1998

Primeira missa e invenção da descoberta

por Jorge Coli

Resumo

A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles (1859) instalou o Descobrimento de modo definitivo em nossa cultura, ao recriar o “ato fundador” da Carta de Pero Vaz de Caminha. E, como esta foi publicada pela primeira vez somente em 1817, pode-se dizer que a Descoberta do Brasil é uma invenção do romantismo do século XIX. Foi a “visão do Paraíso” da Carta de Caminha, destacando a união de índios e portugueses, que levou Araújo Porto Alegre, então mentor do jovem Victor Meirelles, a escrever-lhe estes versos: “Já que o céu te chamou Victor na terra, / lê Caminha, pinta e então caminha”. Meirelles inspira-se na Première Misse en Kabilie  de Horace Vernet que, em 1853, celebrara o domínio colonial da França na África do Norte. Mas a maneira de conceber e de pintar a cena é muito diferente entre os dois. Enquanto Vernet narra com precisão um episódio histórico, Meirelles põe a cena principal mais ao longe, num clima espiritualizado e um pouco onírico que reúne os participantes numa espécie de útero. Não há a imposição do vetor missionário de “mão única” como em Vernet. Em 1948, Portinari também pintará uma Primeira missa, mas rejeitando a integração entre índios e europeus. Um novo mito, crítico desta vez, revê a história. Mas o modelo é sempre a Missa de Meirelles, com seus valores pictóricos adequados, sem brilhos excessivos nem rigidez simétrica. A convergência rara de formas, intenções e significados faz de seu quadro uma imagem do Descobrimento que dificilmente poderá ser apagada ou substituída.


A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das solicitações feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional que se combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma continuidade necessária inscrita num vetor dos acontecimentos. Os responsáveis essenciais encontravam-se, de um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentava cientificamente uma “verdade” desejada, e, de outro, na atividade dos artistas, criadora de crenças que se encarnavam num corpo de convicções coletivas.

A ciência e a arte, dentro de um processo intrincado, fabricavam “realidades” mitológicas que tiveram, e ainda têm, vida prolongada e persistente.

O quadro de Victor Meirelles, retratando a Primeira missa no Brasil, tal como foi descrita na carta de Pero Vaz de Caminha, é um episódio muito expressivo dentro desses processos. Ele fez, em grande parte, com que o Descobrimento tomasse corpo e se instalasse de modo definitivo no interior de nossa cultura. Assim, revela-se um excelente objeto de análise para a compreensão de procedimentos artísticos que dependem, em sua própria gênese, das contribuições originadas no projeto ideológico mais geral, na própria natureza de uma história capaz de engendrar o passado que se deseja, e na relação cúmplice entre as duas disciplinas no sentido de conferir aos construtos resultantes uma força efetiva de persuasão e de certeza.

Figura 1. A primeira missa no Brasil, Victor Meirelles, 1861.

A CARTA E O BOM SELVAGEM

A chegada das naves portuguesa pela primeira vez ao Brasil foi, é sabido, acompanhada por um documento excepcional. O escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, mandava ao rei de Portugal um relato narrando, passo a passo, do dia 21 de abril a 1º de maio de 1500, a aproximação e abordagem das novas terras.

O caráter documental, por si só, conferiria a esta Carta do achamento do Brasil um alto valor. Mas ela adquire um caráter mítico de “ato fundador” do país a partir de duas qualidades que Caminha possuía largamente: legítimo e elevado talento literário vinculado à capacidade aguda de observação.

Vista pela primeira vez, a terra brasileira foi descrita por meio de um olhar interessado e atento, cujo caráter “antropológico” nos parece tão moderno, mas que guardava na memória o tema clássico das Ilhas Afortunadas,[1] além de estabelecer, de imediato, um elo com o paraíso primordial da Bíblia. Nesta passagem, por exemplo:

Entre todos esses que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, à qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano, com que se cobrisse, e puseram-lhe ao redor de si. Porém, ao sentar, não fazia memória de o muito estender para se cobrir; assim Senhor, que a inocência dessa gente é tal, que a de Adão não seria mais quanta em vergonha.

Embora de relance, este olhar possui natureza semelhante àquele, mais prolongado, de Jean de Léry, alguns decênios depois. De modo retrospectivo, é possível perceber na carta de Caminha o núcleo primordial de uma percepção que Sérgio Buarque de Holanda chamaria de “Visão do Paraíso”[2] e que, de Léry a Montaigne, e de Montaigne a Rousseau, daria origem ao tema do “bom selvagem”, instrumento reflexivo capital para que a cultura do Ocidente pudesse pensar-se de modo crítico. Enfim, esse bom selvagem francês, nascido da reflexão sobre o índio brasileiro dos primeiros tempos, finalmente, no século XIX, voltaria para seu lugar de origem através do Romantismo.

A INVENÇÃO DE UM DOCUMENTO AUTÊNTICO

Porém, nesta sequência, a Carta indica antes um olhar comum possível do que um efetivo primeiro núcleo do tema paradisíaco. Pois ela foi publicada somente em 1817, na Corografia Brasílica de Aires de Casal. Só então a Carta de Caminha entra como documento primordial na história do Brasil – e, sobretudo, na história da história do Brasil.[3] Os historiadores costumam encontrar apenas aquilo que procuram.

