Preguiça e capitalismo
por Frédéric Gros
Resumo
A tradição ocidental apresenta duas grandes abordagens da preguiça: a moral e a política. Para a primeira, a preguiça é condenável, enquanto vício ou pecado – já que dela decorreria a recusa ao trabalho. Desde o livro “O direito à preguiça”, de Paul Lafargue, a abordagem política vai de encontro a isso, ao legitimar a preguiça, sobretudo como forma de resistência à ideologia capitalista do trabalho compulsivo. Através dela, liberta-se o tempo, o corpo e o pensamento.
A partir desta abordagem, cabe tratar das seguintes dimensões assumidas pelo Capitalismo: a mercantil, a industrial, a empresarial e a especulativa. Pois bem. Ao entendê-lo por um processo de produção maciço e sistemático de riqueza baseado na iniciativa privada, conclui-se que ele a potencializa com a constituição de mercados, a exploração do trabalho, a organização de empresas e a especulação financeira. Não se trata – destaque-se – de quatro períodos históricos do Capitalismo, mas de quatro dimensões em que ele age, por meio do comerciante, do industrial, do “manager” e, enfim, do “trader”.
Como a preguiça perpassa tais dimensões e seus representantes?
De início, cabe considerar o teórico liberal Adam Smith, para quem a busca do interesse individual constitui o benefício coletivo. Em oposição a ele, Henry David Thoreau pergunta-se sobre quanto, em termos de vida, custa ser rico. Sabe-se que caro. Muito caro – já que é preciso trabalhar sem parar, cuidar para não ser superado pelos concorrentes, vigiar constantemente os negócios etc., motivos pelos quais Thoreau decide levar uma vida que, vista de fora, parece miserável e preguiçosa. Caminhadas, contemplações, leituras… “Aproveito” – escreve ele – “o que a Natureza dá a ver, a escutar, a sentir, e tudo isso de graça, como perfume das flores, canto dos pássaros, beleza das paisagens. E esses encontros me permitem acumular um tesouro de impressões e lembranças que ninguém poderá me tirar, o que não é o caso de riquezas que uma crise financeira faz subitamente desaparecer”.
Ainda para Smith – e eis a segunda dimensão –, cada trabalhador deve se especializar e, para ser o melhor na sua especialidade, deve praticá-la de maneira exclusiva. A polivalência é, por ele, entendida como falta de seriedade, uma das facetas da preguiça. Para a otimização do Capitalismo, deve-se ser monomaníaco.
A terceira dimensão evidencia-se com o transbordamento do modelo empresarial. Não basta administrar bem a fortuna. É preciso ser também bom administrador das relações pessoais, afetivas e sociais. Ser empresário de si mesmo. Viver para coordenar o crescimento dessa pequena empresa que cada um constitui para si, com seu capital inicial e suas aquisições.
O capitalismo financeiro, enfim. Para ele, é preciso estar sempre adiantado; logo, em constante tensão. Ora, a preguiça consiste, precisamente, em estar disponível ao presente. Ser preguiçoso é não antecipar. O imediato é o contrário disso. Estar disponível é, no fundo, dar tempo a si mesmo
A preguiça é, enfim, uma arte de fazer-se presente. A multiplicação dos objetos, o movimento social incessante, a busca de “performances”, tudo isso acaba por gerar ausência. Arrastado pelo movimento do mundo, fica-se ausente dele, para os outros e para si mesmo. Por isso pode-se afirmar que a preguiça não é tempo perdido, pois dar tempo a si mesmo é enriquecer o presente.
Parece-me que podemos identificar, através da literatura ocidental, duas grandes problematizações da preguiça: uma problematização moral e uma problematização política. A problematização moral consiste numa condenação da preguiça, considerada um vício, um pecado capital. A preguiça, nesse sentido, é a recusa de trabalhar, a indolência, a falta de energia. Existe também, desde o famoso texto de Lafargue intitulado O direito à preguiça, uma problematização política que, ao contrário, valoriza a preguiça e considera que esta pode representar uma forma de resistência política diante da ideologia capitalista do trabalho compulsivo. Nessa segunda problematização, a preguiça não significa uma incapacidade de fazer esforços, mas uma liberação: liberação do tempo, liberação do pensamento, liberação da existência.
