos: não admitimos sacrificar a nossa independência privada em nome das necessidades públicas, e a política, naquilo que reivindica virtude cívica e participação ativa, tornou-se um estorvo a ser (racionalmente) evitado. Entretanto, o esquecimento de um amplo conjunto de práticas e valores que a tradição republicana sustentou como necessários à existência da boa política não pode ser considerado positivo.

Profeticamente, Alexis de Tocqueville anunciou que a democracia, esvaziada de seu espírito cívico, era o mundo público que se construía em meados do século XIX e intuíra que a sociedade igualitária de massas traria consequências temíveis para a política, talvez a sua própria morte. E o fim da política era, para Tocqueville, a aniquilação das faculdades mais nobres do ser humano, aquelas referidas ao pensar e ao viver coletivamente a experiência do bem comum.


POR QUE REPÚBLICA?

Marcelo Jasmin

No ano de 1998, um conjunto de professores universitários de especialidades acadêmicas diversas e de instituições diferentes de Minas, São Paulo e Rio se encontraram para discutir os limites da experiência política estabelecida pela democracia liberal contemporânea e investigar os significados produtivos da noção de república. Desse esforço resultaram vários seminários e dois livros que, no seu conjunto, pretenderam oferecer algumas respostas circunstanciadas à pergunta que dá titulo a esta conferência. A leitura de Pensar a República e Retorno ao Republicanismo demonstra com clareza que cada um dos seus autores possui preferências temáticas e inclinações políticas próprias, além de revelarem os vieses de suas especializações profissionais. No entanto, nada disso impediu que as contribuições compartilhassem um diagnóstico comum: o de que as liberdades, tal como definidas negativamente pelo ideário liberal vigente, são insuficientes para que a experiência política se desenvolva com a dignidade que a tradição do pensamento político ocidental quis lhe conferir. Sem a presença dos valores políticos associados à tradição da virtude cívica e o ânimo de uma cidadania ativa, as democracias representativas contemporâneas foram enfraquecidas em suas capacidades de lidar com o bem público, tornando-se alvo fácil de interesses que ocupam, como se privado fosse, o aparato estatal como a encarnação quase exclusiva do espaço público. Creio que leitoras e leitores interessados em desdobrar a sua investigação acerca do tema encontrarão naqueles volumes um rico material de exploração da pergunta Por que República?

O que eu pretendo aqui é explorar, a partir do contato com a história do pensamento político, aspectos desse debate referidos ao dispositivo do esquecimento e à sensação de que a passagem do tempo nos obriga tanto ao abandono de determinados padrões de compreensão e de conduta, que se tornam obsoletos ou retrógrados, como a adesão a outros que são entronizados como em conformidade com o novo tempo. É minha hipótese que parte da deterioração política que presenciamos no mundo contemporâneo — e que tem sido objeto de reflexão nesse ciclo de conferências — pode ser explicada pelo esquecimento, como se anacronismos fossem, de práticas e valores inscritos nas tradições políticas republicanas, especialmente aquelas associadas à noção de que não pode haver liberdade — mesmo a individual, privada e negativa — se a vida pública não conta com a presença ativa de cidadãos interessados em conhecer as demandas outras que não as suas, em discutir e afirmar as suas proposições e serem capazes de acompanhar e controlar o desempenho e a adequação das políticas públicas às proposições do bem comum. Não há, nessas afirmações, qualquer ilusão de que a política possa eliminar o conflito e recuso — por contrário à experiência histórica registrada, e também por ceticismo — a possibilidade de unanimidade acerca daquilo que é o bem comum. Mas é minha convicção de que a pluralidade dos planos de vida — inerradicável nas condições da democracia e do individualismo contemporâneos —, a diversidade dos modos de conceber a felicidade pública e privada, os interesses de toda ordem que se dirigem ao político, assim como o caráter extremamente técnico que determinadas questões reclamam para serem tratadas e implementadas no âmbito do gigantismo dos aparatos econômicos e estatais de hoje, não exigem o abandono da esfera pública ao monopólio da representação parlamentar profissionalizada. Como também não exigem a ignorância política dos cidadãos, nem sua incapacidade de avaliar e decidir o que é melhor para todos.

Creio que há forças muito poderosas a constituírem o nosso senso comum, mesmo aquele mais intelectualizado, que nos levam a crer que não há o que se fazer a respeito disso. E reconheço que não são poucos os motivos para tais convicções. A forma como se desenvolveu o capitalismo mundial, com a colonização das esferas da vida pela racionalidade e pelas práticas de mercado; o gigantismo das empresas e das tarefas públicas, a vertiginosa velocidade da globalização — entre muitos outros fatores de largo alcance — tornam o cenário de fato pouco propício a concepções políticas de outra ordem que não aquela da poliarquia dos interesses. A política institucionalizada de hoje tornou-se seara própria aos grandes lobbies, à profissionalização dos quadros, ao saber específico dos administradores, ao tratamento estatístico de grandes números e, por consequência aparentemente inevitável, ao esvaziamento do controle, da participação e da opinião dos cidadãos comuns. A exceção de espasmos esparsos, a atividade cívica restringe-se às eleições sazonais — muitas vezes percebidas como obrigações incômodas a estorvar a fruição do bem-estar privado de cada um —, fenômeno agravado pela descrença difusa na sinceridade e na capacidade dos governantes em se dedicarem à solução das misérias de seus governados. Não sendo poucas as misérias, e sendo longa, num país como o Brasil, a tradição de espoliação da coisa pública pelas elites dirigentes as mais diversas, o Estado vê-se compelido a satisfazer necessidades básicas de toda ordem, avolumando a sua estrutura com inúmeras agências cujas relações com os programas de governo eleitos são por vezes autônomas, por vezes desconhecidas. Somando-se ao desenvolvimento dessas grandes máquinas técnicas e burocráticas que conformam os poderes institucionais dos Estados contemporâneos, o executivo em particular, a cultura individualista fomenta a distância entre governos e governados, alimentando a sensação de impotência destes últimos em relação às decisões fundamentais da direção do Estado. Se observarmos ainda o tom de inevitabilidade com que são tratados as agruras da globalização e os caminhos da história contemporânea, pode parecer plausível, e até mesmo razoável, a adesão a uma ideologia da debilidade cívica e a uma prática da indiferença em relação às coisas públicas para as quais a única alternativa estaria na salvação divina. É nesse contexto problemático que sugiro que esquecimento das práticas e dos valores inscritos na tradição republicana se confunde com o esquecimento da política.