A história, a cultura, o imaginário coletivo dos portugueses teve, na epopeia das navegações, um polo essencial contínuo e sempre renovado através dos tempos. Camões, Vieira, Pessoa estão entre os nomes mais elevados que se encarregaram de atualizá-la e, assim, de perpetuá-la, transformando-a num instrumento de identidade e de construção constante de si. O caso brasileiro é diverso. O episódio de Cabral não se destaca na história. Ele surge apenas quando a história o exige.[4]

Límpido, preciso, visual, com um frescor tão adequado ao mundo inocente que reconstitui, o estilo de Caminha confere ao documento o poder definitivo de projetar-se no imaginário histórico que emerge e atravessa o século XIX brasileiro. Imaginário investido pela fabricação de um mito nacionalista cuja vida será longa, vigoroso ainda nos nossos dias. Capistrano, em 1883, formula de modo lapidar: “[…] carta de Pero Vaz de Caminha, diploma natalício lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura […]”.[5] O documento do passado encontra o seu destino numa inequívoca teleologia ideológica.

As imagens tão marcantes apresentadas pelo escrivão de bordo em 1500 perpassam pela produção literária de um romantismo “indianista”, reforçando a crença na fusão das raças presente em Iracema,[6] obra nuclear que preside à criação de uma consciência nacional das origens, na qual seu autor, José de Alencar, vai buscar o tom em Atala e René. Ao fixar no verbo a observação “verdadeira”, a carta legitima e confirma, segundo a história, as convicções que a literatura criava: Caminha garante Chateaubriand e confere verdade virtual a Iracema.

Deste modo, a carta foi publicada quando o devia ser. Correspondia perfeitamente à solicitação de historiadores e literatos que construíam então o passado brasileiro através da história e da literatura – essas duas grandes disciplinas do imaginário.[7]

A MISSA E A FUSÃO DAS CULTURAS

Além de seu poder em tornar presentes aqueles acontecimentos remotos, primevos, quase míticos, a carta trazia também a associação dos dois elementos humanos nobres, tomados no século XIX como ancestrais legítimos para a recente nação: os índios e os portugueses. Mais do que isso, a carta juntou, amável e harmoniosamente, pagãos e católicos.

O cerne do texto concentra-se na cerimônia mais significante: a missa, que congregou navegadores e índios. Caminha detalha os preparativos, assinalando as diferenças de cultura: o trabalho dos carpinteiros, o espanto dos índios diante da “ferramenta de ferro”, eles que possuíam apenas “pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas”; a grande cruz, que repousava contra uma árvore, à espera de sua elevação, devotamente beijada pelos portugueses, imitados em seguida por dez ou doze nativos; a escolha de um lugar de destaque para a instalação do altar. Por fim, a cerimônia propriamente dita:

Ali estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos em giolhos, assim como nós, e quando veio ao Evangelho, que nós erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até ser acabada e então tornaram-se a assentar como nós, e quando levantaram a Deus, que nos pusemos de giolhos, eles se puseram todos, assim como nós estávamos, com as mãos levantadas e em tal maneira assossegados, que certifico a Vossa Alteza, que nos fez muita devoção. E estiveram assim conosco até acabada a comunhão…

Caminha conclui inserindo o personagem de um índio mais idoso, “homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos”, que parece ter compreendido o sentido da cerimônia, chamando a atenção de outros índios – “falando-lhes acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou o dedo para o céu, como quem dizia alguma coisa de bem e nós assim o tomamos”. Caminha sabe singularizar, e deste modo, dar mais vida ao geral.

Assim, sob a égide católica, associam-se, numa cena de elevação espiritual, as duas culturas.[8] Criava-se ali o ato de batismo da nação brasileira. Momento prenhe de significados, que o projeto de construção de um passado histórico para o Brasil, ocorrido no século XIX, saberia explorar.

GÊNESE ”DA PRIMEIRA MISSA NO BRASIL”

A pintura será encarregada de fixar e de imprimir nas mentes esse instante inaugural através do pincel de Victor Meirelles, então jovem e promissor talento.

Meirelles havia partido para a Europa em 1853, quando recebera o Prêmio de Viagem da Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Depois de um período romano, instala-se em Paris. Ali, em 1859, decide pintar a Primeira missa no Brasil.

Seu mentor brasileiro era Araújo Porto Alegre. Na esteira de Ferdinand Denis,[9] cujas obras sobre o Brasil propuseram uma inflexão cultural de cunho nativo para o jovem país independente, Porto Alegre foi o primeiro catalisador do romantismo brasilianista,[10] exercendo atividades literárias ao mesmo tempo que plásticas. Esse importante animador de uma cultura artística de cunho nacional insistira para que Meirelles se embebesse do texto de Caminha: “Leia cinco vezes o Caminha, que fará uma cousa digna de si e do país”. Insistia também para que reproduzisse uma natureza tropical, inserindo na paisagem imbaíbas, coqueiros, palmeiras.[11]

Preparava-se um ícone da história nacional.

Victor Meirelles estava encarregado de uma tarefa ambiciosa e cuja responsabilidade parecia imensa: oferecer ao Brasil o instante de seu nascimento. Essa intenção parece tão clara que Porto Alegre não hesitará em mesclar os dois nomes criadores desse momento primordial num terceto que envia ao jovem pintor:

Lê Caminha, ó artista, marcha à glória

Já que o céu te chamou Victor na terra

Lê Caminha, pinta e então caminha.[12]

A vitória do pintor depende do cronista, e a leitura da crônica justifica o avanço do artista em seu destino vitorioso. A história e a arte se imbricam numa imanência genética de seus criadores: uma depende da outra, um depende do outro.