Aqui, vou considerar sobretudo esse segundo aspecto da preguiça. Partirei de quatro dimensões do capitalismo: mercantil, industrial, empresarial e especulativa. Pois bem, se entendermos por capitalismo um processo de produção maciço e sistemático de riquezas, baseado na iniciativa privada, direi que, através da longa história do capitalismo, quatro grandes maneiras de criar riqueza foram definidas: a constituição de um, mercado, a exploração do trabalho, a organização das empresas e, enfim, a especulação financeira. Insisto aqui em dizer que não se trata de quatro sequências históricas do capitalismo, mas de quatro dimensões. Essas dimensões se encarnam em quatro grandes figuras da história do capitalismo: o comerciante, o capitão de indústria, o manager e, enfim, o trader. Então vou mostrar como, para cada uma dessas quatro dimensões, podemos pensar uma possibilidade de resistência preguiçosa.
Mas antes eu gostaria de evocar, à guisa de introdução, dois momentos na obra de Foucault em que ele colocou o problema da preguiça.
O primeiro é na sua História da loucura, que data de 1961 e da qual se festeja este ano o cinquentenário de publicação. Vocês certamente sabem que há nesse livro um episódio muito importante: o do encerramento dos loucos no Hospital Geral de Paris no começo do século XVII. Outrora, no Renascimento, os loucos levavam com facilidade uma existência errante: eram tolerados com a condição de circularem perpetuamente. Na época clássica, eles serão sistematicamente encerrados: não se suporta mais vê-los vagarem pelas ruas ou pelos campos. Esse episódio, então, costuma ser interpretado como o sinal da exclusão da loucura pela Razão ocidental. Os muros do hospício testemunham que a razão clássica afirma sua identidade a partir de uma rejeição, de uma exclusão da loucura.
Essa interpretação é a mais evidente, mas o texto de Foucault oferece outra possibilidade de leitura que destaca, justamente, uma condenação da preguiça. De fato, Foucault mostra que a população que se acha encerrada não é especificamente a dos loucos. São encerrados os vagabundos, os mendigos, as prostitutas, os sem-teto. Na verdade, esse encerramento sistemático testemunha principalmente uma mudança de sensibilidade social muito importante em relação ao mundo da miséria. Durante muito tempo o cristianismo havia construído em torno da figura do pobre, do louco, do miserável errante, uma aura mística: esses personagens tinham uma dimensão crística. Quando as sociedades da época clássica encerram o mundo da miséria, é com base na dessacralização da pobreza. A pobreza não tem mais dimensão mística: é tratada simplesmente como um problema de ordem pública. Mas por trás dessa medida politica (o pobre errante é encerrado por razões de ordem pública) há também uma condenação moral. Encerra-se o mundo da miséria porque se suspeita que os vagabundos, os mendigos e os loucos sejam, sobretudo, preguiçosos. Encerram-nos para obrigá-los a trabalhar. Na verdade, os hospitais gerais eram centros de trabalho forçado. Não se explica a miséria por razões econômicas, mas por razões morais: o vício da preguiça.
Encontramos na obra de Foucault um segundo desenvolvimento importante sobre a preguiça, desta vez na descrição das sociedades disciplinares num livro igualmente muito conhecido: Vigiar e punir. Lembro aqui rapidamente o que Foucault chama de disciplina. A disciplina é uma modalidade do poder sobre os corpos. Em realidade, trata-se de estruturar as atitudes do corpo para extrair dele o máximo de utilidade. Essa organização adquire várias formas que Foucault descreve bem em Vigiar e punir: a distribuição espacial (numa oficina, por exemplo, se buscará dispor os operários de maneira ótima para que uns não atrapalhem os outros); os mecanismos de exame (numa escola, por exemplo, serão avaliadas regularmente as competências dos alunos); o sistema de penalidade (no exército, para obrigar os soldados a obedecerem cegamente, se instaura todo um sistema de punições); e os dispositivos de vigilância que devem resultar num autocontrole dos indivíduos. A disciplina, como se vê, é uma modalidade de poder que permite obter, por um sistema de pressões insistentes e contínuas, certo número de comportamentos normatizados a fim de produzir um bom soldado, um bom operário, um bom aluno etc.