Não há soluções simples para questões dessa magnitude e perspectivas moralistas a denunciar a licença dos costumes contemporâneos e lamentar épocas de ouro perdidas no tempo, além de enfadonhas, me parecem inócuas. Considero que levar a sério um diagnóstico das transformações do mundo contemporâneo que explique a fraqueza das virtudes cívicas e a ausência de cidadania ativa implica reconhecer o que há nele de verdadeiro e de inescapável. Penso que, por isso mesmo, a dificuldade mais aguda dos desafios que temos pela frente ao enfrentarmos o tema do esquecimento da política reside no reconhecimento de que o desinteresse político e o abandono da esfera pública em troca dos prazeres privados têm razões que, em parte, podem ser consideradas legitimas nas condições da vida contemporânea. Encontrar argumentos que respeitem tais condições e ao mesmo tempo verifiquem as condições de possibilidade de reversões pontuais, parciais, locais, mas não desprezíveis do esquecimento da política, parece-me ser uma tarefa central da reflexão republicana num mundo como o nosso.

A presente contribuição ao debate pretende discutir, tendo por campo a história conceitual, dois temas centrais desse diagnóstico. O primeiro deles diz respeito às concepções históricas que legitimam o abandono da reflexão dos clássicos, e da tradição republicana em particular. O segundo trabalha o conceito de individualismo moderno que está na base da noção de liberdade negativa. Em ambos, a obra de Alexis de Tocqueville acerca da democracia e de sua inevitabilidade para o mundo moderno me serve de ponto de partida.

História, indivíduo e liberdade dos modernos

Inicio com algumas passagens do famoso discurso de Benjamin Constant, Da liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos, escrito em 1819, ainda sob os ecos do fim da Revolução Francesa. As passagens que cito representam, a meu ver, momentos exemplares em que a articulação entre os conceitos de história e de individualismo serve à fundamentação e à defesa da liberdade negativa, justificando-a histórica e sociologicamente. A tese histórica e sociológica de Constant é a de que o governo representativo — desconhecido, como se sabe, no mundo antigo —, é a única forma política adequada à tranquilidade pública desejada pelos modernos. A radical transformação das formas de vida, associada à enorme distância temporal que separa os gregos ou romanos da Antiguidade, e os europeus do século XIX, deveria obrigar, segundo o autor, o abandono da admiração que alguns contemporâneos seus, e da Revolução Francesa, nutriam a respeito da experiência política antiga. Eram “reminiscências antigas” que insistiam em povoar a imaginação de homens que ainda não haviam se dado conta da radicalidade das novidades trazidas pelos desenvolvimentos da história recente. A oposição entre democracia direta e governo representativo corresponderia àquela entre participação cívica, a liberdade dos antigos, de um lado, e independência privada, a dos modernos, de outro.

Conclui-se do que acabo de dizer que não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos, a qual se compunha da participação ativa e constante do poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico da independência privada. A participação que, na Antiguidade, cada um tinha na soberania nacional não era, como em nos nossos dias, uma suposição abstrata. A vontade de cada um tinha uma influência real; o exercício dessa vontade era um prazer forte e repetido. Em consequência, os antigos estavam dispostos a fazer muito sacrifício pela conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do Estado. Cada um, sentindo com orgulho o que valia seu voto, experimentava uma enorme compensação na consciência de sua importância social.

Essa compensação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova, a seus olhos, a sua cooperação. O exercício dois direitos políticos somente nos proporciona pequena parte das satisfações que os antigos nele encontravam, e, ao memo tempo, os progressos da civilização, a tendência comercial da época, a comunicação entre as povos multiplicaram e variaram ao infinito as formas de felicidade particular.

São surpreendentes a clareza e a capacidade sintética desse texto, e muito teríamos a comentar sobre ele, mas restrinjo-me aqui a estabelecer os dois pontos relevantes que escolhi tratar na discussão do esquecimento da política e da república em particular. Em primeiro lugar, o fosso temporal que separa antigos e modernos instaura uma diferença qualitativa das experiências sociais vividas por uns e outros que torna anacrônicos toda forma e todo conceito antigos de poder e de liberdade. Imaginar a possibilidade de atualizar aquilo que era próprio a gregos e romanos, “a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria”, é insistir em reminiscências tolas que devem ser abandonadas, senão ao esquecimento, às categorias do antiquarismo. Pois o que querem os modernos é a garantia institucional e legal do gozo, em segurança, dos seus “privilégios privados”. Nesse sentido, o esquecimento das formas antigas, por serem consideradas anacrônicas, aparece como uma necessidade da própria história na forma de um processo continuo de ultrapassagem do que é antigo.

Em segundo lugar, a decisão dos modernos de abandonar essas tradições antigas é racional no sentido de que o cálculo de custos e benefícios que sustenta o abandono da esfera pública está correto. Afinal, a influência de cada indivíduo parece não se fazer sentir nas condições e nas escalas do mundo burguês. A satisfação que aí se adquire com a participação política é ínfima, pois proporcional ao resultado (não) percebido da sua cooperação. Em última instância, o indivíduo, qua individuo, não exerce o poder de fato e por isso mesmo não se sente atraído à participação. “Conclui-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência individual. Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos, sacrificavam menos para obter mais, enquanto que, fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos.” O desestímulo gerado pela pequena parcela efetiva de poder individual e a racionalidade do afastamento da esfera pública são complementados ainda pela enorme sedução oriunda dos progressos da civilização. A proliferação das mercadorias e da circulação comercial no capitalismo moderno pluraliza “ao infinito” as formas da “felicidade particular”, fazendo com que o que restava de prazer na atividade pública virtualmente desapareça sob as novas tentações do consumo. O tema do individualismo moderno se anuncia, associado à relação entre comércio de mercadorias, civilização e felicidade particular.