Cimentada esta solidariedade entre o documento e a pintura, poderíamos imaginar que a Carta, com sua descrição minuciosa, bastasse para a gênese da obra. Há mais, no entanto, e algo bastante surpreendente. É que Meirelles inspira-se, para seu grupo principal, na Première messe en Kabilie, obra pintada por Horace Vernet, e apresentada em 1855 no Satan. O episódio figurado ocorrera em 1853 e fazia parte do projeto colonial francês na África do Norte. Ele simbolizava o domínio do exército conquistador em interior de terras habitadas por um povo que soube resistir e se revoltar contra os europeus. A missa celebrava a submissão das tribos cabilas.

Figura 2. Première messe en Kabilie, Horace Vernet, 1855.

Vernet participara da campanha. Foi mesmo por sua intervenção que o padre Régis, o celebrante, o acompanhou. Mais ainda: Vernet havia mesmo projetado o altar provisório ao ar livre; ele fora o cenógrafo e o metteur-en-scène do acontecimento.[13] Mais do que nunca, a pintura aqui fazia-se história: o artista criava o fato por meio de uma montagem que seria, em seguida, perpetuada na tela. Ou seja, o acontecimento era, em realidade, uma construção simbólica de autoria do próprio artista. Transposto para imagem fictícia da tela, deveria entrar para a “verdade” dos feitos históricos.

Embora retratando um episódio situado nos anos de 1850, portanto contemporâneo de Meirelles, a imagem produzida por Vernet trazia pontos em comum com a cerimônia de frei Henrique de Coimbra. Em ambos os casos tratava-se de uma celebração em terra de infiéis que se juntavam a europeus na assistência. Desta forma, o quadro de Vernet tornava-se paradigma enquanto resultado de um testemunho ocular. O pintor francês vira uma cena equivalente, do ponto de vista histórico, àquela que se passara no Brasil em 1500. A analogia impunha-se como instrumento do rigor e da verdade: um outro pintor, através de sua arte, tornara-se testemunha de um acontecimento paralelo ao que Meirelles deveria construir para a arte e para a história brasileiras. Assim, Vernet oferecia, adicionalmente, uma certa verdade transistórica de articulação entre culturas por meio do mesmo ritual que Meirelles percebe e capta.

Tais afinidades transistóricas interculturais eram sentidas, no século XIX, como instrumentos da legitimidade. Através de um raciocínio analógico e intuitivo, elas pareciam conferir um cunho de autenticidade às obras contemporâneas: é assim que Gonçalves Dias irá buscar, no Brasil, o modelo das baladas alemãs, elas próprias de origem popular, para seus poemas indianistas,[14] e é através do mesmo procedimento que Longfellow – por sinal amigo e correspondente de Pedro II do Brasil – recriará as lendas indígenas da Nova Inglaterra tomando como inspiração as formas rítmicas do Kalevala da Finlândia!

DIGRESSÃO SOBRE O PLÁGIO

Os vínculos entre Meirelles e Vernet trazem-nos, no sentido dessas relações fecundantes, paradoxalmente paralelas, e incidentais, uma situação intrincada que vale analisar. O grupo central de ambos os quadros é evidentemente o mesmo, disposto de modo invertido. Entretanto, ideia de plágio, que surge imediatamente ao espírito, deve ser tomada com precaução.

O procedimento por citações, dentro da pintura de história, era um instrumento legítimo à natureza do gênero. Os achados insignes voltavam nas obras mais ilustres, incorporados: a cultura visual mostrava-se como tão importante quanto a invenção. Não é inútil lembrar que os pressupostos culturais sobre os quais repousava o gênero pintura de história revelavam-se tão constitutivos da imagem quanto cores e pinceladas. A arte do século passado e não apenas a dita pompier – mantinha um diálogo denso com a história da arte, mais antiga ou mais recente.

Os pintores jovens citavam incessantemente os mestres que os precederam, inspirando-se neles. Foi, grosso modo, a partir do Impressionismo que a ideia de originalidade se modificou, e realizar uma grande obra não significou mais orquestrar uma multiplicidade de imagens harmoniosamente organizadas numa vasta superfície, fazendo apelo a um passado visual coletivo, que nelas se insere, atualizando-se. Hoje, acostumados com a genialidade mais imediata, formalmente originalíssima e com referências culturais concentradas numa subjetividade, como no caso de Monet, Van Gogh ou Picasso, olvidamos as ambições. da pintura de história, então considerado como hierarquicamente superior aos outros – retrato, natureza-morta, paisagem – porque os englobava a todos, numa articulação complexa, arduamente obtida.

O que importava era dar conta de um programa ambicioso: menos valia a novidade individual do que a felicidade em vencer os escolhos inerentes ao projeto. Nesse contexto, a citação, a referência ao passado não são, de modo nenhum, pastichos originados pela falta de imaginação, mas um modo de mostrar como aquele elemento preexistente ressurge numa outra inter-relação.

O jovem Meirelles, em Paris, devia fazer um quadro significativo para a cultura nacional. Ele tinha, diante dos olhos, como referência obrigatória, o quadro que Horace Vernet, mestre então indiscutível, expusera, poucos anos antes, cujo título e o essencial do tema estavam muito próximos do projeto brasileiro. Tratava-se, para Vernet, de misturar cabilas e soldados franceses, criando uma barreira de personagens entre a cerimônia e o espectador, como Meirelles devia misturar portugueses e índios, diante da celebração que se passa, nos dois quadros, à frente de um altar improvisado ao ar livre. Como já foi assinalado, Vernet presenciara o acontecimento, fora mesmo seu metteur-en-scène. Esta situação, na qual um outro pintor, inda mais de grande prestígio, era testemunha e participante do fato histórico, introduz um aspecto suplementar na “verdade” que Meirelles buscava: além da carta de Caminha, além do estudo da natureza local, havia uma experiência visual contemporânea análoga àquela passada em 1500, que permitia um reforço na verossimilhança da imagem. Por todas essas razões, nosso brasileiro tomou-a como modelo, e dela extraiu o núcleo da sua obra.