Há ainda um último instrumento da disciplina: o emprego do tempo. Foucault mostra que as fábricas, as casernas, os pensionatos, as escolas são organizados segundo empregos do tempo extremamente estritos. Faz-se corresponder a cada momento do dia uma atividade, tenta-se reduzir ao máximo os momentos vazios. A disciplina finalmente se apresenta como uma cronopolítica: uma ocupação completa, exaustiva, sistemática e racional do tempo da vida. Creio que há uma primeira interpretação evidente da disciplina como organização racional do tempo. Se tempo é dinheiro, considera-se que todo momento vazio na jornada do operário é um tempo morto para a produção de riquezas e representa, portanto, uma perda. É importante que o trabalhador não fique um instante sequer sem fazer nada, porque isso corresponderia a uma diminuição de sua produtividade.
No entanto, certamente vocês sabem que não foram os capitalistas do século XIX que inventaram, com a organização do trabalho nas fábricas, o princípio de uma programação exaustiva do tempo. Nos mosteiros cristãos, os momentos da jornada são também extremamente codificados. É que, para os monges, todos os instantes devem ser consagrados à devoção, não devendo haver um minuto sequer que não seja dedicado a cantar, de uma maneira ou de outra, louvores a Deus. Também porque o momento vazio é uma tentação para a preguiça, que representa um gozo de si e uma lascívia perigosos, porque ocasionam todos os pecados. Mas vejam a diferença: na fábrica, se nenhum momento deve ser vazio, é porque nada deve escapar à produção das riquezas.
Após essa introdução um pouco longa em torno de Foucault, eu gostaria de mostrar como, a partir das quatro dimensões do capitalismo que evoquei há pouco, podemos desenhar quatro figuras da preguiça como contrapontos, possibilidades de resistência ou, para empregar uma expressão de Foucault, de “contraconduta”. Essa preguiça da qual se falará, repito, não é uma passividade lasciva, uma recusa sistemática do esforço ou uma ausência de energia ou de coragem, mas outra forma de atividade, uma relação de si a si alternativa àquela que o capitalismo propõe.
Falarei aqui ao mesmo tempo de capitalismo e de liberalismo, mesmo que esses dois termos não se sobreponham inteiramente. O que chamamos capitalismo é uma determinada escolha de sociedade, a saber, a orientação do conjunto das forças (materiais, espirituais, naturais, sociais) para a produção de riquezas — produção de riquezas maciça, sistemática e racional, baseada na iniciativa privada. Nesse sentido, o capitalismo pode ser definido como um processo histórico. O liberalismo designa mais uma doutrina, um conjunto de discursos, uma filosofia. Há um liberalismo político que consiste em uma valorização do indivíduo, uma defesa de seus direitos naturais, um apelo à sua emancipação contra abusos de poder estatais, religiosos ou pedagógicos. Ao lado desse liberalismo politico, há também um liberalismo econômico que, de maneira bastante ampla, consiste na demonstração racional do interesse, para a humanidade inteira, do modo capitalista de produção das riquezas.
Partirei, para começar, do famoso texto de Adam Smith, A riqueza das nações, geralmente considerado o texto de referência do liberalismo econômico, e reterei desse livro essencialmente duas teses.
A primeira é a tese, muito conhecida, da mão invisível. Smith afirma, em seu texto, que cada um deve seguir cegamente seu interesse pessoal, e que é da busca de cada um pelo lucro que poderá resultar a prosperidade geral e o benefício coletivo, bem melhor do que se estes fossem buscados por si mesmos. A imagem da mão invisível está aí para sublinhar o aspecto providencial dessa coincidência: é como se, escreve Smith, uma mão invisível se servisse secretamente da busca de cada um por seu interesse próprio para produzir a utilidade comum. Esse enunciado é fundamental porque rompe uma evidência secular do pensamento político. Essa evidência, que se encontra tanto em textos antigos como modernos, é o tema da oposição irredutível entre o interesse pessoal e o interesse coletivo. Nos textos de pensamento político, de Aristóteles a Rousseau, aparece com muita frequência a ideia de que, para produzir e garantir o interesse de todos, o governante não deve levar em conta seu interesse particular; e também de que se deve pedir a cada cidadão, em nome do bem comum, que sacrifique seu bem pessoal.