É de interesse notar que Constant elabora, no mesmo texto, os riscos inerentes ao abandono da cidadania ativa pelos modernos.

O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se  preocupassem com os direitos e garantias individuais.

O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca dos  interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político.

Mas o otimismo do autor com o seu tempo e as perspectivas de futuro abertas pela ideia de progresso faziam-no crer que esse perigo da liberdade moderna seria contornado pelo esclarecimento de seus contemporâneos. Sem dúvida, a compreensão desse otimismo exigiria que averiguássemos a inscrição do discurso no seu contexto de produção, como uma defesa liberal da contenção da autoridade política após as demonstrações dos resultados da sua concentração sob a direção jacobina. Mas quero tomar os trechos citados, nesse momento, num registro mais abstrato, como exemplos da extraordinária produtividade da associação entre uma teoria da história como processo civilizador, que transforma elementos centrais da tradição do pensamento político em relíquias a serem ultrapassadas, e a constituição da primazia da independência individual como critério da liberdade moderna, resultado social desse mesmo progresso da civilização.

Nesse registro, eu ousaria dizer que o diagnóstico de Constant para o esquecimento da política dos antigos é irrepreensível e descreve, com precisão e argúcia, o espirito dos modernos e do mundo em que nos metemos desde então. Não admitimos sacrificar a nossa independência privada em nome das necessidades públicas, e a política, naquilo que reivindica virtude cívica e participação ativa, tornou-se um estorvo a ser (racionalmente) evitado.

Mas, ao mesmo tempo, se devemos admirar e mesmo reconhecer a justeza descritiva do diagnóstico de Constant, parece difícil, hoje, aceitarmos as certezas que o seu otimismo trazia quanto à paz, à ordem e à felicidade que a noção de civilização, como sentido auto-evidente da história, então prometia. Ao contrário do que supôs a imaginação iluminista do século XVIII, as filosofias históricas do século XIX e a ficção científica acerca do progresso a ser alcançado por volta do século XXI, o vigoroso desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas que vivenciamos cotidianamente não veio acompanhado, historicamente, por um progresso moral, por um conjunto de práticas e de valores que nos trouxessem a paz e a vida boa. A tese de que o desenvolvimento do intercâmbio comercial entre os povos, associado ao progressivo conhecimento humano das condições naturais e sociais da vida em comum, traria a moderação dos costumes parece pouco crível hoje. Pelo contrário, a violência cotidiana está muito mais presente em nossas vidas do que se podia imaginar 50, 100 ou 200 anos atrás.

A associação tão confortável ao liberalismo do século XIX entre processo histórico, individualismo e liberdade negativa deve ser posta em questão, e, nesse movimento de crítica, é possível que uma observação daquilo que foi abandonado como anacrônico e inadequado para fazer nascer o mundo da civilização moderna possa contribuir para o esclarecimento dos fracassos dessa associação. Vejamos então alguns dos elementos daquela associação.

História e esquecimento

Partimos da constatação de que nem todo esquecimento deve ser considerado ruim ou negativo. Podemos pensar, por exemplo, que um ato deliberado de esquecimento como o da anistia política é, em geral, considerado um esquecimento positivo, especialmente se permite a emergência de uma nova vida política na qual as feridas passadas, mesmo as que não cicatrizam, não devem exacerbar a sua produção de ressentimento. Talvez essa seja uma boa maneira de pensarmos a experiência brasileira dos estertores da ditadura, a volta dos exilados e tudo o que aconteceu a partir dali. Podemos também pensar na transição democrática espanhola, que, após a morte do ditador Franco, exigiu uma laboriosa gestão da memória e do esquecimento entre franquistas e antifranquistas na elaboração de um consenso básico que permitiu ultrapassar a ditadura e construir um regime liberal-democrático. Um outro esquecimento recente, de enorme envergadura e consequências, está no concerto empreendido pelas nações europeias para formarem, a apenas cinquenta anos da Segunda Grande Guerra, a comunidade comum. De um modo mais abrangente, e para mudarmos um pouco de registro, poderíamos também nos referir à faculdade de perdoar, na sua acepção cristã, que, contrária à vingança, é concebida como uma forma positiva de esquecimento que liberta tanto quem perdoa como aquele que é perdoado.
Entretanto, o esquecimento que nos mobiliza aqui e que constitui a provocação de Adauto Novaes para o nosso ciclo não pode ser arrolado entre esses de natureza positiva. É um ato nefasto que produziu e que continua produzindo consequências a lamentar. Trata-se, em boa parte, de uma condenação ao passado, como se anacronismo fosse, de um amplo conjunto de práticas e valores que a tradição republicana sustentou como necessários à existência da boa política, mas que, por não serem funcionais para o domínio dos senhores de plantão, é condenado a desaparecer como impróprio aos tempos atuais. Dinâmica de esquecimento, aliás, bastante comum à história dos vencedores. Nos dias atuais, a hegemonia do modo liberal de pensar a política — e, aliás, tudo o mais — como se mercado fosse, quer nos impor a crença de que qualquer noção de cidadania ativa ou de bem comum como condição para o viver bem na cidade é puro resquício anacrônico. Anacrônico quer dizer coisa que se deve considerar inadequada ao mundo de hoje, coisa fora do tempo, como se a supremacia ideológica e econômica reivindicasse também para si o domínio sobre o tempo.
Essa dinâmica da história, que transforma em passado morto aquilo de que não mais se alimentam os vencedores, foi criticada já em meados do século XIX pelo francês Alexis de Tocqueville, que denunciou uma espécie de truque implícito nas modernas narrativas realistas da história. Narrar apenas os fatos finais, quer dizer, o que se estabeleceu com êxito, é dar voz exclusiva à vitória e aos vencedores e esquecer que outras possibilidades estiveram em jogo a cada momento da história antes de serem preteridas ou derrotadas. Tocqueville denunciou, em perspectivas históricas como a de historiadores como Thiers e de filósofos como Hegel, que sua preocupação exclusiva com os resultados dos processos, sem que viessem acompanhadas por uma apreciação política, terminava por entronizar o fato — a vitória de alguns — sem se perguntar pela sua justeza. Na abertura do seu livro sobre o fim do Antigo Regime francês, em 1856, Tocqueville afirmou que o historiador deveria se interessar não só pelas causas que mataram o doente — no caso, o Antigo Regime —, mas também em conhecer como este poderia ter-se salvo. Em outras palavras, a história deveria considerar não só os resultados finais, mas também as alternativas que foram, ali, descartadas ou ultrapassadas. Não se tratava, certamente, de prever um outro futuro a partir de hipóteses contrafactuais, mas de ativar o juízo crítico acerca das alternativas em jogo.