MISSAS COMPARADAS

Tudo isto torna ainda mais fascinantes as grandes distâncias que existem entre a pintura de Vernet e a de Meirelles. A incorporação, na obra brasileira, do achado do mestre francês não significou cópia, plágio ou pasticho. Porque a Primeira missa de Meirelles mostra que a retomada de Vernet deu-se em benefício de um resultado muito diferente.

Um dos pontos mais evidentes nessa diversidade é a distância da cena. Vernet quer narrar, com precisão, um episódio, e ele o traz para a proximidade dos olhos, de modo a que adquira impacto. Meirelles quer a cena principaÍ mais ao longe, integrando-a numa suavidade atmosférica, num clima espiritualizado. Vernet quer o efeito teatral. Sua cruz é envolvida por uma nuvem de fumaça, diminuída ao pé das montanhas áridas que barram o céu, comprimindo o espaço e impondo-se majestosamente. A cruz de Meirelles, longilínea, traça o eixo condutor que leva o olhar para o alto, enquanto o horizonte abre-se no fundo como um instrumento da serenidade. Vernet impõe a cena através do impacto oferecido pelo formato vertical da tela; Meirelles desenrola com calma seu episódio numa horizontalidade um pouco onírica.

Vernet quer a descrição pitoresca das roupas, dos detalhes, em coloridos vivos, e não possui o sentido da organização conjunta, da integração dos personagens. Meirelles trata seus índios de maneira pouco descritiva, numa concepção abstrata,[15] fazendo-os desenrolar uma cadência sucessiva de gestos. Com precisão, insere todo elemento delicadamente diante de cada exigência da composição – note-se esse grupo de frades que se inclina suavemente ao pé da cruz, abrindo se num leque que vai da posição vertical à horizontalidade do solo. Ele cria também indizíveis passagens de tons.

Vernet narra anedoticamente, en gazetier, como dele diria Baudelaire. Preocupa-se com o pitoresco minucioso dos trajes, mas coloca sem cuidado uma fieira de soldados e suas baionetas que se sucedem com dureza banal. Ele desconhece essas secretas intimidades entre os elementos que se enlaçam num sentido poético da organização, tão caras ao pincel de Meirelles. São gritantes as diversidades essenciais de ambos os quadros. Entre a anedota pitoresca contada por Vernet e o sentimento elevado obtido por Meirelles há um abismo separando duas concepções artísticas. Estas duas concepções divergentes resultam em uma oposição significativa no que concerne ao sentido geral da obra. Partamos dos cenários. Já vimos o quanto, para Porto Alegre, a construção de uma natureza nacional era importante e como, obedientemente, Meirelles vai pôr em prática essas sugestões. Mas é preciso pensar também que essa natureza substitui o templo, já que a cerimônia é ao ar livre. Se na obra de Vernet as montanhas são rudes e ásperas, impositivas, elas se coadunam com o projeto de um triunfo cristão em terra hostil, onde a junção de cristãos com infiéis se faz por justaposição, sem a ideia de fundir os dois grupos. Ao contrário, a linha de soldados, rigorosa e repetida, faz como que uma barreira e não conduz à reunião harmônica dos grupos distintos.

No caso de Meirelles, o templo natural, suave em seus verdes macios e banhado por uma luz finíssima, mais a própria disposição dos personagens que, embora guarde o princípio de unidades grupais, em seus encadeamentos e ritmos, reúne os participantes numa fusão. Torna-se uma espécie de útero fecundador.

É importante que os grupos guardem, cada um, sua coerência unitária porque conferia-se – os românticos conferiam – aos índios uma especificidade que nos distinguisse dos europeus. Esperava-se desses bons selvagens uma contribuição que faria de nós, brasileiros, um unicum pela mescla de duas culturas e de duas raças convergentes. Mais tarde, em 1879, Meirelles encarregar-se-á de um novo construto no programa ideológico nacional integrando o terceiro elemento cultural e racial, vindo da África. É quando termina a imensa tela da Batalha de Guararapes, onde cristaliza visualmente o mito fundador das “três raças tristes”, consolidadas pelo heroísmo guerreiro que defende o território e opõe-se ao inimigo.

No caso da Primeira missa, veremos adiante como a fusão manifesta-se por meios formais justos. O processo integrador exclui a imposição que encontramos em Vernet, mas exclui também o vetor missionário de “mão única”, isto é, a Europa que traz o Cristo para os pagãos e que reduz seu vínculo com os aborígines a uma incorporação simples de convertidos à fé da Igreja.

Esta configuração, vinculada ao princípio barroco da expansão da fé, teve expressão visual. Jean-François de Troy, brilhante pintor dos tempos da Regência, concebe um Le débarquement de Christophe Colomb en Amérique, obra destinada à Sala do Senado no palácio ducal de Gênova, mas que permaneceu em estado de projeto.[16]

Figura 3- Le débarquement de Christophe Colomb en Amérique, Jean-François de Troy

A imagem se desenrola da esquerda para a direita. Os europeus avançam vigorosamente, tendo à frente uma cruz tosca que é exibida aos selvagens, os quais imediatamente se prostram em gesticulação de espanto e de êxtase. O projeto da propagação católica é aqui clara e exclusiva: da chegada de Colombo à América não nasce nenhuma nova nação. Trata-se de dilatação da fé em novos mundos. Algo muito divergente das intenções próprias à Primeira missa de Meirelles.