Ora, com esse texto de Adam Smith, e com a tradição liberal em geral, não apenas não há oposição, mas há mesmo uma relação de causalidade unívoca: é somente se cada um buscar seu lucro pessoal que a utilidade comum será atingida. Compreende-se bem, a partir daí, que os liberais possam denunciar as politicas públicas que gostariam de produzir o bem público por leis coercitivas: o bem público jamais pode resultar, segundo essa doutrina, senão do jogo natural dos egoísmos econômicos.
O problema, evidentemente, é que a doutrina liberal, quando fala de “prosperidade geral”, de “utilidade comum”, de “interesse de todos”, entende apenas um aumento global das riquezas. Aliás, para tomar a história das últimas décadas, é certo que a liberação do jogo concorrencial e a desregulação das trocas comerciais e financeiras ocasionaram efetivamente uma multiplicação dos bens materiais no mundo. Resta perguntar que sentido pode ter esse aumento puramente quantitativo frente a um interesse coletivo que seria expresso, dessa vez, em termos de justiça, de solidariedade ou mesmo de felicidade.
Ou seja, a tese liberal se baseia na síntese abusiva e discutível entre “bem comum” e “lucro global”. Quero aqui evocar um texto que nos permitirá esboçar precisamente uma primeira figura da preguiça como contraponto ao capitalismo como valorização de uma busca individual do ganho econômico. É um texto escrito por um autor americano conhecido: Henry David Thoreau. Esse texto é Walden ou a vida nos bosques. Thoreau é uma personalidade muito singular, bastante excêntrica, que no começo do século XIX quer romper com a civilização materialista e a obsessão do ganho econômico que ele vê desenvolver-se entre seus contemporâneos. Assim ele decide passar algum tempo em autarcia completa, sem trabalhar, numa cabana que ele mesmo construiu à beira de um lago, ocupado em ler, em caminhar, em contemplar o espetáculo da natureza e em procurar o que comer na jornada. É essa vida que ele relata em Walden. Vocês compreendem imediatamente que, visto de fora, Thoreau aparece como um indivíduo bizarro, excêntrico e, principalmente, como um preguiçoso que passa os dias sem fazer nada.
Seu livro Walden ou a vida nos bosques, como sabem, conheceu um grande sucesso. Acho que esse sucesso se deve a uma provocação enorme contida no livro. De fato, Thoreau coloca a questão, muito provocadora, do custo da riqueza. Ele se pergunta: quanto custa à vida ser rico? Pois bem, todos sabem que custa muito caro: é preciso trabalhar sem parar, cuidar para não ser superado pelos concorrentes, vigiar constantemente seus negócios etc. E é porque custa muito caro querer ser rico que Thoreau decide levar uma vida que, vista de fora, parece miserável e preguiçosa.
Mas essa vida miserável e preguiçosa, essa vida na qual se dedica muito mais tempo a caminhar e a contemplar a natureza do que a trabalhar, muito mais tempo a ler coisas inúteis do que a contar dinheiro, essa vida lhe é muito proveitosa. Por exemplo, escreve Thoreau, “minhas longas caminhadas cotidianas são proveitosas porque aproveito o que a Natureza dá a ver, a escutar, a sentir, e tudo isso de graça: perfume das flores, canto dos pássaros, beleza das paisagens. E esses encontros me permitem acumular lembranças, formar um tesouro de impressões e de lembranças que ninguém poderá me tirar, o que não é o caso de riquezas que uma crise financeira faz subitamente desaparecer”.
São essas atividades preguiçosas que lhe permitem, precisamente, adquirir tal fortuna. Aqui aparece uma primeira determinação muito importante da preguiça, sobre a qual se falará com frequência, e que é a presença. Pela preguiça me torno presente ao mundo, presente aos outros e, sobretudo, presente a mim mesmo. E é essa presença que me é recusada quando busco obstinadamente o lucro.