Compartilho também dessa noção de que o estabelecimento factual de uma forma qualquer de dominação — a sua vitória — não equivale necessariamente à sua superioridade ética, racional ou política sobre aquelas que foram derrotadas e atiradas ao esquecimento. E é por isso mesmo que a história é coisa tão relevante para lidar com esquecimentos dessa natureza. É próprio da história lembrar aquilo que empiricamente desapareceu, aí incluído o que talvez não devesse ética, racional e politicamente ter desaparecido. Ao mesmo tempo, não há sentido em se lidar de modo nostálgico com o passado, e a historiografia aqui proposta reivindica que a resignação narrativa às perspectivas vencedoras seja associada à erudição e ao juízo político.
Sabemos todos que, pelo menos desde a mitologia grega, a memória (Mnemosine) opõe-se ao esquecimento (Lete). Na cidade grega do século V a.C., na mesma pólis que experimentou a redução da força do mito para entronizar o logos, a história foi inventada como uma nova forma de lembrança do passado, como narrativa dos fatos humanos no tempo — ou, para sermos mais precisos, as histórias, no plural, que era a forma pela qual os gregos denominavam aquilo que hoje melhor traduziríamos por investigações. Heródoto, considerado pelos historiadores o pai da historiografia — a arte de narrar os fatos acontecidos no tempo mundano, diferente daqueles tempos primordiais ou heroicos de que nos falavam o mito e a epopeia —, inicia o seu livro sobre as guerras entre persas e gregos afirmando que escrevia aquelas histórias para “salvar do esquecimento” as grandes e admiráveis obras levadas a cabo pelos homens, fossem eles gregos ou bárbaros, que, de outra forma, seriam tragadas pelo tempo. Tucídides, o segundo dos grandes historiadores, elaborou a sua história da Guerra do Peloponeso como uma “aquisição para sempre”, um patrimônio eterno, o que queria indicar que o conhecimento ali registrado deveria servir aos homens, em qualquer tempo e lugar, como guia de conduta na direção da guerra, da diplomacia e das coisas públicas em geral. Cícero, o moralista romano, no século I a.C., cunhou a expressão “história mestra da vida” para se referir ao caráter pedagógico dessa empreitada contra o tempo que imortalizava a grandeza humana, salvando-a do esquecimento. Supunha-se, então, que a sabedoria acumulada pelos exemplos edificantes narrados pelos historiadores serviria permanentemente de orientação, de guia para a conduta humana no presente, qualquer que fosse esse presente. É ainda uma concepção como essa que apoia as afirmações maquiavelianas de que os homens de seu tempo têm de partilhar do “espirito genuíno da história” e imitar os grandes do passado nas suas ações políticas, assim como já o faziam em relação às leis, As artes e à medicina.
Até então, supunha-se que a vida humana era basicamente a repetição das mesmas coisas e que nada completamente novo, radicalmente novo, ocorreria no mundo dos homens, à exceção de um acontecimento cósmico, divino, como o Juízo Final. A sabedoria acumulada pela tradição só servia como guia para a conduta dos homens na sua vida pública, e a dupla regra de ouro consistia em imitar os antigos nos seus sucessos e evitar os erros já então cometidos e conhecidos. A suposta estabilidade da natureza humana e também das condições de vida fornecia o elemento de continuidade necessário para que se acreditasse que os eventos do presente e do futuro concebível encontrariam analogia com aqueles registrados nos anais da história. Para falarmos nos termos do historiador alemão Reinhart Koselleck, futuro e passado encontravam-se de tal modo articulados entre si que o horizonte daquilo que era possível esperar estava inteiramente controlado, ancorado, resumido, no espaço das experiências já conhecidas.
A mudança desse paradigma clássico, na verdade a sua implosão, se deu a partir do momento em que foi concebida a possibilidade revolucionária da construção de um futuro inteiramente diferente de tudo o que se passou, a possibilidade da ruptura radical com a tradição, o passado e os seus ensinamentos em beneficio de uma razão que se supunha autônoma e esclarecida, capaz de despir-se dos preconceitos, das crenças e superstições dos antepassados, para construir um mundo de felicidade, liberdade e razão. Importa salientar como essa perspectiva de ruptura veio acompanhada da autonomização da realidade histórica, que passou a ser pensada como um processo ordenado e passível de ser compreendido em sua racionalidade intrínseca. Reagindo à concepção setecentista do caos ontológico da história, a filosofia das Luzes destituiu os eventos de sua dignidade própria e exigiu sua inserção num contexto temporal mais amplo que os tornava inteligíveis enquanto elos de uma cadeia diacrônica abrangente e portadora de direção e de significado. As diversas histórias até então reunidas pelo orador tradicional em função de sua exemplaridade cederam seu lugar ao discurso historiográfico sobre uma unidade ontológica que articulava o conjunto dos fatos da aventura humana no tempo. Desse modo se pôde afirmar legitimamente que, “acima das histórias, existe a História”.
Descrevendo essas transformações no campo da consciência histórica europeia, Koselleck chamou a atenção para o fato de que a substituição da pluralidade descosida das experiências pelo “singular coletivo” da História fora parte do evento filológico geral de singularização e simplificação, dirigido social e politicamente contra a sociedade de ordens. Liberdade, Justiça, Progresso e Revolução — assim, com maiúsculas — foram algumas das expressões que manifestaram o caráter abstrato e universalista próprio à filologia das Luzes em seu ímpeto de ruptura com a sociedade da desigualdade que queria ultrapassar.