O ÍCONE E SEU FUTURO

Em 1861, a obra é apresentada no Salon parisiense.[17] Era a primeira vez que um pintor brasileiro conseguia tal proeza, e isso acentuou, aos olhos nacionais, a importância do quadro.

Ele se tornou a verdade visual do episódio narrado na carta. Como diria, em 1888, o crítico Gonzaga Duque[18] “A primeira missa não poderia ser senão aquilo que ali está”. Isto é, Caminha não encontrara apenas um tradutor visual moderno. Era outra coisa, mais forte, mais profunda: o espectador moderno assistia à primeira missa no Brasil. Quem o assegurava era, de um lado, o documento e, de outro, o poder demiúrgico da arte. Essa verdade perpetuar-se-á em outras obras relevantes de nossa cultura: quando Humberto Mauro realiza seu filme O descobrimento do Brasil, em 1937, guiado pelo roteiro oferecido por Caminha, não poderá evitar de reconstituir, diante da câmara, a cena idealizada por Victor Meirelles. O nacionalismo dos tempos de Getúlio Vargas vai continuar os mitos do século XIX numa prolongação ideológica que se quer verdade da história. E não cessa aí.

No Uruguai, em 1948, Cândido Portinari termina, para o Banco Boavista do Rio de Janeiro, a Primeira missa no Brasil. O tema fundador persiste, historicamente inevitável. Mais ainda, persistem as soluções essenciais da imagem, estabelecidas por Meirelles: um núcleo central com o celebrante e seu assistente no momento da elevação, diante de um altar cúbico sobre um pedestal ao ar livre e, numa gravitação em torno, os fiéis. Portinari retoma Meirelles.

Figura 4 A primeira missa no Brasil, Cândido Portinari, 1947

Curiosamente, sua gramática visual tardocubista, feita de recortes duros e geometrizados, vai induzi-lo a uma rigidez e a um procedimento de unidades repetidas, evidente no grupo central de monges, em concepção oposta aos de Meirelles. É como se, involuntariamente, ele se aproximasse da própria fonte mais antiga, isto é, do quadro de Vernet que, na sua ausência de flexibilidade, apresentava uma certa dureza na disposição dos personagens, mais particularmente naqueles ajoelhados, com as baionetas em riste. Esteja claro: não imagino que Portinari conhecesse a tela de Vernet, mas, retificando a composição de Meirelles no sentido do rigor geométrico, ele se aproxima, involuntariamente que seja, do modelo francês, recuperando a rigidez que Meirelles abrandara.

O diálogo entre Portinari e Meirelles pode ser percebido ainda por meio de uma recusa, não iconográfica, mas ideológica. O projeto de Meirelles baseava-se na fusão fundadora entre europeus e indígenas. Portinari rejeita essa integração, eliminando os índios de sua obra e mostrando uma cerimônia só de europeus. A astúcia é relativamente fácil, mas sua sedução funciona como uma armadilha. Assim, Mario Pedrosa escreve, sobre o quadro, no Correio da Manhã: “É ato de conquista cultural, de plantação da semente na terra virgem. Aquilo tudo vem de fora; é um enxerto de civilização cristã em solo pagão. Eis por que não há índios”.[19] Um novo mito, crítico desta vez, constitui-se para rever a história. Inda mais que, se examinarmos com isenção a obra, perceberemos nela um caráter épico vindo não apenas do formato enorme – 266 x 598 cm – mas da grandeza compositiva, na qual inserem-se gestos expressivos de uma fé comovida e sincera, colocados em evidência, no primeiro plano. O tom épico, além disso, sobrepuja qualquer veleidade crítica. A eliminação dos índios permitiu a leitura mais radical de Mario Pedrosa, embora a imagem oferecida permaneça ambígua, negando a clareza proposta pela interpretação.

Seja como for, o modelo é sempre a Missa de Meirelles. Em 1861, o ícone definitivo estava terminado. Meirelles faria outras obras, admiráveis. Nenhuma delas, porém, teria a presença, o impacto, a popularidade, a verdade da Primeira missa. Mais tarde, em 1879, Pedro Peres executaria a Elevação da cruz em Porto Seguro, belo quadro, sem dúvida, mas tão anedótico, e sem essa existência culturalmente ontológica da admirável pintura de Meirelles.

Figura 5. A elevação da cruz em Porto Seguro, Pedro Peres, 1879

Seria necessário esperar outro pintor, Pedro Américo, que, em 1885, realizaria uma obra que se tornaria outro ícone fundador da história brasileira: O grito do lpiranga, celebrando a independência do Brasil. Este último, entretanto, poderá parecer, talvez, a certos olhos de hoje, um pouco envelhecido pela alta veemência retórica fortemente afirmada. A Primeira missa, não.