Gostaria agora de examinar uma segunda tese presente no livro de Adam Smith: a divisão do trabalho. Smith afirma que a divisão do trabalho é uma das condições da produção maximal das riquezas. Esse tema da divisão do trabalho não é novo: já encontramos na República de Platão a ideia da necessidade da especialização. Mas essa divisão permanecia subordinada a um ideal de autarcia que era o da cidade grega. Os textos de Smith e mais tarde de Ricardo insistirão, ao contrário, na necessidade, para otimizar as trocas, de uma especialização da produção por regiões e mesmo por nações. Mas essa produção maximal de riquezas por especialização só pode se dar ao preço de uma interdependência generalizada. Então, para voltar ao nosso problema, penso que esse tema da divisão do trabalho acarreta uma obsessão pela especialização nas sociedades capitalistas. Cada um deve se especializar e para ser o melhor na sua especialidade, deve praticá-la de maneira exclusiva. Querer desenvolver diferentes talentos, recusar a especialização, será visto como falta de seriedade, como próprio de um temperamento preguiçoso, porque, para fazer funcionar de maneira ótima o sistema capitalista, cada um deve ser monomaníaco. Marx, no seu texto A ideologia alemã, denuncia com ênfase a dimensão alienante dessa especialização e sonha com uma sociedade na qual, justamente, cada um pudesse desenvolver uma gama diferenciada de talentos.
Mas os textos de Marx, como sabemos, insistem numa outra dimensão do capitalismo, a da produção industrial. O capitalismo não é apenas a busca do lucro ou a especialização das tarefas, é também a exploração das energias, é também a grande indústria. Então eu gostaria de voltar aqui à ligação que Foucault estabelece entre a disciplina e o capitalismo, num curso inédito que ele pronunciou no Collège de France em 1973 e que se intitula “A Sociedade Punitiva”. Nesse curso, Foucault reconhece que Marx analisou e elucidou o processo de transformação da força de trabalho em força de produção. O operário vende ao patrão uma força de trabalho, e o patrão, que é o proprietário dos meios de produção (proprietário das fábricas, das máquinas), transforma essa força de trabalho, que o operário vende como mercadoria, em força de produção. E essa transformação é evidentemente geradora de lucros para o patrão, pois o custo de reconstituição da força de trabalho é inferior aos lucros de produção que ela gera. Tal é a demonstração geral de O capital. Mas Foucault, nesse curso inédito, mostra que o capitalismo exige uma transformação preliminar: a transformação da força vital em força de trabalho ou, mais precisamente ainda, transformação do tempo da vida, que é um tempo plural, qualitativo, em tempo de trabalho monótono e abstrato. Ora, é precisamente a disciplina que opera essa transformação. Pela disciplina, aprendida na escola, no exército, na família, o tempo da vida se torna um tempo mecânico. Pois o tempo da vida é um tempo concreto, elástico, diversificado, maleável. Comporta ritmos diferentes, conhece acelerações e pausas. Ao contrário, no quadro da produção industrial, o tempo do trabalho é um tempo regular: é o tempo da máquina, com seus ritmos invariáveis, repetitivos. O princípio da disciplina é impor à vida, justamente, essas regularidades mecânicas, essa ordem fria e implacável. A função da disciplina, portanto, é fazer o corpo vivo se conectar com a máquina, é transformar o corpo vivo em corpo-máquina. Mas o que se impõe também, na disciplina, é a ideia de que todos os momentos devem ser úteis, eficazes. Cada momento deve servir para produzir alguma coisa, para obter um resultado que nos fixamos.