Antes mesmo que essa ultrapassagem fosse cumprida politicamente, a ruptura com o mundo tradicional se expressou no conceito de história, tornando-o irreconhecível aos antigos padrões conhecidos. Agora, a história (Geschichte) é sempre mais que as histórias narradas (Historie), e da narrativa histórica se espera “a unidade encontrada na épica derivada da experiência do Começo e do Fim”. Do ponto de vista linguístico, foi um só e o mesmo o evento que constituiu a história em seu sentido corrente e que deu origem as filosofias especulativas da história. Emancipando a história das cronologias formadas por ciclos de astros ou sucessões dinásticas, tais filosofias propuseram uma nova noção de tempo que, incorporando o futuro à nova totalidade ontológica, dotou-a de sentido ao representá-la como reveladora dos progressos da razão ou do espirito. A história profana ganhava ares de sacralização: portadora de um significado, esclarecia a natureza de cada um de seus eventos ao interpretá-los como estágios na realização de um telos definido.
Tal conjunto de transformações inviabilizaria a antiga capacidade pedagógica da historiografia, pelo menos tal como definida pelos marcos tradicionais da História Mestra da Vida. As noções de progresso do gênero humano e de perfectibilidade da razão acabariam por sugerir que a mudança histórica não se restringia As condições materiais da vida, mas alcançava a própria natureza do homem. Admitiu-se assim uma espécie do pluralidade de mundos humanos com a possibilidade de formas inéditas de vida, o que implicava a descolagem definitiva do horizonte de expectativas em relação a toda experiência pregressa. Essa abertura do futuro resultou na atualização de concepções que acreditavam na possibilidade, e mesmo na necessidade, de construí-lo de acordo com o planejamento da razão.
Mas, ao fazê-lo, introduziram uma desconhecida insegurança que derivava da nova dessemelhança entre futuro e passado. O espetáculo dos movimentos revolucionários que se sucederam à Revolução Francesa na primeira metade do século XIX produziu sensações inéditas em seus espectadores e consequências decisivas para as concepções de história. As intermitentes eclosões e resultados inesperados foram interpretados como manifestações de uma força autônoma em relação aos atores envolvidos, que eventualmente submergia para reaparecer mais adiante. De construtores da história, os revolucionários pareciam agora impulsionados por sua irresistibilidade, inaugurando-se o que Hannah Arendt denominou o “espetáculo da impotência do homem a respeito de sua própria ação”. O processo histórico parecia descolado dos seus atores. As filosofias da história do século XIX consolidaram a inversão do voluntarismo iluminista: a história deixava de ser vista como o resultado da vontade e da ação humanas para ser representada como processo autônomo, independente dos homens, e cuja força não se podia contrariar.

É essa transformação radical do conceito de história que deixa de significar a narrativa dos feitos exemplares destinada à orientação da conduta dos indivíduos na sua ação na esfera pública para referir-se a um processo histórico estruturado de desenvolvimento cuja racionalidade, aparente ou não, condena o passado à função de primórdio, que subjaz às possibilidades de afirmação de que determinadas práticas e valores devem ser esquecidos por não mais serem próprios ao tempo de agora. Mas parece que nos encontramos, hoje, em situação distinta. Independentemente de acreditarmos em definições de nossa condição como pós-moderna ou pós-histórica, creio que vivemos um tempo em que está descartada, pelo menos provisoriamente, qualquer perspectiva qualitativamente heterogênea de futuro, e os critérios com os quais ultrapassávamos facilmente os “antigos”, relegando-os às gavetas das reminiscências, não atuam mais de modo tão eloquente. Ao contrário do que supunham os antigos clássicos e também os modernos do Renascimento, o nosso horizonte de expectativas, aquilo que nos parece plausível acontecer, não pode mais ser controlado pela experiência tradicional, por aquilo que já conhecemos. Mas também de modo diverso do que supunham as filosofias da história dos séculos XVIII e XIX, não há mais condições para crermos numa concepção da história como algo que possui uma direção clara e passível de apreensão, a priori, pela razão. Aliás, para avançarmos ainda um ponto, ao contrário do orgasmo precoce do triunfalismo ideológico neoliberal que anunciou o fim da história tão logo se deu a queda do comunismo real, parece-me que o processo histórico, hoje, só pode ser concebido num horizonte aberto e imprevisível, fruto empírico da teia das consequências não-esperadas das ações daquelas e daqueles que, a cada minuto, nascem no planeta Terra.