A FORMA JUSTA

É bem evidente que, para atingir esse poder e essa permanência, a obra possui os meios formais adequados. Meirelles estudara na Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, que fora marcada por professores franceses vindos em 1816, de boa cepa neoclássica. Mas os anos que passara em Roma, trabalhando sobretudo com um discípulo de Minardi, Nicola Consoni, fizeram-no entrar em contato com a chamada pintura “purista” – arte na qual o desenho é mais frágil, tênue e delicado que os da tradição inaugurada por David, arte que abranda o vigor anatômico neoclássico em benefício de corpos simplificados, arte cujas cores são suavizadas e onde uma geometria interna preside à composição -, geometria de tranquilo equilíbrio. Arte de abstrações que se distanciam, por essência, da cor local pitoresca, cara ao narrador Vernet. Aqui atingimos o núcleo irredutível da distinção entre os dois pintores. Na Roma de Pio IX, a formação neoclássica de Meirelles atenuara-se, espiritualizara-se, adquirindo um modo definitivo de ser que o seu período parisiense não saberia apagar. Todos estes princípios surgem com clareza na Primeira missa, cujo projeto era o de instaurar um momento harmônico e espiritual, onde se concertavam mundos opostos.

Para tanto, Meirelles dispôs as multidões conforme um triângulo largo que se abre para o espectador, evitando a rigidez simétrica. Ali os personagens, sem perder a variedade individual, por vezes mesmo singularizando-se, como o velho índio de Caminha, integram-se numa massa de tons cuidadosamente modulada. No primeiro plano, os índios compõem um friso em contraluz, que faz recuar a cena principal, onde frei Henrique de Coimbra procede  elevação. Vemos a missa a distância, projetada mais longe pelas sombras do primeiro plano, que nos separam da cena principal. A luz é nacarada, sem brilhos excessivos. A atmosfera difusa não permite que o branco das vestes do sacerdote ressalte em demasia; ela antes o incorpora ao azul esbranquiçado da paisagem ao longe. O instante é contemplativo. O movimento é suspenso.

Meirelles atingiu a convergência rara de formas, intenções e significados que fazem com que um quadro entre poderosamente dentro de uma cultura. Esta imagem do descobrimento dificilmente poderá vir a ser apagada, ou substituída. Ela é a primeira missa no Brasil. São os poderes da arte fabricando a história.

NOTAS

  1. Como lembra Luciana Stegagno PICCHIO em La letteratura brasiliana, Firenze, Sansoni-Accademia, 1972. Sobre os modelos culturais que se impunham à visão dos cronistas no século XVI, ver Frank LESTRINGANT, “L’Amérique dans la mythologie classique”. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, 1994. Ver também a excelente análise de Wilson MARTINS, ”A gramática do mundo”, em História da inteligência brasileira, 2ª ed., São Paulo, Cultrix, 1977, vol. 1, pp. 49 e ss.
  2. Sergio Buarque de HOLANDA, Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil, 4ª ed., São Paulo, Nacional, 1985.
  3. A carta de Caminha foi copiada em 1773, por ordem do guarda-mor da Torre do Tombo. Em 1793 o historiador espanhol Juan Batista Munos a publica parcialmente na sua Historia del Nuevo Mundo (ver Francisco Adolfo de VARNHAGEN, [visconde de Porto Seguro], História geral do Brasil antes de sua separação e independência de Portugal, 4ª ed., São Paulo, Melhoramentos, 1927, p. 87, nota V, e Raimundo de MENEZES, Dicionário literário brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1969, p. 284. É Aires de Casal que a publica e divulga pela primeira vez no Brasil em 1817. Depois da publicação de Aires de Casal, que expurga a carta das passagens referentes à sexualidade, as edições e traduções se multiplicam ao longo do século XIX. A segunda entre elas foi a tradução francesa, de 1821, feita por Ferdinand Denis, no seu Journal des voyages, retomada em 1822 pelo mesmo autor, em Le Brésil, ou histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce royaume, obra redigida em colaboração com H. Taunay. De 1822 data também a tradução inglesa do texto, incluída na segunda edição da History of Brazil, de Robert Southey. Denis a publica mais uma vez em 1825, nas Scènes de la nature sous les tropiques; em 1826 o documento conhece uma edição portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa, e em 1828 é traduzida em alemão no Feliners Reisen Durch Brasilien, por D’Olfers. Ainda a esse respeito Leonardo Arroyo, “Inventário bibliográfico”, em A carta de Pero Vaz de Caminha, São Paulo, Melhoramentos, 1971. Além da edição de Arroyo, ver também, entre as recentes, a de Sílvio CASTRO, Porto Alegre, L&PM, 1987. A carta terá sempre um papel primordial em todos os debates sobre a descoberta – veja-se, por exemplo, o texto de referência que constituiu a tese de J. Capistrano de Abreu, “O descobrimento do Brasil”, apresentada no concurso para a cadeira de História do Brasil do Colégio Pedro nem 1883 (J. CAPISTRANO DE ABREU, “O descobrimento do Brasil”, Sociedade Capistrano de Abreu, 1929).
  4. Gabriel Soares de Souza, em 1587, ao assinalar o descobrimento em seu Notícia do Brasil, associa a ele essencialmente apenas o caráter de posse lusitana, simbolizada pelo ato da missa: “Esta terra se descobriu aos 25 dias do mês de abril de 1500 anos por Pedro Álvares Cabral, que neste tempo ia por capitão-mor para a Índia por mandado de El-rei D. Manuel, em cujo nome tomou posse desta província, onde agora é a capitania do Porto Seguro, no lugar onde já estêve a vila de Santa Cruz, que assim se chamou por aqui se arvorar uma muito grande, por mandado de Pedro Álvares Cabral, ao pé da qual mandou dizer em seu dia, a 3 de maio, uma solene missa com muita festa […] e para solenidade desta posse plantou êste capitão no mesmo lugar um padrão com as armas de Portugal, dos que trazia para o descobrimento da Índia, para onde levava sua derrota” (Gabriel Soares de Souza, Notícia do Brasil, introd., coment. e notas pelo prof. Pirajá da Silva, São Paulo, Martins, s. d., t. 1, p. 65). Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, concluída em 1627, imbuído ao mesmo tempo do espírito da Contra-Reforma, de um profundo preconceito contra os índios e de um pessimismo em relação aos destinos da terra, que nasce com o próprio nome, para ele demoníaco, de Brasil, e que condena o país a um sinistro futuro, assinala, no descobrimento, os poderes soberanos de Cristo através da missa sobre os bárbaros pagãos: “[…] o padre frei Henrique […] o qual disse ali missa e pregou, onde os gentios ao levantar a hóstia e cálix se ajoelharam e batiam nos peitos como faziam os cristãos, deixando-se bem nisto ver como Cristo senhor nosso neste divino sacramento domina os gentios […] Do deus Pà diziam os antigos gentios que dominava e era senhor do universo, e disseram verdade se o entenderam deste Pão divino; porque sem falta ele é o deus que tudo domina, e apenas há lugar em toda terra onde não seja venerado, nem nação tão bárbara de que não seja querido e adorado, como estes brasis bárbaros o fizeram” (frei Vicente do SALVADOR, História doBrasil 1500-1627, 6ª ed., rev. por Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e frei Venâncio