Essa programação voluntarista e exaustiva do tempo nos faz perder algo de precioso, que é justamente o tempo que poderíamos chamar de tempo da disponibilidade e da espontaneidade, e esse tempo supõe atividades preguiçosas. Vou retomar aqui o exemplo da caminhada, já evocado a propósito de Thoreau. Além de Thoreau, há outros pensadores, filósofos ou escritores que praticaram regularmente essa atividade, inútil e improdutiva, da caminhada, pois na maioria das vezes, quando se caminha, volta-se ao mesmo lugar de onde se partiu. Evidentemente se pode encontrar certa utilidade na caminhada, dizendo que afinal ela repousa do trabalho e permite, a seguir, trabalhar ainda melhor e mais rápido. Mas quero aqui tomar o exemplo de caminhantes como Nietzsche ou Rousseau. Nietzsche e Rousseau foram grandes caminhantes, mas nunca consideraram que a caminhada fosse um parêntese que lhes permitia repousar das fadigas da escrita, da reflexão ou da criação. Ao contrário, afirmavam que ela era a condição da sua obra. Somente durante essas caminhadas solitárias, essas longas marchas inúteis, é que eles se tornavam criativos. E reencontravam a criatividade na caminhada precisamente porque ela os deixava disponíveis. Na caminhada não nos obrigamos a pensar nisso ou naquilo, não nos forçamos a chegar a determinado resultado. As ideias vão e vêm, e é precisamente essa liberdade do pensamento que nos permite encontrar formas, ideias, frases que nunca teríamos encontrado por meio de uma marcha intencional, metódica. Atividades preguiçosas como a caminhada, a vadiagem, a contemplação vaga permitem ao pensamento reencontrar a verticalidade de suas forças. A preguiça torna o pensamento inventivo porque o pensamento então não é mais um simples instrumento, mas volta a ser uma faculdade viva. Mais uma vez, esse tempo da disponibilidade não é um tempo vazio: é o tempo da gestação e da germinação lentas. Impor-se preencher todos os momentos da existência é privar-se de um tempo que permite justamente a renovação e a invenção.
Vou agora considerar uma terceira dimensão do capitalismo, que conheceu um desenvolvimento muito forte nos anos 1970. Pode-se produzir riqueza abrindo o espaço de um mercado concorrencial ou explorando o trabalho. Mas a criação de riquezas pode depender também de uma organização ótima das empresas. Toda a ciência domanagement de empresa está aí: fazer circular a informação com a maior velocidade possível, motivar os empregados, rentabilizar ao máximo as capacidades de cada um. Farei aqui novamente uma referência a Foucault, lembrando algumas das teses que ele defende num curso pronunciado no Collège de France em 1979 e intitulado “Nascimento da Biopolítica”. Esse curso tenta compreender o que é o neoliberalismo, e Foucault estuda com muito cuidado e atenção os trabalhos de Gary Becker. Creio que uma das grandes ideias desse curso consiste em mostrar que o neoliberalismo constitui uma revolução. Mas não é nem uma revolução política, nem uma revolução econômica, é uma revolução ética. De fato, o que Foucault considera fascinante e terrível no neoliberalismo é a extensão indefinida do modelo da empresa para fora da esfera propriamente econômica. Já faz tempo que os marxistas, como se sabe, denunciaram o perigo da mercantilização do mundo. Com o capitalismo, tudo se torna mercadoria: o mundo é uma mercadoria, o homem é uma mercadoria etc. Foucault denuncia no neoliberalismo e na Escola de Chicago um novo risco: tudo deve ser pensado segundo o modelo da empresa, tudo se torna empresa.
Nessa perspectiva, não basta administrar bem sua fortuna. É preciso ser também o bom administrador de suas relações, de seus afetos, de sua história. Cada um deve ser o empresário de si mesmo. O modelo da rentabilização dos investimentos, da valorização sistemática das capacidades, deve instruir as relações sociais e mesmo a interioridade psíquica. Viver é fazer frutificar essa pequena empresa que cada um constitui para si mesmo, com seu capital inicial e suas aquisições. Educar um filho não é, como por muito tempo se acreditou, de Montaigne a Condorcet, dar-lhe elementos de cultura para que se torne um cidadão responsável. Educar é efetuar uma série de investimentos que deverão se mostrar rentáveis; ter amigos não é desfrutar o prazer de estar com indivíduos escolhidos que compartilham nossos valores, é constituir um capital de relações que poderá se revelar útil. Portanto, com os colegas, com os amigos, com os filhos, consigo mesmo, trata-se sempre de fazer bons investimentos. A relação consigo próprio é transformada. Outrora, o indivíduo era solicitado a controlar suas paixões, dominar seus afetos, ou então convidado a fazer desabrochar seu “eu” autêntico. Agora lhe pedem para ser o bom administrador de si mesmo.