Individualismo

Justamente aí, nessa desorientação do sentido de futuro da história contemporânea, nesse quadro ameaçador para a política, na reafirmação da sensação de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, na suspeita de desaparecimento de tudo o que até então era digno de ser salvo do esquecimento, que uma brecha pode se abrir para o pensamento e a memória da política. É também esse quadro de dissolução que traz consigo os motivos pelos quais me interessa revisitar a obra de Alexis de Tocqueville. Pois a sua sensibilidade profética anunciou que a democracia esvaziada de seu espirito cívico era o mundo público que se construía em meados do século XIX, e, embora a sua imaginação não pudesse prever o caráter radical dos desdobramentos, em nosso século, dos fenômenos que observara no seu, intuíra que a sociedade igualitária de massas traria consequências temíveis para a política, e talvez a sua própria morte. E o fim da política era, para Tocqueville, a aniquilação das faculdades mais nobres do ser humano, aquelas referidas ao pensar e ao viver coletivamente a experiência do bem comum.

A hipótese de que vivemos hoje algo totalmente inédito é, sem dúvida, sedutora, assim como é incontornável a sensação do vertigem que nos toma quando queremos encontrar na tradição as soluções adequadas para o nosso mundo novo. Mas é válida a lembrança de que nem a hipótese nem a sensação são exclusivas de nossa época. Ambas habitaram o âmago da reflexão tocquevilliana e nem por isso inviabilizaram a sua “conversa” produtiva com o passado. Na esteira desta reflexão, cabe pensar contratendências que possam deslocar, ainda que minimamente, a sensação de impotência diante dos dilemas contemporâneos da cidadania. E mesmo que seja impossível ignorar a distância histórica que nos separa da reflexão daquele autor, esta ilumina o que nos preocupa: os fenômenos que experimentamos hoje, e que consideremos próprios ao crescimento da sociedade de massas, não devem ser admitidos como naturais, isto é, como frutos inescapáveis de um processo sem alternativas. O necessário reconhecimento da força de adequação do individualismo às condições contemporâneas, assim como as explicações sociológicas das suas origens necessárias e consequências nefastas, não pode nos convencer de que estamos condenados à barbárie sem orientação.

Não temos de acreditar nisso, embora reconheçamos que vivemos num tempo muito distinto de todos os outros e que, por isso mesmo, reivindica desafios extraordinários tanto ao pensamento quanto ação. Tocqueville nos ajuda uma vez mais. Pois a sensação ambivalente de estar, por um lado, só, sem referências tradicionais, sem bússola, por assim dizer, e de outro ter a convicção ética e política de que há algo a ser feito e que a tradição republicana pode fornecer ferramentas para esse mundo novo é a sensação tocquevilliana expressa claramente no dilema que formula em relação à modernidade já em meados do século XIX e que reza o seguinte: a liberdade política na sociedade igualitária de massas depende de uma práxis e de um conjunto de valores cujos pressupostos tendem a ser destruídos pelo desenvolvimento continuado das disposições internas à própria sociedade igualitária que se constitui com o fim do domínio aristocrático.
Antes de prosseguirmos, cabe uma nota sobre a linguagem conceitual de Tocqueville. O autor denominou democracia o tipo de sociedade em que a desigualdade de natureza hierárquica constitutiva da sociedade aristocrática não pode mais vigir. A sociedade democrática é aquela em que não há impedimentos a priori para a ocupação de postos e posições sociais por qualquer um de seus membros. Embora haja desigualdades de fato na democracia de Tocqueville, elas não são inamovíveis como aquelas encontradas na sociedade aristocrática em que o nascimento, em si, era critério para conduzir ou impedir os membros das ordens heterogêneas a cargos e posições determinados.

O ponto de partida da crítica política de Tocqueville está na noção de que a sociedade democrática se caracteriza pelo “individualismo”, um fenômeno que o autor atribui às condições vigentes ao mundo moderno e que não se confunde com o tradicional “egoísmo”. Se o egoísmo manifesta uma corrupção do espirito individual, pessoal, o individualismo é fruto das condições objetivas da existência social igualitária. Uma vez destruídos a hierarquia e os lugares estamentais típicos do mundo aristocrático, a unidade do corpo social se fragmenta numa pluralidade de indivíduos independentes entre si e que, em última instância, só contam consigo para elaborar e realizar as atividades de sua vida. Essa extrema individuação resulta na constituição da massa de iguais. Perdido na multidão, o indivíduo tende a “isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se à parte com sua família e seus amigos; de tal sorte que, após ter criado dessa forma uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a grande sociedade a si mesma”.

Aos indivíduos da sociedade democrática moderna impõe-se a experiência do isolamento e da solidão. O abandono da “grande sociedade” implica o progressivo afastamento dos homens em relação aos negócios comuns, fazendo-os voltar-se exclusivamente para seus interesses privados. O horizonte de preocupações desse homem dificilmente ultrapassa a vivência mais imediata, seja na família, seja nos empreendimentos particulares, e o duplo resultado da fragmentação individualista é a privatização das relações sociais e a progressiva indiferença cívica.

Duas tendências correlatas ilustram a natureza desse processo: a instabilidade social crônica do homem democrático que o obriga a despender seu tempo na busca permanente do bem-estar material. Na sociedade moderna, a posição de cada indivíduo depende, teoricamente, de seu próprio esforço. E mesmo os que nascem em berço rico não têm garantias quanto à futura continuidade da sua posição. Dada a mobilidade característica da igualização das condições, o medo da decadência e o desejo da ascensão social são sentimentos virtualmente inerradicáveis e universais ao conjunto dos indivíduos democráticos. Daí a generalização do sentimento do “amor ao lucro” e da atividade incessante que quer a ampliação do bem-estar material e a consequente exacerbação do caráter privado das preocupações dos indivíduos em busca da garantia da sua posição pessoal.
Assim, individualismo, privatização e indiferença cívica são termos funcionalmente adequados entre si nas condições da democracia. Se no mundo aristocrático a parcela social emancipada do trabalho podia dedicar-se ao refinamento do espírito e da cultura e à direção dos negócios comuns, a sociedade burguesa tem a totalidade de seus membros imersa na produção de seu próprio sustento, o que implica a indisponibilidade geral de tempo pessoal para a dedicação às atividades públicas e a progressiva alienação cívica.
Cria-se um circulo vicioso. Quanto mais o individualismo se alastra, mais é percebido como natural à vida social, o que reforça a sua irresistibilidade nas consciências e nos comportamentos. A cada avanço, torna-se mais problemática a imaginação, por parte do homem democrático, de formas alternativas de convivência em sociedade. Nesse sentido que a privatização das relações sociais impõe-se como uma espécie de nova natureza. A base social individualista, ao confinar os homens ao interior da privacidade, destrói as condições de possibilidade das paixões públicas, da participação cívica, enfim, do Homem Político. Por isso mesmo, o problema central do individualismo não é a corrupção do caráter individual, mas a decadência dos costumes políticos na medida em que “só faz secar a fonte das virtudes públicas”.