    Willeke, São Paulo, Melhoramentos, 1975, p. 57). (Comparar com nota 8.) O descobrimento e a missa servem a Soares de Souza para legitimar a possessão da terra por Portugal; Vicente do Salvador os utiliza apenas para ilustrar os poderes de Cristo sobre um povo e numa terra das mais hostis e avessa à espiritualidade.

  5. J. CAPISTRANO DE ABREU, “O descobrimento do Brasil”, pp. 238-9.
  6. Iracema foi publicado em 1865.
  7. A carta de Caminha, no século passado, foi acompanhada pela descoberta ou pela leitura atualizada dos textos de viajantes do século XVI (Staden, Thévet, Léry) e dos antigos memorialistas. Alencar, na “Advertência” à Ubirajara, a última de suas obras indianistas, insistirá na necessidade de estudar “com alma brasileira, o berço de nossa nacionalidade”. Neste conjunto, entretanto, a carta, percebida como texto fundador, guardará sempre seu brilho primordial.
  8. O caráter de construto próprio a esta fusão sobressai na leitura comparada do capítulo primeiro da História do Brazil do protestante Southey, cuja tradução brasileira feita por Luiz Joaquim de Oliveira e Castro é publicada em 1862. Assim, Southey desconfia da vocação cristã dos indígenas sugerida por Caminha. Por exemplo, adesão dos selvagens parece a ele mera imitação mecânica: “Havião-se reunido alli uns sessenta indígenas, que ajoelhárãa quando virão os Portuguezes ajoelhar, erguerão-se quando os virão erguer-se, e praticárão todos os gestos que os virão practicar” (Roberto SOUTHEY, Historia do Brazil, trad. de Luiz Joaquim de Oliveira e Castro, notas de J. C. Fernandes Pinheiro, Rio de Janeiro, Gar0 nier, 1862, t. 1, p. 33). O espírito de “objetividade” de Varnhagen foi certamente contaminado pela postura de Southey, quando escreve: “Presencearam a solemnidade, cheios de espanto (que alguns dos nossos tomaram por devoção), muitos filhos da terra que ali vieram”. Note-se o sugestivo nossos em oposição aos filhos da terra.
  9. Ferdinand Denis percorreu a América do Sul durante cinco anos, demorando-se sobretudo no Brasil. Escreveu abundantemente sobre a cultura brasileira. Seu Scènes de la nature sous les tropiques, de 1824, no qual celebrava os poderes da natureza sobre a imaginação dos homens que vivem na exuberância dos países quentes, teve um papel determinante sobre o romantismo que nascia no Brasil.
  10. Porto Alegre cria a palavra brasiliana para designar uma produção lírica que fundia, no modelo da balada romântica, temas e termos da natureza e da cultura brasileira. A palavra terá uma grande fortuna; ainda no século XX ela serviu de título para uma importante coleção de estudos diversos sobre a história e a cultura do Brasil, e foi incorporada aos dicionários para definir uma coleção de obras ou um conjunto de estudos sobre o Brasil. É forçoso assinalar também aqui o visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, cujo papel como historiador do Brasil é essencial, tanto pela interpretação quanto pela descoberta e publicação de documentos, mas ainda como historiador da literatura brasileira e, mais, como dramaturgo, poeta e ficcionista, recriando, por meio da arte, o passado histórico que construía em suas obras de historiador. Antonio Candido enumera: “Varnhagen reúne o Caramuru e o Uraguai em 1845, nos Épicos Brasileiros, descobre Frei Vicente do Salvador, redescobre praticamente a Prosopopeia, de Bento Teixeira, publica o Diálogo das Grandezas e o Roteiro, de Gabriel Soares, sem contar que seu Florilégio é a mais rica antologia do tempo […]”. Suas obras de inspiração histórica incluem um drama intitulado Amador Bueno, de 1847, e O Descobrimento do Brasil, de 1840, que Antonio Candido define como “crônica romanceada”. Ver Antonio CANDIDO, Formação da literatura brasileira, São Paulo, Martins, 1959, pp. 349 e 388.
  11. Eis o que diz Porto Alegre na carta de 4/2/1859: “Não se esqueça de pôr algumas embaíbas (sic), que são formosas e enfeitam o bosque pelo caráter especial de suas folhas […] Lembre-se bem das nossas árvores e troncos retos, carregados de plantas diversas, altas e com coqueiros ou palmitos pelo meio, pois estes crescem à sombra dos grandes madeiros. Pouco, mas característico, mas genuinamente brasileiro”. E ainda, em 11/3/1859: “Na minha última carta lhe recomendei muito a leitura da carta de Pero Vaz de Caminha, que veio com Cabral na ocasião da descoberta. Ela o inspirará”. Cit. por Donato MELLO JR., “Temas históricos”, em Victor Meirelles de Lima, Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982.