Então se compreende, aqui também, que essa obsessão pela rentabilidade nos privará de algumas experiências que supõem, precisamente, certa gratuidade. Podemos tomar aqui o exemplo da emoção estética. Nos seus escritos sobre a arte, Hegel afirma que, na contemplação estética, trata-se de deixar existir a coisa bela por si mesma. É somente quando não se coloca a questão de sua utilidade, de sua eficácia, que uma coisa, ele escreve, pode se mostrar bela para nós. Uma existência que exclui a gratuidade e exige de cada encontro que ele seja rentável priva-se de toda experiência estética.
Gostaria agora de passar a uma última dimensão do capitalismo, particularmente importante hoje: a especulação financeira. Desta vez, a criação de riquezas se fará por meio de uma antecipação de valores. É verdade que a ideia de especulação é muito antiga. Sabemos, por exemplo, que Tales, um dos sete sábios e autor do célebre teorema, previu uma grande colheita de olivas e alugou antecipadamente todas as prensas a fim de poder realocá-las a preço de ouro no momento da colheita. Essa anedota, na época, servia de contraponto a outra, mais irônica, em que se contava que Tales, de tanto olhar o céu, caíra num poço. Dito isso, as formas contemporâneas da especulação financeira são evidentemente bem mais abstratas. Na especulação financeira não se antecipa o valor real das coisas, mas a opinião que o mercado fará desse valor. O fato é que a saúde econômica dos países parece depender, hoje, de puras especulações nas bolsas de valores. Não entrarei no detalhe técnico da especulação financeira. Observarei apenas que essas antecipações têm por objetivo produzir um lucro imediato. O capitalismo financeiro é representativo, penso eu, de certa temporalidade contemporânea: trata-se de estar sempre adiantado, mas tendo em vista resultados de curto prazo, o que implica uma tensão perpétua. Nossa temporalidade é uma temporalidade da antecipação permanente e da imediatez sempre renovada. Ora, a preguiça consiste, precisamente, em estar disponível ao presente. Ser preguiçoso é não antecipar. O imediato é o contrário do presente. Estar disponível ao presente é, no fundo, dar tempo a si mesmo. Contra a tirania da imediatez, contra a tirania da antecipação perpétua, a preguiça pode ser vista como uma arte de nos darmos tempo. Dar tempo é retardar, marcar pausas. A preguiça é também uma arte da lentidão.
Compreende-se, finalmente, que o que é rejeitado pelo capitalismo é uma série de valores importantes da existência: a disponibilidade, a gratuidade, a inutilidade, a frivolidade, a lentidão. Todos esses valores são, ao contrário, buscados nas atividades preguiçosas. Então, para terminar, quero evocar uma sabedoria muito antiga, pois data da Grécia antiga, e que, penso eu, se construiu precisamente como uma arte da felicidade preguiçosa. Trata-se do epicurismo. Pode parecer paradoxal considerar o epicurismo uma alternativa ao mundo contemporâneo, quando muitas vezes é o reinado do gozo imediato que nele é denunciado.
Para Epicuro, precisamente, a felicidade não é o gozo imediato, cuja satisfação exige uma renovação perpétua. A felicidade é certo prazer preguiçoso, que é o prazer de se deixar viver, de se entregar ao puro sentimento de existir. Para Epicuro, essa plenitude do sentimento de existir, que podemos sentir em raros momentos de paz e de serenidade, preenche a alma com exatidão.
Mas, justamente por ser de uma simplicidade imensa, esse prazer é frágil. E o principal obstáculo à felicidade preguiçosa não é tanto a infelicidade, e sim a tentação dos falsos prazeres. Os falsos prazeres são aqueles ligados a excitações, a reconhecimentos sociais. Esses prazeres representam, para Epicuro, um mecanismo infernal e frenético, mistura de excitação e de frustração.
Então, para poder encontrar, saborear e cristalizar essa felicidade preguiçosa, Epicuro propõe uma série de estratégias.