Do ponto de vista político, Tocqueville reconhecia que só haveria “duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: dar os direitos a cada cidadão, ou não dá-los a ninguém”. Em termos metafóricos, ou todos participam diretamente do soberano, construindo uma sociedade à moda do Rousseau do Contrato Social, ou nenhum deles participa e delegam todos a um ser especial o monopólio da autoridade, como no Leviatã de Hobbes. Nas condições modernas, o sistema representativo pode ter dois destinos antagônicos. Se os cidadãos possuem uma dedicação rousseauniana, participam ativamente da discussão dos negócios comuns — condição para o efetivo controle do desempenho dos mandatários e para a boa escolha de representantes —, o sistema poderá garantir a liberdade na medida em que os homens permanecem senhores de si mesmos. Se não participam e delegam aos representantes a coisa pública, voltando-se com exclusividade para seus interesses privados, assumem uma identidade equivalente à dos súditos do Leviatã, o que, para Tocqueville, constitui a alternativa da servidão.

Entretanto, no contexto individualista, a alternativa rousseauniana é praticamente inviável, e é mais provável que ocorra a delegação consentida da soberania aos dirigentes do Estado. Tocqueville reconhece as dificuldades de participação nas questões nacionais, dado o tamanho das nações modernas. Todavia, mesmo em relação às menores questões locais sobre as quais haveria plenas condições materiais para a participação, a indiferença cívica tende a prevalecer, dado o enclausuramento dos indivíduos na privacidade.

A consequência é o agravamento da centralização administrativa, isto é, da extensão do poder de controle e de decisão do Estado sobre todas as questões, mesmo as menores e locais. Além do desinteresse pela coisa comum, que deriva do apego democrático ao bem-estar privado, a ignorância prática acerca da elaboração e da resolução dos mais simples problemas coletivos impõe-se com o fim de toda experiência política e administrativa dos cidadãos. A alienação em relação ao mundo dos negócios públicos completa a corrupção das virtudes cívicas.

Neste mundo burguês, a única paixão política que ainda sobrevive é a da tranquilidade pública, que exige segurança para o livre gozo dos prazeres privados. No limite, os indivíduos acabarão por aceitar qualquer forma de governo e qualquer governante, desde que a segurança de seus bens esteja garantida e eles não precisem aborrecer-se com os negócios comuns.

A solução para essa situação moderna está no que apresentara Benjamin Constant: o sistema representativo de governo com eleições regulares. Mas como indivíduos alienados da coisa pública poderão eleger bons representantes, acompanhar seus mandatos e julgar o seu desempenho? O indivíduo moderno é, de fato, na análise de Tocqueville, incapaz para a política. O processo eleitoral torna-se uma rotina de delegação da soberania para aqueles poucos dedicados — antes por profissão que por virtude — à gestão dos negócios comuns.

Que não se leia Tocqueville como alguém que quer negar ao povo o direito de voto por não saber votar. Não há qualquer negação das eleições e da participação popular como instrumentos necessários à vida política moderna, mas sim um radical questionamento do espirito e da práxis que predominam entre os cidadãos que acreditam estar dirigindo a si mesmos — já que elegem regular e livremente seus dirigentes —, mas que não têm uma educação política prática para fazê-lo de fato já que suas vidas estão devotadas à privacidade.

O que Tocqueville vai conceituar como a “nova espécie de despotismo que devem temer os povos democráticos” é um governo tutelar, que trata seus súditos como menores incapazes de se governarem nos assuntos da vida comum. O novo despotismo tem, na base, um conjunto de súditos iguais, os quais vivem a experiência fragmentária do isolamento social e passam o seu tempo na busca de “pequenos e vulgares prazeres”, preocupados exclusivamente com seu bem-estar material. Desprovidos de iniciativa política e de qualquer relação efetiva com a esfera dos negócios públicos — salvo nas eleições sazonais —, os súditos transferem para o Estado a totalidade da responsabilidade pela resolução das questões coletivas.
O soberano não é tirânico, pois não se caracteriza pelo uso da violência nem deixa de atender às exigências do povo, nem despótico no sentido tradicional, pois a relação entre soberano e súditos não se compara àquela entre senhor e escravo. Pelo contrário, o novo despotismo é “doce” — como Tocqueville o chama —, zela pela felicidade de todos, garantindo-lhes o bem-estar. A relação entre soberano e súditos se aproximaria daquela do pátrio poder, mas os filhos do despotismo democrático não permanecem sob a custódia paterna apenas até a sua maioridade etária. Pelo contrário, parecem condenados a uma eterna “menoridade”, conceito que lembra a noção kantiana da menoridade como incapacidade do indivíduo de fazer uso público de seu entendimento, sem a direção de outrem.

A tutela produz espíritos satisfeitos que abolem do cotidiano a experiência da autonomia política. Ela enfraquece a vontade, tornando os homens incapazes de formular alternativas próprias e concretizá-las através de sua ação. O que está em jogo, reza a verve tocquevilliana, a criação de uma “nova raga de animais obedientes”, impossibilitados que estão de fazerem uso público de sua razão. Um quadro agravado pelo fato de que tais seres acreditem viver livremente no contexto do governo representativo, embora sejam, de fato, incapazes de opinar, criticar e agir, no mundo politico, por si mesmos.