  12. Cit. por Donato MELLO JR.,”Temas históricos”, p. 60.
  13. Ver catálogo da exposição “Académie de France à Rome”, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, Paris, 1980, p. 110 e, sobretudo, Les artistes contemporains musiciens, peintres et sculpteurs, Paris, Maison de la Bonne Presse, 1895, premiere série, pp. 14-6. A associação entre as missas de Meirelles e de Vernet encontra-se em GONZAGA-DUQUE, A arte brasileira, São Paulo, Mercado das Letras, 1995, p. 173 (1 ª ed. 1888).
  14. Acrescente-se, nesta esplêndida e embaralhada mistura de fontes, que se Gonçalves Dias concebe suas baladas através do modelo germânico, inspira-se em Montaigne – e não nos cronistas – para a cena central de seu poema mais célebre, o admirável I-Juca-Pirama, que narra uma cerimônia antropofágica. Ou seja, para criar o mais brasileiro dos poemas românticos, Gonçalves Dias vai buscar a forma da balada alemã e a narração de um pensador francês do século XVI que nunca esteve no Brasil. (A análise da relação entre Montaigne e Gonçalves Dias, e de seus vínculos também com a obra de Alencar, encontra-se em CAVALCANTI PROENÇA, José de Alencar na literatura brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, pp. 46 e ss.)
  15. Meirelles dissolve o pitoresco local, as citações destinadas a oferecer um reconhecimento anedótico dos personagens nesta concepção abstrata e sintética da tela. É isto que faz com que Barros Cabral, professor de pintura histórica na Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro, escreva, criticando os índios de Meirelles: “Em segundo, a cor dos índios é muito vermelha e em nada se assemelha a raça do Norte, a qual tem uma cor muito mais avermelhada e escura. Em terceiro deve aver so um índio com cocar porque é este o sinal do Chefe da Tribu ou Cacique”. O primeiro argumento refere-se ainda a detalhes de cor local: “[…] acho que o altar onde se selebra a Missa deve ser coberto com panos de navio ou barraca para impedir que esteija assim esposto o Calix, pois é costume em campo aberto selebrar-se a missa em uma tenda, cuja frente seja aberta nos espectadores” (cit. por Dona to MELLO JR., “Temas históricos”, p. 61). Vernet saberia melhor incluir estes saborosos deta lhes na obra, multiplicando-os. Meirelles submete tudo à sua concepção unitária, espiritual, muito alta, de pintura.
  16. Ver Hugh HONOUR, “L’Amérique vue par l’Europe”, catálogo da exposição do Grand Palais (Paris, 1976-77), Paris, Édition des Musées Nationaux, 1976, pp. 128-9.
  17. O catálogo do Salon de 1861 inscreve, à p. 263: MEIRELLES DE LIMA, (Victor), né à Sainte-Catherine (Brésil), éléve de MM. Léon Cogniet et A. Gastaldi. Rue du Cherche-Midi, 109 2183 – Premiere messe célébrée au Brésil. “Le vendredi 1 mai 1500, le P. Henrique célébra la messe en présence des sauvages, qui semblérent prêter à la cérémonie l’attention la plus vive et se levérent tous au moment de l’évangile.” Meirelles é ainda mencionado em Notices explicatives, historiques, hiographiques sur les principaux ouvrages de peinture et de sculpture exposés au Falais des Champs-ÉZvsées, Année 1861 – Paris, Plon, 1861, p. 54: M. MEIRELLES DE LIMA – N. 2183 Premiere messe célébrée au Brésil. Scéne intéressante, dont les principaux personnages sont des Indiens. Leurs traits exprimem l’étonnement, l’émotion, que leur cause le spectacle imposant dont ils sont les témoins. L’autel, abrité par des arbres magnifiques, avait été dressé sur une élévation. C’était le 5 mai (sic) 1500. Au moment de l’Évangile, tous les indiens se levêrent comme les Européens qui assistaient à la messe. O título de Primeira missa celebrada no Brasil foi algumas vezes contestado porque, antes dela, uma outra foi rezada num ilhéu. Donato MELLO JR., em “Temas históricos”, p. 67, esclarece: “A Primeira missa por ser a primeira em terra firme na presença dos índios tupiniquins, no dia 1º de maio de 1500, em que Pedro Álvares Cabral, simbolicamente, implantava a fé cristà em plagas americanas e tomava posse da terra para a Coroa portuguesa. Nesta segunda, a cruz fora de madeira e na anterior, a 26 de abril, tinha sido uma cruz de ferro”.
  18. GONZAGA-DUQUE, A artee brasileira, São Paulo, Mercado das Letras, 1995, p. 173.
  19. Cit. por Cândido PORTINARI, “Projeto cultural artistas do Mercosul”, São Paulo, Finambras, 1997, p. 262.

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