A primeira consiste em nos repetirmos regularmente máximas que nos protejam contra a tentação dos falsos prazeres. É preciso saber de cor e repetir frases como “ser rico é não ter necessidade de nada”, ou então: “o verdadeiro limite da grandeza dos prazeres é o desaparecimento dos sofrimentos”. Mas pode-se também repetir microdemonstrações. Por exemplo, para afastar o medo de morrer que ameaça nossa felicidade preguiçosa, devemos repetir o seguinte raciocínio: “a morte nada significa para mim, porque, se eu estou, ela não está; e, se ela está, eu é que não estou mais”. Convém notar que essa demonstração não visa apenas nos curar do medo de morrer. Ela visa, sobretudo, nos curar do desejo insensato de imortalidade que nos faz perder a alegria da felicidade de existir. Compreendam: se a morte é nada, é porque a vida é tudo. Não há outro absoluto para Epicuro senão o do presente. Mais uma vez, não se trata de compreender teorias, mas de repetir essas frases para que elas nos impeçam de cair na tentação das falsas satisfações sociais.
A segunda estratégia consiste em formar uma comunidade de amigos. Os amigos, para Epicuro, devem nos preservar dos perigos da sociedade. A sociedade, como também compreenderá mais tarde Rousseau, é a tirania das comparações. Compara-se tudo: nossa condição social, nossos filhos, nossa fortuna, nossa casa. O problema, então, não é de modo algum ser feliz, é mostrar ao outro que se é mais feliz que ele. Na amizade, ao contrário, reencontra-se a simples felicidade da presença, saboreia-se a simples alegria de estar junto.
Para conquistar a felicidade preguiçosa, Epicuro ensina, enfim, a existência dos deuses. Pois “os deuses existem”, diz e repete Epicuro. Essa tese da existência dos deuses pode parecer surpreendente no quadro do epicurismo, que é uma filosofia materialista. Mas as divindades epicurianas são, justamente, seres preguiçosos. Elas estão distantes, diz Epicuro, não se ocupam de nós, repousam em sua eternidade. Esses deuses preguiçosos têm uma dupla função na sabedoria epicuriana. Por um lado, não exigem nem religião, nem dogmas, nem devoções. Com isso nos fazem ver as angústias do além, difundidas pelas Igrejas, como erros. Por outro lado, sua preguiça sublime e transcendente serve de modelo ao sábio. Ser feliz é conseguir, como os deuses, repousar tranquilamente em si mesmo.
Epicuro nos lembra, finalmente, que o maior obstáculo à felicidade não é a infelicidade, são as imagens sociais da felicidade. Marx denunciará, bem mais tarde, o fetichismo da mercadoria, que faz acreditar que o valor é uma propriedade intrínseca das coisas, quando ele é uma relação social. Epicuro, por seu lado, denuncia o que podemos chamar o fetichismo da felicidade, a saber, a ilusão que faz acreditar que a felicidade estaria ligada a condições difíceis de obter. E é finalmente a busca incessante da felicidade que nos faz infelizes. Mas a felicidade é preguiçosa demais para se atravancar com condições.
Pode parecer estranho ter evocado as lições dessa sabedoria antiga após um estudo sobre as relações entre o capitalismo e a preguiça. Mas percebe-se claramente na arte da felicidade epicuriana uma série de características rejeitadas pelo sistema de valores capitalistas: a valorização do instante presente, a disponibilidade às alegrias naturais, a riqueza da simplicidade.
No fundo, a preguiça é uma arte de fazer-se presente. A multiplicação dos objetos, o movimento social incessante, a busca de performances, tudo isso acaba por nos tornar ausentes. Arrastados pelo movimento do mundo, ficamos ausentes ao mundo, ausentes aos outros e ausentes a nós mesmos. Creio que a preguiça é precisamente uma maneira de nos fazermos presentes, presentes à presença do mundo, à presença dos outros e de nós mesmos. Por isso se pode dizer, para terminar, que a preguiça não é tempo perdido. Não é tempo perdido porque é uma arte de dar o tempo a si mesmo, o tempo presente.
Mas essa arte é difícil. E aí também a sabedoria nos ensina que o mais difícil é a simplicidade.