Nesse quadro, Tocqueville recusa-se a reconhecer a presença da liberdade. O comparecimento sazonal às urnas, que constitui regra elementar da sociedade democrática, é insuficiente e enganador, pois ocorre num contexto de menoridade política. Não foi sem razão que Tocqueville encontrou dificuldades para conceituar essa construção teórica que talvez só pudesse ser chamada de “despotismo pelo consentimento do povo” — uma contradição em termos para o pensamento ocidental, que tradicionalmente vinculou o conceito às formas orientais de dominação, adequadas a uma suposta natureza servil própria a bárbaros e asiáticos, mas estranha aos europeus.

Um despotismo estável num mundo de homens livres era, até ali, impensável para a tradição do pensamento político. Mas talvez os ocidentais não fossem mais tão livres quanto supunha o senso comum europeu, para o qual qualquer tentativa de estabilização de uma autoridade despótica esbarraria “naturalmente” na resistência inerente ao homem livre. Eis a ousadia intelectual de Tocqueville: introduzir a novidade teórico-política de um despotismo de novo tipo no Ocidente, um despotismo perene, identificado com o funcionamento regular das instituições da sociedade burguesa.

Soluções?

Como se vê, embora Tocqueville e Constant partam do mesmo reconhecimento de que as condições modernas tornam os indivíduos inclinados à vida privada e desprovidos de virtudes públicas, o otimismo do segundo não encontra eco na crítica do primeiro. A hipótese do despotismo democrático sintetiza, no nível da abstração, o conjunto das tendências que são irradiadas da base social da sociedade igualitária, O caráter trágico é notável: trata-se de tendências que se acentuam com o prosseguimento da própria experiência da igualdade, que se naturalizam e se tornam cânones do senso comum, que, por sua vez, lhes confere legitimidade e estabilidade.

Entretanto, se ao trágico corresponde um herói, Tocqueville insistirá na reversão ou “educação” do quadro apresentado pelo seu diagnóstico da modernidade. Insistência que parece conformar-se à necessidade existencial de afirmar, sendo a saída para os problemas, a busca mesma de alternativas para que se mantenham vivos os “atributos próprios de humanidade”.

Não cabe aqui um tratamento das alternativas tocquevillianas. Pelo exposto, é possível compreender que elas devem investir na ruptura com as tendências individualistas e fragmentárias do estado social como condição para uma participação cidadã que ultrapasse o quadro de alienação dos indivíduos em relação à coisa pública. Formas de incentivo ao abandono, ainda que temporário, das preocupações exclusivas com o bem-estar material, e uma defesa das liberdades civis do pluralismo como condição de possibilidade da imposição de limites ao exercício do poder estatal: eis alguns dos componentes constitutivos das proposições tocquevillianas contra o despotismo.

Porém, as medidas de maior impacto — e que deram a Tocqueville a fama de suas formulações — referem-se à descentralização administrativa, com a proliferação, no nível municipal ou comunal, de instâncias de discussão e gestão da coisa pública, nas quais pudessem participar todos os cidadãos de uma dada localidade. Em nível local, crê Tocqueville, é maior a probabilidade de participação dos cidadãos, na medida em que aí são percebidos, com maior facilidade, os vínculos entre seus interesses privados e aqueles do público.

A experiência nessas instâncias da democracia direta seria equivalente àquelas que Tocqueville encontrava e elogiava nas antigas assembleias medievais ou nas comunas da Nova Inglaterra. Aproximando a coisa pública do indivíduo, tais instâncias propiciariam o afloramento de um tipo de civismo municipal que capacitaria os indivíduos para a gestão da coisa comum e para a crítica dos representantes. Ao mesmo tempo, os obrigaria a romper com a exclusividade de seus interesses privados, ampliando seu horizonte social e estabelecendo laços comunitários. O mesmo argumento vale para as associações voluntárias, civis ou políticas, que reúnem indivíduos com interesses comuns na busca de soluções coletivas para seus problemas.

Poderíamos continuar com as indicações tocquevillianas para contra-restar as tendências “naturais” da sociedade igualitária. Mas o que importa é perguntar se não seriam inócuas, na medida em que exigem a presença de valores e práticas cujas condições de possibilidade são destruídas pela própria experiência da modernidade. Pois de pouco adiantariam estruturas formais de gestão sem que nelas imperasse um espírito radicalmente distinto daquele que caracteriza os súditos do despotismo.

Se o espírito de aristocracia está em extinção, é num republicanismo de inspiração clássica que Tocqueville vai buscar a virtude necessária ao comando da democracia. Sem tal espírito — e isso é o que a leitura liberal de Tocqueville com frequência despreza —, teríamos a simples reprodução das “formas exteriores da liberdade”.

Não seria correto supor um otimismo político em Tocqueville, dadas as circunstâncias adversas ao alcance de um espirito cidadão nas condições igualitárias. Mas se pretendemos especular sobre uma provável resposta de Tocqueville acerca das perspectivas políticas ao considerar o horizonte sombrio de seu diagnóstico da modernidade, temos que reconhecer que, contra as evidências que recolhe da análise empírica e da experiência política, Tocqueville parece crer na possibilidade da intervenção humana na construção de um destino de liberdade para a moderna sociedade igualitária.

É essa crença que dá significado à sua plataforma de trabalho que aparece sintetizada na “Introdução” de A democracia na América: uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo”. Uma ciência que deve ser capaz de demonstrar as determinações históricas e sociais da nova sociedade, ao mesmo tempo em que aponta para os espaços sensíveis à ação, denunciando o perigo do abandono da história às suas determinações brutas.

Qual é essa “ciência” hoje é uma questão que vale tentar perquirir e responder.

Notas

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